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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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O Deus das Pequenas Coisas

Arundhati Roy

-excerto-

imagem: Velha senhora indiana cega
 

Mammachi era quase cega e usava óculos escuros sempre que saía de casa. As lágrimas escorriam-lhe por trás dos óculos e tremiam-lhe no queixo como gotas de chuva num beiral. Parecia pequena e doente no seu sari branco-sujo e engomado. Chacko era o único filho de Mammachi. A dor dela doía-lhe. A dele dilacerava-a.
 

*

Mammachi começara a comercializar pickles pouco depois de Pappachi se ter aposentado do seu cargo de funcionário do Governo em Deli e ter vindo viver para Ayemenem. A Sociedade Bíblica de Kottayam ia organizar uma quermesse e pediu a Mammachi para fazer a sua famosa compota de banana e o pickles de manga. Venderam-se bem, e Mammachi descobriu que não conseguia dar vazão a todas as encomendas que recebia.

Entusiasmada com o sucesso, decidiu continuar com os pickles e as compotas e em breve deu consigo ocupada durante todo o ano. Pappachi, por seu lado, sentia dificuldade em lidar com a ignomínia da reforma. Era dezassete anos mais velho do que Mammachi e, chocado, deu-se conta de que era um velho enquanto a sua mulher se encontrava ainda na força da vida.

Embora Mammachi padecesse de córneas crónicas e estivesse quase cega, Pappachi não a ajudava no fabrico dos pickles porque considerava que o fabrico de pickles não uma actividade digna de um ex-funcionário superior do Governo. Sempre fora um homem invejoso, pelo que se ressentia da atenção que a mulher subitamente despertava. Cirandava por ali nos seus fatos de corte imaculado, tecendo círculos taciturnos em redor de malaguetas e açafrão-da-índia em pó fresco, observando Mammachi enquanto ela controlava o processo de comprar, pesar, salgar e secar limas e mangas. Todas as noites batia-lhe com uma jarra de latão. Bater não era novidade. O que era novidade era a frequência com que ocorria. Uma noite Pappachi quebrou o arco do violino de Mammachi e atirou-o ao rio.

Foi então que Chacko veio a casa durante as férias de Verão em Oxford. Tornara-se um homem alto e forte, já que remava por Balliol. Uma semana depois de chegar, Chacko encontrou Pappachi a bater em Mammachi no estúdio. Irrompeu pela sala, agarrou na mão de Pappachi que segurava a jarra e torceu-lha atrás das costas.

— Não quero que isto volte a acontecer — disse ele ao pai.

— Nunca mais.

Durante o resto do dia, Pappachi ficou sentado na varanda, fitando petrificado o jardim ornamental e ignorando os pratos de comida que Kochu Maria lhe trazia. Já a noite ia longa quando foi ao estúdio buscar a sua cadeira de baloiço em mogno. Pousou-a no meio da entrada e desfê-la em bocadinhos com uma chave inglesa. Deixou-a ali ao luar, um monte de verga envernizada e de madeira despedaçada. Nunca mais tocou em Mammachi. Mas também nunca mais lhe falou durante o resto da vida.
 

*

Mammachi chorou no funeral de Pappachi e as suas lentes de contacto deslocaram-se.

Ammu disse aos gémeos que Mammachi chorava mais por estar habituada a ele do que por o amar. Estava habituada a que ele cirandasse à volta da fábrica de pickles, e estava habituada a que ele lhe batesse de vez em quando. Ammu dizia que os seres humanos eram criaturas de hábitos e que era espantoso aquilo a que conseguiam habituar-se. Bastava olhar em redor, dizia Ammu, para ver que pancada com jarras de latão era a menor das coisas.

Depois do funeral, Mammachi pediu a Rahel para a ajudar a encontrar e tirar as lentes de contacto com o pequeno conta-gotas cor-de-laranja que vinha no estojo. Rahel perguntou-lhe se, depois de Mammachi morrer, poderia herdar o conta-gotas. Ammu levou-a para fora do quarto e deu-lhe uma bofetada.

— Nunca mais te quero ouvir falar com as pessoas sobre a morte delas — disse.
 

*

Sob a cabeça do bisonte com olhos de vidro, ladeada pelos retratos do sogro e da sogra, Mammachi sentava-se numa cadeira de verga baixinha, Junto a uma mesa de verga com uma jarra de vidro verde donde caía um pé único de orquídeas púrpura.

A tarde estava quente e quieta. O Ar estava à espera.

Mammachi apoiava um violino reluzente sob o pescoço. Os seus óculos de sol opacos dos anos cinquenta eram pretos e em forma de mariposa, com imitações de diamante incrustadas nas extremidades da armação. O sari estava engomado e perfumado. Branco-sujo e dourado. Os brincos de diamante cintilavam nas orelhas como pequenos candelabros.

Os anéis de rubi estavam-lhe largos. A sua pele pálida e delicada estava enrugada como natas de leite a arrefecer polvilhadas por pequenos sinais vermelhos. Estava bela. Velha, invulgar, majestosa.

A Mãe Viúva Cega com um violino.
 

*

No cimo da cabeça, cuidadosamente escondidas pela sua cabeleira rala, Mammachi criara estrias em forma de quarto crescente. Cicatrizes de pancada velha de um velho casamento.

Cicatrizes de jarra de latão.

Tocava ''Lentement' — um movimento da suite II em Ré maior da Música Aquática de Händel. Por trás dos seus óculos de sol mariposa, os olhos inúteis mantinham-se cerrados, embora ela visse a música à medida que ela se desprendia do violino e esvoaçava pela sala como fumo.

O interior da sua cabeça era como um quarto com cortinas escuras corridas contra um dia de sol.

FIM

 

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O Deus das Pequenas Coisas

Man Booker Prize para ficção, 1997
narra a história dos gémeos Rahel e Estha, que, na Índia de 1969, crescem entre os caldeirões de geléia de banana e as pilhas de grãos de pimenta da fábrica da avó cega. Armados da inocência invencível das crianças, os dois tentam inventar uma infância à sombra da ruína que é a sua família — a mãe, a solitária e adorável Ammu; o delicioso tio Chacho; a inimiga Baby Kochamma e o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um entomologista imperial. Rahel e Estha descobrem que as coisas podem mudar num só dia, que as vidas podem ter o seu rumo alterado e assumir novas — e feias — formas. Descobrem que elas podem até cessar para sempre.
 

capa do livro
 

O Deus das Pequenas Coisas
Arundhati Roy (1997)
Título Original: The God of Small Things
Traduzido do Inglês por Teresa Casal
Edições Asa
1.a edição: Maio de 1998
fonte: http://books.google.pt/
 


Δ

12.Mai.2018
Maria José Alegre