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Um velho cego - tacteando o
caminho com o seu bordão -
é a imagem representativa da Ignorância na Roda da Vida. Simboliza a pessoa ignorante, que não vê para onde vai, onde vai
renascer, o que sofreu ou o que vai sofrer aquando do seu
renascimento. A ignorância é a causa dos 84.000 erros de julgamento
presentes nos ensinamentos de Buda.
Será apresentada a seguir uma parte do ensinamento dado pelo Lama Padma
Samten, a respeito do primeiro Elo, para demonstrar uma aplicação prática deste
ensinamento, no caso, dado pelo Lama Padma Samten num retiro budista. É
possível afirmar que esta nova forma de conceber a subjetividade na perspectiva
budista é ao mesmo tempo o diagnóstico e o remédio ou, ainda, um conhecimento
libertador e nesse sentido o Buddha, nesse caso representado na pessoa do Lama,
pode aproximar-se tanto do médico ocidental quanto do terapeuta.
O Primeiro Elo: Avidya (tibetano: Ma-Rigpa) – este primeiro elo, como pode ser
observado na representação da Roda da Vida é simbolizado por um cego.
De um
modo geral, todas as Rodas da Vida simbolizam Avidya por um cego com a sua
bengala. Porquê cego?
Para responder esta pergunta o Lama lança mão do cubo de Wittgenstein.
Observe o cubo abaixo cuidadosamente:
O Cubo de Wittgenstein
B
A
"Rigpa" é uma palavra muito importante. Ela é usada no sentido de lucidez em
meio às condições, mas uma lucidez não separativa, uma lucidez transcendente.
Todos nós estamos caminhando, buscando recuperar Rigpa. Avidya significa, em
tibetano, Ma-Rigpa, ou seja, negação, impossibilidade de Rigpa.
"Tudo que pudermos meditar sobre isso é de extrema valia. Tentem! Precisamos
contemplar longamente, incessantemente essa situação de Rigpa e Ma-Rigpa. Quando
nós podemos gerar as grades que nos facilitam na experiência de localizar os
exemplos. Essa grade vai surgir como o foco da meditação na sétima etapa do
Nobre Caminho. Essa grade está perfeitamente descrita no Sutra do Coração e ela
tem 46 pontos, cada ponto tem quatro níveis e cada nível tem três condições. O
que são 46 pontos? Nós vamos olhar e ver como opera a mente que atua junto com
Avidya."
"Quando Avidya cria o objeto, junto com o objeto surge a noção de
inseparatividade"
Luminosidade - A luminosidade já é a própria natureza da mente operando, ou
seja, nós criamos. Nós temos uma liberdade de criar. O Lama pergunta: "Como
podemos evidenciar a liberdade de criar?" Se essa liberdade atua
incessantemente, então esta é a razão pela qual podemos dizer que a natureza de
Buddha está em toda nossa experiência. Porque nós manifestamos Avidya, podemos
dizer que nós temos uma natureza de Buddha. Mas, curiosamente, porque nos
enganamos, porque criamos a parcialidade, podemos dizer que a natureza de Buddha
está presente. Novamente, o Lama pergunta: "Onde a parcialidade se ancora?" A
parcialidade se ancora na natureza última, na nossa capacidade de criar as
coisas. Não vemos isso por causa da Avidya. Dessa forma, é pela própria
capacidade de esconder que Avidya se manifesta. Estamos diante de dois aspectos de
Avidya: o primeiro consiste na capacidade de manifestar; o segundo, na
capacidade de esconder. "Criamos a visão e, junto à visão, criamos a cegueira,
NO MESMO ATO!"
"Só quem vê está cego!"
"Esta afirmação é muito, muito importante! Nós vamos ver isso muitas e muitas
vezes, vamos constatar isso por todos os lados. Já aqui, por exemplo. Qualquer
um de vocês que esteja fazendo alguma outra coisa, perde facilmente o que eu
acabei de falar. Porque nós acessamos uma coisa, não podemos acessar a outra,
isto é assim. Curiosamente, se vocês estudarem magia, vocês verão que uma das
leis essenciais da magia é esta: Quando fazemos uma coisa, não fazemos outra!
Toda a percepção da realidade está dominada por esse processo. É um processo
importantíssimo. O Buddha diz: É como o pintor, o pano e as tintas ou como um
mágico, que produz seres com galhos e panos".
Na perspectiva budista, o Lama Padma Samten inclui a arte como um instrumento
valioso que pode auxiliar e trabalhar de forma sustentada e longa com esse tipo
de percepção. Também o teatro, "e todas as artes plásticas podem trabalhar com
isso, porque elas vão operar incessantemente com a delusão. Toda arte opera com
a delusão, não tem como não fazê-lo. Por isso, acho que este é um campo muito
fértil".
"Quando olhamos o cubo, vamos identificar vários itens importantes dentro, não
é? Por enquanto, estamos trabalhando com Avidya, percebendo que tem um nível de
luminosidade e um nível de ocultação. Nós temos o vértice A surgindo. Quando
surge o vértice A, parece que está tudo resolvido, nós vemos um cubo e pronto,
isto se torna toda a nossa realidade. Portanto, quando vemos o vértice A, o cubo
do vértice B desaparece; quando vemos o vértice B, o cubo do vértice A
desaparece. Não conseguimos ver os dois cubos ao mesmo tempo, um cubo oculta o
outro".
Um dos aspectos interessantes que este exemplo ilustra é o fato dele mostrar que
o cubo não está propriamente no desenho. "Se ele estivesse lá, nós o veríamos de
forma permanente." Desta forma, observa-se que existe uma ação mental que opera
de dentro e faz o cubo surgir, faz surgir a experiência do cubo. Esta ação
mental que opera de dentro e faz surgir a experiência do cubo é uma experiência
que está presente, por exemplo, nas mágicas. Mesmo sabendo que a mágica em si é
uma ilusão, vemos acontecer, vemos as coisas sumirem ou aparecerem da cartola.
Queremos sublinhar como esse exemplo do cubo de Wittgenstein, que mostra como
algo surge a partir da experiência de luminosidade, da manifestação da liberdade
da criação e ao mesmo tempo opera ocultando um outro aspecto daquilo que foi
criado, uma espécie de área de sombra e por isso mesmo estamos sempre operando
em um certo grau de Avidya, ajuda-nos a perceber como opera o surgimento da
identidade numa perspectiva budista, do Caminho da Originação Dependente, Os
Doze Elos: estamos criando "nosso cubo", "nosso eu". O importante nesse nível, é
reconhecermos que ao nível da identidade estamos sempre operando em Avydia.
Como afirma o Lama Padma Samten: "Nesse momento nós precisamos perceber isso
operando. Não se trata de uma descrição: A delusão é isso ou aquilo." Podemos
localizar isso, através de exemplos. È um processo de se assenhorar dessa
experiência.: "Com essa experiência, vamos poder contemplar. Isso é meditação.
Vamos ver a delusão operando por todos os lados, esse é o nosso objetivo" .
Por isso, o Lama diz:
"Ao desenraizar Avidya, desenraizamos os 12 elos. Cessando os 12 elos, a Roda da
Vida está desenraizada. Esse é o caminho! Nós vamos acessar uma realidade
mágica, não é um processo causal. Nós estamos penetrando na percepção de um
aspecto muito profundo da realidade, que não importa se o cubo é ameaçador ou se
o cubo é benigno, não nos preocupamos com teor do objeto, o que importa é que,
seja qual for a experiência do objeto que venhamos a ter, toda essa experiência
é inseparável do objeto de delusão. Precisamos olhar esse processo com muito
cuidado".
A Roda da Vida e os 12 Nidanas ou Elos
Percebemos que existe então uma ação mental inicialmente oculta. Quando vamos
percebendo isso, começamos a identificar um segundo plano da ação mental. O
primeiro é este, o qual acabamos de acompanhar – a luminosidade, e o segundo, só
agora nos damos conta, a ocultação.
Ocultação: a ocultação faz desaparecer o cubo. Logo, temos a capacidade de fazer
aparecer e fazer desaparecer. Não só fazemos aparecer alguma coisa, como
fazemos desaparecer a outra. Neste processo, encontraremos muitos exemplos, como
o exemplo clássico do For-Dha, em Freud, no qual ele irá enfatizar mais o
aspecto afetivo-simbólico e não tanto o aspecto cognitivo. Ainda assim, este é
um ótimo exemplo para representar o surgimento de Avidya.
Observe os exemplos do
Lama Padma Samtem:
"Quando encontramos uma pessoa que se tornou negativa aos nossos olhos, é quase
impossível olhá-la de um aspecto positivo. Precisamos de um grande esforço para
isso, é uma dificuldade para nós vê-la de outra forma. Quando nós temos uma
visão, aquela visão nos aprisiona em um certo sentido, porque nos impede de
olhar outras características, de reconhecer aquilo de uma outra forma" .
A experiência do cubo de Wittgenstein que nos possibilita mudar de uma
experiência do cubo para outra são os traços. Estes mesmos traços proporcionam
duas imagens, pelo menos. Logo, a experiência que temos a partir dos traços não
está determinada por eles. Ela está determinada por uma operação mental interna.
Ao conseguirmos localizar essa operação mental, vemos que ela tem liberdades, ou
seja, podemos fazê-la surgir de um jeito ou de outro. Podemos criar um "clique"
interno que nos faz passar de uma experiência para a outra. Essa experiência nós
temos de agarrar com muito cuidado, porque ela é a essência da liberdade, em um
sentido muito sutil. Quando nós abdicamos disso, qual é a liberdade que nos
sobra? Nós temos a liberdade de pintar o cubo, de botar um vidro na frente, de
emoldurá-lo etc. E ainda achamos que isso é liberdade. Mas, neste momento, nós
não temos mais liberdade alguma. Ficamos com a visão congelada.
Criamos a ilusão de que o cubo está no papel. Só que não vemos isso mais como
ilusão, de fato pensamos que ele está lá. Surge a separação sujeito-objeto,
explica o Lama Padma Samten: "surgimos aqui e o cubo ali". Na descrição de
Trungpa, dos Cinco Skandhas, este é o momento que tomamos o espaço como
parceiro, o solidificamos, vemos um eu e um outro. Este é o momento em que
criamos a dualidade e no qual surge a identidade, o eu e junto com ela a Avidya.
Desta forma, o Lama Padma Samten nos explica:
"Ainda que olhemos assim, o cubo está aqui, não está? Ainda que saibamos que o
cubo não pode estar no papel, porque ele depende de uma operação mental, quando
essa operação mental se dá o cubo aparece no papel, não é verdade? Então a
essência da experiência de separatividade está na dependência da operação mental
de Avidya. Avidyia cria a experiência do cubo no papel. Ainda que raciocinemos e
não validemos isso, ainda que saibamos que não pode ser assim. Através desse
exemplo, nós vemos que o cubo não pode estar aqui. Através do raciocínio, nós
percebemos que o cubo surge de forma inseparável da nossa mente. Quando a nossa
mente se posiciona o cubo aparece. Quando a nossa mente se reposiciona o cubo
aparece de outra forma. Vocês percebam que isso é uma operação que está oculta.
Há quantas vidas nós estamos operando assim e não percebemos? Nós não percebemos
essa liberdade. É espantoso que um desenho tão simples é capaz de oferecer isso,
não é?"
Tendo descoberto isso, mais tarde, começamos a observar múltiplos exemplos por
todos os lados. Ficamos repletos de exemplos, quando entendemos isso. O Lama
Padma Samten nos explica que a partir desse ponto, nós percebemos o surgimento
simultâneo de sujeito e objeto. Segundo ele, Gyatso Rimpoche usa uma expressão
que ele considera magnifica:
"A inseparatividade é o surgimento simultâneo de ..."
Desta forma, quando surgimos com uma face, o objeto não aparece com a cara que
ele aparece. Quando o objeto aparece com a cara que ele aparece, isso indica uma
face interna que geramos. O Lama Padma Samten observa que quando dizemos "o
objeto tem essa face ou eu tenho essa face", ainda estamos tratando da mesma
coisa. Logo, "se quisermos olhar como somos, só precisamos perguntar o que
vemos, porque são inseparáveis. Não há como aparecer uma experiência lá, sem que
nós apareçamos aqui."
"Existe uma única experiência. Eu posso escolher e dizer que esta experiência é
a manifestação do objeto ou dizer que ela é a manifestação do sujeito. Não se
trata de um sujeito e de um objeto, é uma única experiência e eu é que vou
definir como vou descrevê-la, objeto ou sujeito. Porque dentro da dualidade da
linguagem eu só tenho essas duas opções de me expressar".
E concluindo com as palavras do Lama Padma Samten sobre este ensinamento
precioso: "Naturalmente, quando nós analisamos a experiência do surgimento do
objeto, ele parece que surge lá. Mas se eu disser que eu estou me espelhando lá
também não é correto. É uma inseparatividade. Isto é um mistério! A contemplação
disso é muito, muito importante."
ϟ
15.Mar.2016
Publicado por
MJA
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