|
O Cego - Albano Vitturi, 1922
O cego Assis Ângelo (sim, ele detesta ser chamado de
deficiente visual, diz que é cego e ponto) é só inquietação
desde que, oito anos atrás, deixou de ver as cores, os
formatos, as silhuetas e os contornos do mundo, pelo
descolamento das retinas.
Viu-se obrigado pelas circunstâncias
da doença a trocar a luz da visão que o acompanhou por
pouco mais de 60 anos pelas trevas da escuridão, nesses
últimos oito.
E por que toda essa inquietação?
Óbvio, quem um dia enxergou, ficar cego, do dia para a
noite, literalmente, é como receber uma sentença de morte.
Óbvio, quem sempre teve muitos amigos e foi o tempo todo
rodeado por eles, ver-se de um momento para outro todos
(ou quase todos) se afastarem, é como perder o chão e entrar
em queda livre num abismo quase sem fim.
Tudo isso é óbvio, mas o que não é tão óbvio e é mais
determinante na saga do cego Assis é a vontade de trabalhar;
mais do que isso, a capacidade de trabalhar.
Sim, porque, como ele faz questão de dizer, perdeu a visão
dos olhos, mas não perdeu a voz nem os outros sentidos
e muito menos a capacidade de realizar coisas. Continua
fazendo jornalismo diariamente, escreve poesias, faz a coluna
semanal do Jornalistas&Cia, acompanha (por rádio e pelo
áudio da televisão) tudo o que se passa no mundo e no
jornalismo, e tem uma memória prodigiosa, que, somada
ao seu talento e determinação, lhe permitiriam fazer muitas
coisas, como ancorar um programa de televisão para
deficientes ou um programa de rádio sobre cultura popular.
Mas o trabalho, aquele que dignifica o homem, que lhe dá
sustento, satisfação, prazer, realização, este não chega, porque
ele está invisível, porque não lhe atribuem uma capacidade
que ele sabe que tem e que vez ou outra até consegue
demonstrar, quando o chamam para fazer alguma palestra
Brasil afora (antes, eram dezenas por ano), em que pese a
pandemia hoje ser restritiva para deslocamentos.
Por que ele não poderia liderar um novo projeto de cultura
popular, tantos já concebeu para inúmeras organizações,
como Metrô de São Paulo, Sesc, Correios etc.?
O que o impediria de voltar a apresentar um programa de
rádio, como São Paulo Capital Nordeste, que apresentou por
anos na Rádio Capital, líder de audiência no horário?
O problema é que o cego Assis ficou invisível, como milhões
de pessoas com deficiência nesse País.
E quer trabalhar, mas não consegue. Pede socorro ao mercado e aos eventuais
contratantes, mas não é ouvido.
Quer conversar, falar de seus projetos, da situação política do
País, mas não tem com quem, esquecido que foi pela grande
maioria dos amigos. Mantém com grande sacrifício, inclusive
financeiro, um blog para que possa exercitar sua prosa e sua
mente diariamente, com comentários críticos sobre a política
e amorosos sobre a cultura popular, da qual é hoje, sem
dúvida, um dos maiores conhecedores e estudiosos, dono
de um acervo com perto de 150 mil itens, que mantém com
grande zelo em seu próprio apartamento, no bairro paulistano
dos Campos Elíseos.
Pois foi desses encontros com o cego Assis que nasceu a
ideia de fazer este especial, dando guarida às suas críticas de
que o Brasil não enxerga seus mais de 40 milhões de pessoas
com deficiência, número que ele faz questão de dizer que
colheu do censo do IBGE de 11 anos atrás.
“Eu posso fazer um programa para todos os deficientes,
todas essas pessoas que se tornaram invisíveis, que estão
jogadas num canto de algum lugar, muitas vezes escondidas
pelas famílias. Para os cegos, como eu, para os surdos, mudos,
para os paraplégicos. Enfim, colocar a deficiência no horário
nobre, para mostrar que neste mundo há seres humanos com
desejos, necessidades, amores, seres humanos consumidores,
que só querem ter a oportunidade de deixar de ser um
número para ganhar visibilidade e dignidade”.
ϟ
Jornalistas & Cia
Especial Dia do Jornalista
Edição 1.302 - pág. 3 | abril de 2021
https://www.jornalistasecia.com.br/
|