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Walter Heckmann, 1991
Imagem corporal e organização espaço-temporal
Para Merleau-Ponty (1994), quando descrevia o corpo próprio, a psicologia
clássica já lhe atribuía
caracteres incompatíveis com o estatuto de objeto. Meu corpo se distingue da
mesa ou da lâmpada
porque ele é percebido constantemente, enquanto posso me afastar. Ele, o meu
corpo, é um objeto
que não me deixa.
A criação do Céu e da Terra, na Bíblia Sagrada, está atribuída ao Senhor Deus
que, vendo o
universo pronto e monologando, toma uma resolução e diz: “Façamos o homem à
nossa imagem e
semelhança”. Se, até aqui, Deus aparece como “oleiro” fazendo o homem do limo da
terra, isto é,
fazen-do as formas do corpo com suas mãos, e o homem se torna um ser vivo, não
como os outros
animais, mas vivo com consciência, então esta diferença é marcada, também, pela
criação da
simbologia.
Para Chevalier e Gheerbrant (1994), desde as mais primitivas tradições, o homem
é
considerado um microcosmo e ocupa o centro do mundo dos símbolos.
Está assim, colocada no universo a consciência na corporeidade, não só a
consciência da
corporeidade, pois a imagem corporal não é ficção. Seja no campo da imaginação
ou da sensação,
ela é uma realidade em nossa mente, que é auxiliada pelos nossos órgãos dos
sentidos, através
da emissão de sensações que são processadas pelo cérebro.
No indivíduo cego, essas sensações são principalmente táteis e auditivas. Vale
ressaltar que
estas reações não agem isoladamente, mas sempre em conjunto, através de uma
mútua
colaboração. Como diz o cantor norte-americano Stevie Wonder (1995), “o corpo
não se esgota
nele mesmo, ele capta coisas de todos os lados”.
Mas o corpo tornou-se negativo. Surgiu o pecado e, no Novo Testamento da Bíblia
Sagrada,
encontramos o seguinte diálogo:
-
“Ao passar, Jesus viu um cego de nascença.
-
Os discípulos perguntaram:
-
– Mestre, quem foi que pecou, para que ele nascesse cego? Foi ele ou seus pais?
-
Jesus respondeu:
-
– Não foi ele que pecou, nem seus pais, mas ele é cego para que nele se
manifestem obras de
Deus.”
O cego é aqui apresentado primeiramente como um corpo pecador; em seguida,
mostra-se que,
apesar de ser cego, não é pecador, mas um corpo que, através da cegueira, serve
não só para ele,
mas para que outros corpos façam reflexões sobre as obras de Deus e sobre a
própria cegueira.
É preciso libertar-se do corpo, até sair dele definitivamente. Com efeito, ele é
que nos mantém
na Terra. Na verdade, pois, segundo Platão (apud Bússola, 1991), almas perfeitas
voam pelo
mundo administrando-o, algumas pessoas perdem suas almas e então procuram apoio
em algo
sólido e pesado – o corpo.
O corpo, para Platão, é símbolo da imperfeição e, no nosso entender, se uma alma
torna-se
cega, deverá procurar um corpo para se apoiar.
Segundo Luz (1995), a Filosofia Nagô nos conta que Obatalá, ao iniciar a criação
dos seres
humanos, precisou de matéria-prima apropriada e solicitou aos orixás que a
encontrassem.
Depois de muita procura demorada e minuciosa, escolheram a alma e, ao pegarem a
alma, ela
começou a chorar; com isso, os orixás não queriam levá-la à Obatalá. Tomando a
iniciativa, o orixá
Iku (morte) levou o seu pedaço e foi seguido pelos outros orixás. Ao receber a
alma, Obatalá ficou
feliz, pois a matéria era realmente ideal para fazer os Ara-Aiyê, isto é, seres
vivos.
Os orixás contaram à Obatalá que a alma ficou chorando e ele tomou uma decisão:
ordenou a
Iku a responsabilidade de restituir à alma os pedaços arrancados. Diante disso,
Iku tem a missão
de girar em volta do mundo. Por isso, não possui assentamento, levando a matéria
dos Ara-Aiyê
para o Orun, para onde todos retornam. Podemos observar que trata-se de uma
transferência da
imagem corporal para outro espaço, permanecendo no chamado espaço
transcendental.
A morte, na mitologia grega, também reporta-se à ocupação de outros espaços.
Pátroclo suplica
a Aquiles que seu corpo ou suas cinzas sejam sepultadas: “Sepulta-me o mais
depressa possível,
para que eu cruze as portas do Hades” (Brandão, 1994).
Na mitologia grega, quando o corpo morre, a Psiqué transforma-se em Eídolon, ou
seja, uma
imagem, um simulacro, reproduzindo assim um corpo astral mantendo os traços do
falecido. “A
Psiqué é a parte divina do homem; o corpo, a sua prisão” (Brandão, 1994:159). O
corpo é visto
como uma forma de punição: estar nesse corpo significa estar cumprindo alguma
pena. Na
concepção homérica, o corpo era como o homem mesmo e a alma, uma sombra pálida e
inconsciente.
Quando Stevie Wonder (1995) diz: “muitas vezes o corpo não responde ao que a
gente sente”,
nos mostra as inúmeras emoções e sensações que levam o ser humano ao
conhecimento do seu
próprio corpo, ou seja, um conhecimento corporal consciente.
De acordo com Gonçalves (1994), para Descartes, o corpo e a alma são substâncias
diferentes
e independentes, o espírito e a matéria são irreconciliáveis. Essa fragmentação
do homem por
Descartes dá-se através da exclusão do sentir e agir do eu, dividindo assim o
homem em princípios
irredutíveis: corpo e alma. Esta separação levou os estudos psíquicos e
fisiológicos a serem
considerados de formas independentes.
Libertando-se da concepção cartesiana, a educação dos portadores de deficiência
passou a
valorizar o homem na sua totalidade, inclusive os seus sonhos. Segundo Brandão
(1994), o
homem carrega, desde a sua concepção, o elemento responsável pelo mal e outro
responsável
pelo bem. Entre o êxtase e o entusiasmo surge o sonho, que é uma dentre várias
formas de
libertar-se do corpo, para que, através dos sonhos, encontre-se o divino. Este
encontro acontece
através da imagem e, no indivíduo cego, depende de informações cinestésicas,
táteis e auditivas.
A imagem corporal do cego pode ser trabalhada, segundo sugestão de Cratty e Sams
(1984),
com a “imagem manual”, de acordo com uma pesquisa que mostrou uma perfeita e
positiva
correlação entre a percepção e a habilidade manual. Parte-se da percepção
manual, em que a
criança percebe e diferencia os dedos das mãos, possibilitando o raciocínio,
para o conhecimento
de outras partes do corpo. A variação de atividades para o desenvolvimento da
imagem corporal do
cego, além de facilitar o trabalho do educador, enriquecerá a experiência do
cego.
Le Boulch (1987) diz que “a imagem visual de seu corpo tornar-se-á então a
principal referência
a partir da qual irão situar-se os detalhes fornecidos pelas sensações táteis e
cinestésicas”. A
dispersão entre a motricidade visual (percepção) e a motricidade da mão
(preensão) só
posteriormente são superadas. Isto ocorre quando a visão conquista o corpo ao
descobrir suas
extremidades. Daí a dificuldade de a criança cega incorporar no processo de seu
desenvolvimento
a sua imagem corporal.
O depoimento de Baba (1985:93), a primeira fisioterapeuta cega no Brasil, sobre
a imagem
corporal do cego, esclarece que existe uma grande dificuldade de o cego
auto-avaliar-se, ou seja,
a pessoa cega “é incapaz de verificar por si mesma o que lhe resta e dizer que é
capaz”.
Ainda segundo a autora, a situação agrava-se mais pelo fato de a sociedade
valorizar “a
perfeição física”. Baba sugere que um programa de reabilitação dos cegos seja
destinado a
restabelecer a locomoção independente e a atividade normal da vida diária. Desta
forma, a
construção ou reconstrução da imagem corporal proporcionará uma melhor qualidade
de vida.
Criar e oportunizar qualidade de vida é um ato de cidadania que não deve ser
negado, pois,
desta forma, todos terão o seu espaço social garantido. Através do pensamento,
criamos coisas e
até viajamos no tempo e no espaço. Quando criamos coisas, as colocamos ou
tiramos de
determinados lugares, ou seja, de determinado espaço.
Para Einstein (1994:65), o conceito de espaço no pensamento pré-científico é
caracterizado
pela frase: “Podemos eliminar mentalmente as coisas, mas não o espaço que elas
ocupam”.
Isto nos remete ao espaço não só no plano da representação, mas como uma
realidade física,
que influencia os conceitos básicos da geometria, a linha reta, o plano, o
ponto. Conceitos que são
abalados pela geometria não-euclidiana, pois a euclidiana refere-se à posição de
corpos rígidos, e
sua posição relacionada à distância. Estes corpos rígidos podem ocupar
diferentes posições.
Essas trocas de posições levam à ocupação do espaço disponível.
Apenas para ilustrar os diferentes conceitos em relação ao espaço e ao tempo,
citaremos a
ligação entre o Ethos Negro-Africano do Egbé e a sociedade eurocêntrica.
Para Luz (1995:559), as coordenadas geográficas de Einstein não representam o
real alcance
da atuação do Egbé. A metáfora “Da porteira pra dentro, da porteira pra fora” é
usada para definir o
poder dos diferentes contextos sociais. O Egbé concentra o saber e o poder
religioso renascido a
cada rito.
A relação espaço-tempo para Merleau-Ponty (1994) é contemporânea, coexistente;
eles não
podem ser separados. Quando dizemos que o espaço está livre, aberto ou “vou
abrir o espaço pra
você”, ou “o cego precisa de mais espaço”, estamos passando simbolicamente o
sentido de
liberdade, o abrir as portas para novas oportunidades, que, na realidade, nos
expõem para as
coisas positivas ou negativas.
Determinados espaços oportunizados para os cegos podem trazer-lhes muitas
alegrias se todos
– o ambiente, juntamente com as pessoas – interagirem. Porém, se esta interação
não for
proporcionada, o espaço e o sentido simbólico de liberdade poderão ter um
aspecto negativo.
A mensuração do espaço necessário para a sobrevivência do homem torna-se muito
difícil, pois
os sonhos e o nível de imaginação são extremamente individuais.
Então, quando abrimos espaço para alguém, nem sempre estamos atendendo às
expectativas
daquela pessoa, pois o espaço de cada um depende de sua cultura, enfim, da sua
história de vida:
cada um tem os seus sonhos.
O cego, em nossa sociedade, poderia ser comparado ao soldado Térsites, que,
depois de lutar
duramente por dez anos, fez uma reivindicação alegando que os resgates
provenientes da prisão
dos nobres troianos não eram revertidos ao povo grego, e sim aos chefes. Após
esta denúncia, ele
é censurado em público e é apresentado por Homero como Vesgo, corcunda e torto.
Isto nos mostra a figura do anti-herói, aquele que, apesar de possuir um bom
discurso e boas
realizações em favor da pátria, sempre será estigmatizado pelo fato de ser
portador de alguma
deficiência. Ainda na mitologia grega, encontramos a exploração do corpo através
da hipoteca
somática que escraviza os camponeses endividados.
A imagem que idealizamos é a de um herói que sempre surge como bonito, alto,
forte e
vencedor. Porém, muitos heróis apresentam-se fora desses padrões e são
portadores de alguma
deficiência, a exemplo da policefalia, a acefalia, a gagueira, a cegueira e
outras. Exemplo de
alguns heróis gregos e suas deficiências: Gerião era policéfalo, Argos era
poliftalmo, Molo era
acéfalo, Tersites era coxo, Bato era coxo. Dentre estas deficiências, a cegueira
é responsável por
um grande número de heróis, principalmente ligados a adivinhações e ao lado
místico, além de
poetas e historiadores: Tirésias, Evendo, Fórmio, Homero e Estesícoro.
É bom salientar que existem heróis que tiveram cegueira adquirida, em função, às
vezes, de ato
criminoso. O caçador Orion foi cegado pelo Rei Enópion, por ter violentado sua
esposa; Fênix foi
cegado pelo próprio Amintor, por ter seduzido a sua concubina; Aquiles tornou-se
cego porque se
vangloriou de seus amores com Afrodite; Erimanto ficou cego por ter visto
Afrodite nua.
Kothe (1987:43) apresenta também os heróis e, dentre eles, destacamos “o
picaresco”, aquele
que além de não defender os inferiores socialmente, procura ridicularizá-los.
Poderemos citar como
exemplo o guia de cego que sentindo-se humilhado pela sua posição social, além
de sofrer em
conseqüência da ganância e da tirania do cego, resolve vingar-se dele,
indicando-lhe uma direção
errada. E o cego esbarra no poste.
O pícaro, com esta ação, inverte a situação, pois o cego possuía uma autoridade
sobre ele por
ser patrão, mas apresentava uma desvantagem de ordem corporal: era cego.
Kothe (1987:19) assinala que toda visão é cegueira, afirmação com a qual
concordamos, uma
vez que, a partir do momento em que a possuímos, desviamos a visão para as
coisas do nosso
interesse, esquecendo de outras que nos cercam.
Uma das coisas que contribui também para o conformismo, tanto da sociedade em
relação aos
cegos quanto dos próprios cegos, muitas vezes é o apelo popular: “Deus escreve
certo por linhas
tortas”, ou “Deus quis assim”. Pode não parecer, mas estas frases fazem parte do
processo de
legitimação por parte da sociedade no que se refere à acomodação, contribuindo
desta forma para
o fortalecimento do espaço marginal.
Uma das formas de minimizar esta situação é através do desenvolvimento da imagem
corporal
do cego, o qual geralmente apresenta movimentos descoordenados. Os movimentos
desorganizados e imperfeitos indicam uma imagem corporal deficitária, que
devemos tentar
organizar através da verbalização e da manipulação de movimentos da criança
cega. Nas crianças
videntes, a aprendizagem da imagem corporal é facilitada pela percepção dos
objetos e das partes
do seu próprio corpo.
A linguagem corporal, uma das primeiras do ser humano, segundo Vayer (1985:34),
possui um
duplo significado: o afetivo, que está relacionado com as atitudes, e o contato.
Daí a importância do
contato com os pais e o significado semântico que está relacionado com a ação
corporal,
constituindo assim a base das comunicações humanas. No caso da criança cega,
essa linguagem
corporal, de acordo com Cratty (1984:12), começa a formar-se examinando seu
próprio corpo ou
quando ela passa a explorar os de outras pessoas, e complementando através da
forma verbal.
O corpo, para Nietzsche, é a criação do desejo dominante, e a visão tem papel
importantíssimo
nessa criação e na formação da imagem corporal, pois o sentido da visão dá a
modelagem final ao
nosso esquema corporal (Bússola, 1991).
A ausência desse sentido provoca algumas defasagens que, de acordo com Menescal
(1994:89), são mais acentuadas na área motora. Apontaremos algumas: imagem
corporal,
esquema corporal, esquema cinestésico, equilíbrio dinâmico, postura, mobilidade,
marcha,
locomoção, expressão corporal, expressão facial, coordenação motora (mais
acentuada na
coordenação motora grossa), lateralidade, tônus muscular e resistência física.
Para Schilder (1980:94), “toda sensação tem sua motilidade, a sensação traz em
si própria uma
resposta motora”. O homem luta e avança para possuir um objeto desejado, pode
conseguir ou
não. Em caso afirmativo, visualiza outro objeto de seu desejo; em caso negativo,
a busca
recomeça a fim de saciar o seu desejo. Esta insatisfação ocorre também em função
da relação
visual com o objeto em determinado tempo e espaço.
Na mitologia grega, Tântalo, filho de Zeus, é o símbolo da insatisfação humana,
do desejo
incessante, insaciável. Os objetos estão diante dos seus olhos, mas longe, muito
longe do seu
espaço corporal, o que dificulta a sua posse.
Condenado eternamente à sede e à fome, Tântalo, lançado no tártaro com água até
o pescoço
e árvores frutíferas sobre a sua cabeça, não consegue saciar a sua sede nem a
sua fome, pois a
água escorrega entre os seus dedos e os frutos afastam-se de suas mãos.
A insatisfação humana passa pelo desejo, onde o olhar e o perceber as coisas são
responsáveis por este desejo. Daí o dito popular “o que os olhos não vêem o
coração não sente”.
Isto não quer dizer que os cegos não possuam desejos; a sua insatisfação humana
é igual ou
maior que a dos videntes, ou seja, pessoas que enxergam.
O cego não tem percepção visual, mas possui o olhar, pois o olhar, segundo Bosi
(1995), não
está isolado, mas enraizado na corporeidade através da sensibilidade e da
motricidade.
E, para uma conclusão parcial do referido artigo (digo parcial pois, no nosso
entendimento,
nenhum artigo científico está totalmente concluído) cabe-nos algumas reflexões:
-
a grande importância da Educação Física no processo de desenvolvimento
corporal da pessoa
cega;
-
a contribuição da Educação Física na Organização Espaço-Temporal melhorando a
Orientação e
Mobilidade do indivíduo cego a partir do conhecimento do seu próprio corpo;
-
a melhoria de sua auto-estima a partir do conhecimento de sua Imagem Corporal
adquirida
através de uma Educação Física preocupada com o cidadão.
Bibliografia
1. BABA, C. T. N. Superando as limitações . 2 Ed. São Paulo: Paulinas, 1985.
2. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulinas (Sociedade Bíblica
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Admilson Santos é professor da UFBA e da UEFS, doutorando em Educação (UFBA).
Este artigo analisa o corpo em várias concepções,
fundamentando a imagem corporal do cego com relação ao
espaço.
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