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-excerto-

capa de Paula Rego
A Criança leva os dedos à mancha rosada que é a cara de sua mãe. As pontas
ficam húmidas. A mãe cheira, como sempre, ao cheiro da manteiga sem sal e de
flores. Põe as mãos em concha e procura fechar nelas aquelas massas macias, o
búzio mais frio do nariz, roçar a cócega das pestanas, as circunvoluções em
montículos mornos dos ouvidos e da boca sob a massa mais fresca dos cabelos,
quente sob a nuca. Quer encostar a cara à dela, mas a mãe abraça-a puxando-lhe a
cabeça ao peito, embala-a. A Criança desce as mãos pelo dorso da mãe, os olhos
cheios de sombras e de luzes. O tecido é macio até depois do soerguer das ancas.
Aí torna-se mais seco, rugoso, as pontas dos dedos acham como espinhos nos fios,
que picam. A Criança ouve a respiração por dentro do corpo da mãe, a batida cava
do coração. Depois a mãe afasta-a e vem a rugueza da toalha no pescoço, sente no
peito a pressão contra o rebordo frio da loiça, fecha os olhos, sem prazer.
Depois espera até sentir a escova a entrar-lhe no cabelo enquanto a mãe lhe
segura o queixo, a outra mão no gesto leve de desembaraçar as pontas. Mantém a
cabeça firme e a mãe diz, Muito linda. E ela leva as mãos ao cabelo que é sempre
um pouco como o pêlo de gatos, mas comprido. Rodeada de uma grande luminosidade
metálica, excepto pelo corpo da mãe que está ali como uma força escura que se
aproxima e afasta. Pelo número de passos que sem contar percorreu, como percorre
todas as manhãs até ali, que há muito que o não faz já pela mão da mãe, pelo
dobrar dos mesmos volumes de sombra e luminosidade, pelos sinais de temperatura,
espessura e vácuo que as coisas emitem e que reconhece, pelos gestos, sabe que
está na casa de banho, mais fresca que qualquer outro sítio da casa. Excepto a
varanda que dá para o quintal, mas nessa passa e move-se o ar. Que a mãe traz
uma camisola nova que ainda cheira cheiros que desconhece e uma saia. E que
estão ambas agora diante do espelho onde a mãe lhe vê a cara e é a mesma hora de
sempre, a de ser lavada pela manhã. Não vai chover. A chuva põe por dentro das
casas um cheiro molhado, uma outra acuidade nos ruídos e nos silêncios. Nem há
sol, ou o clarão do lado da janela seria mais cheio, alagaria mais os olhos da
vaga branquidão, da névoa em que tudo está. Ouve que a máquina de lavar zune ao
longe e pergunta polidamente, A Cecília já chegou, mãezinha?, e ouve o sorriso
na voz da mãe,
Como tu ouves bem todos os ruídos da casa, filha, agora vais para o quintal
com muito juízo.
A Criança sente a água nas mãos, a felpa de novo áspera da toalha seca, o olhar
da mãe sobre as costas.
Conta agora um dois três quatro cinco seis sete, desnecessariamente, obedecendo,
enquanto recebe na cara, nas mãos, no corpo abrigado e nos joelhos nus, a
paragem em que o quintal está, porque não há vento, e ouve que um pássaro maior
pousou num dos ramos da tília, modificando-lhe os rumores da folha leve. Vira-se
para
trás, a mão no corrimão, na mancha como crosta seca que lhe indica estar no
último degrau, e diz para cima, Mãezinha?, ouvindo o pássaro levantar voo num
grande sussurro de asas mais pesadas que as dos pardais que lhe não fogem.
Era um melro, minha querida. Um melro? São pretos, têm o bico amarelo e são
grandes assim como uma mão ao comprido, não fazem mal. São bonitos, mãe? Muito
bonitos, até logo, minha querida, a mãe tem de ir, mas hoje não se demora nada.
Não vais ao emprego, mãezinha? Hoje se calhar não há emprego, amor, eu depois
conto, até logo, minha querida.
A Criança leva os dedos à boca, que franze, e manda o beijo para o cimo da
escada, a voz que se perde naquele branco-escuro hoje um pouco azulado que é a
face da traseira da sua casa. Senta-se no último degrau e começa a esboroar
pedaços da fatia que trazia no cestinho, pousado agora na pedra rugosa, ainda
muito fria, molhada por dentro. Ouve-lhes os pios que se aproximam, no ar, no
chão, descendo das ramas próximas ou de lá muito mais alto, longe, entre a cara
e a luz o rufar das pequenas sombras habituais. A mão pousada na pedra deixa-se
estar tão imóvel quanto pode sob a quase carícia das pequenas garras, do impacte
rápido das pequenas massas córneas sobre o pão, a polpa dos dedos. A luz à sua
volta está manchada de sombras móveis, um cheiro morno e um pouco acre, cada vez
mais próximo. Sente o peso na cabeça, o momentâneo equilíbrio fincando-se ao
cabelo fino, não se mexe, diz, avisa, Passarinho lindo, e responde-lhe uma
pequena ventania, uma intensificação dos guinchos minimos e a esventração da
malha de vultos que a contém, para logo resserrar-se, a rotina dos pássaros que
a conhecem, o colo agora cheio enquanto se não mover, enquanto houver pão,
alguns dias bolo, ou bolachas. Ouve agora a chegada dos pombos com as suas asas
que sopram rijo, o rocolejar ávido que dispersa os pardais menos afoitos. Diz,
Acabou-se, e levanta-se e com ela uma pequena nuvem que se desfaz para os ares,
lá alto, os pios longe. E a Criança avança pelo quintal, de folha em sombra,
dirigida ao cheiro de alguma corola mais aberta pela noite, a mancha que lhe
pareça nova ou mais intensa, luminosa no velamento de tudo. Uma abelha zune-lhe
perto, a Criança imobiliza-se de novo, os dedos no corpo frio dum caule, e
escuta.
O sol começa a querer romper, agora. Há um clarão branco por dentro da espessura
cinza. As grandes praças da cidade estão desertas. No rio, o pouco movimento da
madrugada parou. O ar da cidade parece descido, pesado. Os gatos esquivam-se,
sensíveis à mudança na voz, nos corpos dos homens, e os cães passam rentes às
portas nas vielas mais estreitas ou trotam velozes pelos espaços abertos, a
cauda baixa e no focinho de orelhas derreadas a ameaça e a culpa. Os canários
trilam baixo, enquanto as crianças sem escola são arrebatadas para o lado de
dentro das portas de postigo e caladas sem paixão. Ouvem-se os rádios dando
música unissonos, o restolhar dos pombos que vogam baixo, o grasnar de uma ou
outra gaivota atraída pela calma pesada, marinha, das ruas e praças. Nos jardins
públicos há apenas velhos que chegaram cedo e que dormitam no silêncio da manhã
alta, fosca.
[...]
Lucinha acordou muito cedo. Sente a escuridão do quarto nas mãos, na cara.
Quando está escuro as coisas estão muito mais quietas. Lá fora já há-de estar
luz. A casa não tem ainda ruído algum, excepto o estremecer intermitente do
frigorífico ao longe, mas da rua vem o barulho de carros, passos apressados no
empedrado do passeio. A fresta que a mãe deixa aberta já há-de ter luz. Faço
anos, eles ainda dormem, não faço barulho. Lucinha destapa-se, o ar está frio à
sua volta, é meio-Março. A mãe disse-lhe que a camisa macia tem flores azuis.
Azuis como, mãe?
Azuis como aquele patinho que a avó te deu eras pequenina, lembras-te?
Não me lembro, mãe.
A mãe foi buscar o pato que chiava ainda e tinha um corpo morno, um pouco
mais mole ou puído na barriga. A cabeça ainda era dura, redonda, e saía dela um
volume achatado, mais macio entre os dedos. Aqui é mais clarinho, não é, mãe? É
filha, é o bico, é amarelo, e as patinhas são encarnadas. E puxava-lhe os dedos
para a parte de trás da barriga, onde havia dois altos rugosos, que ela sentiu
mais escuros. Chegou-o ao nariz, à língua. Um pouco de queimado, um pouco de
borracha. Na boca não, filha. Mas eu na boca vejo melhor, mãezinha.
O roupão é fácil de encontrar, a mãe deixa-o sempre na cadeira. E os
chinelos. Lucinha gatinha por debaixo da cama até achá-los juntos, tacteia-os,
senta-se no chão, enfia-os. Está quente, agora. Abre o cesto dos brinquedos. O
frio dos tachinhos de esmalte, a felpa do cabelo de uma boneca, mas não é o que
procura. Mornas ou mais frescas, lisas ou cobertas de estrias, tecidos, as
superfícies são o que lhe são — outros bonecos, mobiliário em miniatura, bolas,
a pele mais lisa e fria, pequenas formas de plástico concêntricas. Não faz
ruído. Baixa a cara, o chorão cheira ainda um pouco a massa tenra crua.
Desvia com jeito, não fazer barulho, uma cadeirinha de fundo
de palha, as aparas ríspidas por debaixo do assento, é, é a cara do
chorão o que está por debaixo. Está quase nu, tem só uma cueca de
plástico e uma camisa que parece pele. Deve ser a lilás, que a mãe
disse. Também não se lembra do lilás, mas é uma palavra de que
gosta muito. Vai à cama, o grande vulto mais luminoso dos lençóis,
tira a mantinha que está aos pés, e embrulha o boneco, embala-o,
canta baixo e afinado, fala.
Era uma casa muito engraçada, não tinha tecto, não tinha nada, La lá
lá lála, Lá lá lá lá, Lá lá lá lála, Lá lá lá lá
Tens que te portar bem e estar caladinho para as pessoas grandes
descansarem, hoje é dia de festa e vais ter muitos brinquedos e coisas boas para comer, vais ter rim
e arroz de manteiga e smarties e
para o jantar vais ter frango e mousse de chocolate e não tens que
comer a sopa toda, só a moela, e tu ainda não tens idade para comer,
mas eu dou-te com uma colherzinha, e vai haver um bolo com seis
velas e todo forrado com uma fita cor-de-rosa e eu seguro-te para
poderes assoprar, mas tens que estar muito caladinho e a dormir,
senão ficas ceguinho e tens que ir a Espanha fazer uma operação,
tens, tens —
Lucinha tem fome. Não é a primeira vez que acorda assim
cedo.
Foste feio, fizeste chichi, não vais brincar com os outros meninos, não vais não, pronto, agora ficas aqui que eu vou para o emprego, não chores que a mãezinha vem logo, não não não, não está nada escuro, está um dia muito bonito, está tudo azul, mas agora vais
dormir a tua sestinha que é para os teus olhos ficarem bons para a
operação —
Lucinha abre a porta. Estava só encostada. Para não chiar é
preciso pegar-lhe bem abaixo, onde a tinta tem uma pequena falha.
No corredor já há-de estar alguma luz. Para Lucinha é a escuridão total. Mas é
dia, não tem medo, não precisa de ir muito devagar como numa escuridão nova. Uma
mancha alta e comprida de luz. Lucinha ouve o ressonar do pai, a cama que chia
um pouco, movem-se. Um cheiro muito forte, como os da cozinha, mas quente, de
ervas queimadas e praia, algas secas, maré vaza onde as poças são
mornas e os dedos se perdem em miríades de arestas e bolhas vivas,
deliciosas e um pouco repugnantes como muco, Lucinha inala a
presença dos país no sono, o tabaco queimado, o perfume da mãe
que agora suspira muito fundo. Lucinha tem vontade de entrar, mas
tem fome e lembra-se que a mãe ralha, não se acordam as pessoas
grandes, Tenho fome.
Perto da cozinha a claridade alarga-se, chama-a, começa a envolvê-la
transposta a porta aberta, jorra, e Lucinha senta-se dentro
de um magma feliz, cheira muito claro, branco ainda, sem o fulgor
mais amarelo do sol, não há sol, é muito cedo. Estende a mão e
avança até à mancha da mesa, a frieza mole do tampo de fórmica.
Contorna a mesa até à zona mais sombria do lavatório, cheira ainda
um pouco a restos, a torneira pinga, um chapinhar lento. Fulana, a
gata, roça-lhe pelas pernas, não a ouvira antes, nunca se sabem, os
gatos, nenhum cheiro, nenhum ruído, a não ser quando lambem a
cara, o que a mãe não gosta, e há um hálito a peixe, um bafo um
pouco podre, agradável, logo seguido da pressão que a cabeça forte
faz sobre o queixo, a marrada que Lucinha lhe repete, os dedos sobre aquele viço
veludo que se aproxima e afasta sem qualquer sinal,
excepto o volume móvel e escuro já muito perto, avisando do salto
para o colo a meio ímpeto com um miado, ou a respiração de amor,
o ronronar. Lucinha diz, 'Espera aí'. A sua caneca é fácil de encontrar por entre
os rebordos dos pratos, no escoador, depois o pires, que puxa de manso,
amparando com a outra mão as peças de
loiça que não vê, a que não se desmoronem. 'Quieta Fulana, chiu',
sussurra para o animal que se lhe cola às pernas. As duas mãos
ocupadas, contorna de novo a mesa até ao frigorífico. Com cuidado,
poisa a caneca no chão, depois o pires. Devagar, usa agora uma
pressão lenta de todos os músculos dos braços para que a mola do
frigorífico não se lhe abra de sopetão, num arranque mais forte. A
porta abre-se, o clarão amarelo, os cheiros tão diferentes dominados pelo da sopa fria, repulsivo. O leite, o pacote está aberto, a ranhura
do papel húmido formando um bico áspero. Lucinha põe-o no chão,
perto de onde lembra ter largado o pires. Tão perto que este estremece sob o
mosaico, um ruído musical que morre em círculos até o
pires se aquietar. Lucinha pára, escuta. O pai tosse um pouco lá longe. Usando o
dedo da mão esquerda, primeiro espetado no meio do
pires, depois apoiado por dentro da caneca, Lucinha deita o leite. Incerta,
poisa o pacote e apalpa o chão em torno. Está frio, mas seco,
não entornou nada. Ouve os estalidos rápidos do lamber da gata, o
ronronar. 'Agora eu', e repete o derramar para a caneca no chão.
Vitoriosa, com as duas mãos coloca o pacote onde estava, fácil, tacteando a
grade do interior da porta, fecha de mansinho, agacha-se
de novo. Onde está a caneca? Muito devagar, para não deborcá-la,
abrindo muito os olhos a ver se vislumbra o lumiar branco sobre o
brilho mais escuro do chão, Lucinha tacteia, acha, agarra com as
duas mãos, bebe um gole a que não se entorne e vai pôr devagar em
cima do tampo da mesa. Agora as bolachas. Se houver na lata, é fácil. Lucinha
achega-se à bancada junto à parede. A máquina dos batidos, a balança. Algo
tomba, um baque surdo em cima do pano
grosso, um pequeno vulto esguio, alto — o moinho da pimenta.
Um corpo gelado e liso, uma garrafa. A lata das bolachas. De novo
no chão, de novo com as mãos ambas, Lucinha encosta a lata aos
joelhos, puxa à volta. Um ruído mais. Lucinha escuta, cheira para o
interior da casa. Ninguém. Uma de chocolate, duas de chocolate.
Duas com altos, amanteigadas. Mais uma para os passarinhos. Não,
mais três, faz anos, a mãe não ralha. Agachada agora no chão, bebe
o leite em pequenos goles, está muito frio, e come as bolachas de
chocolate.
Agora vou para o quintal. Já é quase Verão, tenho a certeza
que posso ir para o quintal sem me vestir.
É como caminhar por dentro de águas, de uma baga de cristal,
cá fora. Lucinha lembra-se do vidro. Pontos brilhantes cintilam, os
pássaros estão na hora dos gritos unissonos. Cheira muito fresco,
pequenos fios de cheiros, o da terra, o das ervas. Uma aragem leve
mexe as folhas rasteiras, as das couves altas, das canas, com um
murmúrio de saias, de sedas que roçam. Os pássaros aproximam-se, já concertam
pequenas ventanias, é o ritual de todas as manhãs,
apenas um pouco mais cedo. “Faço anos”, diz Lucinha, baixinho, e a
revoada afasta-se, trémula, revém. Lucinha senta-se no seu degrau e
esfarela a primeira bolacha aos pés, nas palmas das mãos estendidas
ao alto onde, abertos os polegares, se fincam as pequenas unhas e
caem os primeiros raios de penumbra branca, que principia a adoçar, a aquecer.
Lucinha levanta a cara ao sol, abre um pouco a boca,
imóvel, o roçagar dos próprios cabelos mornos do bafo da cama, da
casa, como penas, na nuca, nos ouvidos.
As canas. A couve cresceu, de noite. É perigoso, Lucinha,
meter os dedos entre as folhas, pode haver bichos que piquem. Um
caracol, é um caracol. A concha é fria, sente-se a escuridão profunda por dentro
do buraco molhado. É pesado e grande como uma pequena pedra aberta. Compacto,
está inteiriçado lá dentro. Tem medo. Lucinha sente o medo do bicho que aperta o
próprio corpo, vivo, lá dentro. Tacteia a espiral, as pequenas estrias das
lombas muito doces, a lisura do portal. A concha é salgada na lingua. Como um
búzio, pensa, mais seco. E depõe o animal no beiço de uma folha.
Ele há-de virar-se, sabe.
O canteiro da salsa, do coentro, esse cheiro fundo e aprazível
como o da urina fresca, do mar. A aragem fina desce agora junto ao
chão, Lucinha sente com prazer o ar subir-lhe entre as pernas, até
ao pequeno sexo nu. Alto, para lá do muro, um grito, mais agreste.
Uma gaivota, o céu vai-se fechar. Mas Lucinha avança, lenta, os
braços abertos para diante e os dedos tangendo o ar, pode pisar coisas vivas,
novas, no pequeno carreiro de terra batida, ou rasgar-se-lhe a cara nalguma
pernada que tenha pendido de noite. As rosas
aproximam-se, na sua redoma de odor. Outro botão a abrir, a folha
fendida sobre a maciez da corola nova, tolhida sobre si. Devagar,
mais devagar ainda, os dedos suspensos leves adivinham picos, que
deitam um calor diferente do da corola aberta, um ardor. Este é o
caule do girassol, hirsuto, criatura ácida, o girassol, as pétalas e o
ceptro de grainhas ásperas possível morada ou poiso de perigos. O
girassol, não, ó Lucinha, não lhe mexa que lhe muda o tino, dá azar.
Lucinha entrevê-lhe mal o vulto redondo como um sol escuro, lá alto. mais alto
que ela entre ela e o foco mais ardente, esse calor, o
Sol. Não olhes para o Sol, querida, não faz bem. Mas eu posso, mãe.
Fecha os olhinhos, então, filha. Como é que eu hei-de saber, mãezinha? Não seja
gosma, menina Lucinha, está-se mesmo a ver que a
menina vê o Sol, pois não lhe sente o bafo? Deixe-a, Cecília, bem
basta o que basta.
Credo, menina Maria Eduarda, quem a ouvir diz que isto é de
vez. Mas a mãe não respondeu, Lucinha sentiu-lhe a zanga contra a
Cecília, a Cecília ralhava-lhe muito mais que a mãe. Como se ela
fosse uma menina qualquer. Como com a filha, quando vinha brincar com ela.
Lucinha sente agora o cheiro a queimada dos dejectos e talos
mortos da coelheira. E a felpa morna. Vou ver se já nasceram. Eu
posso, a Boloira conhece-me. Na outra gaiola o coelho salta, Lucinha ouve-lhe as
patadas regulares, sem sobressalto, um coração habituado, ouvido por dentro.
Sentiram-na. A Boloira não mexe, Lucinha cheira-lhe o odor mais quente, uma
emanação vibrante, como
se zunisse o ar ao fundo da palha. Boloira, Boloirinha, diz, ainda
perfeitamente lembrada a massa de pelagem funda e de um ruço
adoirado, a barriga mais fina ainda, branca, a orelha quebrada, patusca, o arfar
da venta rósea. Os dedos chegam-lhe ao corpo do animal, uma pequena trombada na
mão, muito leve, menos leve. Lucinha desce-lhe abaixo da barriga e os dedos
ficam húmidos numa
massa menos quente, pontas de pequenas patas frias, um estremecer aos seus
dedos. E outro, e outro. Boloira empurra-lhe a mão
com o focinho. Lucinha diz, “Está bem, pronto”, e fecha o trinco da
coelheira. Sacode a manga do roupão, faz anos, a mãe não ralha, a
Cecília acha graça à confiança da Boloira, desde o tempo em que a
trazia para a cozinha para Lúcia tocar, cheirar, enviesar-lhe a vista
em cima do vulto de um palmo, e a bicha se fez dócil, afeiçoada a
mimos e biqueira, cenoura, talos tenros de nabiça, ao colo e até à cama de
Lucinha.
Há um rumor novo sobre o barulho de carros, um pouco mais
intenso, tão ao longe. Mas não é nenhum ruido da casa. Lucinha fica imóvel, abre
o nariz, as mãos. Do orla do quintal, onde está a sebe dura, ouve estalidos, um
zurzir de cana sobre o chão, ou roupa.
Há outra presença agora também imóvel, do lado de lá. Lucinha
avança, agacha-se, arregala os olhos pelo que se assemelha lumiar
como vaga nesga no adensado de ramículos estaladiços e folha miúda, um negror. O
rumor reata-se. Os gestos ou passos são de pessoa
leve, um animal pequeno, ou outra criança. Lucinha não mexe.
Muito mais perto, agora. Lucinha diz baixo, 'É o que é', não sabe
porquê, e tem medo.
Ó menin, pó i pa bós quintal?
Lucinha levanta-se, ergue a cara, inala fundo e curto, a apurar-se, a voz tem
que ser de menino, dura, aguda, está muito próxima, vem de um pouco acima da
altura da sua cabeça, que já acena
que sim, que pode, os olhos esforçados em todas as penumbras, o
prazer, mas nenhum vulto se vislumbra ainda móvel, ou a sebe o
oculta.
Ó menin.
Lucinha entende que o menino não lhe viu o aceno, mas ouve-lhe o restolhar mais
afoito da aproximação, o farfalho da cana que
deve arrastar, que não largou.
Podes.
O vulto surge-lhe à esquerda, de um salto, depois de um estalar de canas e
outros caules.
Não pises é as flores, que a minha mãe ralha.
Pise não, menin.
A minha coelha tem coelhinhos.
Mas Lúcia fica quieta, como se habituou a fazer com outras
crianças, ao início. O vulto do menino aproxima-se mais. Cheira a
sabão muito forte, como o da roupa, ou de cães. Tem o corpo muito
quente, esteve a saltar, ou a correr.
Bó tá morá naqueli casa?
Hã?
Tu és mouco, menin?
Não, sou ceguinha, foi um desastre. Hoje faço anos.
“Tá bom.
O menino agachou-se. Lucinha sente o raspar do graveto no
chão e que ele deixou cair ao lado a cana, que farfalhou a aquietar a
folha verde, durante segundos. Alto ouve os pássaros que vêm e
vão, poucos, o bando unido na mancha como uma só asa extensível,
móvel, foi já à sua lida mais ampla. O ar azulou, escureceu já um
pouco, as casas silenciosas, ainda.
Tá morá nali, naqueli casa.
O menino faz o gesto de lá. Lucinha está tão perto que sente
a
vibração do ar, depois o vulto curto do braço que tomba. O menino
pausa, de novo o ruído do graveto sobre o chão. Levanta-se agora à
sua altura e Lucinha sente sobre a cara a força da curiosidade da
outra criança. Tem medo que o menino se vá como veio, do ar, de
um salto. O menino estende a mão para perto da sua cara, a um palmo. Terá
fechado os olhos, que o pequeno vulto estelar irradia,
quente como a proximidade do vermelho, ou de um corpo de pássaro. Depois o
menino abre os olhos de novo, só a sombra. Lucinha
recuou um pouco.
Tem galinha e uns cabra preto, lá no Calde Verde, tem. Coelho tem não.
É a minha coelha. O nome dela é Boloira. Queres ver?
Lúcia faz um esforço para falar muito claro. Como se visse cada palavra para
o menino ver. O menino larga um riso agudo e contente:
Ver quer.
Afasta-se em direcção às gaiolas gradeadas de arame, Lucinha
ouve-lhe o ruído dos dedos que se fincam na rede e a fazem vibrar,
ouve os pulos mais ansiosos do coelho, a imobilidade do alarme da
Boloira. Ouve que o menino volta, três passos, devagar, lhe pára à
beira. Lucinha sente na sua uma mão quente. O menino puxa-a, devagarzinho,
caminha a puxá-la e a vê-la dos olhos aos pés, a mão firme, cheia da sua.
Lucinha sente a emanação do cuidado, “Ver quer”.
Não se pode pegar muito tempo, que a mãe enjeita.
Nhjeta?
Deita fora. Não quer mais. Êlis.
Lucinha traduz. Mima as vogais do menino, mais agudas ou
surdas, a desaparição adoçada das consoantes. Como um grande
verme morno, o corpinho debilmente móvel cabe nas quatro pequenas mãos em
concha. Muito próxima da sua, Lucinha tem a mancha sombria da cara do menino,
onde alumiam muito uns quase
puros brancos, o brilho dos seus dentes, o bafo a pão da boca, o riso.
O cabelo dá calor, surdo.
Bó deita culhin. Coelhe mórdi.
Mórdi não, diz Lucinha.
A voz da mãe vem pelo ar, clara, sem aflição, há uma ponta de sorriso na voz da
mãe, voz de festa:
Luciiinha.
Agora é Lucinha quem dá a mão ao menino. Faço anos, vem ver os meus presentes.
Vem não. Vem.
E o menino deixa-se guiar.
Ó filha, então foste para o quintal sem te vestir e bebeste o leite todo frio,
quem é esse menino?
Ele pode vir brincar comigo, mãe, é meu amigo, mãe, a gente esteve a ver os
coelhinhos, já nasceram os coelhinhos.
Pode, filha, se ele quiser, vê lá se a tua mãe não fica ralada, filho, como é
que te chamas?
Ralade não, nhor. Tá lá no trabalh', chama Xiquinh'.
Então entra, Chiquinho, hoje é dia de festa.
Ele é Xiquinh', mãe, Xiquinh'.
FIM
ϟ
excerto: pp 19 a 21 e 77 a 85
Lúcialima
Maria Velho da Costa
Edições O Jornal
1.ª edição, Abril 1983
Prémio D. Dinis 1983
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