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Bertolt Brecht
![O Vendedor de Fósforos [mutilado de guerra] - Otto Dix, 1921](https://www.deficienciavisual.pt/Quadros/TheMatchSeller-Otto%20Dix-1921.jpg)
imagem: O Vendedor de Fósforos - Otto Dix, 1921
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Um portão. À direita, sentado, um mendigo, pálido, roupas esfarrapadas. Segura
um realejo, escondido na roupa. É de manhã, bem cedo. Um tiro de canhão soa.
Entra o Imperador, cercado de soldados. Seus cabelos são longos e sua cabeça
está descoberta. Usa roupa de lã. Os sinos tocam.
IMPERADOR - No momento em que vou celebrar meu triunfo sobre o meu mais
importante inimigo, quando o país mistura meu nome com o fumo negro do incenso,
há um mendigo sentado diante da minha porta, fedendo a miséria. Mas, com tantos
acontecimentos importantes, pode-se conversar sobre o Nada. Os soldados
retrocedem. Homem, você sabe por que os sinos dobram?
MENDIGO - Sim. Meu cachorro morreu.
IMPERADOR - Isso foi uma insolência?
MENDIGO - Não. Foi por velhice. Mas aguentou bem. Pensava eu: por que as suas
patas tremem? Ele tinha apoiado as da frente no meu peito, e ficamos deitados
assim a noite toda, mesmo quando começou a esfriar. Mas, de madrugada, ele já
estava morto e eu o afastei de mim. Agora não posso voltar para casa, porque ele
está apodrecendo, cheirando mal.
IMPERADOR - Por que você não o enterra?
MENDIGO - Não é da sua conta. Agora você tem o peito oco como um buraco de
esgoto, pois fez uma pergunta tola. Todos fazem perguntas tolas. Perguntar já é
bobagem!
IMPERADOR - Mas mesmo assim vou continuar perguntando: quem cuida de você?
Porque se não há ninguém que o cuide, vai ter que ir embora, aqui não se admite
carne podre nem gritos.
MENDIGO - estou gritando?
IMPERADOR - agora é você quem está perguntando, embora com um certo sarcasmo que
não entendo.
MENDIGO - sim, isso eu não sei, pois se trata de mim.
IMPERADOR - não faço caso de você. Mas quem cuida de você?
MENDIGO - de vez em quando, um menino, que um anjo fez na sua mãe enquanto ela
colhia batatas.
IMPERADOR - você não tem filhos?
MENDIGO - foram embora.
IMPERADOR - como o exército do Imperador Ta Li, que as areias do deserto
engoliram?
MENDIGO - ele atravessava o deserto e seus homens falaram: é muito longe, volta,
Ta Li. E ele respondia: esta terra precisa ser conquistava. Marchavam
diariamente até gastar os sapatos, então sua pele rachou e continuaram marchando
de joelhos. Uma vez um tufão derrubou um cavalo. Ele morreu diante dos olhos de
todos, uma vez chegaram a um oásis e disseram: é assim a nossa pátria. Aí o
filho do Imperador caiu numa cisterna e se afogou. Guardaram sete dias de luto,
a dor que sentiam era infinita. Uma vez viram os cavalos morrerem. Uma vez as
mulheres não puderam mais segui-los. Uma vez chegaram o vento e a areia, e a
areia cobriu todos, e então tudo terminou, e voltou o silêncio, e a terra foi
deles, e eu esqueci o nome dele.
IMPERADOR - como é que você sabe disso? Está tudo errado. Foi bem diferente.
MENDIGO - quando ele era tão forte que eu parecia seu filho, fugi, porque não
permito que me dominem.
IMPERADOR - de que você está falando?
MENDIGO - passavam nuvens perto da meia-noite apareceram estrelas. Depois, tudo
foi silêncio.
IMPERADOR - As nuvens fazem barulho?
MENDIGO - é verdade que morreu muita gente nas cabanas perto do rio que
transbordou semana passada, mas não conseguiram atravessar.
IMPERADOR - já que sabe tudo isso, você nunca dorme?
MENDIGO - Quando me deito em cima das pedras, a criança que acabou de nascer
chora. E então sopra um vento novo.
IMPERADOR - Ontem à noite o céu estava estrelado, ninguém morreu perto do rio,
não nasceu criança alguma, não soprava vento.
MENDIGO - então você deve ser cego, surdo e ignorante. Ou é maldade sua.
Pausa
IMPERADOR - O que você faz o tempo todo? Nunca vi você. De que ovo saíste?
MENDIGO - Percebi que este ano o milho está ruim, porque não choveu. Um vento
escuro e quente sopra nos campos.
IMPERADOR - é verdade, o milho não está bom.
MENDIGO - assim aconteceu há 38 anos. O milho torrou no sol e, antes que
morresse, caiu uma chuva tão forte que apareceram ratos e devastaram os campos.
Depois entraram nos povoados e morderam as pessoas. Este alimento matou os
ratos.
IMPERADOR - Nunca soube nada disso. Deve ser também invenção, como o resto. A
história não fala nada disso.
MENDIGO - Não existe história.
IMPERADOR - E Alexandre? E César? E Napoleão?
MENDIGO - Histórias! Quem é esse tal de Napoleão?
IMPERADOR - Aquele que conquistou metade do mundo e sucumbiu pela própria
soberba.
MENDIGO - Isso é coisa que só dois podem crer: ele e o mundo. É falso. A verdade
é que Napoleão era um homem que remava numa galera e tinha uma cabeça tão grande
que todos diziam: não podemos remar porque sobra muito pouco espaço para os
nossos cotovelos. Quando o barco afundou, porque não remavam, ele encheu a
cabeça de ar e se salvou, só ele, e como estava acorrentado teve que continuar
remando, lá de baixo, não via para onde e que todos tinham se afogado. Então,
pensando no mundo, abanou a cabeça e, como era muito pesada, ela se desprendeu.
IMPERADOR - essa é a maior tolice que escutei na vida. Você me decepcionou muito
com essa história. As outras pelo menos estavam bem contadas. Mas que opinião
tem você do imperador?
MENDIGO - Não existe Imperador. Só o povo pensa que existe um, e só um único
homem pensa que é Imperador. Quando tiverem construído bastantes carros de
guerra e os tambores estiverem treinados, haverá guerra e vão procurar um
adversário.
IMPERADOR - Mas agora o Imperador derrotou seu adversário.
MENDIGO - Matou, não derrotou. O idiota matou o idiota.
IMPERADOR - com esforço - Era um inimigo forte, acredite.
MENDIGO - Um homem bota pedrinhas no meu arroz. É esse meu inimigo. Ele se
vangloria porque tinha a mão forte. Mas morreu de câncer e quando fecharam o
caixão, a mão dele ficou presa e não perceberam quando levaram o caixão, de modo
que a mão ficou pendurada, vazia, desamparada, nua.
IMPERADOR - Você nunca se aborrece de ficar deitado?
MENDIGO - Antes as nuvens passavam no céu, sem parar. É a elas que contemplo.
Não param nunca.
IMPERADOR - Agora não há nuvens. Portanto estás delirando. Isso é claro como o
sol.
MENDIGO - O sol não existe.
IMPERADOR - Você talvez seja até perigoso, paranóico ou louco furioso.
MENDIGO - Era um cachorro bom, não um cachorro qualquer. Merecia o melhor. Até
me trazia carne, e à noite dormia no meio dos meus trapos. Uma vez houve uma
grande gritaria na cidade, todo mundo tinha algo contra mim, porque não dou nada
de importante a ninguém, e até os soldados vieram atrás de mim. Mas o cachorro
afugentou todos.
IMPERADOR - Por que me conta isso?
MENDIGO - Porque acho você burro.
IMPERADOR - Que mais pensa de mim?
MENDIGO - Tem uma voz fraca, portanto é medroso; pergunta demais, portanto é
lacaio; procura me preparar armadilhas, portanto não está seguro de si, nem nas
coisas mais seguras; você não acredita em mim mas fica me escutando, portanto é
um homem fraco; e por vim pensa que o mundo toda gira em torno de você, quando
há pessoas muito mais importantes, eu por exemplo. Além disso, você é cego,
surdo e ignorante. Os outros defeitos, não conheço ainda.
IMPERADOR - Não é um quadro muito animador. Não vê nenhuma virtude em mim?
MENDIGO - Você fala em voz baixa, portanto é humilde; pergunta muito, portanto
tem ânsia de saber; examina tudo, portanto é cético; escuta o que imagina ser
mentira, portanto é indulgente; acredita que tudo gira em torno de você,
portanto não é pior que os outros homens e sua crença não é mais tola que a dos
outros. Além disso, ver demasiado não o confundiu; não se preocupa com o que não
lhe interessa; não está paralisado pelo saber. As outras virtudes, você deve
saber melhor que eu e qualquer outro.
IMPERADOR - Você é espirituoso.
MENDIGO - Toda adulação merece pagamento. Mas agora não vou pagar nada pelo meu
pagamento.
IMPERADOR - Eu pago todos os serviços que me fazem.
MENDIGO - Isso está claro. O fato de esperar aprovação revela a sua alma comum.
IMPERADOR - Não guardo nenhum rancor de você. Isso também é comum.
MENDIGO - É. Porque você não pode me fazer mal.
IMPERADOR - Posso mandar jogar você num calabouço.
MENDIGO - É fresco lá?
IMPERADOR - O sol não entra nunca.
Mendigo - Sol não existe. Você deve ter memória ruim.
IMPERADOR - Também posso mandar matar você.
MENDIGO - Então já não vai chover na minha cabeça, os insetos vão embora, meu
estômago vai me deixar em paz e haverá o maior silêncio que já conheci.
Um mensageiro entra e fala em voz baixa com o imperador.
IMPERADOR - Diga que não me demoro. Sai o mensageiro. Não vou te fazer nada
disso. Pondero as coisas que faço.
MENDIGO - Não diga isso a ninguém, senão vão tirar conclusões observando teus
atos.
IMPERADOR - Não creio que me desprezem.
MENDIGO - Diante de mim todos se curvam. Mas isso não me impressiona. Só os
insistentes me incomodam com suas conversas e perguntas.
IMPERADOR - Incomodo-te?
MENDIGO - Essa é a pergunta mais boba que você fez hoje. Você não tem vergonha.
Não respeita a intangibilidade de um ser humano. Não conhece a solidão, por isso
procura a aprovação de um desconhecido como eu. Você depende do respeito de cada
homem.
IMPERADOR - Eu domino os homens. Por isso me respeitam.
MENDIGO - A rédea também pensa que domina o cavalo, o bico da andorinha pensa
que orienta seu vôo e a ponta da palmeira pensa que arrasta a árvore em direção
ao céu!
IMPERADOR - Você é um homem mau. Eu o faria eliminar, se depois não tivesse que
pensar que foi minha vaidade ferida.
O mendigo apanha o realejo e toca. Um homem passa rapidamente e faz uma
reverência.
MENDIGO - guardando o realejo - Esse homem tem uma mulher que rouba dele. À
noite ela se inclina sobre ele para lhe tirar dinheiro. Às vezes ele acorda e a
vê inclinada sobre ele. Entoa pensa que ela o ama tanto, que não pode passar uma
noite sem o contemplar. Por isso perdoa os pequenos roubos que descobre.
IMPERADOR - Vai começar outra vez. Nem uma palavra disso é verdade.
MENDIGO - Pode ir. Você está ficando vulgar.
IMPERADOR - É inacreditável. O Mendigo toca o realejo. Terminou a audiência?
MENDIGO - Agora todos vêem outra vez o céu mais bonito e a terra mais fértil,
por causa desse pouquinho de música, e prolongam sua vida e perdoam a si mesmos
e a seus vizinhos, por esse pouquinho de som.
IMPERADOR - Diga-me, pelo menos, por que não me suporta mas me contou tanta
coisa?
MENDIGO displicente - Porque você não foi orgulhoso demais para escutar minha
conversa, única coisa que eu precisava para esquecer a morte do meu cachorro.
IMPERADOR - Agora vou embora. Você estragou o dia mais belo da minha vida. Não
devia ter parado. Piedade não leva a nada. a única coisa que vale em você é a
coragem de falar comigo nesses termos. E foi por isso que fiz todos esperarem.
Parte, escoltado pelos soldados. Novamente tocam os sinos.
MENDIGO percebe-se que é cego - Agora ele foi embora. Deve ser de manhã, pois o
ar está tão quente. O garoto hoje não vem. Há festa na cidade. Aquele idiota
também foi para lá. Agora tenho que pensar outra vez no meu cachorro.
FIM
"O Mendigo ou o Cachorro morto"
de Brecht - adaptação do texto pelo
Núcleo Safo de Teatro
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texto integral da peça
O Mendigo ou o Cachorro Morto
título original: 'Der Bettler oder Der tote Hund'
Bertolt Brecht
1919
tradução de Fernando Peixoto
5.Fev.2014
Publicado por
MJA
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