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excerto

Michel Strogoff, cego! - desenho de Jules Ferat, 1876
A sentença do Emir
Miguel Strogoff, com as mãos ligadas atrás das
costas, foi colocado em frente do trono do emir. Sua mãe, quebrantada pelo
efeito de tantas dores físicas e morais, deixara-se cair no chão, não se
atrevendo a ver nem ouvir o que se passava em redor.
— Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem! — repetiu Féofar-Cã, estendendo a mão
ameaçadora para Miguel Strogoff.
Ivan Ogareff, ao facto dos costumes tártaros, havia sem dúvida compreendido o
alcance daquela frase, porque os seus lábios entreabriram-se rapidamente num
sorriso cruel. Depois, caminhou a passos lentos para junto de Féofar-Cã.
Em seguida ouviu-se um toque de clarins. Era o sinal para começarem os festejos.
— Vai principiar a dança — anunciou Jolivet a Harry Blount.
— Contra o uso estabelecido, estes bárbaros dão-na antes da tragédia.
Miguel Strogoff, com os olhos bem abertos, conforme lhe recomendara o emir,
olhava em todas as direções.
Ao mesmo tempo dava entrada no terraço uma nuvem de dançarinas. Diferentes
instrumentos tártaros, a dutara, bandolim de duas cordas de seda torcida, com o
braço muito comprido feito de pau de amoreira, o cobizo, espécie de violoncelo
aberto pela parte do tampo superior, com as cordas de clina, a tschibyzga,
comprida flauta de cana, os tamboris, as trombetas e os tantãs casavam os seus
variados sons com as vozes guturais dos cantores, formando tudo uma estranha e
desusada harmonia. Junte-se a isto os acordes de uma orquestra aérea, composta
de uma infinidade de grandes papagaios de papel, que, presos com cordas pelo
meio, vibravam ao murmúrio da viração, como se fossem harpas eólicas.
As danças não se fizeram esperar.
Eram de origem persa as dançarinas que se apresentaram, e exerciam a sua
profissão em plena liberdade.
Tinham anteriormente figurado nas cerimónias oficiais da corte de Teerão, mas
depois da subida ao trono da família reinante, banidas por assim dizer da
Pérsia, haviam-se visto obrigadas a tentar fortuna noutros países.
Trajavam ainda à moda nacional e traziam grande profusão de joias a adorná-las.
Pequenos triângulos de ouro e compridos pingentes balouçavam-se-lhes nas orelhas
e tinham em redor do pescoço argolas de prata oxidada.
Braceletes, formados por uma dupla fila de gemas, cingiam-lhes as pernas e os
braços e na extremidade das suas compridas tranças agitavam-se vistosos
pingentes, ricamente cravejados de pérolas, turquesas e cornalinas.
A cinta que as apertava tinha ao centro uma chapa brilhante, parecida com a
placa das grã-cruzes europeias.
Estas dançarinas executaram com extrema graça diversos bailados, tanto a solo
como em grupos. Vinham todas com a cara destapada, mas de vez em quando
envolviam a cabeça numa nuvem de gaze, que, passando por cima de todos aqueles
olhos cintilantes, fazia lembrar um ténue vapor cobrindo um céu ornado de
estrelas. Algumas traziam a tiracolo uma faixa bordada de pérolas, à qual estava
presa uma pequena escarcela de forma triangular. Destas escarcelas, tecidas de
filigrana de ouro e que se abriam em dadas ocasiões, saíam muitas fitas
estreitas de seda escarlate, nas quais se viam bordados os versículos do Corão.
As dançarinas estendiam as fitas pouco a pouco, formando variadas e compridas
tiras, por baixo das quais outras passavam sem interrupção dos seus bailados.
Quando sucedia, durante o seu voltear, depararem-se às dançarinas os versículos
bordados, segundo os preceitos que eles continham, assim também elas variavam as
posições, ora curvando-se profundamente em sinal de respeito, ora levantando-se
num salto gracioso como se quisessem ir juntar-se, no céu às huris de Maomet.
Mas o que era de notar, o que fez impressão a Alcide Jolivet, é que estas
persas, em vez de impetuosas, se mostravam indolentes. Faltava-lhes o fogo, a
animação, e, tanto pelo género das danças como pelo seu desempenho, faziam
lembrar mais as bailadeiras frias e recatadas da Índia do que as almeias
apaixonadas do Egito.
Quando acabou esta primeira parte da festa, ouviu-se uma voz grave que dizia:
— Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem!
O homem que repetia agora as palavras do emir, um tártaro de grande estatura,
exercia junto de Féofar-Cã as funções sinistras de carrasco. Colocado atrás de
Miguel Strogoff, este homem sustinha na mão um sabre de lâmina larga e
recurvada, uma dessas lâminas de Damasco, temperadas pelos célebres armeiros de
Karchi ou de Hissar.

O
homem sustinha na mão um sabre de lâmina larga e recurvada (desenho de Jules
Ferat, 1876)
Junto dele, dois guardas haviam deposto uma trípode, sobre a qual assentava uma
grelha, em que ardiam alguns carvões sem fazer fumo. O ligeiro vapor que se
levantava provinha apenas da incineração de uma substância resinosa e aromática,
feita de olfbano e benjoim, que de vez em quando atiravam para cima do lume.
Entretanto, ao grupo das persas sucedera-se imediatamente outro grupo de
bailarinas, de raça diferente, que Miguel Strogoff não teve dificuldade em
reconhecer.
Parece que os dois jornalistas as reconheceram também, porque Harry Blount disse
para o seu colega:
— São as tziganas de Nijni-Novgorod, pois não são?
— São — respondeu Alcide Jolivet. — Estou certo de que os olhos destas espias
devem render-lhes mais dinheiro do que os pés.
E Alcide Jolivet não se enganava fazendo delas criaturas ao serviço do emir.
Na primeira fila das tziganas figurava Sangarra, admirável com o seu trajo
pitoresco e extravagante, que mais lhe fazia realçar a formosura.
Sangarra não dançava, mas colocou-se, na qualidade de corifeia, no meio das suas
dançarinas, cujos bailados de fantasia eram um misto dos diferentes países que
esta raça percorre: Boémia, Egito, Itália e Espanha. As tziganas iam-se
entusiasmando com a bulha dos adufes, que agitavam amiúde, com o estrépito dos
dairés, pandeiros de pele estridente, que elas faziam ressoar com os dedos.
Sangarra, meneando freneticamente o seu dairé, era a primeira a excitar este
bando de verdadeiras coribantes.
Então viu-se aparecer um tzigano, de quinze anos quanto muito, trazendo na mão
uma dutara, cujas únicas duas cordas ele fazia vibrar por meio de um ligeiro
movimento de unhas. O rapazito começou a cantar. Durante a primeira estrofe da
sua cantiga, de um ritmo extravagante, veio colocar-se junto dele uma dançarina,
que ficou imóvel a escutá-lo. Todas as vezes, porém, que o moço cantor repetia o
estribilho, ela recomeçava a dança interrompida, movendo perto dele o seu dairé
e aturdindo com o estrondo das castanholas.
Depois, quando o jovem tzigano soltou a última nota, as dançarinas enlaçaram-no
completamente nas mil voltas das suas danças caprichosas.
Ao mesmo tempo, caía uma chuva de ouro, tanto das mãos do emir e dos seus
aliados como das mãos dos outros dignitários e oficiais, e ao ruído que estas
moedas de ouro faziam ao bater sobre os adufes das dançarinas juntavam-se ainda
os últimos acordes das dutaras e dos tamboris.
— Perdulários como bandidos! — segredou Alcide Jolivet ao ouvido de Harry
Blount.
E era efetivamente o dinheiro roubado durante a invasão que estes bárbaros
distribuíam agora às mãos-cheias, pois com os tamans persas e os cequins
tártaros vinham também em tropel os ducados e os rublos moscovitas, Depois
seguiu-se um momento de silêncio, e o carrasco, pousando a mão sobre o ombro de
Miguel Strogoff, proferiu de novo aquelas palavras, que, pela sua repetição, se
tornavam cada vez mais sinistras:
— Abre, pois, os teus olhos, abre-os bem!
Entretanto, o Sol ia declinando sensivelmente. Uma Semiobscuridade começava a
envolver os últimos planos da paisagem. A massa de cedros e pinheiros cada vez
se tornava mais indecisa e as águas do Tom começavam gradualmente a confundir-se
com as brumas. Não tardaria que as sombras descessem sobre o próprio terraço,
onde a festa decorria animadíssima.
Ao mesmo tempo viram-se entrar muitas centenas de escravos, trazendo archotes na
mão. Conduzidas por Sangarra, as dançarinas tziganas e persas reapareceram em
frente do trono de Féofar, fazendo sobressair os seus bailados de diversos
géneros. Os instrumentos da orquestra tártara iniciaram novamente um concerto
selvagem, acompanhado pelos gritos guturais dos cantores. Os papagaios, que se
tinham arriado, cercados agora de uma constelação de lanternas multicores,
subiram de novo ao ar, e, agitados pela brisa fresca do entardecer, vibravam
ainda com mais intensidade no meio desta iluminação aérea.
Depois veio juntar-se às danças, cada vez mais animadas, um esquadrão de
tártaros com os seus uniformes de guerra, que logo começou uma fantasia11
equestre de um efeito caprichoso.
Estes guerreiros, manejando simultaneamente os sabres e as pistolas de cano
comprido, enquanto repetiam todos os movimentos da fantasia equestre, atroavam
os ares com as detonações estrepitosas das suas armas de fogo, que formavam
verdadeiro contraste ao lado das dutaras, dos tamboris e dos dairés.
As pistolas, carregadas, à moda chinesa, com pólvora colorida por meio de um
ingrediente metálico, vomitavam longos jatos de cores, vermelha, verde e azul,
parecendo que todos estes grupos de homens e mulheres se moviam vertiginosamente
no meio de fogo de artifício.
Esta parte dos festejos tinha alguns pontos de contacto com a cibística dos
antigos — essa dança militar, talvez legada pela tradição aos povos da Ásia
central, em que os corifeus manobravam por entre pontas de espadas e punhais.
A cibística dos tártaros, porém, tornava-se mais extravagante ainda pelos jatos
de cor, que serpenteavam em redor das belas dançarinas, arrancando mil
cintilações das lantejoulas dos saiotes. Era como um caleidoscópio
resplandecente, cujas combinações variavam infinitamente à medida que se moviam
as dançarinas.
Por mais cansado que estivesse um jornalista parisiense em relação aos efeitos e
esplendores do moderno cenário teatral, Alcide Jolivet não pôde reprimir um
ligeiro movimento de cabeça, que para um apreciador de fino gosto equivalia a
dizer: não é feio, não é feio.
Depois, como obedecendo a um sinal convencionado, todo este vistoso quadro
cessou repentinamente, as danças findaram e as dançarinas desapareceram. Estava
concluída a cerimónia, e só os archotes alumiavam a esplanada, há pouco ainda
tão deslumbrante de luzes variegadas.
A um gesto do emir, Miguel Strogoff foi conduzido para o centro do terraço.
— Meu caro Blount, tem muito empenho em ver o fim de tudo isto? — perguntou
Alcide Jolivet.
— Nenhum — respondeu Harry Blount.
— Os leitores do Daily Telegraph não suspiram decerto pelos pormenores de um
suplício à tártara?
— Tanto, meu amigo, como sua prima.
— Pobre rapaz! — acrescentou Alcide Jolivet, olhando com mágoa para Miguel
Strogoff. — Era digno de melhor sorte. Aquele valente soldado merecia ter antes
caído num campo de batalha.
— Se nós pudéssemos tentar alguma coisa para o salvar!... — sugeriu Harry
Blount.
— É infelizmente impossível!
Os dois jornalistas lembravam-se do generoso procedimento de Miguel Strogoff a
seu respeito. Sabiam agora por que provações, escravo do dever, ele havia de ter
passado, e vendo-o em poder dos tártaros, incapazes de se abalarem por qualquer
sentimento de compaixão, lamentavam-se de não lhe poderem ser prestáveis.
Não querendo, porém, presenciar o suplício que estava reservado àquele infeliz,
retiraram-se imediatamente para Tomsk.
Uma hora depois seguiam ambos a estrada de Irkutsk, levados por dois vigorosos
cavalos, com a intenção de se reunirem aos russos. Tinham resolvido continuar na
companhia destes o movimento militar, a que Alcide Jolivet, por antecipação,
dava o nome de “campanha da desforra”.
Entretanto, Miguel Strogoff conservava-se de pé, lançando um olhar altivo ao
emir e um olhar cheio de desprezo a Ivan Ogareff. Estava preparado para morrer,
e, contudo, inutilmente se lhe poderia procurar nas feições o mais pequeno
vislumbre de fraqueza.
Os espectadores que permaneciam em redor do terraço, bem como o estado-maior de
Féofar-Cã, para quem este suplício representava apenas um novo atrativo,
esperavam o momento em que se efetuasse a execução. Depois de saciada esta
bárbara curiosidade, toda aquela turba de selvagens iria mergulhar nas ondas da
embriaguez.
O emir fez outro gesto. Miguel Strogoff, levado pelos guardas até junto do seu
trono, ouviu-lhe pronunciar as seguintes palavras em língua tártara:
— Vieste para ver, espião russo. Não tornarás mais a ver. Os teus olhos vão ser
fechados para sempre à luz que alumia a Terra.
Não era de morte, mas de cegueira, a sentença que feria Miguel Strogoff. Era a
perda da vista, mais terrível talvez que a perda da vida! O infeliz estava
condenado a ficar cego!
Todavia, Miguel Strogoff não sucumbiu ao ouvir a sentença que o fulminava.
Deixou-se ficar impassível e com os olhos muito abertos, como se quisesse
concentrar a vida inteira no seu derradeiro olhar.
Implorar a proteção destes homens ferozes era inútil e impróprio da coragem de
Miguel Strogoff. Nem por momentos pensou em tal. Os seus únicos pensamentos
concentravam-se na missão que lhe fora confiada, agora irremediavelmente
comprometida, na desventurada mãe e na formosa Nadia, entes queridos que nunca
mais tornaria a ver! Contudo, não denunciou sequer a impressão dolorosa e
profunda que tão cruéis e pungentes recordações lhe causavam.
Sentiu depois que, apesar da sua precária situação, um sentimento de vingança
lhe dominava ainda todo o ser. E, voltando-se para Ivan Ogareff, bradou-lhe com
voz grave e ameaçado-a:
— Sobre ti, que vendeste a pátria como um infame, sobre ti, que juntas à traição
a vilania, caia, prenúncio da justiça do céu, a derradeira ameaça de meus olhos!
Ivan Ogareff encolheu os ombros.
Porém, Miguel Strogoff tinha-se enganado. Não era a olhar para Ivan Ogareff que
os seus olhos deixariam de ver a luz.
Marfa Strogoff acabava de se erguer a curta distância de seu filho.
— Minha mãe! — exclamou Miguel Strogoff. — Oh! Sim! Sim, para ti é que deve ser
o meu último olhar, para ti, minha mãe, e não para aquele miserável! Conserva-te
aí bem defronte de teu filho. Que eu veja ainda o teu rosto amantíssimo. Que os
meus olhos se fechem para sempre contemplando ainda os teus olhos.
A velha siberiana adiantava-se para seu filho sem proferir uma palavra.
— Arredem daqui esta bruxa! — gritou Ivan Ogareff.
Dois soldados vieram empurrar para trás a desditosa Marfa. Ela recuou, mas
conservou-se de pé a poucos passos de Miguel Strogoff.
O algoz apareceu neste momento. Agora trazia na mão o sabre, que acabara de
tirar de cima da grelha, onde ardiam os carvões perfumados.
Iam cegar Miguel Strogoff segundo o desumano costume tártaro, passando-lhe por
diante dos olhos uma lâmina candente.
Miguel Strogoff não procurou resistir. Para quê, se a luta seria estéril?
Restava-lhe só contemplar pela última vez a amargurada figura de sua mãe. E como
ele a devorava ansiosamente com o olhar! Toda a sua vida estava ali concentrada
naquela contemplação final! Marfa Strogoff, com os olhos a quererem saltar-lhe
das órbitas, com os braços estendidos numa postura aflitiva, tinha ainda forças
para se conservar diante de seu filho.
O verdugo parou em frente do correio do czar. Depois, levantando a lamina,
executou a sentença do emir.
Ouviu-se um agudíssimo grito de dor. A velha Marfa rolou desamparada sobre a
terra.
Miguel Strogoff estava cego!
Cumpridas à risca as suas ordens, o emir retirou-se com toda a sua corte. No
local do suplício ficara apenas Ivan Ogareff, acompanhado pelos escravos que
seguravam os archotes.
O infame quereria insultar a sua vítima ou aplicar-lhe, depois do verdugo, ainda
algum novo tormento?
Ivan Ogareff aproximou-se lentamente de Miguel Strogoff. Este, sentindo-o
mover-se, pusera-se em guarda por instinto.
Ivan Ogareff, tirando da algibeira o ofício imperial, abriu-o e, por uma suprema
ironia, colocou-o diante daqueles olhos que já não podiam ler!
— Lê agora — disse ele, com escárnio —, lê, Miguel Strogoff, e trata de ir levar
a Irkutsk as notícias que acabo de te mostrar. Daqui por diante, eu, Ivan
Ogareff, é que sou o verdadeiro correio do czar!
Dito isto, o infame tornou a dobrar o ofício e meteu-o no peito. Depois
retirou-se sem olhar para trás, seguido dos escravos com archotes.
Miguel Strogoff ficou só, poucos passos distante de sua mãe, que jazia no chão
desfalecida, moribunda talvez!
Ouviam-se ao longe os gritos e os cantares, todo o estrépito confuso de uma
orgia ruidosa. Tomsk, iluminada, resplendia como se fosse uma cidade em noite de
festa.
Miguel Strogoff aplicou o ouvido. A esplanada estava deserta e silenciosa.
Tateando o terreno, dirigiu-se então para onde sua mãe tinha caído.
Encontrando-a por fim, inclinou-se respeitosamente sobre ela, deu-lhe um beijo
prolongado e pôs-se a escutar as pulsações do coração. Depois dir-se-ia que lhe
estivera a falar em segredo.
A velha Marfa viveria ainda? estaria acaso ouvindo o que o filho lhe dizia?
Seja como for, a sua postura continuou a ser a mesma.
Miguel Strogoff tornou-lhe a beijar o rosto e os cabelos brancos. Seguidamente
levantou-se e, começando a tatear o chão com os pés, como para se guiar no meio
das sombras, foi assim caminhando devagar até ao extremo limite da esplanada.
De repente apareceu Nadia.
A corajosa menina aproximou-se de Miguel Strogoff. Um punhal, que trazia oculto,
serviu-lhe para cortar as cordas que prendiam as mãos e os braços do seu
companheiro.
Este, agora cego, não podia saber quem o soltava, porque Nadia se conservava
calada. Porém: logo que acabou de o desprender exclamou:
— Meu irmão!
— Nadia! — balbuciou Miguel Strogoff. — És tu, Nadia?
— Cala-te, meu irmão — recomendou Nadia. — Roubaram-te a luz dos olhos, aqui
tens, porém, os meus para te servirem de guia. Anda, Miguel, vamos. Agora hei de
ser eu que te conduzirei a Irkutsk!

Nadia e Miguel Strogoff
- desenho de Jules Ferat, 1876
Um protetor inesperado
Meia hora depois Nadia e Miguel Strogoff estavam já longe de Tomsk. Entretanto,
bastantes presos, aproveitando a ocasião, puderam também fugir. Todos os
tártaros, oficiais e soldados, mais ou menos embriagados, tinham
inconscientemente afrouxado o rigor da disciplina, até ali sempre mantida, quer
no acampamento de Zabadiero, quer durante a marcha.
Nadia, depois de ter passado em frente do emir, conseguira esquivar-se às vistas
dos seus guardas, voltando para a esplanada no momento em que iam supliciar
Miguel Strogoff.
Ali, confundida com a turba, pôde ver e ouvir tudo.
Dos seus lábios, porém, não saiu um só grito de terror quando a lâmina candente
do verdugo passou por diante dos olhos do seu companheiro. Sobrou-lhe a coragem
para se conservar muda e impassível. Uma inspiração providencial lhe segredara
que não arriscasse impensadamente a sua liberdade, para poder servir agora de
guia ao filho de Marfa Strogoff. Ele jurara que havia de ir a Irkutsk: era um
dever ajudá-lo agora a cumprir o seu juramento.
Houve só um momento em que o coração de Nadia cessou de bater: foi quando a
velha siberiana caiu no solo inanimada. Uma vez mais soube conter-se,
restituindo-lhe a energia uma súbita resolução:
— Serei o cão daquele cego! — decidiu.
Depois de Ivan Ogareff se retirar, Nadia ocultou-se na sombra, esperando que a
multidão deixasse livre a esplanada. Miguel Strogoff, abandonado para ali como
um ente miserável, de que já nada havia a recear, ficara só. Nadia vira-o
adiantar-se até junto de sua mãe, inclinar-se sobre ela, beijá-la na fronte, e
depois levantar-se vagarosamente, afastando-se.
Passados alguns momentos, ambos, de mãos dadas, desciam a encosta da colina, e,
depois de terem seguido o curso do rio até ao extremo da cidade, transpuseram
sem obstáculo uma brecha das muralhas.
A estrada de Irkutsk, mostrava-se em frente deles avançando para leste. Não
havia receio de a confundir com outra. Nadia obrigava Miguel Strogoff a marchar
precipitadamente. Era possível que no dia seguinte, dissipada a influência da
orgia, os exploradores do emir se lançassem de novo pela estepe, cortando todas
as comunicações que ainda estivessem livres. Convinha, pois, não perder tempo, e
chegar antes deles a Krasnoiarsk, distante ainda de Tomsk quinhentas verstas, a
fim de só se largar a estrada quando ela se tornasse de todo intransitável. Sair
do caminho traçado era seguir o incerto, o desconhecido, era expor
temerariamente a vida.
Como foi que Nadia conseguiu suportar as fadigas desta noite de 16 para 17 de
agosto? Como teve ela a força física necessária para tão larga tirada de
caminho? Como foi que os seus pés a sustiveram, apesar de feridos pelas pedras
da estrada? Só a sua dedicação poderia explicar este esforço sobre-humano, esta
espécie de milagre.
O certo é que na manhã seguinte, doze horas depois da sua saída de Tomsk, Nadia
e Miguel Strogoff chegavam ao lugar de Semilowskoe, com cinquenta verstas de
caminho já percorridas.
Miguel Strogoff, andando sempre sem afrouxar o passo, ainda não tinha
pronunciado uma palavra. Em lugar de ser Nadia, como parecia natural, quem
oferecera a mão a Miguel Strogoff para o guiar nas duplas trevas dos seus olhos
e da noite, fora este que, segurando entre as suas a mão de Nadia, se deixara
conduzir por Assim dizer maquinalmente. Contudo, bastava um simples
estremecimento daquela mão delicada para indicar ao pobre cego a linha que devia
seguir.
O lugar de Semilowskoe estava, porém, quase deserto.
Os seus habitantes, receando a aproximação dos tártaros, haviam fugido para a
província do Yeniseisk. Viam-se apenas duas ou três casas habitadas. Tudo o que
ali existia de utilidade ou valor fora já transportado em carros.
Contudo, Nadia precisava de repousar algumas horas. Em rigor, tinham ambos
necessidade de descanso e de alimento.
A corajosa menina conduziu, pois, o seu companheiro pelo centro da povoação,
onde encontrou uma casa sem moradores, com as portas de todo abertas. Ao
entrarem numa delas acharam-se ambos num quarto de dormir. Junto de um grande
fogão, como os que sempre há no interior das habitações siberianas, estava um
banco tosco de madeira. Sentaram-se nele.
Nadia fitou então bem de frente o seu companheiro, agora cego. Olhou para ele
como nunca até ali se atrevera a encará-lo. Nos seus olhos, velados pelas
lágrimas, havia mais que piedade, mais que compaixão. Se Miguel Strogoff pudesse
ver, teria lido naquele puro e inocente olhar a expressão de um afeto ilimitado,
de uma ternura imensa e profundíssima.
As pálpebras do cego, avermelhadas pelo efeito da lâmina candente, caíam-lhe
sobre os olhos, absolutamente cegos, deixando-os meio cerrados. A esclerótica
estava ligeiramente enrugada e como que endurecida, a pupila singularmente
dilatada, a íris parecia ser de um azul mais escuro do que dantes, as pestanas e
as sobrancelhas estavam em parte queimadas, mas, pelo menos aparentemente, o
olhar penetrante de Miguel Strogoff não parecia ter sofrido nenhuma alteração.
Se ele não via, se era completa a sua cegueira, isso devia-se à sensibilidade da
retina e do nervo ótico ter sido radicalmente destruída pelo terrível efeito da
lâmina em brasa.
Neste momento, Miguel Strogoff estendeu as mãos.
— Estás aí, Nadia? — perguntou ele.
— Estou, estou a teu lado para nunca mais te deixar, Miguel.
Miguel Strogoff estremeceu ao ouvir Nadia proferir pela primeira vez o seu nome.
Percebeu que a sua companheira sabia tudo: o que ele era e quais os laços que o
prendiam à velha Marfa.
— Nadia — acrescentou Miguel Strogoff —, é preciso que nos separemos.
— Que nos separemos! E porquê, Miguel?
— Não quero ser um estorvo à tua viagem. Teu pai espera por ti. Deves ir ter com
ele.
— Meu pai amaldiçoar-me-ia se soubesse que te abandonava depois de tudo a que
por mim te expuseste.
— Nadia! Nadia! — respondeu Miguel Strogoff, apertando a mão que a jovem
livoniana colocara entre as suas. — Cumpre-te só pensar em teu pai.
— Miguel — interrompeu Nadia —, tu precisas mais de mim que meu pai.
Renunciaste, porventura, à ideia de ir a Irkutsk?
— Oh! Nunca! — exclamou Miguel Strogoff, com um tom de voz em que transparecia
uma enérgica resolução.
— Todavia, já não tens em teu poder o ofício de que eras portador...
— Roubou-mo aquele infame! Não importa... Passarei sem o ofício. Ivan Ogareff
denunciou-me como espião. Será, pois, como espião que daqui por diante me hão de
ter. Irei relatar a Irkutsk tudo que vi e ouvi. E juro, por Deus que me ouve,
que o traidor há de saber ainda uma vez que homem é este espião! Preciso para
isso de chegar antes dele a Irkutsk.
— E falas em separar-te de mim!
— Nadia... Nadia... Os miseráveis tiraram-me tudo!
— Restam-me ainda alguns rublos e, acima do dinheiro, o livre uso dos meus
olhos, Miguel. Verei por ti e,, na minha companhia, poderás chegar onde sozinho
não irias:
— E de que maneira caminharemos, Nadia?
— A pé.
— E como havemos de viver?
— Da caridade.
— Seja, Nadia.
— Vem, Miguel.
Miguel Strogoff e Nadia já não se tratavam mutuamente por irmão e irmã. Na sua
comum desgraça, cada vez se sentiam mais ligados um ao outro. Depois de uma hora
de repouso, ambos saíram daquela casa. Nadia, depois de atravessar as diferentes
ruas da povoação, conseguiu que lhe dessem alguns bocados de ichornekhleb,
espécie de pão de cevada, e uma porção de hidromel, a que na Rússia se dá o nome
de méod. Nadia obtivera estas provisões sem despender um kopek. Era o primeiro
fruto da sua forçada profissão de mendiga. Com este alimento se bem que modesto,
pôde Miguel Strogoff abrandar a fome e a sede que o atormentavam. Nadia
reservara-lhe cuidadosamente a melhor parte da minguada refeição. Miguel
Strogoff comia pela mão de Nadia os bocados de pão que esta lhe cortava, levando
à boca depois o recipiente do méod.
— Não comes, Nadia? — perguntava Miguel Strogoff com voz meiga.
— Como, sim, Miguel — respondia a dedicada criança, que apenas se contentava com
os restos do seu companheiro.
Miguel Strogoff e Nadia saíram de Semilowskoe, lançando-se de novo na estrada
para Irkutsk. A caminhada, porém, era superior às forças de Nadia. Se Miguel
Strogoff pudesse vê-la tão extenuada pela fadiga, decerto se teria oposto a que
ela fosse por diante. Nadia, contudo, mostrava-se resignada, e Miguel Strogoff,
não lhe ouvindo sair dos lábios qualquer queixume, continuava a andar com uma
velocidade que não podia reprimir: Mas porque tinha ele tamanha pressa?
Alimentaria ainda por acaso alguma esperança? Não se daria conta de que não
possuía meios de locomoção, nem dinheiro, e que, por desgraça, estava cego? E se
Nadia, a sua atual providência, viesse a faltar-lhe, não teria de sucumbir
obscuramente, para ali abandonado na estrada? Assim parecia, entretanto, se à
força de coragem e de perseverança lograsse chegar a Krasnoiarsk, talvez nem
tudo estivesse perdido. Miguel Strogoff apresentar-se-ia nesse caso ao
governador da cidade e dar-se-ia a conhecer, para que ele lhe proporcionasse os
meios de continuar a sua viagem.
Miguel Strogoff caminhava, pois, falando raras vezes, absorto a maior parte do
tempo. Todavia, de vez em quando, como se despertasse das suas íntimas
divagações, inquiria com afeto:
— Porque não falas, Nadia?
— Para quê, Miguel? Não temos nós, porventura, os mesmos pensamentos?
E, respondendo assim, a pobre menina procurava não dar a conhecer a sua
excessiva prostração. Às vezes, porém, sentindo vergarem-se-lhe as pernas,
afrouxava o passo, estendia os braços ao longo do corpo e deixava-se ficar para
trás, como se o coração por momentos cessasse de bater. Miguel Strogoff parava
então, fixando os olhos muito abertos sobre a pobre Nadia, como se tentasse
vê-la através das espessas névoas que lhe velavam a vista. Nos seus lábios
esboçava-se um sorriso doloroso, depois, amparando com mais vigor a sua
companheira, continuava logo a marcha que interrompera por um instante.
No meio de tantas provações, de tão grandes amarguras, ocorreu neste dia uma
circunstância extraordinária, que transformou beneficamente a situação dos dois
infelizes.
Havia duas horas que eles tinham saído de Semilowskoe quando Miguel Strogoff
parou de repente.
— A estrada está deserta? — perguntou ele.
— Completamente deserta.
— Parece-me, porém, que oiço bulha atrás de nós.
— Tens razão, Miguel.
— Se forem os tártaros, convém que nos escondamos. Vai ver, Nadia.
— Espera, Miguel — recomendou Nadia, afastando-se alguns passos para observar a
estrada de cima de uma pequena eminência.
Miguel Strogoff, que ficou só por um momento, estendeu também a cabeça.
Nadia voltou pouco depois, informando:
— É uma carroça. Vem nela um rapaz.
— Só ou acompanhado?
Miguel Strogoff hesitou um momento. Deveria esconder-se? Ou deveria arriscar-se
a pedir um lugar naquele veículo, não para ele, mas para Nadia? Para ela, sim! O
infatigável caminhante contentar-se-ia que o deixassem apoiar-se na traseira da
carroça, prestando-se até, se fosse preciso, a empurrá-la com as mãos. Pois não
dispunha ele ainda dos seus possantes músculos de aço? A pobre Nadia, essa é que
já não podia dar um passo, quebrada pelas violentas e penosas marchas que desde
Omsk até aqui tinha sido obrigada a fazer.
Miguel Strogoff decidiu-se a esperar.
A carroça não tardou que se aproximasse.
Era um modesto veículo, que apenas podia conter três pessoas, veículo que tem na
Sibéria o nome de kibitka.
A kibitka, ordinariamente, costuma ser puxada por três cavalos, esta porém só
tinha um. É verdade que era um cavalo de sangue mongol, o que lhe abonava as
suas boas qualidades de vigor e de coragem.
Guiava-a um rapaz de vinte e tantos anos, trazendo um cão ao lado.
Nadia reconheceu que era russo aquele rapaz. Tinha uma fisionomia simpática e
suave, que inspirava confiança. De resto, não parecia vir muito apressado. Para
não cansar o cavalo, caminhava a passo, e quem o encontrasse não diria que ele
seguia um caminho que de um momento para o outro poderia estar cortado pelos
tártaros.
Nadia, segurando Miguel Strogoff pela mão, tinha-se afastado com ele para um dos
lados da estrada.
A kibitka parou, e o seu condutor pôs-se a olhar para Nadia com ar afável.
— Para onde é que tencionam ir nesse passo? — perguntou ele com agrado, abrindo
muito os olhos.
O som desta voz não pareceu estranho a Miguel Strogoff. Iria afirmar que já a
tinha ouvido noutro lado. E dir-se-ia que isso bastou para o tranquilizar,
porque a sua fronte desanuviou-se de repente.
— Então para onde é que vão, façam favor de mo dizer? — repetiu o recém-chegado,
voltando-se mais diretamente para Miguel Strogoff.
— Vamos para Irkutsk! — respondeu este.
— Para Irkutsk! Mas é que, daqui até lá, ainda há que andar um bom par de
verstas, meu amigo!
— Bem sei.
— E tencionas andá-las a pé?
— Tenciono.
— Quanto a ti, não digo que não, mas quanto a essa menina...
— É minha irmã — acudiu Miguel Strogoff, que julgou prudente continuar a dar-lhe
este tratamento.
— Estimo sabê-lo. Pois, como te dizia, tua irmã é que não poderá chegar até
Irkutsk.
— Meu amigo — explicou Miguel Strogoff, aproximando-se da kibitka —, os tártaros
roubaram-nos tudo, e não tenho um kopek sequer para te oferecer. Mas se permites
que minha irmã vá a teu lado, eu seguir-te-ei a pé, sem atrasar assim a tua
jornada.
— Irmão!... Meu irmão — exclamou Nadia —, não consinto... não consinto.
Senhor!... Senhor!... Meu irmão é cego!
— Cego! — exclamou o russo com voz comovida.
— Os tártaros queimaram-lhe os olhos — ajuntou Nadia, estendendo as mãos em ar
de súplica.
— Queimaram-lhe os olhos?!... Ah! Que malvados! Olhem: eu vou para Krasnoiarsk.
Porque não hão de vir também comigo? Apertando-nos um pouco, havemos de caber
todos. O meu cão, esse que tenha paciência... irá a pé. Devo, porém, preveni-los
de uma coisa: é que não vou depressa para não estafar o cavalo.
— Como te chamas, meu amigo? — perguntou Miguel Strogoff.
— Nicolau Pigassof.
— Nunca mais esquecerei esse nome! — declarou Miguel Strogoff com verdadeiro
sentimento de gratidão.
— Não falemos nisso... Então! Vamos, é trepar cá para cima. Tu ficarás ao lado
de tua irmã dentro da carroça, eu na almofada para guiar. No fundo há boa palha
de cevada e casca de bétula muito macia. É como se fosse um ninho. Safa-te daí,
“Serkô”! Deixa o lugar para quem está mais cansado do que tu.
O cão desceu logo sem se fazer rogar. Era um animal de raça siberiana, pelo
cinzento, cabeça grande e olhar amigo, que parecia ter muita amizade pelo dono.
Miguel Strogoff e Nadia subiram depressa para a kibitka. Aquele, depois de
sentado, estendeu as mãos, como que procurando as de Nicolau.
— São as minhas mãos que pretendes apertar? — disse Nicolau.
— Aqui as tens, pobre cego! Aperta-as quanto quiseres.
A kibitka pôs-se de novo a andar. O cavalo, como advertira Nicolau, ia a passo.
Se Miguel Strogoff não melhorava em rapidez, sabia pelo menos que a sua infeliz
companheira não teria de suportar novas fadigas.
E era tal o cansaço da pobre menina que, embalada pelo monótono movimento da
kibitka, bem depressa caiu num sono que mais parecia letargo. Miguel Strogoff e
Nicolau deitaram-na em cima da palha o melhor que puderam. O compassivo rapaz
estava deveras comovido. Se naquele momento não brotou uma lágrima dos olhos de
Miguel Strogoff foi porque a lâmina do verdugo lhe tinha para sempre queimado as
últimas.
— E ela é bonita! — observou Nicolau.
— Se é! — respondeu Miguel Strogoff.
— Por mais que façam, por maior que seja a sua coragem, nunca têm o vigor de um
homem estas delicadas criaturinhas! E já vêm de longe?
— De muito longe!
— Coitados! E doeu-te muito quando eles te queimaram os olhos?
— Doeu — replicou Miguel Strogoff, voltando-se como se estivesse a ver Nicolau.
— E não choraste?
— Chorei.
— Também eu teria chorado. Pensar que se não tornam a ver as pessoas a quem mais
queremos! O que vale é que nos veem elas a nós. Isso ao menos é uma consolação.
— Assim é. Dize-me, Nicolau — inquiriu Miguel Strogoff —, não te lembras de já
me teres encontrado nalgum sítio?
— Não.
— É que me pareceu reconhecer o som da tua voz.
— Ora esta! — volveu Nicolau, a rir. — Parece-te que já ouviste o som da minha
voz. Dizes isto talvez para saberes donde venho. Vou satisfazer-te a
curiosidade: Venho de Kolyvan.
— De Kolyvan? — exclamou Miguel Strogoff. — Mas foi então lá que eu te vi. Não
eras tu que estavas na estação do telégrafo?
— Devia ser — admitiu Nicolau —, uma vez que era eu o empregado incumbido de
transmitir os telegramas.
— E conservaste-te no teu posto até aos últimos momentos?
— Decerto. Não fiz mais do que o meu dever!
— Lembras-te do dia em que um inglês e um francês disputaram, junto do teu
lugar, qual seria o primeiro a transmitir os seus despachos? E lembras-te que o
inglês se pôs a telegrafar para Londres os versículos da Bíblia?
— É possível, mas não me recordo.
— Como assim? Não te recordas?
— É que nunca reparo nos despachos que transmito. Cumprindo-me por obrigação
esquecê-los, acho que o melhor é ignorá-los.
Esta resposta definia Nicolau Pigassof.
Entretanto, a kibitka continuava sempre a ir a passo, embora Miguel Strogoff
desejasse que ela andasse mais depressa. Nicolau e o seu cavalo estavam de tal
forma habituados a este andamento que não seria fácil obrigá-los a mudar para
outro. O cavalo, quer de dia, quer de noite, caminhava três horas e descansava
uma. Durante as horas de descanso, o cavalo pastava, e os viajantes da kibitka
tomavam as suas refeições na companhia do fiel “Serkô”.
Nicolau fora tão previdente que acumulara pelo menos provisões para vinte
pessoas. Nem mesmo se esquecera de trazer consigo o samovar12. O generoso rapaz
pusera tudo à disposição dos seus dois hóspedes, que ele julgava serem irmãos.
Depois de algumas horas de repouso, Nadia tinha recobrado parte das suas forças.
Nicolau providenciava para que ela se acomodasse o melhor possível.
A viagem ia-se fazendo em condições aceitáveis, devagar, é certo, mas com
regularidade. Sucedia que às vezes, durante a noite, Nicolau se deixava
adormecer, ressonando com uma convicção que bem patenteava a serenidade da sua
consciência. Talvez que, nesse momento, quem olhasse com atenção pudesse ver as
mãos de Miguel Strogoff procurando as rédeas do cavalo e obrigando este a um
andamento mais rápido, com grande espanto de “Serkô”, que, todavia, se
conservava silencioso. Aquele trote, porém, voltava novamente ao passo logo que
Nicolau acordava, o que não impedia que a kibitka tivesse avançado algumas
verstas em relação à sua velocidade habitual.
Foi assim que se atravessou a ribeira de Ichimsk, as povoações de Ichimskoe,
Berikylskoe, Kuskoe, a ribeira de Marünsk, a povoação do mesmo nome,
Bogostowlskoe, e finalmente o Tchula, pequeno rio que separa a Sibéria ocidental
da Sibéria oriental. A estrada estendia-se agora através de imensa charneca, por
entre compridos e cerrados pinhais, que pareciam nunca ter fim.
Tudo estava deserto. As povoações quase todas abandonadas. Os habitantes do
campo tinham fugido para lá do Yenisei, julgando talvez que este enorme rio
pudesse servir de barreira à invasão dos tártaros.
No dia 22 de agosto chegou a kibitka ao lugar de Atchinsk, distante de Tomsk
trezentas e oitenta verstas. Faltavam ainda cento e vinte verstas para chegar a
Krasnoiarsk. Nenhum incidente viera perturbar o seguimento da viagem. Havia seis
dias que se realizara o encontro de Nicolau com Miguel Strogoff e a sua
companheira. Durante algum tempo não se tinha dado mudança alguma entre os três
viajantes, um entregue sempre à sua inalterável serenidade, os outros dois
sempre inquietos pelo que lhes poderia ainda suceder antes de chegarem a
Irkutsk.
Miguel Strogoff, assim se pode dizer, ia vendo a estrada pelos olhos de Nicolau
e de Nadia. Cada um, por sua vez, procurava descrever os lugares que
atravessavam. Miguel Strogoff sabia assim se caminhava numa planície, se
atravessava uma floresta, se ao longe se divisava alguma cabana, se no horizonte
aparecia algum siberiano. Nicolau não se calava. Era falador por vocação, e,
qualquer que fossem as suas apreciações, gostava-se sempre de o ouvir.
Um dia perguntou-lhe Miguel Strogoff que tal estava o tempo.
— Bom ainda — respondeu Nicolau —, mas o verão está a despedir-se de nós. O
outono é curto na Sibéria, e não tardará que apareçam os primeiros frios do
inverno. Talvez que os tártaros tencionem acantonar-se durante esse tempo.
Miguel Strogoff sacudiu a cabeça em ar de dúvida.
— Não és dessa opinião? — perguntou Nicolau. — Receias que eles avancem até
Irkutsk?
— Receio — afirmou Miguel Strogoff.
— Tens razão. Os tártaros trazem consigo um infame, que os não há de deixar
arrefecer pelo caminho. Já ouviste falar de Ivan Ogareff?
— Já.
— Que me dizes daquele velhaco sem consciência que atraiçoou a nossa pátria? Não
achas que praticou uma infâmia imperdoável?
— Acho — respondeu Miguel Strogoff, diligenciando por se conservar impassível.
— Olha lá, amigo — tornou de novo Nicolau. — Noto que não te zangas bastante
quando se fala desse traidor. Eu entendo que todo o russo que for homem de bem
deve indignar-se ao ouvir pronunciar aquele nome.
— Acredita-me, Nicolau: tenho por esse infame tal rancor que nunca tu poderás
odiá-lo tanto como eu o odeio — assegurou Miguel Strogoff, cerrando os punhos
numa agitação febril que surpreendeu o companheiro.
— Isso é que não é possível, não. Quando eu penso naquele maroto e nos grandes
males que tem causado à nossa santa Rússia, apodera-se de mim tamanha exaltação
que, se o apanhasse a jeito...
— Que lhe farias?
— Que lhe faria? Parece-me que o matava!
— Parece-te! Pois eu afianço-te que o matava — respondeu tranquilamente Miguel
Strogoff.
FIM

Uma das obras mais traduzidas do mundo, «Miguel Strogoff» é um dos maiores triunfos literários (e comerciais) de Jules Verne.
O Cã dos Tártaros incita a uma rebelião que divide a Rússia; na longínqua cidade de Irkutsk o irmão do Czar lidera a resistência. O correio do Czar, Miguel Stogoff é enviado numa missão secreta: furar as linhas inimigas e informar o irmão do Czar sobre o taidor que tem vindo a minar a resistência.
Pelo caminho, Strogoff vai encontrando diversos personagens mais ou menos envolvidos no drama que envolve e põe em risco a nação. E os riscos que corre são cada vez maiores. Chegará o correio a tempo de evitar a queda de Irkutsk e a perda do império?
Ao mesmo tempo romance de aventuras e soberbo retrato de uma nação dividida por várias culturas e realidades «Miguel Strogoff» foi alvo de centenas de adaptaçãos ao cinema, televisão, animação, banda desenhada, teatro, e jogos de computador.
Verne, o autor que pouco saiu da sua França Natal - salvo para visitar os Estados Unidos, um curto passeio pelo Reino Unido e vir a Portugal - escreveu sobre todo o mundo através de relatos de colegas seus da Sociedade de Geografia e da Academia Francesa, neste caso o "consultor" foi o grande patriarca das letras russas, Ivan Turgenev, na altura radicado em França.
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excerto da obra: A sentença do Emir
MIGUEL STROGOFF, O CORREIO DO CZAR
Júlio Verne
Título original: Michel Strogoff (1876)
Tradução: Pedro Vidoeira (1834-1917)
2013 © Centaur Editions
23.Mai.2025
Publicado por
MJA
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