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Ciego - fotografia de Memo Vasquez,
2009
Há bastante tempo que não o vejo
e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no ato, como um instrumento, a captar os ruídos, os
perigos, as ameaças da Terra. Os cegos, habitantes do mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada, com
um barulho seco e compassado, investigando o mundo geométrico. A cidade é um vasto diagrama, da qual ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma
série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvairio. Sua sobrevivência é um cálculo.
Ele parava ali na esquina, inclinava sua cabeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos dessa selva de asfalto. Se da rua
viesse o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a
rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem. Ao chocar-se contra o obstáculo, seu corpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e
permanecia por alguns momentos em plena rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.
Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. Como profissão, por estranho que seja, faz chaves e conserta fechaduras, chaves
perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem do botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam
afavelmente, os porteiros conversam com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que fosse completamente cego.
― Já reparou como ele é elegante?
Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos esvaziados de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas compunham uma figura
misteriosamente elegante, uma elegância hostil, uma elegância que nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.
Às vezes, revolta-se perigosamente contra seu fado. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um
pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo
silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto onde se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente.
O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto o cego vibrava sua bengala, gritando: “Está pensando que você é o dono da rua?”
Outra vez, eu o vi num momento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos
percorreram o para-lamas, o painel, os faróis e os frisos. Seu rosto se iluminou, deslumbrado, como se seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira. O mar de
encontro aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.
E não me esqueço também de um domingo quando ele estava saindo do boteco. Sol morno e pesado. Meu amigo cego estava completamente bêbado. Encostava-se à parede em uma
tentativa improvável de equilibrar-se. Ao contrário de outros homens que se embriagavam aos domingos, e cujos rostos ficavam irônicos e ferozes, ele mantinha uma
expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava, naquele momento, todas as
alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A Poesia servia-se dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam
em meio à turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado, como qualquer um de
nós. A agressividade, que lhe emprestava segurança, desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com seu sol opaco e furioso. Naquele instante, ele era só um pobre cego.
Seu corpo gingava para um lado, para o outro, sua bengala espetava o chão, evitando a queda. Volta assustado à certeza da parede, para recomeçar, momentos depois, a
tentativa desesperada de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no Caos.
FIM

Paulo Mendes Campos
Nasceu em 28/02/1922, em Belo Horizonte. MG. Jornalista, escritor, tradutor e acima de tudo, poeta. Quando cursava o ginásio, seu professor de português, um padre, viu
que o menino prometia: "Você ainda será escritor".
Começou os estudos de odontologia, veterinária e direito, não chegando a completar nenhum deles.
Muito moço ainda,
ingressou na vida literária, como integrante da geração mineira a que pertencia Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. O quarteto foi chamado mais tarde
de “Os quatro cavaleiros do apocalipse”. Em Belo Horizonte, dirigiu o suplemento literário da Folha de Minas.
Seu gosto pela poesia levou-o a viajar até o Rio de Janeiro,
em 1945, para conhecer o poeta Pablo Neruda em visita ao Brasil. Não voltou mais à Belo Horizonte, pois seus melhores amigos já se encontravam no Rio. Passou a trabalhar
em diversos jornais: O Jornal, Correio da Manhã, Diário Carioca e, durante anos, cronista efetivo da revista Manchete.
Seu primeiro
livro de poemas - A palavra escrita - foi
lançado em 1951. No mesmo ano, casou-se com Joan, de descendência inglesa, e teve dois filhos. Para sustentar a família, fez trabalhos como free-lancer de repórter,
tradutor e redator de publicidade. Em 1952 publica a antologia Forma e expressão do soneto e se consagra como poeta.
Talvez motivado pelas experiências de Aldous Huxley,
em 1962 experimentou LSD acompanhado por um médico e relatou essa experiência em artigos publicados na revista Manchete, posteriormente reproduzidas em O colunista do
morro (1965) e em Trinca de copas (1984), seu último livro. Disse que a droga abriu "comportas" e ele se deixou invadir pelo "jorro caótico"do inconsciente até sentir o
peso e a nitidez das palavras que produziam um "milagre da voz".
Outros livros publicados: Testamento do Brasil (1956), O domingo azul do mar (1958), O cego de Ipanema
(Ed. do Autor, 1960), O colunista do morro (Ed. do Autor, 1965), Hora do recreio (Sabiá, 1967), O anjo bêbado (Sabiá, 1969), O amor acaba (Civilização Brasileira, 1999),
Alhos e bugalhos ( Civilização Brasileira, 2000) etc. Cético, sem perder a ternura, jamais fez concessões e tinha horror à vulgaridade, fosse ela temática ou vernacular.
A perplexidade humana é devassada em sua poesia; sua prosa é penetrante, algumas vezes cheia de bom humor. Faleceu em 01 de Julho de 1991.
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O Cego de Ipanema
Paulo Mendes Campos (1960)
Fonte do texto: Alma
Carioca de Paulo Afonso
9.Ag.2012
Publicado por
MJA
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