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imagem: 'Le Borgne grimacier'
- desenho de Jean Jacques Lequeu (1757-1826)
Nossos dois olhos não tornam nossa condição melhor; um nos serve para ver
os bens e o outro, para ver os males da vida. Muitas pessoas têm o mau hábito
de fechar o primeiro e poucas fecham o segundo; essa é a razão pela qual há
tanta gente que preferia ser cega a ver tudo o que vê. Felizes são os zarolhos,
que são privados somente do mau olho que estraga tudo o que se vê! Mesrour
é um exemplo.
Seria preciso ser cego para não ver que Mesrour era zarolho. Era assim de
nascença, mas era um zarolho tão contente de sua condição que nunca cogitou
desejar um outro olho. Não eram os dons da fortuna que o consolavam dos
danos da natureza, pois era um simples carregador e não tinha outro tesouro
senão seus ombros; mas era feliz e mostrava que um olho a mais e pena a
menos contribuem bem pouco para a felicidade: o dinheiro e o apetite
chegavam sempre proporcionalmente ao exercício que fazia; trabalhava de
manhã, comia e bebia ao final do dia, dormia à noite e via cada um de seus
dias como vidas distintas, de tal forma que o cuidado para com o futuro nunca
o atrapalhava em seu proveito do presente. Era (como você vê), ao mesmo
tempo, zarolho, carregador e filósofo.
Viu passar por acaso, em uma carruagem brilhante, uma princesa que tinha
um olho a mais que ele, o que não o impediu de achá-la muito bonita. Como os
zarolhos não se diferenciam dos outros homens senão por ter um olho a menos,
ficou perdidamente apaixonado. Dirão, talvez, que, quando se é carregador e
zarolho, não se deve apaixonar-se, sobretudo por uma grande princesa, e mais,
por uma princesa que possui dois olhos. Convenho que devemos temer muito
não agradar; contudo, como não há amor sem esperança e como nosso
carregador amava, ele esperou. Como tinha mais pernas que olhos e elas eram
boas, por quatro léguas seguiu a carruagem da sua deusa, que seis grandes
cavalos brancos puxavam com rapidez. Naqueles tempos, a moda entre as
damas era viajar sem lacaio, sem cocheiro e conduzir por si mesmas. Os
maridos queriam que estivessem sempre sozinhas a fim de assegurarem-se a
respeito de suas próprias virtudes, o que é absolutamente oposto ao sentimento
dos moralistas que dizem que não há virtude alguma na solidão. Mesrour
corria sempre ao lado das rodas da carruagem, virando seu bom olho para o
lado da dama, espantada de ver um zarolho com tanta agilidade. Enquanto
provava que somos incansáveis com relação àquilo que se ama, um animal
fulvo, perseguido por caçadores, atravessou a estrada e assustou os cavalos,
que, mordendo os freios com os dentes, arrastavam a bela para um precipício.
Seu novo bem-amado, mais assustado do que ela, embora ela o tivesse ficado
bastante, cortou as rédeas com uma maravilhosa agilidade. Os seis cavalos
brancos fizeram, sozinhos, um salto mortal, e a dama, que não estava menos
branca do que eles, saiu ilesa do perigo. “Quem quer que você seja”, disse
ela, “nunca esquecerei que lhe devo a vida; peça-me aquilo que quiser; tudo o
que possuo está à disposição.”
“— Ah, posso, com muito mais razão” — respondeu Mesrour — “oferecer-lhe tanto quanto; mas, ao fazê-lo, oferecerei
sempre menos: pois só tenho um olho e você tem dois; mas um olho que olha
você vale mais do que dois olhos que não veem os seus.”
A dama sorriu, pois
os galanteios de um zarolho sempre são galanteios e sempre fazem sorrir.
“Adoraria poder lhe dar um outro olho”, disse-lhe, “mas somente sua mãe
poderia tê-lo dado este presente. Acompanhe-me.” A essas palavras, ela desce
de sua carruagem e continua o caminho a pé; seu cãozinho também desceu e
andava ao lado dela, latindo para a estranha figura de seu escudeiro. Estou
errado em lhe dar o título de escudeiro pois, por mais que tivesse oferecido
seu braço, a dama nunca quis aceitá-lo, sob o pretexto de que ele estava muito
sujo. Você verá que ela se deixou enganar por seu asseio. Ela tinha pés muito
pequenos e sapatos ainda menores que seus pés, de tal modo que não era feita
nem estava calçada para aguentar uma longa marcha. Pés bonitos, quando se
tem pernas ruins, quando se passa a vida numa espreguiçadeira em meio a um
bando de almofadinhas; mas para que servem calçados bordados com
lantejoulas em um caminho de pedregulhos, onde só podem ser vistos por um
carregador, e mais, por um carregador que só tem um olho?
Melinade (este é o nome da dama, que tive minhas razões para não dizê-lo
até agora, porque ainda não estava pronto) avançava como podia,
amaldiçoando seu sapateiro, rasgando seus sapatos, escorchando seus pés e
torcendo-os a cada passo. Havia cerca de uma hora e meia que andava ao
passo das grandes damas, ou seja, já tinha feito quase um quarto de légua
quando caiu de cansaço por ali mesmo.
Mesrour, a quem ela recusara socorro enquanto estava de pé, vacilava para
oferecê-lo, com receio de sujá-la ao encostar nela, pois bem sabia que não
estava limpo, pois a dama lhe dera claramente a entender e a comparação que
fizera no caminho, entre ele e sua pretendida, fê-lo ver isso ainda mais
claramente. Ela tinha um vestido de tecido prateado, semeado de guirlandas de
flores, que faziam brilhar a beleza de suas formas. Ele tinha uma bata
amarronzada, manchada em mil lugares, furada e remendada de maneira que os
retalhos estavam ao lado dos buracos e não em cima, onde, contudo, estariam
mais em seu lugar; tinha comparado suas mãos nervosas e transformadas em
calos com duas mãozinhas mais brancas e mais delicadas que o lírio; enfim,
tinha visto os belos cabelos loiros de Melinade, que apareciam através de um
leve véu de tule, uns alçados em tranças, outros em cachos; ele, para colocar
ao lado disso, não tinha senão crinas negras, arrepiadas, crespas, e seu
ornamento não passava de um turbante rasgado.
Contudo, Melinade tenta se levantar, mas recai tão logo, tão desajeitada, que
aquilo que deixou ver a Mesrour arrancou-lhe o pouco de razão que a vista do
rosto da princesa nele pudera deixar. Esqueceu que era carregador, que era
zarolho e não sonhou mais com a distância que a fortuna tinha colocado entre
Melinade e ele; tampouco se lembrou que estava apaixonado, pois faltou-lhe a
delicadeza que se diz inseparável de um verdadeiro amor e que nele produz,
às vezes, o charme e, com mais frequência, o tédio. Serviu-se dos direitos que
sua posição de carregador lhe dava à brutalidade, foi brutal e feliz. A princesa
estava sem dúvida desmaiada, ou então chorava por sua sorte; mas, como era
justa, abençoava certamente o destino, pois toda desgraça carrega consigo seu
consolo.
A noite estendeu seus véus ao horizonte e escondeu, com sua sombra, a
verdadeira felicidade de Mesrour e as supostas infelicidades de Melinade.
Mesrour experimentava os prazeres dos perfeitos apaixonados e os
experimentava como carregador, ou seja (para vergonha da humanidade), da
maneira mais perfeita; as fraquezas de Melinade voltavam a cada instante e, a
cada instante, seu bem-amado readquiria forças. “Poderoso Maomé”, disse
uma vez como homem transtornado, mas como mau católico, “somente falta à
minha felicidade ser sentida por aquela que a causa; enquanto estiver em seu
paraíso, divino profeta, acorde-me ainda um favor, que é ser, aos olhos de
Melinade, o que ela seria ao meu olho se fosse dia.” Terminou de rezar e
continuou a desfrutar. A aurora, sempre muito diligente para os apaixonados,
surpreendeu Mesrour e Melinade na atitude em que ela poderia ter se
surpreendido, outrora, com Titono. Mas qual foi o espanto de Melinade
quando, ao abrir os olhos para os primeiros raios do dia, se viu em um lugar
encantado, com um jovem de nobres proporções, cujo rosto parecia com um
astro de que a terra esperasse o regresso! Ele tinha bochechas de rosa, lábios
de coral; seus grandes olhos ternos e vivos, tudo ao mesmo tempo, exprimiam
e inspiravam a volúpia; sua aljava de ouro, ornada com pedrarias, estava
suspensa em seus ombros e somente o prazer fazia soar suas flechas; sua longa
cabeleira, presa por uma fivela de diamantes, flutuava livremente sobre os rins
e um tecido transparente, bordado de pérolas, servia-lhe de vestimenta e não
escondia nada da beleza de seu corpo.
“Onde estou e quem é você?”, exclamou Melinade no excesso de sua surpresa. “— Você está” — respondeu
— “com o miserável que teve a felicidade de salvar tua vida e que foi tão bem
pago por suas penas.” Melinade, tão satisfeita quanto espantada, lamentou que
a metamorfose de Mesrour não tivesse começado mais cedo. Ela se aproxima
de um palácio brilhante que atraíra seu olhar e lê, na porta, a seguinte
inscrição: “Profanos, distanciem-se; estas portas só se abrirão para o mestre
do anel”.
Mesrour, por sua vez, se aproxima para ler a mesma inscrição, mas
vê outros caracteres e lê essas palavras: “Bata sem receio”. Bateu e logo as
portas se abriram, sozinhas, fazendo um grande barulho. Os dois bem-amados
entraram, ao som de mil vozes e de mil instrumentos, num vestíbulo de
mármore de Paros; de lá, passaram para uma suntuosa sala, onde um festim
delicioso os aguardava há mil duzentos e cinquenta anos, sem que nenhum dos
pratos ainda tivesse esfriado: sentaram-se à mesa e foram servidos, cada um,
por mil escravos da maior beleza; a refeição foi entremeada por concertos e
danças. Quando terminou, todos os gênios chegaram na mais perfeita ordem,
divididos em diferentes grupos, com vestimentas tão magníficas quanto
singulares, para prestar juramento de fidelidade ao mestre do anel e beijar o
dedo sagrado que o carregava.
Entretanto, havia em Bagdá um muçulmano muito devoto que, não podendo
se lavar na mesquita, fazia vir a água da mesquita à sua casa, mediante uma
pequena retribuição que pagava ao imame. Acabara a quinta ablução para se
dedicar à quinta prece quando sua servidora, jovem desatenta pouco devota,
se desfez da água sagrada, jogando-a pela janela. Ela caiu sobre um infeliz
profundamente adormecido no canto de um marco que lhe servia de cabeceira.
Ele ficou encharcado e acordou. Era o pobre Mesrour, que, regressando de sua
estadia encantada, perdera durante a viagem o anel de Salomão. Deixou suas
belas vestimentas e apanhou sua bata; sua bela aljava de ouro tinha se
transformado em ganchos de madeira e, para cúmulo da infelicidade, tinha
deixado um de seus olhos no caminho. Lembrou-se então que, no dia anterior,
bebera uma grande quantidade de aguardente que adormeceu seus sentidos e
que esquentou sua imaginação. Até então, gostava desse licor por seu sabor,
mas então começou a amá-lo por reconhecimento e voltou com alegria a seu
trabalho, decidido a empregar o salário para comprar meios de reencontrar
sua cara Melinade.
Qualquer outro ficaria desolado de ser um vilão zarolho após ter tido dois belos olhos; de sentir as recusas das varredouras do palácio
após ter desfrutado dos favores de uma princesa mais bela que as amantes do
califa e de estar ao serviço de todos os burgueses de Bagdá após ter reinado
sobre todos os gênios. Mas Mesrour não tinha o olho que enxerga o lado ruim
das coisas.
FIM
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Voltaire (1694-1778) foi um filósofo e escritor francês, um dos grandes representantes do Movimento Iluminista na França. Foi também ensaísta, poeta, dramaturgo e historiador. Voltaire, Montesquieu e Rousseau foram os três nomes mais significativos do Iluminismo francês. Nessa época, os importantes avanços econômicos, culturais e científicos levaram à crença de que o destino da humanidade era o progresso. Além do racionalismo e do liberalismo, outro princípio tipicamente iluminista era o anticlericalismo – posição política contrária ao poder da Igreja.
Voltaire, ligado à alta burguesia, era um crítico fervoroso do absolutismo, da nobreza e principalmente da Igreja, foi um dos pensadores que melhor encarou o espírito do Século das Luzes. in ebiografia.com/
NT:
Mesrour era um carregador que trabalhava carregando fardos com a ajuda de um
gancho (crochet) nas costas.

fonte do texto: SESI-SP Editora, 2015
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