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Mercado medieval (em que
toda a gente usa óculos) - gravura de Jan van der Straet, c. 1600
– Agora, segure isto sobre o seu olho esquerdo, e leia a menor linha que
conseguir ver claramente.
Com um ar de sofrimento, Roger segurou a colher de madeira sobre o olho direito
e estreitou o esquerdo, concentrando-se na folha de papel que eu havia prendido
na porta da cozinha. Ele estava de pé no corredor de entrada, do lado de dentro,
já que o corredor era o único espaço dentro da casa com um comprimento de
aproximadamente 6 metros.
– 'Et tu Brute?' – leu ele, abaixando a colher e olhando para mim com uma das
sobrancelhas erguida. – Nunca vi um quadro de letras com frases.
– Bom, sempre achei que as letrinhas dos quadros comuns eram meio chatas –
falei, tirando o papel e virando-o. – O outro olho, por favor. Qual é a menor
linha que você consegue ler com facilidade?
Ele colocou a colher sobre o outro olho, semicerrou os olhos para as cinco
linhas escritas à mão – com decréscimo de tamanho mais uniforme que consegui – e
leu a terceira, lentamente.
– Não coma cebolas. De onde é essa?
– Shakespeare, claro – falei, fazendo uma anotação. – Não comam alho nem
cebolas, pois nosso hálito tem que ser fresco. É a menor que consegue ler,
certo?
Vi a expressão de Jamie se alterar subitamente. Ele e Brianna estavam logo atrás
de Roger, na varanda, observando o exame com interesse. Brianna se inclinava
levemente em direção a Roger, com uma expressão meio ansiosa, como se torcesse
para ele enxergar as letras.
A expressão de Jamie, por sua vez, demonstrava um pouco de surpresa, um pouco de
pena – e um inegável toque de satisfação. Ele, evidentemente, conseguia ler a
quinta linha sem problema. Eu o honro. Uma frase de Júlio Cesar: Por ter sido
valente, honro-o; mas por ter sido ambicioso, matei-o.
Ele sentiu meu olhar sobre ele, e a expressão desapareceu, o rosto retomando
instantaneamente o olhar habitual de inescrutabilidade bem-humorada. Estreitei
os olhos para ele, com um olhar do tipo “Você não me engana”, e ele desviou o
olhar, esboçando um sorriso de canto de boca.
– Não consegue ler nada da linha seguinte?
Bree havia se aproximado de Roger, como se atraída por osmose. Ela olhou com
atenção para o papel e em seguida para ele, com um olhar encorajador.
Obviamente, conseguia ler as duas últimas linhas sem dificuldade também.
– Não – respondeu Roger, de modo sucinto.
Ele havia concordado em deixar que eu examinasse sua vista a pedido dela, mas
obviamente não estava contente com aquilo. Bateu de leve na palma da mão com a
colher, impaciente para acabar de uma vez com aquilo. – Mais alguma coisa?
– Só mais alguns exames – falei, do modo mais tranquilo que consegui. – Venha
até aqui, onde a luz é melhor.
Apoiei uma das mãos em seu braço e o levei em direção ao meu consultório,
lançando a Jamie e a Bree um olhar ríspido.
– Brianna, por que não vai arrumar a mesa para o jantar? Não vamos demorar.
Ela hesitou por um momento, mas Jamie tocou seu braço e disse algo em voz baixa.
Ela assentiu, olhou para Roger mais uma vez com um leve franzir de cenho e se
foi. Jamie deu de ombros para se desculpar e a seguiu.
Roger estava de pé em meio à desordem do meu consultório, parecendo um urso que
ouve latidos ao longe – ao mesmo tempo incomodado e atento.
– Isso não é necessário – disse ele quando fechei a porta. – Eu enxergo bem. Só
não sei atirar muito bem ainda. Não há nada de errado com os meus olhos. – Ainda
assim, não fez menção de sair, e eu percebi que havia dúvida em sua voz.
– Não acho que seja – falei baixinho. – Vou examinar depressa, apenas por
curiosidade da minha parte, na verdade. – Fiz com que se sentasse, meio
relutante, e por não ter uma lanterna pequena, acendi uma vela.
Posicionei-a de modo a checar a dilatação das pupilas. Os olhos dele tinham uma
cor linda, pensei; não eram castanhos, mas verde-escuros. Escuros o bastante
para quase parecerem negros à sombra, mas de um tom impressionante – quase
esmeralda – quando visto à claridade da luz. Uma visão desconcertante, para quem
havia conhecido Geilie Duncan e vira sua risada maluca daquelas profundezas
verdes. Esperava que Roger não tivesse herdado nada além dos olhos dela.
Ele piscou uma vez, involuntariamente, fechando as pálpebras de cílios pretos e
compridos sobre eles, e a lembrança desapareceu. Aqueles olhos eram lindos – mas
calmos e, acima de tudo, sadios. Sorri para ele, que sorriu de volta por
reflexo, sem entender.
Passei a vela diante de seu rosto, para cima, para baixo, para a direita, para a
esquerda, pedindo que ele fixasse o olhar na chama, observando as mudanças
conforme os olhos se moviam de um lado para o outro. Como não eram necessárias
respostas nesse exame, ele começou a relaxar um pouco, abrindo os punhos
gradualmente sobre as coxas.
– Muito bem – falei, mantendo a voz baixa e tranquilizadora. – Sim, muito bem...
pode olhar para cima, por favor? Sim, agora, olhe para baixo, em direção ao
canto da janela. Hum, sim... Agora, olhe para mim de novo. Está vendo o meu
dedo? Ótimo, agora, feche o olho esquerdo e me diga se o dedo se move. Certo...
Por fim, apaguei a vela e me endireitei, alongando as costas e gemendo.
– E então – disse Roger, baixinho –, qual é o veredito, doutora? Posso ir fazer
um cajado?
Ele afastou com a mão a leve fumaça da vela apagada, tentando demonstrar
casualidade, traído pela leve tensão de seus ombros.
Eu ri.
– Não, você não vai precisar de um cão-guia por algum tempo, nem mesmo de
óculos. Mas, por falar nisso, você disse que nunca tinha visto um quadro com
frases. Mas já viu quadros de oftalmologista, pelo que entendi. Usou óculos na
infância?
Ele franziu o cenho, pensando no passado.
– Sim, usei – respondeu ele lentamente. – Ou melhor... – um sorriso leve
apareceu em seu rosto –, eu tinha um par de óculos. Ou dois ou três. Quando eu
tinha 7 ou 8 anos, acho. Eles me atrapalhavam e me davam dor de cabeça. Então,
costumava deixá-los no ônibus público, ou na escola, ou nas pedras perto do
rio... Não consigo me lembrar de tê-los usado por mais de uma hora direto e
depois que perdi o terceiro par, meu pai desistiu. – Ele deu de ombros. – Para
ser sincero, nunca achei que precisasse de óculos.
– Bem, não precisa... agora.
Ele notou meu tom de voz e olhou para mim, confuso.
– O quê?
– Você tem um pouco de miopia no olho esquerdo, mas não o suficiente para causar
dificuldades. – Esfreguei a ponte do meu nariz, como se sentisse o peso de
óculos. – Deixe-me adivinhar: quando estava na escola, você era bom em hóquei e
futebol, mas não em tênis.
Ele riu, os cantos dos olhos enrugados.
– Tênis? Em uma escola em Inverness? Esporte de sulistas molengas, era o que
dizíamos; jogo para fracotes. Mas compreendo o que quer dizer. Você está certa,
eu era bom em futebol, mas não muito em esportes individuais. Por quê?
– Não tem visão binocular – respondi. – É possível que alguém tenha notado isso
quando você era pequeno e tenha se esforçado para corrigir o problema com lentes
prismáticas, mas pode ser que já fosse tarde demais quando você tinha 7 ou 8
anos – acrescentei depressa, e vi o rosto dele ficar inexpressivo. – Para dar
certo, precisa ser corrigido bem cedo... antes dos 5 anos.
– Eu não tenho... visão binocular? Mas não é assim com todo mundo?... Quer
dizer, os meus dois olhos funcionam, certo?
Ele parecia incomodado. Olhou para a palma da mão, fechou um dos olhos, depois o
outro, como se uma resposta pudesse ser encontrada entre as linhas ali.
– Os seus olhos funcionam bem – expliquei. – É só que eles não trabalham juntos.
É um problema bastante comum... e muitas pessoas que têm isso não percebem. É só
que, em algumas pessoas, por um motivo ou por outro, o cérebro nunca aprende a
misturar as imagens que enxerga com ambos os olhos para formar uma imagem
tridimensional.
– Não enxergo em três dimensões?
Ele olhou para mim, semicerrando os olhos, como se esperasse que de repente eu
fosse esmagada contra a parede.
– Bom, não tenho um kit de oftalmologia adequado aqui. – Indiquei com a mão a
vela apagada, a colher de pau, as frases e alguns gravetos que tinha usado. – E
não sou oftalmologista. Mas tenho quase certeza que sim.
Ele ouviu com atenção enquanto eu explicava o que podia. A visão dele parecia
bastante normal, em termos de acuidade. Mas, como o seu cérebro não estava
fundindo a informação vinda dos olhos, podia estar estimando a distância e a
localização relativa de objetos simplesmente por meio de uma comparação
inconsciente dos tamanhos, em vez de formar uma verdadeira imagem
tridimensional. O que significava...
– Você consegue enxergar perfeitamente bem para quase tudo o que quiser fazer –
expliquei a ele. – E provavelmente pode aprender a atirar bem; a maioria dos
homens que vejo atirando fecha um dos olhos quando atira, de qualquer modo. Mas
pode ser que tenha problemas para acertar alvos em movimento. Você pode enxergar
no que está mirando muito bem, mas sem a visão binocular, pode não conseguir
dizer exatamente onde está o que deve ser atingido.
– Compreendo – disse ele. – Então, se me metesse em uma briga, seria melhor eu
me fiar no contato direto, é isso?
– Na minha singela experiência de conflitos escoceses, a maioria das brigas não
passa de contato direto, de qualquer modo. Só usam uma arma ou uma flecha quando
o objetivo é matar, e, nesse caso, uma lâmina costuma ser a arma de preferência.
Muito mais certeira, é o que Jamie diz.
Ele deu um leve grunhido de divertimento com o que eu disse, mas não comentou.
Ficou sentado em silêncio, pensando no que eu tinha acabado de dizer, enquanto
eu ajeitava a bagunça deixada por um dia de trabalho. Eu podia ouvir os sons
vindos da cozinha e o crepitar da banha sendo frita, acompanhado do cheiro
delicioso de cebolas e bacon refogados, que vinha pelo corredor.
A refeição seria rápida; a sra. Bug tinha estado ocupada o dia todo com os
preparativos para a expedição da milícia. Ainda assim, até mesmo as refeições
menos elaboradas da sra. Bug valiam a pena.
Vozes abafadas eram ouvidas através da parede – o grito repentino de Jemmy, uma
breve exclamação de Brianna, outra de Lizzie, e a voz grave de Jamie,
evidentemente confortando o bebê enquanto Bree e Lizzie cuidavam do jantar.
Roger também os ouviu; vi quando ele virou a cabeça na direção do som.
– Que mulher – disse ele, com um sorriso. – Ela sabe caçar e cozinhar a caça. O
que parece ser algo bom, diante das circunstâncias. Evidentemente eu não vou ser
o responsável por colocar a carne na mesa.
– Bobagem – disse eu depressa, tentando afastar qualquer tentativa da parte dele
de sentir pena de si mesmo. – Eu nunca atirei em nada na vida e coloco comida na
mesa todos os dias. Se você acha realmente que precisa matar coisas, há muitos
frangos, gansos e porcos. E se conseguir pegar aquela maldita porca branca antes
que ela abale toda a fundação, você vai ser um herói local.
Isso fez com que ele sorrisse, embora com um toque de ironia.
– Espero que a minha dignidade vá se recuperar, com ou sem os porcos – disse
ele. – O pior vai ser contar aos atiradores.
Ele inclinou a cabeça em direção à parede, onde a voz de Brianna se misturava à
de Jamie em uma conversa abafada.
– Eles serão muito gentis, como alguém é em relação a uma pessoa que não tem um
pé.
Ri, terminei de limpar meu pilão e levantei o braço para guardá-lo no armário.
– Bree só está preocupada com você por causa desse problema dos reguladores. Mas
Jamie acha que não vai dar em nada; as chances de você precisar atirar em alguém
são muito pequenas. Além disso, as aves de rapina também não têm visão binocular
– acrescentei, logo em seguida. – A não ser as corujas. Falcões e águias não
podem ter; os olhos deles ficam cada um de um lado da cabeça. Diga a Bree e a
Jamie que eu disse que você tem olhos de águia.
Ele riu e ficou de pé, batendo a poeira do casaco.
– Certo, direi.
Ele me esperou e abriu a porta do corredor para mim. Quando me aproximei, ele
pousou a mão no meu braço e me deteve.
– Essa coisa da visão binocular – disse ele, fazendo um gesto vago para indicar
os olhos. – Eu nasci com isso, certo?
Eu assenti.
– Sim, tenho quase certeza.
Ele hesitou, claramente sem saber como dizer o que pretendia.
– Isso é... hereditário, então? O meu pai era da Força Aérea, não pode ter tido
isso, mas a minha mãe usava óculos. Ela os deixava presos a uma corrente ao
redor do pescoço. Eu lembro que brincava com eles. Posso ter herdado o problema
de visão dela, é o que quero dizer.
Eu franzi lábios, tentando me lembrar do que já tinha lido sobre problemas
hereditários de visão, mas nada de concreto me ocorreu.
– Não sei – respondi por fim. – Pode ser. Mas pode não ser também. Não sei
mesmo. Está preocupado com Jemmy?
– Ah.
Um olhar de decepção cruzou seu rosto, mas ele o afastou quase no mesmo
instante. Sorriu, constrangido, e abriu a porta, segurando-a para que eu
passasse.
– Não, não estou preocupado. Só estava pensando... se foi herdado, e se ele
também tivesse... então eu saberia.
O corredor estava tomado pelos cheiros deliciosos de ensopado de esquilo e pão
fresco, e eu estava faminta, mas fiquei parada, olhando para ele.
– Eu não desejaria que ele tivesse – disse ele ao ver minha expressão. – De
jeito nenhum! É só que, se ele tiver... – Ele se interrompeu e desviou o olhar,
engolindo em seco. – Por favor, não diga a Bree que eu pensei nisso.
Toquei o braço dele de leve.
– Acho que ela compreenderia. O fato de você querer... ter certeza.
Ele olhou para a porta da cozinha, de onde vinha a voz de Bree, cantando
“Clementine” para fascínio de Jemmy.
– Pode ser que compreenda – disse ele. – Mas não quer dizer que ela queira ouvir
isso.
FIM
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excerto de
Outlander 5 | A Cruz de Fogo título original: The Fiery Cross autora: Diana Gabaldon tradução de Carolina Caires Coelho ed.
São Paulo: Arqueiro, 2017.
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