Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual


Lições de Grego

Han Kang

excertos


Eyes vision - Odilon Redon
 

Nessa altura, a minha visão já estava a desaparecer. O teu pai explicou a sua opinião médica de que uma operação prematura só serviria para acelerar a cegueira; falou de modo lento e cuidadoso e manteve o rosto deliberadamente impassível, recusando-se a deixar transparecer qualquer compaixão barata.

O facto de a luz forte ser prejudicial ainda não estava comprovado, mas ele aconselhou-me a ter cuidado, sublinhando que era sempre melhor jogar pelo seguro. Aconselhou-me a usar óculos escuros durante o dia, quando os raios solares eram mais fortes, e a recorrer apenas a uma luz fraca à noite. Andar constantemente de óculos escuros como uma celebridade fazia-me sentir constrangido e, por isso, escolhi uns óculos com lentes verde-claras para usar no dia a dia. Por tudo isto, olhar diretamente para o Sol era algo que eu não conseguia sequer imaginar, nem mesmo usando uma película de permeio.

***

Estou a chegar aos quarenta, que o teu pai avisou ser o ponto crítico, mas mantenho uma visão parcial. Talvez daqui a mais ou menos um ano fique completamente cego. Tem sido um processo longo e lento, e agora não preciso de mais preparativos. Como um condenado que dá uma última passa no único cigarro que lhe é permitido, nos dias luminosos passo as longas tardes sentado na rua estreita em frente da minha casa, a apreciar a cena.

Passam por esta rua, numa zona comercial dos arredores de Seul, pessoas de todos os estratos sociais. Uma adolescente de auscultadores e com a saia da farda da escola desajeitadamente puxada para cima. Um homem de meia-idade barrigudo com um fato de treino gasto. Uma mulher a falar ao telemóvel, com um vestido deslumbrante que faz com que pareça acabada de sair das páginas de uma revista de moda. Uma mulher idosa, de cabelo branco curto e vestindo uma camisola com enfeites cintilantes, a acender um cigarro num gesto de prazer. Alguém, algures, pragueja violentamente, e de um restaurante vem um cheiro a gukbap3. Um miúdo numa bicicleta passa por mim, tocando a campainha o mais alto que consegue.

Mesmo usando os óculos mais potentes que me foi possível arranjar, não consigo distinguir os pormenores de nenhuma destas coisas. As formas e os gestos individuais confundem-se, e qualquer nitidez resulta apenas da força da minha imaginação. A adolescente estará a balbuciar a letra da canção que está a ouvir, e o seu lábio inferior terá uma pequena marca azulada à esquerda, tal como o teu. As mangas do fato de treino do homem de meia-idade brilharão de tão sujas e coçadas, e os atacadores dos ténis, que originalmente seriam brancos, terão ficado cinzento-escuros devido a meses sem serem lavados. O rapaz da bicicleta terá gotas de suor a escorrer pelas têmporas. A mulher idosa parece ser uma proposição difícil; o seu cigarro será de uma marca fina e elegante, e os fragmentos brilhantes de madrepérola incrustados na sua camisola terão a forma de uma rosa ou de uma hortênsia.

Quando observar as pessoas e vislumbrar os respetivos rasgos de fantasia se torna entediante, subo lentamente o caminho até à montanha. As árvores verde-claras ondulam como uma massa única, as suas flores têm uma profusão de cores incrivelmente bela. Quando chego ao pequeno templo no sopé da montanha, sento-me e descanso no maru4 de madeira que contorna o exterior do salão público. Tiro os óculos e olho para os contornos agora ténues do mundo. É comum pensar-se que os cegos ou amblíopes captam em primeiro lugar os sons, mas comigo isso não acontece. A primeira coisa de que me apercebo é do tempo. Sinto-o como uma corrente lenta e cruel de uma enorme massa, que passa constantemente através do meu corpo até me vencer a pouco e pouco.

Como a minha visão piora rapidamente à medida que a luz se desvanece, não posso ficar aqui sentado durante muito tempo. Volto para casa, mudo de roupa, lavo a cara. Tenho de ir dar aulas aos meus alunos – a aula começa às sete da tarde, que é o vosso meio-dia, a hora a que mais gostavas de olhar para o Sol. Geralmente chego à academia de humanidades quando ainda há luz e espero até às sete. Dentro do edifício bem iluminado, não há obstáculos para os meus movimentos, mas, mesmo com os óculos, andar sozinho pelas ruas à noite é um fardo. Por volta das dez, quando a aula termina e os alunos se vão embora, chamo um táxi à entrada da academia para me levar a casa.

Crepúsculo

Já experimentaste caminhar ao lusco-fusco da manhã?

Aquelas horas da manhã em que nos movemos através do ar frio, um pé à frente do outro, com uma sensação real de como o corpo humano é quente e macio. As horas da manhã em que uma luz azulada se infiltra nos corpos de todas as coisas materiais, penetrando nos nossos olhos arrancados ao sono, são milagrosas.

No tempo em que vivíamos no apartamento do primeiro andar, no fim da Kriegkstrasse, as primeiras horas da madrugada encontravam-me inevitavelmente a passear sozinho pelas ruelas. Quando regressava a casa, por volta da hora em que a tonalidade azul se dissipava do ar, tu e os nossos pais ainda estavam a dormir. Sentindo o impulso de iluminar o interior da casa, que estava mais escuro do que as ruas lá fora, acendia o candeeiro de lâmpada fosca e, esfomeado, avançava para o frigorífico. Pegava num punhado de nozes e metia-as na boca, uma a uma, enquanto ia em bicos de pés para o meu quarto.

Agora, tudo isso se tornou impossível para mim – porque só posso deslocar-me à vontade nas alturas do dia em que há luz suficiente, em locais com bastante luz. E só posso imaginar: sair da casa que agora alugo por volta do nascer do Sol, passar pelas ruas escuras, sem veículos nem peões; o meu corpo, caminhando sem parar até chegar à casa de Suyuri, onde há tantos anos vivíamos.

O Sol ainda não tinha nascido.

Alguém entrou no meu quarto, tocou-me no ombro e entregou-me uma carta. Depois de esfregar os olhos, de me levantar e de agradecer, abri o envelope, que estava completamente em branco, e lá dentro havia uma única folha de papel branco como a neve, cuidadosamente dobrada duas vezes. Desdobrando-a, percebi, tateando o papel, que a carta estava escrita em braille.

Comecei a percorrer cautelosamente as frases, linha por linha, até chegar ao fim. Não compreendi nada. Nem sequer consegui perceber se estava escrito em braille coreano ou noutro alfabeto braille. Só então me ocorreu que nunca tinha aprendido braille.

Pousei a carta, anónima e insondável, sobre o joelho; talvez tenha tremido um pouco. Que resposta deveria eu dar ao mensageiro? Não reconhecia o rosto da pessoa que me tinha entregado a carta e que permanecia de pé junto à minha almofada.

Olhei para cima e, ao fazê-lo, pensei que tinha acordado de um sonho com a carta. Mas ainda estava a sonhar. Não havia ninguém no quarto. Como se tivesse voltado a uma das manhãs da minha infância, todos os objetos entravam no meu campo de visão com cores e formas nítidas. A janela encontrava-se aberta. O cortinado azul-escuro agitou-se um pouco, como se houvesse uma brisa. O ar no quarto tremeluziu nitidamente, como se contivesse minúsculas esferas de vidro. Reparei que inúmeras gotas de água se acumulavam na tinta azul-clara da parede. Ao ver as gotas cintilantes que se tinham infiltrado na superfície da parede, pensei: estará a chover lá fora? Porque é que está tudo tão brilhante?

No momento em que me apercebo de que estive a dormir, de que apenas sonhei que tinha os olhos abertos, não sinto qualquer dor. Não tenho qualquer sentimento de perda ou resignação. À medida que o sono se vai dissipando lentamente do meu corpo, afasto-me apenas do sonho. Limito-me a olhar para o teto indistinto, com os olhos finalmente abertos, e para os contornos desfeitos dos objetos que me rodeiam. Confirmo simplesmente que não existe nenhum mundo exterior para o qual eu possa mais uma vez escapar deste sonho.

***

O homem dá um passo para seguir a mulher, mas para quando ouve um ppi-i ppi-i. Olha para o fundo das escadas e o objeto negro que estava imóvel salta dois ou três degraus da cave. Aponta a lanterna, mas ele encolhe-se de novo e fica imóvel, como se estivesse morto. Só então é que percebe que se trata de um pássaro.

– Sai daí. Não devias estar aqui.

A sua voz ecoa no corredor escuro. Ele volta a cabeça e olha para as árvores em frente da entrada. Está a escurecer rapidamente e os contornos dos troncos e dos ramos parecem agora quase negros.

Hesita, abre a mala e tira um livro grosso. Enrola-o, segura-o com uma mão e, depois, com a outra, acende a lanterna e desce as escadas com cuidado. Não tenciona descer mais de três degraus. O pássaro continua a não se mexer nem um milímetro. Inclina-se para o orientar na direção certa com a ajuda do livro, mas o pássaro voa de repente para ele e dá um pio agudo. Tentando evitar que o pássaro choque com a sua cara, desequilibra-se nas escadas. Deixa cair a lanterna. O pássaro bate com a cabeça na parede, no corrimão. Voa de novo contra ele. Os óculos caem-lhe. Ao ouvir um som de esvoaçar mesmo atrás da orelha, envolve a cara com os braços e cambaleia. Duas, três vezes, pisa os óculos e parte as lentes. Desviados de debaixo dos pés, estes caem para o fundo das escadas. Batendo as asas com toda a força, o pássaro dirige-se para as portas de vidro. Bate com a cabeça contra a parede de cimento, contra as caixas de correio em estanho.

Ele está sentado nas escadas escuras. Está tudo negro, esmagado. Tateia as escadas com as mãos trémulas, à procura dos óculos. Muito abaixo dele, não sabe até que ponto, a lanterna emite um halo de luz nebuloso.

– Está aí alguém?

A sua voz está rouca e não sai bem.

– Está aí alguém?

Aproxima o relógio de pulso dos olhos para ver os ponteiros luminosos amarelo-esverdeados. Quase não consegue distingui-los. Devem ser oito e um quarto. É a última semana de julho, a quinta-feira que antecede o pico das férias de verão. A aula de sexta-feira foi cancelada, e a administrativa em part-time disse que deixaria a porta da sala aberta e partiria mais cedo para a sua cidade natal. O homem de meia-idade com o emprego das nove às seis tinha-o avisado com antecedência de que faltaria hoje às aulas. O que significa que só a mulher, o aluno de pós-graduação e o estudante de Filosofia estariam naquele momento na sala do segundo andar. A mulher não pode ajudá-lo. Os outros dois são do tipo que espera pacientemente durante uma boa meia hora que o professor apareça, conversando sobre isto e aquilo.
Começa a tatear as escadas com as duas mãos. Depois de ter apalpado todo um degrau, desce para o seguinte, ainda sentado. Por sorte, os seus dedos encontram a mala, não muito longe dali. Abre o fecho da frente, remexe no interior e descobre que se esqueceu do telemóvel. Naquela tarde, uma carta que enviara para a Alemanha um mês antes tinha sido devolvida e, apesar de só se ter distraído por um momento ao pô-la em cima da secretária, deixando os seus pensamentos vaguearem, isso tinha-o feito chegar atrasado. Não se lembra de ter pegado no telemóvel quando saiu à pressa, depois de ter feito a barba rapidamente.

Após pôr a mala a tiracolo, para que não voltasse a cair, recomeça a tatear as escadas. Só sente sujidade e pó, e pequenos fragmentos duros de coisas que não consegue identificar. Sempre que encontra alguns fragmentos pontiagudos, passa a mão por essa zona, mas não tem a certeza se é vidro das suas lentes.

Com a ajuda das mãos e do rabo, desce em direção ao centro do que parece ser uma poça de luz difusa no fundo das escadas. Antes de mais nada, precisa de deitar a mão àquela lanterna. Quando as palmas das mãos raspam na escada, geme. Encontrou os óculos. Estão completamente partidos. Ao sentir o sangue quente a escorrer com força da ponta da mão direita, morde a parte de dentro do lábio inferior. Passa a mão esquerda, que não está ferida, por cada milímetro das armações deformadas e pelos espaços vazios onde dantes estavam as lentes partidas.

Quanto tempo é que já passou?

Não ouve sinal de ninguém.

Quer tenha voado para fora das portas há muito tempo, quer tenha morrido por ter batido tantas vezes com a cabeça, até o pássaro está em silêncio.

Numa noite tão calma como aquela, não seria capaz de ouvir, mesmo que vagamente, os dois alunos a falar, especialmente a voz alta e sonante do aluno de pós-graduação?

Se eles não apareceram, isso significa que a única pessoa na sala de aula do segundo andar é a mulher.

Pensa nela sentada em silêncio na sala de aula vazia, e fecha os olhos com força. A poça de luz desaparece, mas a escuridão que tremeluz e oscila por detrás das suas pálpebras é quase a mesma de quando tinha os olhos abertos.

Não pode pedir ajuda à mulher.

A mulher não ouve.

Acaba por abrir os olhos. Passa a mão esquerda pelo degrau seguinte, preparando-se para se baixar ainda mais em direção à luz. Nesse momento, ouve passos no patamar do andar de cima.

Fazendo um esforço por manter as mãos longe do vidro partido, desta vez começa a subir, vacilante, apoiado nas mãos e nos joelhos. Tem a certeza. São os mesmos passos de antes. Bate no corrimão de metal com o punho. Balança a mala pesada contra ele uma e outra vez. Se ela não consegue ouvir, talvez sinta aquelas vibrações.

– Preciso de ajuda – grita, apesar de estar convencido de que é inútil. Por fim, o som dos passos aproxima-se das escadas para a cave.

Não consegue identificar a escuridão que se move, a escuridão que se sobrepõe à escuridão. Só consegue sentir que os passos pararam algures por perto, que há o som ténue de alguém a respirar, que a pessoa se aproxima. Abre os olhos o mais possível e olha na direção do som.

***

– Consegue ouvir-me?

Não há mais ninguém lá em cima?

Os meus óculos estão partidos. A minha visão é muito má.

Importa-se de chamar alguém?

Preciso de apanhar um táxi, antes que a ótica feche.»

– Consegue ouvir-me?

Sente um leve aroma a maçã. Duas mãos frias e ágeis deslizam-lhe por baixo das axilas. Essas mãos ajudam-no a pôr-se de pé. Ele esforça-se por pisar com segurança o chão que não consegue ver. Apoiando-se nos braços de uma pessoa que não consegue ver, sobe as escadas, um degrau de cada vez. Cada vez que se desequilibra, os braços que o apoiam recuperam a força.

A luminosidade da escuridão está a mudar. Agora consegue ver que as escadas acabaram e que estão a aproximar-se da entrada principal, onde as luzes se encontram acesas. Os contornos das coisas reaparecem, ténues e negros. O cinzento que ele adivinha serem as caixas de correio, a parte branca da parede, a escuridão avassaladora que deve ser o que está do lado de fora das portas duplas.

A mulher tem um braço nas costas dele; a outra mão segura-lhe o pulso. Sente a brisa húmida. Estão em frente às portas de vidro abertas. Adivinham-se vagamente os contornos do rosto e do braço da mulher. Ele limpa descuidadamente a mão que está a sangrar à camisa. Os óculos partidos e deformados que tem estado a segurar durante todo este tempo caem-lhe aos pés. Será que as manchas vermelhas que se materializam continuamente ali em baixo são sangue dele? Inclina-se para pegar nos óculos. Não consegue alcançá-los. Humedecendo os lábios secos com a ponta da língua, diz à mulher:

– A minha carteira está no meu saco. Está lá dinheiro suficiente para o táxi. Se formos ao centro da cidade, podemos encontrar um oculista. Preciso de uns óculos novos.

***

– Na academia, não sabem que a minha visão é assim tão má. Não era estritamente necessário que eu os informasse, portanto nunca disse nada. E, por isso…

Ele interrompe o próprio discurso. Ela olha para o poste do lado de fora da janela escura. Os cabos pretos densamente emaranhados mantêm a sua paz aparente, escondendo a corrente de alta tensão que os atravessa. Provavelmente, ele queria dizer: e, por isso, agradecia que não contasse a ninguém. Apercebendo-se logo de que era um pedido inútil para lhe fazer.

– Até agora, tenho conseguido aguentar-me de uma forma ou de outra, desde que tenha os meus óculos.

O que está para vir é mais incerto.

Ela sente que as pausas dele e o estridor dos insetos formam uma sequência sincopada delicada. Ppirrk, ppirk, um som agudo, como uma nota alta arrastada por um arco inexperiente, segue-se à voz dele. Agora, volta a instalar-se um silêncio abrupto e, desta vez, a nota trémula da corda é a primeira a soar.

– Quando percebi que a minha visão iria piorar significativamente, perguntei à minha mãe se tudo à minha volta iria ficar escuro como breu…

Quando, na verdade, devia ter perguntado ao meu pai, pois era do lado dele que a visão era má. Pai, avô e bisavô, todos.

Mas o meu pai era um homem indiferente.

E a minha mãe era alguém que se esforçava por responder a qualquer pergunta o melhor que sabia.»

– E a minha mãe disse-me que não, que ia ser ao mesmo tempo claro e escuro. Que ia ficar tudo muito enevoado.

Eu conseguia adivinhar como seria, porque, se fechasse o olho direito, o que eu via com o meu olho esquerdo mau já estava bastante desfocado.

A minha irmã mais nova ouviu aquilo e correu para a cozinha.

Procurou no armário um saco de plástico translúcido e encostou-o aos olhos.

E disse: “Bem, ali está o sofá e ali está a estante.”

“Este é branco e este é cor de laranja.”

“Olha, consigo andar por aí sem tropeçar em nada.”

A nossa mãe arrancou o saco de plástico das mãos da minha irmã fascinada, com um olhar fulminante.

– A nossa mãe era rígida e intimidante.

Não admitia que ninguém me provocasse por causa da minha visão.

Mas a minha irmã mais nova tinha ficado verdadeiramente aliviada por mim naquele momento.

Tinha acabado de descobrir que o futuro próximo do seu pai e o futuro distante do seu irmão não seriam tão terríveis como ela pensava.

Mas a minha mãe era uma pessoa demasiado sisuda para compreender isso.

***

É sacudido do sono. Senta-se. Apercebe-se de que foi um barulho na porta da frente que o acordou.

A porta destrancada abre-se lentamente. Fica um pouco mais claro nessa direção. Depois volta a escurecer, juntamente com o som da porta a fechar-se. Ouve-se alguém a descalçar os sapatos. Está a chover intensamente, mas do lado de fora da janela está mais claro do que há pouco e, com alguma adivinhação à mistura, consegue distinguir os contornos escuros de uma pessoa. Ao ver a forma escura a aproximar-se, levanta os olhos. Esfrega vigorosamente o rosto com a mão esquerda não ligada, para afastar o sono. Inala o cheiro a sabão que se desprende dos seus cabelos à medida que se aproxima. Arrepia-se, como se de repente tivesse frio. Algo branco emerge da forma negra. Agarra a sua mão esquerda e abre-a. A outra coisa branca estende-se lentamente e escreve-lhe na palma.

Está na hora.

O oculista já deve estar aberto.

Ele lê a frase através do tato.

Tem consigo uma receita?

Ele acena com a cabeça.

***

Para encontrar o ponto mais macio do rosto dela, fecha os olhos e apalpa-lhe o rosto com o seu. Os lábios frios dela encontram a sua face. Uma fotografia que tinha visto há muito tempo no quarto de Joachim, uma fotografia do Sol, surge por detrás das suas pálpebras fechadas. A superfície é uma enorme chama ardente, e sobre ela há manchas escuras que se movem. Manchas solares, que explodem e se deslocam pela superfície do Sol, atingindo elas próprias milhares de graus Celsius. Se as víssemos de perto, através do negativo de uma fotografia, por mais espesso que fosse, as nossas íris rebentariam.

Ele beija-lhe a boca sem abrir os olhos. Beija-lhe os cabelos húmidos sobre as orelhas, as sobrancelhas. Como uma resposta ténue ouvida ao longe, as pontas dos dedos frios dela passam sobre as sobrancelhas dele, depois desaparecem. Tocam as extremidades frias da orelha, a cicatriz que vai do canto do olho à boca, depois desaparecem. Manchas solares explodem, silenciosas, ao longe. Corações e lábios tocam-se através de uma linha divisória, ao mesmo tempo unidos e eternamente separados.

FIM


 Lições de grego

O Prémio Nobel da Literatura de 2024 foi atribuído à escritora sul-coreana Han Kang, cuja obra já se encontra publicada em mais de 30 línguas. O Comité Nobel distinguiu Han Kang «pela sua prosa poética intensa que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana» e pela sua «consciência única das ligações entre o corpo e a alma, os vivos e os mortos», inovadora na prosa contemporânea, através do seu «estilo poético e experimental».

No romance
Lições de Grego assistimos à história de um professor de Grego que está a perder a visão e de uma aluna que está a perder a voz. Ambos descobrem, porém, que existe uma dor ainda mais funda a uni-los: numa questão de meses, ela perdeu a mãe e a batalha pela custódia do filho; já ele ganhou o medo de perder a autonomia e o incómodo de, por ter crescido entre a Coreia do Sul e a Alemanha, estar sempre dividido entre duas culturas e duas línguas tão diferentes. Lições de Grego fala de um homem e de uma mulher comuns que se conhecem num momento de angústia privada - a perspetiva da cegueira dele encontra-se com o silêncio dela. Mas são justamente estes handicaps que os atraem um para o outro, levando-os a encontrar uma saída da escuridão para a luz, do silêncio para a expressão. Com uma estrutura em espiral e a sensibilidade a que Han Kang já nos habituou, o presente romance é como uma terna carta de amor à intimidade humana, um texto que desperta os nossos sentidos e reflete sobre a essência do que realmente significa estar vivo.


ϟ


Lições de Grego
-excerto-
Han Kang
1.ª publicação: 2011
editor: Dom Quixote (2023)

 


Δ

6.Mar.2025
Publicado por MJA