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-excerto-
Leónidas, um
guerreiro cego nas Termópilas (detalhe) | Jacques-Louis David, 1814
Esperamos todo o dia que Lobo Larsen descesse em terra - e foram horas de
intolerável ansiedade. A cada momento púnhamos os olhos na "Ghost", certos de
vê-lo
surgir. Mas não surgia. Não se mostrou na amurada uma só vez.
- Talvez esteja ainda com a dor de cabeça, sugeri. Deixei-o na popa e lá ficará
a
noite inteira. Estou com vontade de ir espiá-lo.
Maud olhou-me com ar reprovativo.
- Não haverá perigo, observei em tom de segurança.
Levarei os meus revólveres: você bem sabe que não há mais nenhuma arma a bordo.
- Mas há os braços, os músculos daquele monstro, as suas terríveis mãos. Oh,
Humphrey, tenho um medo horrível! Não vá, não vá...
E Maud agarrou-me as mãos, fazendo-me acelerar o pulso. Meu coração mostrou-se
nos meus olhos. A minha amada companheira! O sol, o orvalho da minha
varonilidade
penetrando-a cada vez mais fundo e fortalecendo-a com a sua seiva. E meu braço
foi-se
erguendo para enlaçá-la, como no dia das focas; mas reconsiderei a tempo e
contive-me.
- Não arriscarei nada, repliquei. Apenas espiarei de longe.
Maud apertou-me com mais força a mão e deixou-me ir. A bordo notei que Larsen já
não estava onde eu o deixara.
Havia descido, evidentemente.
Voltei, e aquela noite passamos em guarda, ora vigiando eu, ora Maud, porque era
imprevisível o que Larsen poderia fazer.
O dia seguinte passamo-lo à espera do que desse e viesse, e também o terceiro.
Larsen igualmente não deu sinal de si.
- Está com a dor de cabeça, aventou Maud no quarto dia. Talvez muito doente,
talvez morto... Ou morrendo, acrescentou depois de alguns instantes, como eu
nada
sugerisse.
- Melhor assim, Maud...
- Melhor assim, será, disse ela - mas não sabemos.
Seria terrível se fosse. Eu não poderia nunca perdoar-me o deixar morrer perto
de
mim uma criatura humana sem amparo no último momento. Temos de fazer qualquer
coisa, Humphrey.
Calei-me, a pensar na sua solicitude por aquele monstro, ela que pouco antes não
queria nem que eu me aproximasse da escuna. Maud era muito sutil para não
compreender
o que me passava pela cabeça - e foi direto ao ponto.
- Você precisa ir a bordo, Humphrey, e ver o que há, disse ela. E se quer rir-se
de
mim, tem meu consentimento e perdão.
Ergui-me, obediente, e encaminhei-me para a escuna. - Cuidado! gritou Maud de
longe.
Acenei-lhe com a mão de cima do castelo de proa e pulei para o convés. Fui
direto à
cabina e gritei de certa distância. Lobo Larsen respondeu de baixo. Dirigi-me a
ele, mas
de revólver engatilhado. Durante toda a nossa conversação mantive-me assim, sem
que
ele, entretanto, notasse essa atitude. Larsen pareceu-me o mesmo - abatido,
lúgubre.
Poucas palavras trocamos. Não perguntei por que motivo não descera à praia, nem
ele
inquiriu da minha presença ali. Sua cabeça melhorara, foi tudo quanto me disse.
Maud recebeu a nova com evidente alívio e a vista de fumaça na chaminé da
cozinha
acabou de sossegá-la. No outro dia, e ainda no subseqüente, vimos a mesma fumaça
na
cozinha e por vezes avistamos Larsen à popa. Foi só. Não fez ele menção nenhuma
de
descer em terra. Nós continuamos a passar as noites de vigília, sempre receosos
dalguma insídia.
Assim decorreu toda uma semana. Nossa preocupação exclusiva era Lobo Larsen. A
presença ali daquele homem nos impedia de pensar noutra coisa.
Lá pelo fim da semana a fumaça deixou de aparecer e Larsen não mais se mostrou à
popa. A inquieta solicitude de Maud voltou, apesar de, timidamente ou
orgulhosamente,
evitar pedir que eu fosse vê-lo. Tudo bem considerado, como poderia eu levar a
mal essa
solicitude? Era o sublime do altruísmo da mulher. Além disso, eu mesmo me sentia
incomodado à lembrança daquele homem a morrer sozinho, com dois semelhantes tão
próximos. Larsen tinha razão. o código da gente do meu tipo era mais forte que
os
instintos. O fato dele possuir pés, mãos e corpo igual ao meu, estabelecia para
mim
deveres que eu não conseguia iludir.
Não esperei que Maud me mandasse para lá. Notando a nossa falta de leite
condensado e geleias, anunciei que iria a bordo buscar uma provisão. Mas Maud
estremeceu - chegou mesmo a observar que não eram coisas indispensáveis para
nós.
E assim como de outra vez havia acompanhado a curva do meu silêncio, seguia ela
agora no fio das minhas palavras, certa de que eu não tencionava ir à "Ghost"
por causa
daquilo apenas, e sim para sossegá-la da inquietação que lhe lia nos olhos.
Descalcei as botas ao chegar ao castelo de proa e caminhei sem ruído até à
porta.
Alcancei a cabina. Deserta. Estava fechada a porta da câmara de Larsen. Pensei a
princípio em bater; depois lembrei-me da razão ostensiva da minha visita e
dirigi-me para
a despensa. Ergui o alçapão sem ruído. E no meio de tantas provisões separei à
vontade
o que me aprouve.
Quando ia saindo ouvi rumor na câmara de Lobo Larsen. Agachei-me à escuta. A
porta da cabina onde me achava moveu-se e o vulto de Larsen mostrou-se aos meus
olhos no momento em que me entrincheirava atrás da mesa, de revólver
engatilhado.
Jamais vi desespero tão profundo como o estampado em suas feições. Qual mulher
em
dores, o homem terrivelmente forte torcia as mãos e gemia. Depois correu os
dedos pelos
olhos, naquele seu gesto de afastar teias de aranha.
- Deus! Deus! Exclamou - e seus punhos fechados ergueram-se para o céu como a
acentuar o desespero que vibrava na palavra.
Era horrível. Eu tremia todo, com arrepios a percorrerem-me a espinha e suor a
gotejar-me da testa. Nada mais aterrorizante neste mundo que o espetáculo dum
homem
forte que cai.
Mas Lobo Larsen breve readquiriu o controle de si próprio num impressionante
esforço
de vontade. Vi que era esforço supremo. Seu arcabouço estremecera na luta.
Deu-me a
sensação dum homem à beira da queda. Sua face lutava para readquirir o
equilíbrio,
retorcendo-se num ajeitamento. Uma vez mais estorcegou as mãos e rugiu. Respirou
fundo, soluçou. E voltou a si. Era de novo o velho Lobo Larsen, embora sugerindo
um
pouco de fraqueza e indecisão. Não se demorou ali. Fez-se de volta para a escada
- e
notei que também o seu andar não tinha a firmeza de outrora.
Comecei a apavorar-me. O alçapão ficava diretamente na sua passagem e se ele o
visse aberto sem demora me descobriria. E descobrir-me-ia agachado, como um
ladrão
que se insinua em casa alheia. Ergui-me então desafiadoramente e enfrentei-o.
Larsen
não deu sinal de ver-me, nem notou o alçapão aberto. Caminhou para ele como se
estivesse fechado, e já com um pé no buraco ia caindo quando o seu instinto o
fez dar
para a frente um daqueles famosos saltos de tigre. Veio cair de peito bem sobre
as
minhas provisões.
A expressão que lhe vi no rosto foi de compreensão integral de tudo. Mas antes
que
eu pudesse adivinhar o que ele havia compreendido, Larsen fechou a tampa do
alçapão,
supondo-me lá dentro. Estava cego, mais cego que um morcego! Pus-me a
observá-lo,
retendo o fôlego a fim de não ser percebido ali. Larsen dirigiu-se à sua câmara
e apalpou
a porta para alcançar o trinco. Aproveitei a chance e fugi da cabina. Larsen
reapareceu
com uma pesada poltrona, que colocou sobre a tampa do alçapão; não contente,
arrastou
para lá vários outros móveis. Em seguida tomou as provisões, que eu pilhara e
sobre as
quais ele caíra de peito, e pô-las sobre a mesa. Quando saiu dali de rumo à
escada,
voltei para a cabina.
Larsen ficou no topo da escada, com os braços em repouso num rebordo. Sua
atitude
era a de um homem que olhasse para a frente ao longo da escuna, ou que
contemplasse
fixamente alguma coisa, pois não piscava. Eu me pusera a pequena distância,
sentindo-me
qual fantasma invisível. Aproximei-me. Agitei minha mão diante dos seus olhos,
sem
nenhum efeito; mas quando a sombra lhe passava pela retina vi que recebia
qualquer
impressão. Sua face tomava-se mais tensa, como no esforço de identificar o que
era
aquilo. Pressentia por ali algo móvel, sem conseguir apreender o que fosse. E
moveu
vagarosamente a cabeça para a frente e para trás sob a sombra, e voltou-a à
direita e à
esquerda, ora na parte batida de sol, ora na sem sol, comparando as duas
sensações na
ânsia de adivinhar o que era.
A mim também me preocupava saber como podia ter ele a sensação, cego como se
achava, duma coisa tão intangível como a sombra. Se apenas os glóbulos oculares
estivessem afetados e os nervos óticos ainda não de todo destruídos, a
explicação seria
simples. Em caso contrário, então era que a sensibilidade da pele estava
tentando
substituir a visão destruída. Ou tratava-se de um sexto sentido?
Abandonando a tentativa de localizar a sombra, Larsen atravessou o convés com
firmeza e rapidez que me surpreenderam, embora sempre com aquela ponta de
imprecisão
que eu já lhe notara. Estava realmente cego.
FIM
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excerto de
O LOBO DO MAR
Jack London
Tradução: Monteiro Lobato Revisão de Josué Matias Jr.
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