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Cego com bastão |
escola de Francesco Villamena (1566–1624)
AZUL ULTRAMAR
I
Naquela manhã, sob esse sudário de nuvens cinzas, Brugges se via mais triste
do que nunca. Somente se escutava o lamento do vento, uivando contra a agulha da
cúpula que coroava a torre de Cranenburg. No centro da cidade, na praça do
Mercado, o outrora barulhento mercado era agora um pequeno deserto de pedra.
Mais além, sobre a pequena ponte que cruzava sobre a rua do Asno Cego, erguia-se
o singular ateliê dos irmãos Van Mander. Era um diminuto cubo de vidro
construído sobre o arco elevado, cujas paredes laterais eram duas janelas que
ficavam uma de frente para a outra. O acesso ao ateliê era indecifrável, um
caminho labiríntico que iniciava em uma porta próxima à esquina da rua. Para
chegar na parte alta, depois de cruzar a porta, estreita e baixa, era preciso
atravessar um corredor escuro, subir uma escada apertada e tortuosa e decidir,
na sorte, por uma das três portas que apareciam no andar superior. De modo que
os visitantes ocasionais preferiam gritar desde a rua para as janelas da ponte.
Esse era o caso do mensageiro que, depois de vários fracassos, entrando e
saindo por todas as portas que encontrava, de um e de outro lado da rua do Asno
Cego, decidiu romper o silêncio matinal, gritando o nome de Dirk van Mander. O
mestre estava preparando a impressão de uma gravura. Seu irmão mais velho, Greg,
sentado junto ao fogo da lareira, selecionava pelo tato os materiais que depois
iria moer para elaborar pigmentos. Quando escutaram o grito do mensageiro, não
se assustaram; estavam acostumados a tal procedimento. Dirk ergueu-se, deixou o
quadro, chegou até a janela e comprovou que não conhecia o recém-chegado. Um
pouco contra a vontade, já que o frio lá fora era muito e a casa se mantinha
quente, abriu um dos lados da janela.
Um vento gelado lhe feriu o rosto. O mensageiro lhe disse que trazia uma
carta em seu nome. Sabendo da dificuldade que significava explicar o caminho até
a casa, e com a preguiça que a ideia de descer lhe provocava, Dirk van Mander
baixou desde o alto da pequena ponte uma bolsa de couro suspensa por uma corda,
preparada para tais circunstâncias. Quando tomou a carta em suas mãos, rompeu o
lacre e desenrolou o papel com displicência. Leu a nota rapidamente e não
conseguiu evitar um acesso de euforia. Jamais imaginara que aquela grata notícia
iria significar uma virada tão grande em sua resignada existência.
II
Era verdadeiramente notável a destreza que o mais velho dos irmãos Van Mander
tinha para o preparo das cores. Suas mãos iam e vinham, de frasco em frasco,
separando o pó dos pigmentos, misturando-os com as emulsões e os solventes com
uma precisão extraordinária. Nem precisava, para tais manipulações, da ajuda da
balança, dos conta-gotas ou de medidores. Era possível afirmar que era capaz de
trabalhar com os olhos fechados, e, de fato, era assim que Greg van Mander
fazia, já que havia ficado cego. Precisamente quando se encontrava no ponto mais
alto de sua carreira, havia sofrido uma tragédia. E esse fato coincidiu com
outro. Naquela época, Greg van Mander estava trabalhando sob a proteção dos
duques de Borgonha. Em 1441, Jan van Eyck, o maior dos pintores de Flandres e,
na opinião de muitos, o que melhor conhecia as chaves das cores, carregou
consigo suas fórmulas secretas para a sepultura na igreja de Santo Donaciano.
Nesse momento, o duque Felipe III encomendou a Greg van Mander a difícil
tarefa de voltar a descobrir as receitas com que Van Eyck obtinha aquelas cores
inigualáveis. E, contrariando todos os prognósticos, Greg van Mander não só
conseguiu igualar as técnicas de seu antecessor, como chegou a conceber um
método que era inclusive melhor.
A partir de seus achados, começou a pintar 'A virgem do manto
dourado', a obra-prima através da qual pretendia mostrar seu descobrimento
a Felipe III. Aqueles que tiveram o raro privilégio de ver as sucessivas fases
do trabalho de Greg testemunharam que, de fato, nunca, até então, haviam
contemplado nada semelhante. Não tinham palavras para descrever o vivo ardor das
velaturas; a pele da Virgem apresentava, por um lado, a exata aparência da
matéria viva e, por outro, a inacessível substância da santidade. Parecia que os
olhos tinham sido feitos da mesma cor dos pigmentos que tingem a íris, e que
guardavam a luz de quem era testemunha da milagrosa concepção. Outros observavam
que até o manto dourado estava livre da artificialidade que o uso de ouro em pó
misturado com verniz ou aplicado na fina camada dos tecidos costumava
apresentar. No entanto, quando faltavam os últimos retoques, e sem que nada
indicasse, Greg van Mander perdeu completamente a visão sem conseguir concluir
sua obra. Esse fato, e outros igualmente obscuros e pouco conhecidos, cercaram
essa Virgem de Van Mander de uma onda de obscurantismo e superstição. O certo
foi que o próprio pintor, furioso por ter sido vítima de um destino tão cruel,
decidiu destruir sua pintura antes que Felipe III pudesse vê-la. O irmão mais
moço, Dirk, que na época era muito jovem, quase um menino, foi testemunha do
irado desconsolo de Greg, e chegou a oferecer-se para concluir o trabalho. Mas
Greg nem sequer permitiu que ele voltasse a ver a obra, que atirou ao fogo.
Dirk, que tinha começado como miniaturista, herdou rapidamente o ofício de
seu irmão mais velho. Greg lhe ensinou todos os segredos do trabalho; no
entanto, absteve-se escrupulosamente de revelar aqueles que diziam respeito à
preparação das cores, ou melhor, revelou apenas rudimentos e noções
fundamentais. A decisão de legar ao irmão aquela herança fundamentava-se numa
cláusula única: Dirk se dedicaria unicamente à execução das obras, enquanto Greg
se encarregaria de preparar as telas e quadros, as têmperas, os vernizes e os
óleos de papoula e nozes com os quais dissolvia os pigmentos. E Dirk teve que
jurar que nunca se meteria nas técnicas que seu irmão mais velho guardaria
sempre consigo.
Com o passar dos anos, os irmãos Van Mander tornaram-se os sucessores de Van
Eyck. Suas pinturas eram admiradas na corte dos duques de Borgonha, e o
reconhecimento de sua obra acabou viajando para além dos limites das cidades de
Brugges, Amberes, Gante e Hainaut, e inclusive cruzou as fronteiras e se
difundiu além das Ardenas. Dos lugares mais remotos da Europa chegavam jovens
que suplicavam para ingressar em seu ateliê como discípulos ou aprendizes.
Suas têmperas sobre madeira, seus óleos e afrescos eram perfeitos e
conseguiam deslumbrar monarcas e banqueiros de toda a Europa. Sua fama ia
crescendo com cada nova obra terminada: cardeais, príncipes e comerciantes
prósperos solicitavam seus serviços e acreditavam que passariam à posteridade
retratados por eles. No entanto, nenhuma das pinturas chegou perto de ser uma
remota sombra de 'A virgem do manto dourado'. Cego e
silenciosamente indignado com seu destino, Greg van Mander renegou a técnica
perfeita que havia descoberto e fez o irmão jurar que jamais tentaria sequer
investigar qualquer técnica que tentasse superar a de seus antecessores, os Van
Eyck.
No período final do império dos Borgonha, Maximiliano, quando decidiu
transferir a residência ducal para Gante, propôs a Greg e Dirk que fossem juntos
para a nova e próspera capital. Mas o mais velho dos irmãos não estava disposto
a abandonar Brugges, e nunca perdoaria o duque pela sentença de morte que fizera
cair sobre sua cidade natal. Como uma espécie de reação em cadeia, um silencioso
ressentimento ia pouco a pouco perfurando o espírito de Dirk: assim como Greg,
assistindo à progressiva ruína de Brugges, alimentava seu rancor contra
Maximiliano, Dirk, enquanto via como sua juventude se consumia na negra
melancolia da Cidade Morta, maldizia o destino a que seu irmão lhe havia
condenado.
Assim, mesmo tendo se convertido em um dos pintores mais reconhecidos da
Europa, Dirk van Mander acabou convivendo com a desesperadora sensação de estar
trabalhando com as mãos atadas. Por um lado, pesavam sobre seus ombros o
juramento e a proibição de conhecer os ingredientes que compunham as pinturas
que utilizava para realizar sua obra; por outro, renegava intimamente a pobreza
de seus conhecimentos sobre a técnica da perspectiva e dos escorços. Talvez
essas limitações escapassem aos olhos de neófitos e também de muitos de seus
colegas flamengos, mas não podia enganar a si mesmo; cada vez que examinava suas
próprias obras, vinha à sua memória a lembrança das obras que havia contemplado
durante uma rápida viagem a Florença. Desde aquele distante dia, perdia o sono
pensando nas fórmulas matemáticas que regiam a aplicação da perspectiva nas
pinturas daquele que acabaria sendo seu mais detestado rival, o mais terrível de
seus inimigos, o mestre Francesco Monterga.
V
Quando o cocheiro abriu a porta da carruagem e estendeu a mão para o interior
escuro, Dirk van Mander viu aparecerem as infinitas pregas de uma saia de veludo
verde, abaixo da qual um pé enfiado em um tamanco de madeira lutava para
alcançar a superfície do estribo. Então apareceu uma mão pálida e fina, cujo
dedo anular exibia dois pares de anéis, um na terceira falange e outro na
segunda, e que se adiantou para apoiar-se discretamente na mão direita do
cocheiro. Imediatamente saiu à luz uma cabeça, ainda abaixada, com um penteado
que terminava em duas armações cônicas que lhe escondiam o cabelo. Com alguma
dificuldade, a mulher finalmente pisou no calçamento e, suspirando, um pouco
agitada, ergueu o rosto ao céu para recuperar o ar que a cansativa viagem lhe
havia tirado.
Dirk van Mander ficou perplexo. Era o rosto mais formoso que já tinha visto.
A pele, lisa e juvenil, revelava a cor das oliveiras das terras lusitanas. Os
olhos, tão negros que não diferenciavam a pupila da íris, contrastavam com o
cabelo loiro e acinzentado, que quase não se podia ver, por causa do
hennin que lhe cobria a cabeça. Dirk aproximou-se da
mulher, fez uma reverência e lhe deu as boas-vindas. O silencioso sorriso que
ela guardou e sua expressão um tanto desconcertada revelaram ao pintor que a
recém-chegada não tinha motivos para entender o flamengo. E então, justo quando
o pintor se dispunha a oferecer um cumprimento formal a Gilberto Guimarães,
estendendo a mão para o interior do carro, o cocheiro fechou a porta
bruscamente, quase no rosto do anfitrião. Olhando através da pequena janela,
Dirk van Mander comprovou, um tanto assombrado, que dentro da carruagem não
estava o armador, mas outra mulher, uma senhora com a boca um tanto aberta, que
dormia quase na horizontal sobre o assento. A mulher mais jovem, a que havia
descido, lendo os olhos surpresos de Dirk van Mander, lhe disse, num alemão
pausado, vacilante e com uma pronúncia inconfundivelmente portuguesa, que tivera
que viajar sozinha com sua dama de companhia porque seu marido havia ficado
doente em alto-mar, e as autoridades do porto de Ostende o haviam impedido de
desembarcar. A lembrança da recentemente devastadora peste negra que havia se
estendido do Marrocos até as costas do Mediterrâneo, propagando-se através de
Gibraltar por todos os portos do Atlântico, desde o Cantábrico até chegar ao mar
do Norte, ainda produzia terror. De modo que todos os viajantes chegados do Sul
que apresentassem algum tipo de enfermidade evidente eram, por precaução,
convidados a permanecer a bordo, enquanto o barco estivesse aportado. Vendo a
expressão preocupada de Dirk van Mander, a mulher apressou-se a explicar que não
havia motivos para alarmar-se, que não era nada mais que uma febre alta mas
inofensiva, e queixou-se do excesso de zelo das autoridades de Ostende. Quando
terminou sua longa e cansativa explicação, recheada de fragmentos e palavras
incompreensíveis, a jovem dama lembrou que ainda não tinha se apresentado. Com
um sorriso que lhe iluminou o rosto, pronunciou suavemente seu nome:
— Fátima.
Tinha a simplicidade calorosa dos ibéricos e uma espontânea simpatia,
despojada da formalidade dos saxões. Vendo o calamitoso estado de sua dama de
companhia — a viagem a havia deixado realmente exausta -, Fátima ordenou ao
cocheiro que levasse a velha a Cranenburg, onde iriam passar a noite, e que
depois voltasse para buscá-la. Quando Dirk van Mander a convidou a entrar em sua
casa, comprovou, observando seu passo leve e ondulante, que tinha a simplicidade
graciosa das camponesas, isenta da afetação que tanto o incomodava nas poucas
mulheres que ainda restavam em Brugges.
Além disso, nesse momento Dirk van Mander ficou dolorosamente consciente de
que há muito tempo não conhecia uma mulher.
VI
Se — tal como pensaram no princípio — a chegada inesperada do casal Guimarães
antes de que pudessem definir uma resposta constituía um compromisso de fato, a
visita de Fátima a Brugges era agora uma questão de honra para os Van Mander.
Ainda mais se fosse levado em conta o esposo enfermo num barco ancorado em
Ostende. Enquanto a mulher relatava, com muita dificuldade, as peripécias da
viagem, Greg não podia dissimular um ar grave de contrariedade. O mais velho dos
irmãos havia se convertido em um homem áspero. Estava acostumado à solidão de
Brugges e só tolerava as visitas graças a um resignado estoicismo. Na verdade, o
que o incomodava era a ruptura da ordem que, paciente e sistematicamente, havia
conseguido construir em seu pequeno cosmos. Sua casa tinha se convertido em seu
universo. Apesar da cegueira, Greg podia deslocar-se por toda ela sem nenhuma
dificuldade; conhecia cada canto de seu pequeno mundo com calculada exatidão.
Tudo estava disposto de tal forma que podia estender seu braço e pegar o que
quisesse, sem possibilidade de enganar-se. Além de seu talento natural para
preparar as misturas das cores com extrema meticulosidade, conhecia a ordem em
que estavam organizados todos e cada um dos frascos que guardavam os pigmentos e
podia identificar o conteúdo pelo tato, segundo a consistência. Derramava os
solventes, óleos, emolientes e secantes (N.R.: Substância que acelera a secagem
dos óleos.) sobre os diferentes pós na proporção exata e os reconhecia sem
vacilar somente pelo olfato.
Além disso, encarregava-se de quase todas as tarefas domésticas. Pela manhã,
removia os restos das brasas, selecionava a lenha, acendia o fogo da lareira e
do aquecedor da cozinha; preparava o almoço e a janta. Nada escapava de seu
controle absoluto. Até as eventuais desordens que seu irmão provocava estavam
dentro de seus cálculos. Tudo se movia de acordo com uma ordem semelhante à que
rege o movimento das estrelas. Por essa razão, qualquer visita era um estorvo em
seu metódico universo. Era um novo volume movimentando-se dentro de seu espaço,
um corpo estranho e imprevisível que podia chegar a causar um cataclismo. Além
disso, Greg não tolerava a ideia de que o olhar de um desconhecido o estivesse
observando na escuridão. Mas sabia, no seu íntimo, que o que realmente o
atormentava era a vergonha. Odiava a ideia de que alguém pudesse apiedar-se de
sua condição. Quase não lembrava qual era o seu próprio aspecto. Podia conhecer
a aparência de sua barba, que cortava cuidadosamente todos os dias. Podia
imaginar o comprimento do cabelo, que sempre conservava à altura dos ombros. Com
o sensível toque das pontas dos dedos, contabilizava cada nova ruga que, dia
após dia, ia aparecendo em seu rosto. Mas não conseguia fazer uma imagem geral
de si mesmo. Quase não lembrava como eram suas feições no dia em que perdera a
visão. Sentia uma enorme vergonha de expor-se à vista de um estranho. Ainda mais
quando se tratava de uma mulher. Fazia realmente muito tempo que não respirava o
agradável perfume feminino.
Era tamanha a naturalidade com que Greg se movia que é possível que Fátima
não tivesse percebido que era cego até que o viu à sua frente, quando o mestre
lhe ofereceu uma bebida amarelada, um pouco escura e espumosa. Só então a jovem
pode ver os olhos mortos atrás das pestanas. Tinham uma cor de estranha beleza,
um azul-turquesa coberto por uma cortina aquosa e pálida. No entanto, não
apresentavam a sombria materialidade dos corpos que perderam a vida, mas a
cativante aparência de pedras preciosas.
Se para Greg a inesperada presença de Fátima representou um sinal próximo da
desgraça, para Dirk, ao contrário, aquela visita foi uma espécie de bênção. O
menor dos Van Mander era um homem ainda jovem e jamais se acostumara à
melancolia da cidade devastada pelo esquecimento. Ainda trazia fresca na
lembrança a Brugges da época de sua infância, quando chegavam legiões de
viajantes e comerciantes. Naquele tempo, a cidade fervia sob os pés dos
caminhantes que iam por todos os lados, perdendo-se entre as ruazinhas, entrando
e saindo das tabernas, esbarrando uns nos outros na praça do Mercado,
congregando-se às centenas para a procissão do Santo Sangue, embriagando-se e
cantando abraçados enquanto cruzavam a ponte do canal. Os barcos traziam homens,
mulheres e intrigas. Cada navio que chegava vinha carregado de ventos de
aventuras e levantava âncora deixando uma tempestade de tragédias passionais.
Todos os dias, viam-se caras novas, ouviam-se falar línguas indecifráveis e
proliferavam as roupas exóticas. Cada dia se apresentava como uma promessa.
Agora, ao contrário, a existência não era nada mais que uma sonolenta repetição,
opressiva e previsível. E, enquanto olhava para aquela mulher jovem e
sorridente, Dirk comprovava como seu coração batia com uma resolução agradecida
e ao mesmo tempo perturbadora. Descobriu que se sentia profundamente feliz.
Escutava maravilhado a voz doce e um pouco grave de Fátima, as graciosas
vacilações e frases ininteligíveis nas quais se enredava tentando fazer-se
entender. E concluía tudo com um sorriso sutil e um pensamento qualquer, cheio
de graça, rindo de si mesma. Tinha a frescura das camponesas e, ao mesmo tempo,
a elegância espiritual de quem já viajou por todo o mundo. Dirk fazia
verdadeiros esforços para fixar seus olhos nos dela, mas um misto de timidez e
turvação o obrigava a baixar o olhar.
À medida que os minutos iam passando, aproximava-se o momento do veredicto.
Dirk observava seu irmão com o canto do olho e, vendo seu rosto severo e
imperturbável, começava a temer pelo pior. Sabia que a última palavra era de
Greg. Não existia nenhuma possibilidade material de que fosse de outra forma.
Fátima bebeu o último gole daquela bebida amarelada e um pouco amarga, e, diante
da evidente curiosidade da mulher, Dirk explicou-lhe que era feita a partir da
mistura de lúpulo com cevada.
Sem perder o sorriso, mas com um acento de seriedade, Fátima disse a seus
anfitriões que se sentia envergonhada de ter chegado de forma imprevista, mas
explicou que a reviravolta inesperada dos acontecimentos, quando seu esposo
adoeceu, havia precipitado as coisas. Disse que não se ofenderia em absoluto se
eles recusassem a proposta de seu marido e acrescentou que o simples fato de ter
tido o privilégio de conhecer os dois maiores pintores de Flandres já
justificava a viagem, mesmo que tivesse que regressar a Ostende no dia seguinte.
Suplicou que não se vissem obrigados a responder naquele exato momento, lhes
disse que iria passar a noite em Cranenburg, que pensassem serenamente durante a
noite, e que, na manhã seguinte, ela voltaria para conhecer a decisão. Greg
concordou em silêncio, aceitando a última proposta da mulher. Então Fátima
levantou-se, e Dirk pôde ver a graciosa figura recortada contra a janela através
da qual entravam as últimas luzes do dia. O mais moço dos Van Mander acompanhou
a visitante até a rua, onde o cocheiro a esperava, cochilando na boleia. Dirk
cumprimentou Fátima pela última vez, estendeu a mão direita para ajudá-la a
subir e pensou ter sentido, na frágil mão da mulher, um pequeno tremor que
revelava, talvez, uma inquietude idêntica à sua.
De pé sobre o calçamento, o pintor viu como a carruagem se perdia na
penumbra, além da rua do Asno Cego. Acabava de anoitecer; e, no entanto, Dirk
van Mander já desejava que chegasse o novo dia.
VERDE DA HUNGRIA
I
Uma chuva fina e gelada caía sobre os telhados enegrecidos de Brugges. Como
se quisesse remover o mofo do esquecimento e fazer reluzir seu antigo esplendor,
a água batia contra as crostas do abandono com a inútil crença de um formão sem
fio. As gotas repicavam sobre a superfície parada do canal, formando bolhas que,
ao rebentar, deixavam escapar um fedor putrefato; era como se um enxame de
insetos roesse a carne de um cadáver já bastante decomposto. As árvores de
outono e os mastros de bandeiras órfãos ou, pior ainda, exibindo os farrapos dos
pendões que recordavam as velhas épocas de glória, conferiam à cidade um aspecto
desolador. Aquela não era a triste imagem de uma cidade desabitada, mas, ao
contrário, ela estava povoada de memórias que apresentavam a materialidade dos
espectros. Era possível dizer que as ruelas que brotavam da praça do mercado não
estavam desertas, mas cheias de espantalhos visíveis apenas para aqueles que
resistiram ao êxodo. E, justamente para os poucos que haviam ficado, a chegada
de um estrangeiro constituía um raro acontecimento. Havia poucos motivos para
visitar aquele poço pestilento, de modo que imediatamente começavam a correr os
mais variados rumores em torno ao recém-chegado. Menos frequente ainda era a
chegada de uma mulher jovem acompanhada apenas por sua dama de honra. Mas se,
além disso, a mulher em questão se libertava de sua dama de companhia e, ao
anoitecer, entrava sozinha na casa de dois homens solteiros, a curiosidade se
convertia em maliciosa diversão.
Cada vez que Fátima saía à rua, podia comprovar que os olhares furtivos
tinham o peso da condenação e do apedrejamento público. Quando passava, escutava
as janelas se abrindo e, pelos cantos dos olhos, observava as cabeças espiando
por entre as frestas. De modo que, enquanto esperava a resposta dos Van Mander,
Fátima se via obrigada a passar a maior parte do dia trancada em seu quarto nos
altos do edifício de Cranenburg.
Na mesma noite da visita de Fátima, os irmãos tiveram uma acalorada
discussão. Greg não queria aceitar o pedido de Gilberto Guimarães. Argumentava
que, por mais generoso que parecesse o pagamento, jamais iria compensar as dores
de cabeça posteriores; sabia como pensavam os comerciantes, achavam que tinham
direito a qualquer coisa em troca de uma bolsa cheia de moedas de ouro. Nada os
deixava satisfeitos e, além disso, eram donos de uma ignorância tão imensa como
sua soberba. E o melhor exemplo era o ofensivo desplante que havia feito a
Francesco Monterga. Dirk, ao contrário, opinava que precisavam desse dinheiro;
desde que se haviam desvinculado da Casa dos Borgonha, quando decidiram ficar em
Brugges, o estado de suas finanças era preocupante. Dizia isso com um tom que
mal podia dissimular velhas mágoas. Sentia que seu irmão maior, com sua
obstinação, o havia condenado a ancorar naquela cidade que não oferecia nenhum
horizonte. Mas quanto mais Dirk achava argumentos em seu favor, mais irredutível
parecia ser a posição de Greg. O mais velho lembrou ao irmão que nada o prendia
ali, chegou a dizer que, se Dirk assim o queria, tinha a plena liberdade de
mudar-se para Gante, Amberes ou onde quisesse; que não tinha motivos para
preocupar-se com ele, pois, como bem o mais novo sabia, podia cuidar de si
mesmo. E, nesses momentos de disputa, Dirk tinha que fazer um grande esforço
para ficar quieto e não lembrar ao irmão que este era um pobre cego e que, se
ainda podia se dedicar à pintura, era somente pelo fato de o mais jovem ter-se
convertido em seus olhos e mãos. E, como se fosse pouco, o mais velho ainda lhe
pagava com a moeda da mesquinhez: nem sequer havia tido a generosidade de
revelar-lhe o segredo do preparo de suas pinturas, condenando-o, desse modo,
também a uma espécie de cegueira. Não podia ignorar que ambos constituíam uma
unidade. Nenhum dos dois podia existir sem o outro.
Até que houve um momento em que Greg foi terminante: sem rodeios, perguntou a
seu irmão menor qual era o motivo de tanta veemência, se era a ânsia de retratar
sua cliente ou a própria cliente. O longo silêncio de Dirk foi considerado uma
resposta. Só então, e sem acrescentar nenhuma explicação que justificasse seu
repentino consentimento, o mais velho dos Van Mander concordou com o pedido de
Gilberto Guimarães. Nesse mesmo instante, ambos puderam escutar os cascos dos
cavalos que acabavam de entrar na rua do Asno Cego.
II
Depois de saudar a dama, e tomado pela curiosidade, Greg van Mander quis
conhecer os motivos do extraordinário entusiasmo que seu irmão demonstrava pela
visitante. Com uma atitude subitamente paternal, o velho pintor aproximou-se da
mulher e pediu que lhe deixasse fazer uma composição mais precisa de sua pessoa.
Antes que Fátima pudesse compreender o pedido, Greg esticou suavemente a mão
direita e deslizou o indicador pelo perfil do rosto da mulher. Na pequena porém
sensível ponta de seu dedo, pôde sentir a pele lisa de sua testa alta e logo o
diminuto contorno de seu nariz, reto e delicado. A mulher, que permanecia
imóvel, nem sequer se atrevia a piscar, e não pôde evitar um estremecimento
quando a mão do pintor se deteve na superfície de seus lábios apertados. Fátima
estava assustada, como se temesse que um íntimo segredo fosse revelado em
virtude daquele ato. Um finíssimo véu de suor frio cobriu a borda superior de
sua boca. E, enquanto percorria, agora em sentido horizontal, os lábios de
Fátima até o limite dos cantos da boca, que estavam contraídos, Greg pôde ter
uma ideia exata daquele rosto jovem e imensamente formoso. Foi uma rápida
inspeção; no entanto, para Fátima, pareceu uma eternidade. Para Greg, ao
contrário, foi apenas uma fugaz viagem à remota pátria das recordações. Desde o
distante dia em que perdeu a vista, levado pelo pudor e pelo amor-próprio, havia
prometido renunciar às mulheres. Mas agora, pelo simples contato com aqueles
lábios cálidos, todas as suas convições pareciam a ponto de desabar. Um tremor,
mistura de brios viris e pensamentos culposos, agitou seu ventre e um pouco mais
abaixo. Desde esse momento, o indicador de Greg van Mander, marcado pelo estigma
inesquecível da pele de Fátima, havia que apontar para sempre o caminho dos
juramentos quebrados.
Dirk presenciou a cena sem dar nenhuma importância. De fato, alegrou-se ante
o inabitual gesto de hospitalidade de Greg para com a hóspede. Mas talvez
tivesse experimentado uma emoção diferente se tivesse podido testemunhar o
silencioso abalo que acabara de acontecer no espírito de seu irmão.
Fátima não manifestava nenhuma preocupação pela saúde do marido. Dirk van
Mander não deixava de surpreender com o bom humor que a mulher sempre mantinha.
Em todo momento e em qualquer circunstância, Fátima mostrava um pequeno sorriso
que parecia grudado em seus lábios, carnosos e vermelhos. Num tom mais formal,
que, no entanto, ocultava uma interessada curiosidade, Dirk interrogou sua
hóspede sobre alguns assuntos gerais, relativos a seu esposo. Fátima, sem poder
evitar um evidente incômodo, respondia de modo evasivo e rápido e,
imediatamente, mudava o rumo da conversação.
Entretanto Greg, ainda confuso, escondia seu atordoamento atrás da cortina
aquosa de seus olhos e tentava mostrar-se mais interessado nas questões
práticas, relativas ao trabalho que tinham por fazer, do que na pessoa de sua
cliente. Depois de todas as resistências anteriores, agora,
incompreensivelmente, queria pôr mãos à obra o quanto antes. E quis saber com
quanto tempo podiam contar. A mulher explicou que o barco permaneceria no porto
de Ostende durante trinta dias para, logo depois, voltar a Lisboa. Ao ouvir
isso, o rosto de Greg se transformou numa careta amarga. Pôs-se de pé e, fixando
suas pupilas mortas nos olhos da jovem, sentenciou:
— Impossível. Em trinta dias, é impossível.
Fátima ficou petrificada por causa do medo que a expressão de Greg, tão
parecida com um olhar vivo, havia lhe provocado. O velho pintor girou a cabeça
na direção de seu irmão com um gesto eloquente, como se assim confirmasse todos
os argumentos que havia manifestado momentos antes. Dirk, consternado, baixou a
cabeça. Sabia que era materialmente impossível terminar o trabalho em apenas
trinta dias. Fátima não tinha por que sabê-lo; de modo que o mais jovem dos
irmãos, tentando ser um pouco amável, explicou que era pouco tempo para fazer um
trabalho digno de sua pessoa.
Fátima não conseguia mover-se em sua cadeira. Mostrava-se completamente
atônita. Era possível dizer que não conseguia decidir entre levantar-se e sair
correndo do lugar ou fazer votos para que a terra se abrisse e se dignasse a
sepultar sua envergonhada humanidade. Titubeando em seu alemão cheio de
obstáculos e pudor, dirigindo-se a Greg, disse:
— Tinha entendido que as têmperas e os óleos de Vossas Excelências, além de
serem os mais maravilhosos, como jamais se viram, permitiam trabalhar com mais
rapidez que qualquer outro neste mundo... — vacilou uns segundos, como se
tentasse buscar as palavras menos ofensivas, e continuou: — Em menor tempo,
certo mestre florentino havia se comprometido a terminar meu retrato...
Sem poder abandonar seu tom resoluto, Fátima deixou a frase por terminar,
refletiu um momento mais e, finalmente, com uma firmeza que deixava claro seu
ânimo ofendido, sentenciou:
— Lamento haver feito um juízo equivocado sobre vossas artes. Haviam-me
falado de certas técnicas novas, de certas virtudes de vossos óleos, brilhantes
e capazes de secar como nenhum.
As últimas palavras da mulher pareceram exercer o efeito de dois punhais
certeiros apontados ao centro do coração de cada um dos irmãos. Tanto que não
tiveram tempo de se surpreender com os conhecimentos de pintura que Fátima
acabava de pôr em evidência. Para Dirk, foi uma nova declaração de guerra; o
fantasma de seu inimigo, Francesco Monterga, havia voltado a afundar seu dedo na
dolorida chaga. Greg pensou adivinhar o pensamento de seu irmão: se a traição de
seu discípulo Hubert, comparada com o troféu que significava a visita de Fátima
logo após sua decepcionante passagem pelo ateliê do mestre florentino, era como
trocar um peão pela rainha, não aceitar agora o desafio representaria a derrota
definitiva na partida.
O convulsionado espírito de Greg ardia agora como uma fogueira: à pira que
acabara de se acender por obra da fricção da pele com a pele, agregava-se a
lenha da paixão pelo ofício ao qual havia decidido renunciar. Seus antigos
juramentos cambaleavam na borda de seu indicador, ainda ardente. Greg podia
sentir-se orgulhoso de suas pinturas; tal como Fátima acabava de dizer, seus
preparados eram, de fato, insuperáveis em brilho, textura e pigmentação, e, além
disso, podia, se assim o quisesse, fabricar os óleos mais puros e providos de um
poder de secagem que superava a mais rápida das têmperas. A resposta ao desafio,
aparentemente trivial, que Fátima acabava de propor não se fez esperar. Dirk
fixou os olhos nos olhos de seu irmão e comprovou que, no mais recôndito
silêncio, estava pensando o mesmo que ele. E esse pensamento podia resumir-se em
duas palavras: Oleum Pretiosum. Dirk sabia que Greg
havia jurado a si mesmo nunca mais voltar a preparar essa fórmula que o havia
colocado no mesmo pedestal que Jan van Eyck e à qual havia decidido renunciar
por misteriosas razões, mas não desconhecia que a firmeza do juramento era
proporcional à tentação de voltar a prepará-la. Se não fosse assim, não seria
necessário jurar. O mais novo dos Van Mander sabia quanto trabalho custava a seu
irmão abrir mão da sedução do fascínio que o Olem Pretiosum
exercia em seu espírito. As pinturas que preparava todos os dias, mesmo sendo as
melhores, não se aproximavam nem um pouco das que podia fazer. Era como se fosse
dono das asas de um anjo que, podendo voar a céu aberto, estivesse condenado por
decisão própria à condição pedestre. Por outro lado, Dirk jamais havia tido o
privilégio de abastecer sua paleta com a pintura mais apreciada por qualquer
pintor; e, inumeráveis vezes, havia cedido ao doce sonho em que conseguia
acariciar com seus pincéis a suave superfície do Oleum
Pretiosum. Imaginava a si mesmo espalhando sobre uma tábua o rastro sutil
da fórmula, cujo conhecimento lhe era negado pelo próprio irmão. Mas nunca, como
agora, os irmãos flamengos se haviam visto tão próximos da tentação. Era certo
que, desde o dia em que Brugges havia se transformado em uma cidade morta, não
se havia apresentado a eles a ocasião de voltar a preparar a fórmula secreta. No
entanto, Dirk tinha a íntima esperança de que esse dia havia de chegar. E nesse
momento não teve dúvidas de que, por fim, o dia havia chegado.
Quanto mais olhava para o enigmático rosto de sua hóspede, menos Dirk podia
evitar a ilusão de retratá-la com as tintas que seu irmão insistia em negar-lhe.
Não foi necessário que os Van Mander mantivessem uma conversação privada; cada
um sabia exatamente o que o outro estava pensando. Greg se moveu na poltrona,
acariciou a pelúcia com as pontas dos dedos, fechou os olhos, que se haviam
enchido de uma vitalidade inédita, como se estivessem animados pela luz que o
destino lhes havia tirado, e, finalmente, sentenciou:
— Se queremos ter o trabalho pronto em trinta dias, deveríamos começar
imediatamente.
IV
Antes de cair a tarde, o esboço final estava quase terminado. De modo
urgente, porém preciso, as mãos de Dirk iam e vinham sobre a superfície da tela.
Usava uma túnica improvisada enrolada na cabeça e que caía sobre seus ombros.
Trabalhava com um carvão duro e bem-apontado e com um pincel médio de pelo de
marta. Com um definia as linhas do contorno e com o outro esboçava os volumes,
espalhando rápidas pinceladas. Enquanto utilizava um, segurava o outro entre os
dentes e assim, como um malabarista, em rápidos movimentos, alternadamente
passava o pincel para a mão direita e o carvão para a boca. Se precisava
abrandar as linhas, esfregava a ponta do polegar sobre o traço. Fixava seus
olhos no perfil de Fátima e desenhava quase sem olhar para a tela. Num caderno
pequeno que deixava sobre os joelhos, fazia breves anotações ilegíveis e traçava
linhas cuja geometria somente ele era capaz de compreender. Fátima permanecia
imóvel sentada sobre uma banqueta. Era possível dizes que havia dedicado sua
vida a posar. Havia adotado uma cômoda posição, o rosto distendido e a expressão
fresca que sempre a acompanhava. Posava com os ombros levemente erguidos, de
maneira que as costas retas ressaltavam o pequeno volume do busto, e mantinha as
mãos cruzadas sobre o regaço e as pernas juntas nos joelhos e calcanhares.
Parecia que podia adivinhar quando o pintor estava trabalhando nos contornos;
então aproveitava para mover um pouco o pescoço e relaxar a coluna. Dirk nem
precisou dar instruções. Por momentos, Fátima se distraía observando as tarefas
de Greg, e seguia cada movimento do mais velho dos Van Mander como se quisesse
penetrar no sentido de suas estranhas tarefas. Não podia deixar de admirar a
habilidade com que manipulava cada objeto; movia-se como se realmente pudesse
ver. Greg era um homem alto de queixo forte e ar decidido. Sua estatura era
bastante superior à de seu irmão e, mesmo sendo alguns anos mais velho, tinha um
porte e uma atitude mais vigorosos. Dirk, ao contrário, tinha as costas curvas e
o semblante abatido, como se carregasse um peso tão grande como antigo. Fátima
olhava os braços fortes de Greg contraindo-se cada vez que erguia as pesadas
madeiras, seus músculos e as veias inflamadas que contrastavam com seus dedos
finos e tão sensíveis como certamente haviam sido seus olhos.
Dirk havia percebido a forma como a mulher olhava para seu irmão e, por um
instante, não conseguiu evitar um sentimento semelhante ao ciúme. Mas,
imediatamente, libertou-se daquela ideia peregrina como quem espanta um mosca.
Há pouco, Fátima havia dado mostras de qual era o objeto de seu interesse. Por
outro lado, pensou, seu irmão era quase um velho e, ainda por cima, cego. No
entanto, Dirk havia notado que, depois do breve e secreto episódio do óleo
essencial de zimbro, Fátima não lhe havia mais dirigido a palavra. Nem sequer o
havia olhado. Havia adotado uma atitude de falsidade ou talvez de
arrependimento. Antes de mais nada, pensou, era uma mulher casada. Na verdade,
Dirk se viu invadido por uma avalanche de conjecturas desencontradas. Quem sabe
o contato físico fosse um costume comum entre os portugueses e não escondesse
nenhum outro significado nem segundas intenções. Ou, talvez, a atitude
indiferente da mulher fazia parte de um jogo de astúcia ou de uma estratégia de
sedução. O certo é que Dirk teve que admitir que, desde a chegada de Fátima, não
podia pensar em outra coisa. E, enquanto a retratava, ao mesmo tempo em que
fixava o olhar em seu perfil adolescente, tentava penetrar na parte mais
escondida de sua alma, para adivinhar que pensamentos se escondiam atrás desses
olhos negros e enigmáticos. No meio dessa chuva de hipóteses, chegou a pensar
que o recente episódio não havia sido mais que uma invenção de sua imaginação
turvada pela longa abstinência de carne. De modo que decidiu tomar a iniciativa.
Naquele justo momento, o pulso tremeu a ponto de quebrar o carvão entre os
dedos; o coração galopava em seu peito como um cavalo encabritado. Com a
desculpa de buscar um novo carvão, caminhou até o outro extremo do quarto.
Fátima aproveitou para distender-se, movendo a cabeça para a direita e para a
esquerda. Ao passar por trás dela, Dirk deteve-se um momento e pousou sua mão
suavemente no pescoço da mulher. Sentiu pânico por seu atrevimento, mas como viu
que Fátima mantinha um silêncio cúmplice, deslizou a palma até o ombro. Fátima o
deixava fazer. Dirk havia descoberto que as carícias secretas provocavam um
malicioso prazer que ia além da volúpia; na verdade, descobriu que o que era
realmente excitante era a ausente presença de Greg. Era como provocar um
silencioso terremoto em seu universo metódico e controlado diante dos olhos
inertes do irmão. Mas, enquanto pensava em tudo isso, também notou que a
passividade com que Fátima permitiu que acariciasse seu pescoço não revelava
nenhuma disposição lasciva nem tampouco ternura. Na verdade, sua indiferença
parecia mais uma recusa que um consentimento. De modo que Dirk, ante a
inexplicável apatia que Fátima demonstrava, retomou o caminho até a pequena
despensa onde havia dezenas de lápis, carvões, sanguinas e plumas minuciosamente
ordenadas. Procurava entre os carvões um que tivesse a mesma dureza daquele que
acabara de quebrar. Visivelmente contrariado, remexia nervosamente, esparramando
tudo sobre a prateleira. Abria e fechava os caixotes ruidosamente e, quanto mais
procurava, menos podia encontrar. Importunado com o barulho, Greg virou a cabeça
na direção da despensa e, com um tom parcimonioso, que na verdade revelava seu
incômodo, perguntou ao irmão o que ele procurava. Dirk, sacudindo o carvão
quebrado, respondeu com certa hostilidade. Incomodava-lhe profundamente que seu
irmão se metesse em tudo. Mas sabia que Greg tinha um longo inventário de tudo o
que havia no ateliê, trabalho a que, certamente, Dirk nunca se havia dado.
Greg não teve que pensar muito para dizer que aquele era o último carvão que
restava, aproveitando para reprovar o ato descuidado do irmão, de quebrá-lo, e o
descaso de não ter feito as compras da semana. Disse que, se quisesse continuar
com o trabalho, ainda restavam quinze minutos para ir até a praça do mercado,
atravessá-la na diagonal, cruzar o canal e chegar na loja para comprar mais
carvões. Dirk suspirou seu incômodo, pegou algumas moedas da pequena bolsa, deu
meia-volta e, sem dizer nada, foi até a porta, a caminho da rua.
No mesmo momento em que Dirk saiu, Fátima levantou-se, moveu a cabeça de
forma circular e arqueou a coluna. Percebeu que tinha as costas cansadas e as
pernas um pouco inchadas. De pé, junto à janela, sentiu a necessidade de fazer
uma massagem nas pernas. De modo que levantou o pesado vestido e, colocando
alternadamente os pés sobre a banqueta, despiu suas pernas longas, magras e
firmes. Por um momento, sentiu vergonha da presença de Greg, que estava muito
próximo a ela, mas, por fim, pensou, ele não poderia perceber. Primeiro,
esfregou as coxas, descrevendo pequenos círculos, depois desceu até as
panturrilhas e seguiu até os tornozelos. Nessa posição, perguntou a Greg se seu
irmão demoraria muito.
— Não o suficiente — respondeu Greg, de modo enigmático.
O mais velho dos Van Mander pôde sentir a respiração próxima de Fátima e
parece que até intuiu a proximidade de sua carne nua. Os olhos do pintor, mortos
e, no entanto, cheios de uma vivacidade inquietante, estavam fixos sobre os
olhos dela. Sua expressão era tão semelhante a um olhar que Fátima chegou a
duvidar de que fosse realmente cego. Um pouco para comprovar essa última
impressão e também por uma inadiável inércia, a mulher aproximou seus lábios dos
de Greg o suficiente para sentir o leve roçar de seu bigode meio loiro e
prateado. E assim permaneceu, refreando seu impulso de tocar os lábios. Greg
estendeu sua mão e, tomando a jovem pela nuca, a aproximou ainda mais de sua
boca. Mas não a beijou. Queria sentir o calor da pele contra a pele. Então,
Fátima trocou sua mão, aquela com que seguia acariciando suas coxas, pela mão
dele. Greg permanecia com os olhos abertos, semelhantes a duas pedras turquesas
sobre o leito de um lago escuro. Fátima pensou que o espírito de Greg era assim
como esse lago escuro e que, como aquelas pedras, era a essência que se
ocultava. Parecia que bastava mergulhar o braço naquelas águas sombrias para
alcançar o verdadeiro azul de seu coração. Então tomou firmemente as mãos de
Greg e, com elas, esfregou suas coxas, duras como pedra, mas suaves e frágeis
como o veludo de seu vestido. Às vezes, Fátima se afastava um pouco e, sem
soltar os pulsos do pintor, guiava suas mãos até alguma parte de seu corpo, como
se o desafiasse a adivinhar de que parte se tratava. E assim, transitando pouco
a pouco por cada ponto de sua pele, arrastou o indicador de Greg até sua boca, o
umedeceu com sua saliva, baixou um pouco o decote do vestido e o conduziu até o
bico do seio, pequeno e crispado, do tamanho e da consistência de uma pérola.
Com a ponta do dedo de Greg, Fátima traçava linhas discretas sobre a superfície
de seu corpo, deixando um rastro úmido que parecia a pegada de um caracol. Se o
pintor tentava tocar além dos limites impostos por Fátima, então ela pressionava
com força os pulsos de Greg e o conduzia para onde ela queria. As mãos de Greg
se deixavam domesticar e eram levadas pelos desejos de sua nova dona. De uma
hora para outra, o criador daquele pequeno universo arrumado à sua imagem e
semelhança, o cego onisciente ao redor do qual tudo se movia com a precisão de
um cosmos, o todo-poderoso a cujo controle nada escapava, havia ficado à mercê
de uma menina. Movendo-se candidamente na teia da aranha, Greg mergulhava no
adiado sonho da volúpia. Fátima pôde ver a crescente protuberância ressaltada
pelo cinto que prendia as calças na cintura e se ligava por baixo das virilhas.
Fátima aproximou sua mão daquele promontório que lutava por escapar do perímetro
do triângulo formado pelo cinto de couro. Mas não o tocou. Sussurrava em
português, no ouvido do pintor, tudo o que seria capaz de fazer se o tivesse nas
mãos. E assim, sem tocá-lo, percorria com sua mão o contorno daqueles
proeminência cada vez mais vertical. A mão de Fátima parecia exercer um curioso
efeito magnético: sem que existisse contato, quando as pontas dos dedos se
moviam seguindo a forma do volumoso animal em cativeiro, este parecia agitar-se,
como um peixe agonizando, de acordo com o vaivém da mão. As coxas e panturrilhas
de Fátima se retesavam conforme mexia sua cintura e tomava entre suas pernas o
joelho de Greg.
No mesmo momento em que o pintor conseguiu libertar uma de suas mãos da
tirania das mãos da mulher e começava a subir pelas coxas dela, os dois
escutaram os apressados passos de Dirk avançando pela rua do Asno Cego. Então
Fátima levantou-se devagar, pousou sua boca sobre a do pintor e deslizou sua
língua suavemente sobre a superfície de seus lábios, arrumou o vestido e,
lentamente, voltou a sentar na banqueta. Nesse instante, a porta se abriu, e
Dirk entrou. O panorama com que se deparou era exatamente igual ao que havia
deixado minutos antes, a não ser por um leve rubor nas faces de Fátima e o surdo
terremoto que acabava de acontecer no espírito de seu irmão.
BRANCO DE CHUMBO
IV
Durante anos, Francesco Monterga havia tentado encontrar a chave oculta
naquela série interminável de números. Cada vez que acreditava ter se aproximado
de uma interpretação de seu significado, o trabalhoso edifício de sentido que
havia conseguido construir terminava fazendo água na série numérica seguinte e
desabava como um castelo de cartas. Somava, diminuía, multiplicava e dividia;
substituía cada número por sua letra correspondente em todos os alfabetos
conhecidos, de trás para frente e de frente para trás. Recorreu à cabala, à
numerologia e aos obscuros postulados da alquimia. Acreditou encontrar uma
possível relação com a sucessão numérica que regia a ordem do Antigo Testamento,
mas sempre, uma e outra vez, por um caminho ou por outro, chegava ao mesmo
lugar: o mais desolador dos zeros. Então recomeçava. Por outra parte, o texto de
Santo Agostinho não fazia menção, nem explícita, nem tácita, nem metafórica, a
nada que tivesse alguma relação com as cores. Por momentos, Monterga perdia a
noção do que estava procurando. E, na verdade, era possível que não soubesse que
entidade ontológica podia ter a cor em estado puro. Na realidade, nem sequer
conseguia explicar o que era exatamente a cor. Francesco Monterga, como todos os
pintores, era um homem prático. Pensava que a pintura não era nada mais que um
ofício e que seu exercício não era muito diferente do trabalho do carpinteiro ou
do pedreiro. Por mais que a figura do artista se revestisse de pompas, seu
avental manchado e sujo, suas mãos cheias de calos, os pulmões queixosos, o
ateliê tomado por cascas de ovos e moscas e, sobretudo, seu magro patrimônio
eram o mais terminante testemunho de sua condição. De muito pouco podia lhe
servir o estudo das leis do Universo se não sabia misturar as gemas de ovo com
os pigmentos. De nada lhe servia conhecer os teoremas dos antigos gregos se não
podia estabelecer uma perspectiva ou um escorço para pintar um modesto presépio.
Não era necessário recitar Platão de memória para representar uma caverna. No
entanto, o entendimento do conceito de cor em estado puro o havia levado muito
além do cotidiano do trabalho artesanal. Cada vez que preparava uma cor na
paleta, não podia deixar de se perguntar sobre a sua natureza. A cor era um
atributo do objeto? Podia existir independente dele? Se, como afirmava Platão, o
mundo sensível era apenas um pálido reflexo do mundo das ideias, por acaso a cor
com que trabalhava todos os dias não era um pobre arremedo da cor essencial? Da
cor em estado puro? Se a realidade sensível era uma mísera cópia do mundo das
ideias, então a pintura, como representação artificiosa da natureza, era apenas
uma cópia da cópia. De modo que, se existisse a cor em estado puro, quem sabe a
pintura deixaria de ser uma deficiente reprodução e se converteria em uma arte
verdadeiramente sublime. Mas por acaso poderia fundir-se, numa tela, a mundana
matéria do universo sensível com a inacessível ideia da cor em estado puro? A
resposta para aquela pergunta conduziu Francesco Monterga à metódica leitura de
Aristóteles. Lia e relia passagens de De Anima,
De Sensu et Sensibili e De Coloribus,
e todas as reflexões pareciam coincidir em uma mesma definição: “A essência da
cor está na propriedade dos corpos de mover o diáfano na ação”; ou seja, o
diáfano, forma empregada por Aristóteles para denominar o éter luminoso, em si
mesmo invisível, que se manifesta sobre os corpos e as propriedades particulares
de cada corpo, é que determina uma ou outra cor, segundo se deduz do capítulo
VII de De Anima. Em Sensu et Sensibili,
Aristóteles agrega outra definição: “A cor é a extremidade do perspícuo no
limite do corpo”; isto é, a cor representa a fronteira exata entre o éter
luminoso (o perspícuo) e a matéria. Francesco Monterga deduzia, então, que a
luz, o éter, era a natureza inteiramente metafísica, na medida em que não era
perceptível aos sentidos por si mesma, mas apenas mediante os corpos sobre os
quais jazia. Assim como a alma se manifesta através do corpo e se torna
imperceptível quando este se corrompe e morre, da mesma maneira a luz é
apreensível somente quando pousa sobre um objeto. A cor é o limite exato entre a
luz, de ordem metafísica, e o objeto, de ordem física. Para Francesco Monterga,
o problema da pintura residia no caráter inteiramente material dos elementos que
a constituíam: as cores eram tão perecíveis quanto o corpo condenado à
decomposição, à morte e, finalmente, à extinção. Então como capturar esse limite
e separá-lo do objeto? Intuía que a resposta estava no problema da luz. O mestre
florentino, depois de soprar a chama da vela, quando se decidia a dormir, e uma
vez envolto na penumbra do quarto, se perguntava se a cor seguia existindo
quando a luz se ausentava. Pergunta que costumavam fazer os antigos gregos.
Muitas vezes, depois de passar horas trabalhando na mistura de uma cor, ou
depois de ter terminado um quadro, ao apagar o candelabro, lhe assaltava a
desesperadora ideia de que, junto com a extinção da luz, também podia ter sido
extinta a cor. Acendia e apagava o candelabro tantas vezes quantas lhe atacava a
dúvida. Francesco Monterga tinha a ideia de que a luz era imanente a Deus, que
Deus era a pura luz e Deus não podia ser visto a não ser através dos objetos de
sua criação. A cor era, então, a fronteira entre Deus e o mundo sensível. E era
uma fronteira cuja essência estava separada de qualquer conceito. Um homem
nascido cego pode entender o teorema de Pitágoras, pode imaginar um triângulo e
compreender o conceito da hipotenusa; mas não existe conceito nem forma de
explicar a um cego, por definições, o que é uma cor. Mas a mesma incerteza,
pensava Francesco Monterga, era extensiva a quem gozava do dom da vista. Com
frequência, perguntava a Pietro della Chiesa:
— Como saber se tu não vês vermelho isto que eu chamo de verde, mesmo que
também chames de verde e acreditemos estar de acordo? — dizia, segurando com a
mão direita uma couve.
Por outra parte, os pigmentos, mesmo os melhores e mais valiosos, não
passavam de meras imitações. Por mais realista que pudesse parecer uma velatura,
não era nada mais que uma mescla de vegetais e minerais que chegavam a uma
aparência de carne. A solução proposta por Juan Díaz de Zorrilla, isto é,
retirar as cores dos objetos que se quer representar, além de parecer cruel, era
para Francesco Monterga uma mera substituição de lugar, consistia em transpor a
matéria do objeto para a tela. Ou seja, por esse caminho não se conquistava a
cor inerente ao objeto, mas sua própria matéria.
O mestre florentino estava convencido de que o hieróglifo de seu velho
manuscrito revelava, tal como o título indicava, o modo de se obter a cor
despojada de seu efêmero sustento material. O arco-íris era a prova de que, sob
determinadas circunstâncias, a cor não precisava de objeto algum e podia
permanecer pura no éter. De maneira que, se realmente existia a
coloris in status purus, bastava descobrir a forma de fixá-la sobre uma
tábua ou uma tela. O Santo Sudário de Turim podia constituir uma mostra de como
a cor, por obra da luz divina, podia fixar-se sobre uma tela. No juízo de
Francesco Monterga, existiam inumeráveis provas de que a cor podia separar-se do
objeto. Bastava fechar fortemente os olhos para ver uma infinita sucessão de
cores, clarões cujas tonalidades não existiam na natureza e não se prendiam a
nenhum objeto. As crônicas dos viajantes que haviam navegado rumo ao Norte, até
os confins do mundo, juravam ter testemunhado auroras no meio da noite, cortinas
de cores que se mexiam sobre o céu noturno, sobre o éter puro e sem repousar em
nenhum astro.
Francesco Monterga acariciava a ideia de poder pintar abrindo mão dos
mundanos recursos do óleo de gema de ovo, das poeirentas resinas e dos minerais
venenosos. Queria, como o poeta que separa a coisa de sua essência, trabalhar
com a mesma limpa pureza com que se escreve um verso. Assim como Dante pôde
descer aos infernos, navegar pelos pestilentos rios de Caronte, narrar os
tormentos mais espantosos e emergir límpido e puro por obra da palavra, também
ele, Francesco Monterga, desejava converter a pintura em uma arte sublime,
despojada das corrompidas contingências da matéria. Assim como a palavra é a
própria ideia e prescinde do objeto que designa, da mesma maneira a cor em
estado puro haveria de prescindir de um veículo material, de um pigmento e de um
diluente. E tinha a certeza de que aza sucessão de números escondia a chava do
segredo da cor em estado puro.
PRETO DE MARFIM
I
No mesmo momento em que Francesco Monterga retocava pela enésima vez o rosto de
Fátima, tão distante como uma lembrança, Dirk van Mander, com um pincel de pelo
de camelo, esfumava sobre a tela de seu estúdio o rubor das faces tão próximas
como esquivas. Haviam passado mais de três semanas desde a chegada de Fátima a
Brugges. Segundo o prazo estabelecido, faltavam somente três dias para terminar
o retrato. Apesar dos esforços de Dirk para convencer sua cliente de que o
trabalho, de fato, ficaria concluído na data que haviam combinado, Fátima não
conseguia ver no quadro nada mais que um esboço. Por muito que se desmanchasse
em explicações técnicas e jurasse que o óleo que iria empregar tinha a
propriedade de secar em questão de minutos, a portuguesa tinha bons motivos para
duvidar. De acordo com a breve carta que Gilberto Guimarães mandara desde
Ostende, sua saúde melhorava notavelmente, mas ainda manifestava sua indignação
para com as autoridades do porto, pois estas seguiam em sua negativa para que
ele pudesse desembarcar. Dizia, além disso, que em três dias o barco devia
levantar âncoras e começar o regresso para Lisboa.
Dirk recebeu a notícia com uma mescla de alegria e desgosto. Alegrava-se com
o anúncio de que Gilberto Guimarães não chegaria em Brugges, mas não podia fazer
nada além de lamentar que em pouco tempo Fátima teria que partir. Guardava a
esperança de que o prazo se estendesse, mesmo que fosse por uns poucos dias a
mais. Deliberadamente, estava atrasando a conclusão da pintura com o propósito
de forçar uma prorrogação e, desse modo, prolongar a estadia da portuguesa.
Sabia que, com o preparado do Oleum Pretiosum, a pintura
podia estar terminada em pouco tempo, mas Dirk havia se proposto um trabalho
muito mais árduo e cuja matéria era mais difícil de dominar que o mais venenoso
dos pigmentos: o coração de Fátima. Sabia que a consistência espiritual da jovem
portuguesa era de uma substância semelhante à do Oleum
Pretiosum: tão luminosa e cativante como obscura e misteriosa era sua
secreta composição; tão firme em seu caráter, e ao mesmo tempo tão insensível
como os óleos mais preciosos. A jovem simples e amável, de sorriso radiante e
fresco, dona da simplicidade dos camponeses, por momentos se transformava em uma
mulher ativa, de expressão dura e amarga. A mulher apaixonada, a mesma que
buscava secretamente a boca de Dirk e lhe oferecia um beijo fugitivo, às vezes
terno, às vezes lascivo, sem que motivo algum indicasse, se convertia
imediatamente em um indício de perfídia. Mas o coração de Fátima era muito mais
turvo do que Dirk podia perceber. O mais jovem dos irmãos sequer suspeitava que,
na sua ausência, Fátima mantinha um obscuro, turbulento e por momentos selvagem
romance com Greg. Para Dirk, Fátima era uma tortuosa esperança de um amor
ascético. Para Greg, ao contrário, era uma voluptuosa promessa carnal, uma
luxuriosa e mundana urgência. Para Dirk, ela fechava seu coração tão logo o
abria. Para Greg, oferecia seu corpo como uma suculenta fruta e, no momento da
sonhada mordida, o afastava da boca.
Durante os últimos dias, Greg passava a maior parte do tempo trancado no
único lugar reservado somente para ele e que era vedado para seu irmão menor. Os
quatro muros daquele frio recinto escondiam os elementos que compunham a fórmula
do Oleum Pretiosum. Era tão grande o cuidado de Greg em
manter o segredo, sobretudo em relação a Dirk, que não permitia a ninguém que
entrasse em seus domicílios escuros. A única exceção era Fátima. A jovem
portuguesa havia conseguido em poucos dias o que ninguém conseguira durante
anos: que o próprio pintor lhe abrisse as portas. Na primeira vez em que Fátima
entrou naquele recinto, acreditou saber exatamente o que era ser cego. Nem que
quisesse poderia descrever aquele lugar fechado, cujas janelas haviam sido
amuradas, pela simples razão de que não entrava nem um fio de luz do exterior,
pois Greg não precisava iluminar-se. Além de não haver uma mísera vela, o pintor
havia imposto a ela, como condição para entrar, que não acendesse o fogo. Um
intenso perfume de pinho contrastava com a penumbra e o fechamento. Para Fátima,
pareceu um lugar agradável e ao mesmo tempo assustador. No meio da mais fechada
escuridão, tinha a impressão de estar perdida em um labiríntico bosque de
pinheiros. E se não fosse pela mão de Greg, que a conduzia a cada passo, sem
dúvida ela teria sido incapaz de encontrar a saída por si mesma. Aquele era
agora o lugar de seus encontros furtivos. Como dois cegos, tateando e guiados
pelo mapa único da forma de seus corpos, percorriam-se mutuamente com as mãos,
com a boca, com a língua, com as pontas dos dedos. Enredados naquela noite de
escuridão infinita, prendiam-se na única certeza das respirações agitadas, das
palavras entrecortadas ditas a meia voz. No meio daquele oceano tenebroso, no
qual não havia nem acima nem abaixo, nem oriente nem ocidente, Fátima confiava
somente na bússola firme e ereta que Greg lhe oferecia. Sempre quem manejava o
timão era ela, e, invariavelmente, cada vez que Greg se dispunha a tomar o
comando e conduzir o barco ao porto, cada vez que suas mãos pretendiam avançar
sobre o desejado estuário, Fátima levantava-se, ajeitava as roupas e suplicava
que ele a levasse até a saída.
— Ainda não — suspirava Fátima, antes de perder-se atrás do vão da porta e
emergir na luz.
II
Sozinho na profunda solidão de sua cegueira. Sozinho na inexpugnável solidão
das sombras entre quatro paredes. Sozinho na funda solidão dos sonhos carnais
adiados, Greg van Mander, depois de anos, voltava a preparar a fórmula do
Oleum Pretiosum. O velho pintor cego era, por assim
dizer, a demonstração palpável de que a cor existia independentemente da luz.
Naquela negrura incomensurável que cheirava a pinho, Greg, sem que ninguém
pudesse testemunhar, se movia desviando dos móveis, das vigas de madeira que
atravessavam o teto baixo e dos desníveis que marcavam a superfície do chão. Ia
e vinha levando e trazendo diferentes frascos, moendo pequenas pedras num pilão
de bronze, mesclando óleos e resinas. Era uma espécie de sabá íntimo e
invisível. Trabalhava com a mesma destreza e dedicação com que, vinte anos
antes, quando ainda enxergava, havia feito pela primeira vez o magistral
preparado a pedido de Felipe III, quando o nobre francês havia lhe encomendado a
tarefa de descobrir a fórmula de Jan van Eyck.
Todo mundo soube que Greg van Mander não somente conseguiu reproduzir as
técnicas do grande mestre, como ainda fez óleos que eram superiores. No entanto,
o próprio executor da maravilhosa receita não conseguiu ver sua invenção, o
Oleum Pretiosum, pois perdeu a visão durante o preparo.
Desde aquela época, Greg havia jurado não voltar a elaborar o apreciado óleo por
mais elevadas que fossem as fortunas que chegassem a lhe oferecer. Assim, sua
secreta atividade daqueles dias foi para Greg como retornar à juventude. A
chegada de Fátima havia provocado uma verdadeira alteração não só no universo
cotidiano do velho pintor, como também em seu recôndito inferno amuralhado.
[...]
IV
No princípio, foi o Oleum Pretiosum, e logo Greg fez
as trevas que se abriam na face do abismo e o chamou de Preto.
O espírito de Greg se movia sobre a face do abismo. E Greg disse: seja Azul,
e fez-se o Azul. E, sem vê-lo, soube que o Azul era bom.
E Greg separou a luz das trevas. E disse: faça-se o Amarelo. E fez-se o
Amarelo.
E assim criou, também, o Vermelho.
E o Vermelho era bom.
Greg, outra vez dono e senhor de seu universo, fazia e desfazia segundo sua
vontade e, cego como era, envolto em suas íntimas trevas, criava cores que
sequer podia ver. Sentado em seu trono, a barba caindo sobre seu largo peito,
com o indicador estendido, tocava isto ou aquilo, e tudo se transformava em cor.
Como um Midas da luz, convertia os mais toscos minerais, as terras mais
pisoteadas, os ossos queimados das bestas em cores nunca vistas, somente pelo
contato com o mágico Oleum Pretiosum.
E Greg disse: que exista o Branco.
Derramou a última parte que estava no fundo do frasco sobre a paleta e
agregou um fino pó do branco de chumbo. Então, ao se misturar com o verniz, que
parecia milagroso, se produziu o indizível. Fátima e Dirk puderam comprovar a
afirmação de Aristóteles de que o branco era a soma de todas as cores e de todas
as sensações. Se o negro era a ausência pura, o branco era a soma total. À
medida que o Oleum Pretiosum se apoderava do pó de
chumbo, uma quantidade infinita de clarões de incontáveis tonalidades começou a
surgir da mistura. Com os olhos alucinados, Dirk e Fátima viram como aquelas
refulgências iam formando imagens concretas e ao mesmo tempo inapreensíveis.
Estavam vendo o Todo. Estavam sendo testemunhas da História do Universo. Se o
branco era a luz, se a luz se eternizava em seu rumo pelo Cosmos, aquele branco
era a síntese de todas as imagens do mundo sobre a pequena superfície da paleta.
Confirmando o testemunho do monge Giorgio Luigi di Borgo, que assegurava ter
visto o mítico Aleph, da mesma forma, nesse branco que guardava a luz de todos
os acontecimentos, Fátima e Dirk puderam ver o mesmo que o poeta de Borgo
escrevera: “Vi o denso mar, o amanhecer e a tarde (...), vi um labirinto sujo
(era Londres), vi intermináveis olhos imediatos olhando-se em mim como em um
espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu. (...) vi cavalos
de crina retorcida em redemoinhos, numa praia do mar Cáspio no amanhecer, vi a
delicada ossatura de minha mão (...) senti vertigem e chorei, porque meus olhos
haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome usurpam os homens, mas
que nenhum homem viu: o inconcebível universo”.
FIM

O Segredo dos Flamengos
| No período do Renascimento, mestres florentinos da pintura dominam o segredo matemático da perspectiva, e os mestres flamengos, o mistério alquímico das tintas e pigmentos. Talento e habilidade nas artes são mais do que nunca um instrumento de poder, e através deles os artistas buscam penetrar no mundo das cortes e dos mecenas. Nesse panorama de intensa rivalidade cultural e intelectual, os mais sofisticados pintores não hesitam em matar para aperfeiçoar a sua arte e para impedir que seus inimigos consigam chegar ao artífice perfeito – aquele que dominaria a perspectiva, bem como as cores.
Na Flandres, a linda e sedutora mulher de um rico armador português oferece uma fortuna para ser retratada em pouquíssimo tempo pelos irmãos Van Mander – um, pintor; o outro, cego, responsável pela preparação dos pigmentos. Neste thriller psicológico, o que está em jogo é muito mais que a fama de um quadro, uma morte ou duas: trata-se da luta pela supremacia da pintura européia, da busca pela perfeição – e da cobiça humana em reproduzir as ações de Deus.
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O Segredo dos Flamengos
-excertos- Federico Andahazi (2002) Edição L&PM Título original : EL SECRETO DE LOS FLAMENCOS Tradução de Sérgio Fischer
1.Dez.2024
Publicado por
MJA
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