|
-excerto-

Blind Accordion Player - Ben Shahn, 1945
Em Orense, em casa da Petinga, há um
acordeonista cego, já deve ter morrido, sim, claro, agora me lembro,
morreu na primavera de 1945, mesmo uma semana depois de Hitler, que toca
javas e marchas para entreter os cabritos,
falo daquela altura; chama-se Gaudencio Beira e foi seminarista,
expulsaram-no do seminário quando cegou, pouco antes de cegar
completamente.
— E tem jeito para o fole?
— Podes crer, muitíssimo jeito! A verdade é que é um verdadeiro artista,
é todo esmero e limpeza e sentimento, toca com muita profundidade e
emoção.
Gaudencio, na casa de putas onde ganha a vida, executa um repertório de
peças bastante variado, mas há uma mazurca, «Ma petite Marianne», que só
tocou duas vezes, em novembro de 1936, quando mataram Afoito, e em
janeiro de 1940, quando mataram Mocho. Não a quis voltar a tocar nunca
mais.
— Não, não, eu sei muito bem o que faço, sei bem de mais; essa mazurca é
meio amarga e não se pode andar a brincar com ela.
[...]
Ao cego Gaudencio mandaram-no embora do seminário quando começou a
cegar, parece que não queriam cargas de caridade nem rémoras pegadas à
quilha.
— Ninguém é padre até que diga missa, este disse missa?, não?, então que
se lixe!, um seminário não é um asilo e a nave da Igreja deve poder
navegar livre de inúteis amarras.
— Sim, Dom Jimeno.
Dom Jimeno era o prefeito de estudos do seminário conciliar de São
Fernando de Orense, Dom Jimeno tinha fama pela sua má vontade e falta de
misericórdia, também tresandava a alho e costumava dizer palavras em
latim, Dom Jimeno era um latinista consumado, Dom Jimeno gostava muito
especialmente da diáfana doutrina do Angélico Doutor São Tomás de
Aquino, na Summa contra gentiles encerra-se toda a sabedoria da Idade
Média, agora circulam tendências demoníacas e efeminadas, correntes de
pensamento maçónicas e maricas, o cego Gaudencio teve sorte, a verdade é
que não se pode queixar, não teria perdão de Deus se o fizesse, como
sabe tocar acordeão e é de natureza complacente conseguiu encontrar
acolhimento na casa da Petinga, Dona Pura é boa pessoa, vive com as
costas voltadas para os mandamentos da lei de Deus mas no fundo é boa
pessoa.
— Na rua é que não vai ficar, sabe tocar acordeão?, pois que toque
acordeão, isso sempre alegra.
Anunciación Sabadelle é mais doce que Marta, a Portuguesa, as duas
querem bem ao cego Gaudencio, isto de ser cego ajuda muito no trato com
as mulheres, Bricepto Méndez, o dono de Studios Méndez, fez perto de
duas dúzias de fotografias de arte à Petinga jovem, em pelo e envolvida
no seu xaile de Manila, é pena que Gaudencio não as possa ver, os cegos
não se podem excitar pela vista mas pelo ouvido, pelo olfato, pelo gosto
e pelo tato, sobretudo pelo tato, as mulheres de agora são umas
simplórias ao lado da Petinga de xaile de Manila e uma mama em escorço e
meio a contraluz, a arte é a arte e agora há muito desgraçado por aí,
Visi faz mais clientes que Fermina, quase o dobro, eu não percebo isto
mas é assim, as pessoas são muito estranhas, Dom Teodosio costuma
ocupar-se com Visi, a mulher já lhe conhece as mentiras e as manias e
Dom Teodosio volta para casa comprazido e feliz.
— Não lhe chegues mais no anis, Gemma, já te tenho dito que é mau para o
prurido anal.
— Cala-te, mas é!
— Como queiras, o ardor é teu.
A Florián Soutullo Dureixas, guarda civil do posto de Barco de
Valdeorras e perito em solfas de gaita, manhas de curandeiro e artes
mágicas, mataram-no na frente de Teruel, chegou e, zás!, pregaram-lhe um
tiro entre os olhos e deixaram-no teso, Florián Soutullo usava suíças e
bigodinho elegante, a metade do maço de cigarros que não levou para o
outro mundo, fumou-a o pater.
— Requiem aeternam dona eis, Domine; et lux perpetua luceat eis.
Nisto das guerras e da morte que se reparte gratuitamente, o que não
corre voa, ao cabo Pascualiño Antemil Cachizo, estiveram-lhe a mandar
cigarros e chocolates depois de morto, Basilisa, a Parva, não sabia que
já tinham matado Pascualiño, pensava que estava esquecida, sempre pode
aparecer algum melhor, Basilisa, a Parva, estava já livre de
compromisso, muitas vezes ignora-se a própria situação e nas guerras
ainda mais, uns morrem antes, outros depois e alguns ficam para contar,
o tabaco e o chocolate dos mortos fará proveito a alguém, aqui não se
desperdiça nada.
— Sabe que horas são?
— Não, nem nunca soube; isso é coisa que nem sequer me interessa.
A Micifú, mataram-no sem pena nem glória, nenhuma das pupilas da Petinga
verteu uma só lágrima por ele, pelo contrário, alegraram-se todas, umas
mais que outras.
— Era tão filho da puta como Dom Jesús Manzanedo?
— Andavam os dois por aí, era diferente mas não tinha nada a
invejar-lhe.
A Lázaro Codesal, mataram-no antes de acabar de crescer, às vezes a
morte tem uma pressa muito eficaz e zelosa, a Lázaro Codesal matou-o um
mouro na campanha do Rif, o chumbo não é mouro nem cristão, o chumbo é
cruel e não distingue, também é cego, quase todos os cegos tocam muito
bem acordeão, a linha do monte apagou-se quando mataram Lázaro Codesal e
já ninguém tornou a vê-la nunca mais, nem sequer os lobos e as corujas,
nem sequer as águias, Lázaro Codesal tinha o cabelo cor de cenoura e os
olhos azuis e misteriosos como a turquesa, foi pena que o cabrão do
mouro lhe acertasse, ninguém sabe quem foi esse mouro, nem ele próprio o
sabe.
— Queres café?
— Não, tira-me o sono.
Robín Lebozán volta ao escrito, sabe de memória parágrafos inteiros e
lembra-se até das rasuras, Lázaro Codesal foi o primeiro morto desta
verdadeira história, logo ao começar se diz: Robustiano Tarulle morreu
em Marrocos, na posição de Beni Ulixek, matou-o um mouro da cabila de
Beni Urriaguel, é o mais provável, Robustiano Tarulle tinha muito jeito
para emprenhar moças, ou seja, emprenhava-as com muita arte, também
gostava de touros, etc. O último morto ainda não morreu, sempre há um
morto pendente nesta conta de nunca acabar, é como uma cadeia sem fim de
mortos movida pela inércia, Lázaro Codesal Grovas pode ser que seja
Robustiano Tarulle Grovas e pode ser que não, aquela guerra foi há já
muito tempo, dum lado estavam os cristãos e do outro os mouros e assim
não havia confusão, nessa altura as notícias demoravam a chegar e as
pessoas assustavam-se e envenenavam-se menos, havia mais doenças mas não
se vertia tanto sangue sem motivo, o sangue que se derrama não é uma
quantidade mas uma proporção, eu cá me entendo.
— Sabes que anda por aqui?
— Não.
— Queres que te diga por onde?
— Está bem.
A Policarpo, o da Bagañeira, faltam-lhe três dedos da mão direita,
arrancou-lhos um potro, Policarpo, o da Bagañeira, consegue domesticar
os animais do monte, os bravos e os mansos, os que olham e mordem e os
que dissimulam e fogem, Policarpo, o da Bagañeira, baixa a voz.
— Pois está em Veiga de Abaixo, em casa de Mingos, o de Marrubio, amanhã
vai a Silvaboa.
— Como sabes?
— Contou-mo Unxía, a filha de Mingos, penso que ma mandou o pai.
— Talvez.
Tanis Gamuzo tem tanta força como um touro, com uma mão é capaz de parar
uma mula, os mastins de Tanis Gamuzo são nobres e sossegados, poderosos,
valentes e serenos, quando se aborrecem; mordem-se, também o sabe toda a
gente, Sultão e Mourito bastam para espantar o lobo da Zacumeira ou o
javali do Val das Égoas, que subia aos carvalhos para comer as bolotas,
Sultão e Mourito farejam à distância as marcas do filho da puta, alguns
não são claros para o cheiro, a verdade é que quase nenhum cheira, bem,
cheiram dois, o suor das mãos e o esmegma triste, mas o olfato é o
olfato, Sultão e Mourito são muito seguros e moderados e quando querem
tornam-se ferozes, quase nunca necessitam disso porque têm uma força
descomunal.
— Que vais fazer?
— A ti que te importa?
Tanis Gamuzo está meio confuso, Tanis Gamuzo pensa sempre muito depressa
mas agora está meio confuso, parece que os pensamentos se atropelam, uns
na cabeça, outros no coração e outros na garganta, os pensamentos lentos
e murchos, também as recordações se agrupam de repente como se fossem
vespas, as recordações traidoras e murchas.
— É verdade que te doem os dentes?
— Quem te disse?
— É verdade que te doem os ouvidos?
— E que tens tu com isso?
Tanis Gamuzo procura pôr ordem nos seus pensamentos e nas suas
recordações, também nos seus desejos, deveres e procedimentos, o medo é
como um gorgulho que vai roendo as articulações da alma, talvez ande já
há muito tempo a roer as delicadas articulações da alma sem que ninguém
o soubesse, os passos que há que dar, dão-se com simplicidade e se for
preciso até fechando os olhos e uma pessoa não se pode sequer
interrogar, por cima dos homens está a lei de Deus, a lei que nos
governa, é como se Deus nos espreitasse por uma fresta aberta entre duas
nuvens, Deus tem sempre um raio na mão.
— Já tenho tudo pensado, que Deus me perdoe mas já tenho tudo pensado,
agora só me falta senti-lo até que me comece a remorder a consciência,
primeiro um pouco, depois mais e no fim até com dor de dentes e de
ouvidos, a partir desse momento é atar e pôr ao fumeiro, não faz mal que
me doam um pouco os dentes e os ouvidos, bem, doem-me muito mas não faz
mal, a dor vai já passar.
Tanis Gamuzo chegou de noite ao monte das Lamiñas, entre Silvaboa,
Folgosa e Mosteirón, com o pessoal a dormir e os cães uivando ao relento
da madrugada, Tanis Gamuzo vai só com dois cães porque mais são difíceis
de governar quando fazem sangue, parece que se lhes turva a vista e
ficam loucos, os cães perdem o respeito ao dono se vão mais de três e
dá-lhes a veneta.
— Se quiser paro com isto, agora chove, a verdade é que chove sempre,
agora doem-me muito os dentes e os ouvidos mas isto certamente não
importa, a mim ordenaram-me o que me ordenaram mas não me disseram que
tinha de ser numa terça-feira, numa quarta-feira ou numa quinta-feira,
não me indicaram o tempo, se eu quiser paro com isto, se quiser posso
não o fazer, o que acontece é que não quero.
Chove sobre a terra do monte e sobre a água dos regatos e das fontes,
chove sobre os tojos e os carvalhos, as hortênsias, os juncos do moinho
e a madressilva dos cemitérios, chove sobre os vivos e os mortos e os
que vão morrer, chove sobre os homens e os animais mansos e ferozes,
sobre as mulheres e as plantas silvestres e de jardim, chove sobre o
monte Sanguino e a fonte das Bouzas do Gago em que bebe o lobo e às
vezes alguma cabra perdida e que não volta nunca mais, chove como toda a
vida e ainda como toda a morte, chove como na guerra e na paz, dá gosto
ver chover sem que se sinta o fim, se calhar o fim da chuva é o fim da
vida, chove ao deus-dará como antes de se inventar o sol, chove com
monotonia mas também com misericórdia, chove sem que o céu se farte de
chover e chover.
Tanis Gamuzo e os seus cães caminham debaixo da chuva envolvidos numa
nuvem muda e cautelosa, Fabián Minguela vai pelo caminho de Silvaboa,
cruza o rio Oseira por Veiga de Riba e vai com medo, desde há algum
tempo que tem medo e leva pistola.
— Se algum cabrão me salta ao caminho, mato-o, juro por Deus que o mato!
Tanis Gamuzo senta-se sobre uma pedra com um cão numa mão e o outro na
outra, Tanis Gamuzo enrola um cigarro e dá uma chupadela funda e
sossegada.
— Será que aos filhos da puta se pode dar a morte como às raposas, sem
avisar?
Começa a clarear o dia quando o Mocho Carroupo se detém para beber água
na fonte das Bouzas, Tanis Gamuzo acerca-se dele.
— Digo-te que te vou matar; embora não o mereças, aviso-te.
O Mocho saca da pistola e Tanis desarma-o com uma paulada, o Mocho
põe-se de joelhos e chora e suplica, Tanis Gamuzo diz-lhe:
— Não sou eu quem te mata, é a lei do monte, eu não posso deitar para
trás das costas a lei do monte.
Tanis Gamuzo afasta-se e Sultão e Mourito dão-lhe as mordeduras
suficientes, as dentadas precisas, nem mais uma.
— Basta!
Sultão e Mourito soltam o morto abanando a cauda com mostras de alegria,
Fabián Minguela morreu sem pena nem glória, e pouco tempo depois, umas
duas horas ou coisa assim, retumbou uma bomba, que voou muito alto.
A menina Ramona sorriu.
— Bendito seja Deus!
Naquela noite, o cego Gaudencio, acordeonista da casa de putas com a
alma tão limpa como a açucena de São José, interpretou a mazurca «Ma
petite Marianne» com deleite muito especial, esteve a tocá-la até de
madrugada.
— Não sabes outra coisa?
— Não.
Dom Cândido Velilla Sánchez, caixeiro-viajante, perguntou ao
acordeonista cego:
— Diga-me uma coisa, você alegra-se por terem matado aquele?
— Sim, eu sim, que quer que eu faça!?
— E alegrava-se se além disso Deus Nosso Senhor o tivesse mandado arder
no inferno?
— Sim.
FIM
nota: Canto
popular andaluz. (N. dos T.)
Camilo José Cela
(1916-2002) tornou-se conhecido logo com o seu primeiro romance, A
Família de Pascoal Duarte (1942), a que se seguiram títulos como A
Colmeia, São Camilo ou este Mazurca para Dois Mortos.
Mazurca para Dois Mortos, que recebeu o Prémio Nacional de Narrativa,
antecedeu o Nobel da Literatura, atribuído em 1989. Truculento,
polémico, vaidoso, genial, contista e cronista exemplar, Camilo José
Cela (1916-2002) trouxe para a literatura espanhola um carácter
andarilho (foi um grande escritor de viagens, percorrendo a pé os
caminhos da Península), a observação e os retratos da violência e da
crueldade, uma prosa truculenta e um humor profundo e amargo. Tinha
grandes e numerosos inimigos, que tratou com lealdade e deslealdade.
Mazurca para Dois Mortos
-
Um ritmo tão trágico quanto cruel, uma história de Espanha e uma galeria de personagens que nunca mais vamos esquecer. Explica por que razão Camilo José Cela foi premiado com o Nobel.
O cego Gaudencio só tocou duas vezes a mazurca «Ma Petite Marianne»: em novembro de 1936, quando mataram Baldomero Afoito, e em janeiro de 1940, quando mataram Fabian Minguela. Depois nunca mais quis voltar a tocá-la. Eram os tempos turvos e vingativos da Guerra Civil de Espanha.
Mazurca para Dois Mortos constitui uma impressionante rememoração do ambiente quase mítico da guerra, da Galiza rural e da violência humana. Um retábulo de vidas dominadas pela violência, pelo sexo e pela superstição atávica. Uma das melhores obras de um dos mais importantes escritores espanhóis contemporâneos.

Título: Mazurca para Dois Mortos
Título original: Mazurca para dos muertos (1983)
Autor: Camilo José Cela
2023 Quetzal Editores
Tradução do espanhol: Maria Carlota Pracana e Salvato Teles de Menezes
15.Abr.2025
Publicado por
MJA
|