|
Marcus Vinicius
a mão no ombro, mas não dobre o corpo
a voz baixa, sem fazer alarde
depois efetue a substituição dos olhos
lave as mãos antes e enxugue na toalha descartável
se houver medo, repita a operação
mantenha a voz discordante fora de alcance
dê dois passos à direita e se coloque na direção da luz
de forma a enxergar com mais nitidez todas as sombras
retire o lacre dos espelhos do quarto
mantenha os corpos em temperatura adequada
esvazie as idéias, desenhe um riso idiota
cruze os braços e se ponha à espera, sempre à espera
com a mão no interruptor, não hesite a composição da vida nos escapa no momento
consulte o manual em caso de dúvida
mas, de preferência, evite o contato
um cego não guia outro. Um cego
com um cão se guia, embora o cão
veja a vida de maneira inversa um cego não sabe o olho são
sabe só que seu olhar acaba
dentro de si, sem chave que o abra o cão guia o cego nos desvios
para que a qualquer hora flutue
sobre muros com cacos, abismos o olho cego faz-se às vezes gume
para desvendar passos no escuro
e doer a dor pontiaguda um cão, caso cego, guia ou quase
outro cão que sem dono apareça
como personagem grego e trágico mas um cão jamais se entrega presa
do destino, por mais oponente,
pois se solta das cordas que o prendem mesmo exausto o cão ainda ladra
como se soubesse aonde ir
mas ao cego, cético, não basta um cão também cego, posto ali
a seu lado, simples disparate
um cego ter outro como dádiva
como os cegos sabem que estão mortos, se o mesmo silêncio em nós perdura? em que o peso da morte diverge do peso do breu, de noção lúcida? pensaria o cego que esta vida em nada difere quando ausência?
fechado em si mesmo, sem saída sente apenas o tempo escorrendo e a ideia da morte, a ideia lhe praz sobressaltos e pavor: estaria morto ou vida alheia é a que leva hoje, por exemplo?
como os cegos sabem que estão mortos, se não muda o hábito, se o sono permanece o mesmo, e as paredes que se estreitam duras e incômodas dão-lhe a sensação de que mais nada existe, só a mão sobre o ombro?
O pavor se espalha
mas o cego não se espanta
não sabe que o mundo é espelho
não sabe o que o espera
ao dobrar a esquina:
cães devoram sobras
no beco escuro
o cego não lê metáforas
e o tempo bate com as esporas
na esperança exausta
no seu tato não há espanto
a dor do mundo escapa
de seus dedos
presos na superfície das coisas
os dias seguem mais cegos
do que ele
como um espelho de costas
e o cego sem jeito
desaparece na poeira das ruas
feito um espantalho
um cego quando canta no nordeste
traz à tona canções de mar diverso
posto que
tem sertão em toda pele
desdobra-se em acordes: dedos secos
repetem-se em
refrãos, motes, repentes
feito existisse um outro ser lá dentro
um cego quando encontra violões cegos
aceita o desafio para em verso
contrariar visões ali adversas
e o dia neste instante não tem término
o mundo logo pára 'ou parece) :
tudo converge para este nordeste
e a cada quadra o jogo recomeça
o cantador responde com voz cega
e a plateia se põe toda à espera
de que em palavras um dos dois se perca
ou que ao cansaço da noite alguém ceda
e o silêncio se faça na voz seca
um cego quando canta no nordeste
canta a escuridão, que o sol não presta
nem alumia sua vida cega
o tempo
passa em versos que martela
e ele, cantador, sempre em frente segue
que seu ofício é a controvérsia.
ϟ
in 'Manual de Instruções para Cegos'
Marcus Vinicius Quiroga (2004)
Prémio Cidade de Juiz de Fora
Editora 7 Letras
2.Set.2017
Publicado por
MJA
|