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Vendedor de óculos - Katsushika Hokusai, 1811-1814
(xilogravura médica)
Olhos de toupeira, embaciados de lama. Tenho as pupilas nas pontas dos dedos, as
premonições no faro, as indagações nos ouvidos. Vejo o meu mundo em daltonismos
próprios. Basta-me tirar os óculos, e tudo o que é torna a parecer, apenas. As
fronteiras esfumam-se em contornos e esboços vários, vultos, traços brutos,
impressionistas e difusos. Trago a lama nos olhos desde sempre. E, nesses tempos
rupestres e broncos, a miopia era estupidez,
cabeça mole, o miúdo não aprende as letras, nem à custa da menina de cinco
olhos,
mas eram eles, os olhos, que tanto me flagelavam as mãos, que tanto me cobriam a
cortina de lama, entre o entendimento e as garatujas do professor no quadro.
Onde o homem fazia formigas, eu queria elefantes. Onde o professor dispersava
polenzinhos bruxuleantes, eu queria a árvore aos meus olhos piscos, o tronco, os
galhos, as folhas gordas e jactantes.
E riam-se todos, e mandavam-me para o canto a ver se desemburrava. E nas
brincadeiras de rapazes não atinava com a bola, franzia os olhos e não decifrava
as pedras que lhes marcavam as balizas.
Estúpido, não tem prestança. Coloquem-no no canto dos nulos. Suplente no jogo,
na escola e agora também neste livro.
Fui ladrado impunemente pela canzoada, fui boi de piranha, apanhei sarna sem me
poder coçar, excluído da comunidade dos prestáveis. E andei sempre de olhos
pávidos, entre a vegetação humilde e rasteira, mas com raízes invisíveis
agarradas aos ventres da terra, que dali, daquela pertença, se me arrancarem
levam-me a pele atrás.
Até que o grémio das senhoras, do alto dos seus meios tacões e das suas
congénitas caridades, levou o miúdo-toupeira, aos tombos, a um médico da cidade.
E ele espreitou para o abismo dos meus olhos, o globo ocular alongado, as
imagens focadas muito além da retina.
Saí do consultório com um matacão de massa e arame e duas lentes em cima do
nariz.
A ponte entre os dois precipícios.
E nesse dia tudo se fez brilho, e pormenor, e diferenciação. Havia líquenes nas
paredes das casas. Herpes nos muros. E máculas, lesões e ulcerações em todas as
lisuras e maciezas. O granito não era só uma rocha dura e cinzenta, tinha
quartzo, feldspato e cintilações. Por todo o lado, nitidez, definição, borbotos,
saliências e imperfeições. Tudo estava macerado. Formigueiros, os tais
polenzinhos bruxuleantes. Nascia-me outro mundo debaixo dos olhos. Onde dantes
vacilavam adivinhações, agora pontificavam dogmas. Certezas. A arrogância
daquilo que é e existe e as desilusões de óptica. A montanha que não nascia do
céu mas da terra, como tudo o resto.
As senhoras, antes rapinas de negro que lhe alisavam o cabelo e emitiam
decibéis, tinham agora, cada qual, o seu rosto, a sua verruga, o seu buço, a sua
curvatura de nariz, o seu dente de ouro. No regresso, vinha abismado como um
marinheiro arribado ao novo mundo emplumado e viçoso de novidade, depois de
tempos baloiçantes de monocromatismo, só de caravela, água, céu e passos
cambaleantes, a soltar monossílabos de pasmo. Era firme a terra agora. Sem
brumas, muito menos bela, muito menos misteriosa. Outro planeta. Sem encanto.
Tudo eram patranhas, o mundo inteiro houvera sido uma patranha aos meus olhos
vãos. Tinha andado equivocado com as coisas, as cores e os contornos. Maior
patranha é dizer que um morto vai para o céu, que ele bem soube de muitos a
enterrar. Um homem quando morre vai para a terra, lá onde só há frio, escuro e
as raízes obstinadas. Aos mortos tiram-se-lhes os óculos, e pronto.
E eu, com aquele enorme objecto demasiado identificado entre os olhos,
tornava-me marciano à mesma,
ó caixa de óculos.
Topava-os agora de longe, a galhofarem da sua prótese visual, um carrego para o
nariz, a abrir-lhe um vale ósseo, uma depressão arroxeada de sangue pisado no
septo nasal.
Mas vamos prá frente, que atrás vem gente. De quem é o carvalhal?
Via agora no quadro as circunvalações das garatujas que dantes lhe mortificavam
as palmas das mãos. Percebia-lhes as sinuosidades, as mais espigadas, as
roliças, as corpulentas, as contorcionistas, as decisivas e categóricas.
Aprendi-lhes as irmandades, as cumplicidades e os casórios. A motricidade fina
de segurar a caneta já não a recuperei, tanto calo de enxada e de pelejar mato
bravio, ensarilhavam-se os dedos no lápis, os cortes, as geadas, as rachas
abriam novos trilhos que cruzavam as linhas da vida, da morte e do amor nas
palmas das mãos.
Chamem-me para abrir rasgões na terra húmida, para escalavrar campos pedregosos
à picareta, para sulcar, lanhar, golpear chãos indomáveis e crostas rijas. Não
peçam às mesmas mãos que escavam a sete palmos de abrir sepulturas que, agora,
vazem da caneta traços miniaturais, caules tenros que sobem e tombam
ligeiramente para um dos lados, e logo a seguir fazem a curvatura improvável,
cornucópias de videiras enroscadas, botões de flores que nunca desabrocham,
as letras,
(se eu suspeitasse como já se me afeiçoavam às mãos, tácteis arabescos do quadro
negro do professor, gráceis sinuações da vegetação rasteira e humilde…)
não me peçam que as verta na delgadeza do papel, com instrumentos franzinos de
aparo quebradiço… Ponham os cascos de mula a servir à mesa de gente fina e a
retirar o copo de Porto de entre os demais na cristaleira.
Mãos de cascos, um cérebro mais visual do que os olhos. Nunca me meti a
escrever. Mas leio.
E li. O endereço meio desbotado que constava no molho de cartas.
Ao portador destas cartas se roga o encarecido favor de as entregar à menina
Maria Luísa Fradinho. Aldeia de Vale de Éguas, Marinha Grande. Assinado: Joaquim
da Cruz, 27 de Fevereiro de 1934.
E inverti a minha marcha para o depositar no devido paradeiro. Por isso me
insurjo contra esta exclusão, lá por ser feio, rude e ter estes dois olhos de
cágado, ao fundo das lentes de aquário.
FIM
Ana Margarida de Carvalho
| Jornalista e escritora, licenciou-se em Direito, pela Universidade de Lisboa, onde nasceu. Assinou várias reportagens premiadas, crónicas, ensaios e crítica cinematográfica e literária. É autora de guiões de cinema e de uma peça de teatro.
O seu romance de estreia, Que Importa a Fúria do Mar, venceu, por unanimidade, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) referente a 2013. Não Se Pode Morar nos Olhos de Um Gato recebeu igualmente o Grande Prémio de Romance e Novela da APE (2016). Foi nomeado livro do ano pela SPA e venceu o Prémio Literário Manuel de Boaventura (2017).
Tem um livro infantil, A Arca do É, em parceria com o ilustrador Sérgio Marques.
Pequenos Delírios Domésticos, o seu primeiro livro de contos, venceu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2017.
O romance O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça, publicado pela Relógio D’Água em 2019, foi finalista do Prémio Oceanos 2020 e do Prémio de Literatura da União Europeia 2021.
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Olhos de Toupeira
é um excerto da obra
"Que Importa a Fúria do Mar"
Autora: Ana Margarida de Carvalho
Edição: Maria do Rosário Pedreira
TEOREMA - Uma chancela do Grupo Leya
18.Set.2024
Publicado por
MJA
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