|

imagem:
A cantora espanhola cega
- Robert Henri (1912), Smithsonian American Art Museum
Volta e meia estou recebendo cartas e telefonemas a propósito de
minha coluna neste jornal. Agora mesmo acaba de me telefonar uma
moça chamada Maura. Disse que me lê todos os sábados e coleciona
as minhas colunas. Que eu não posso imaginar o bem que faço a
ela. No decorrer de sua conversa – Maura tem uma voz delicada e
sensível – disse-me: eu leio logo que são passadas em braile.
Fiquei um instante perplexa ou perturbada: estaria eu
adivinhando certo? Perguntei-lhe:
– Você é cega?
Disse que sim, de nascença. Tem 26 anos e sua família mora em
Minas Gerais. Desde 1950 Maura mora no Rio, com uma família
amiga, e estudou no Instituto Benjamin Constant. Atualmente
estuda, na Faculdade, português e principalmente literatura: usa
gravador, e os colegas também cooperam lendo-lhe as aulas. Disse
que a pessoa que passa minhas colunas para braile não é cega.
Chama-se Constantino. E já passou para braile quatro livros
meus, hoje encadernados. Eu lhe disse:
– Você é uma moça muito corajosa e eu me sinto muito pobre
diante de você.
– Coragem? Não, é necessário enfrentar a vida, e todos têm
problemas, e minha cegueira não é o meu maior problema.
Maura percebeu como eu estava perturbada e pediu-me que a
tratasse como se ela não tivesse “deficiência de visão”.
Maura,
eu raramente tenho a sua coragem, e nem sei enfrentar a vida. É
com profunda humildade, Maura, que agradeço o seu telefonema que
aconteceu, sem você saber, num momento em que eu estava
precisando de muita coragem. E agradeço também a Constantino.
Imagino Maura com olhos abertos, sem ver. Com todos os demais
sentidos mais sensíveis por isso mesmo. Lembro-me da vez em que,
numa recepção, fui com outras pessoas apresentada a Helen
Keller, cega, surda e falando roucamente, trocando um pouco as
sílabas (pois nunca ouvira alguém falar). Havia no grupo uma
mocinha especialmente bela. Helen Keller, no meio da conversa,
sentiu necessidade de ver alguém, e quem estava mais próximo era
a mocinha. Helen Keller, então, com as duas mãos passou dedos
pelos traços do rosto da mocinha, cuidadosamente, demoradamente.
E disse: você é muito bonita.
FIM
Reunião definitiva da extensa produção de Clarice Lispector para jornais,
'Todas as crónicas' apresenta pela primeira vez em volume único toda a obra cronística da autora de
'A Hora da Estrela'. A coletânea traz as colaborações de Clarice para veículos como
'Jornal do Brasil', 'Última hora' e revista 'Senhor', incluindo 120 textos inéditos em livro, além das crónicas anteriormente publicadas nas colectâneas
'A descoberta do mundo' e 'Para não esquecer'.
ϟ
Maura (1969)
Clarice Lispector
in 'Todas as Crónicas'
Editora: Rocco
1.ª Edição: 2018
|