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excerto

O Cego - Werner Heuser, 1954
Era uma vez um homem chamado Albinus, que vivia em Berlim, Alemanha. Era rico,
respeitável, feliz. Um dia abandonou a esposa por uma amante jovem. Amava; não
era amado — e sua vida terminou em desastre.
Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste
ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do
que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão
resumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos.
***
Embora mergulhado nas profundezas de uma noite que imitava a normalidade
brilhante da luz do dia, Albinus tinha com frequência dado alguns passeios, com passos lamentavelmente hesitantes, pelas áleas
do jardim do hospital. Apesar disto demonstrou estar muito mal preparado para a viagem a
Zurique. Na estação ferroviária, sua cabeça pôs-se a andar à roda — e não existe
sensação mais estranha nem mais perturbadora do que aquela que um cego
experimenta quando sua cabeça se põe a rodar. Aturdiam-no todos aqueles sons,
passos, vozes, rodas — coisas perversamente estrídulas e poderosas que pareciam,
todas elas, correr de encontro a ele, de modo que cada segundo era cheio do medo
de que pudesse bater contra alguma coisa, embora Margot o estivesse guiando.
No trem, sentiu a garganta intumescer-se de náusea, pois que não podia
harmonizar o barulho e o oscilar do vagão com qualquer movimento para a frente,
por mais que se esforçasse por imaginar a paisagem que, certamente, passava
veloz. E em Zurique, novamente, precisou abrir caminho entre pessoas e objetos
invisíveis — obstáculos e ângulos que continham o fôlego antes de atingi-lo.
— Oh, vamos, vamos, não tenha medo — disse Margot, irritada. — Eu o estou
conduzindo. Agora, pare. Vamos entrar no táxi. Agora, era o pé. Será que você
não pode ser um pouco menos tímido? Francamente! Você parece um menino de dois
anos.
O professor, oculista famoso, examinou detidamente os olhos de Albinus. Tinha
voz suave e melíflua, de modo que Albinus o imaginou como sendo um velho de cara
raspada e clerical, embora, na realidade, o médico ainda fosse bastante jovem e
usasse um bigode eriçado. Repetiu o que Albinus, de um modo geral, já sabia: que
os nervos ópticos tinham sido atingidos em seu ponto de interseção no cérebro.
Que a contusão talvez pudesse advir completa atrofia — sendo iguais as
possibilidades. Mas, de qualquer modo, dada a condição atual do paciente, a
coisa mais importante seria um repouso completo. Um sanatório nas montanhas
seria ótimo.
— E depois veremos — ajuntou o professor..
— Veremos? — repetiu Albinus, com um sorriso melancólico.
A idéia de sanatório não seduziu nada Margot. Um velho casal de irlandeses, que
ficaram conhecendo no hotel, ofereceu-se para alugar-lhes um pequeno chalé
situado bem acima de um lugar elegante de repouso nas montanhas. Ela consultou
Rex e foram juntos (deixando Albinus entregue aos cuidados de uma enfermeira)
ver como era o tal lugar.
Aconteceu que o chalé era bastante simpático: uma casa de campo de dois andares,
com quartos pequenos e asseados e um recipiente. de água benta preso a todas.as
portas.
Rex gostou de sua localização: isolado, bem no alto de uma encosta, em meio de
abetos negros, apenas a um quarto de hora de distância, a pé, da aldeia e dos
hotéis.
Escolheu para si o quarto mais ensolarado do andar superior. Contrataram uma
cozinheira na aldeia. Rex falou-lhe de maneira a impressioná-la: — Estamos lhe
oferecendo um ordenado assim tão alto porque a senhora ficará a serviço de um
homem que ficou cego em conseqüência de um violento choque mental. Eu sou o
médico que está tratando dele, mas, em vista de seu estado de espírito, ele não
deve saber que há um médico morando na casa, além de sua sobrinha. Se, por
conseguinte, a senhora divulgar o mínimo que seja, direta ou indiretamente, a
respeito de minha presença...
dirigindo-se a mim, por exemplo, de modo que ele possa ouvir, a senhora será
responsável, perante a lei, por todas as conseqüências que possam advir da
interrupção de sua convalescença, e tal conduta, creio eu, é punida severamente
na Suíça. Aconselho-a, ainda, a que não se aproxime de meu paciente, nem se
entregue a qualquer espécie de conversa com ele. Ele é sujeito a violentos
ataques de loucura. Talvez lhe interesse saber que ele já feriu gravemente uma
mulher de certa idade (muito parecida com a senhora, sob muitos aspectos, embora
não tão simpática), pisando-lhe o rosto. Eu não gostaria, de modo algum, que
isso tornasse a acontecer. E, o que é ainda mais importante, se a senhora der
com a língua nos dentes aí na aldeia, fazendo com que as pessoas fiquem
curiosas, meu paciente bem poderá, na situação em que se encontra, quebrar tudo
que existe na casa, a começar pela sua cabeça.
Entendeu bem?
A mulher ficou tão aterrorizada, que quase recusou o pagamento extraordinário
que lhe era oferecido, e só decidiu aceitar o emprego quando Rex lhe assegurou
que ela não veria o cego, o qual seria servido pela sobrinha, e que ele era
bastante pacífico quando não o aborreciam. Também combinou com ela que nem o
entregador de carne nem a lavadeira deveriam jamais penetrar na casa, Isso
feito, Margot voltou ao sanatório, a fim de apanhar Albinus, enquanto Rex se
instalava na casa. Trouxe consigo toda a bagagem, resolveu de que modo os
quartos deviam ser distribuídos e fez com que todos os objetos supérfluos e
quebráveis fossem removidos. Depois, dirigiu-se ao seu quarto e, assobiando
desafinadamente, pregou na parede alguns desenhos a nanquim, bastante
impróprios.
Cerca das cinco horas, apanhou um binóculo e viu ao longe, bem em baixo da
montanha, um automóvel de aluguel que se aproximava. Margot, numa blusa de um
vermelho vivo, saltou do carro e ajudou Albinus a descer. Ombros encovados,
óculos escuros, ele parecia uma coruja. O carro fez a volta e desapareceu atrás
de um bosquete espesso.
Margot tomou pelo braço o homem humilde, desajeitado, que subiu o resto do
caminho segurando a bengala diante de si. Desapareceram atrás de uns abetos,
reapareceram, tornaram a sumir e, por fim, surgiram no pequeno terraço do
jardim, onde a cozinheira, com ar sombrio (que, diga-se de passagem, já se
achava de todo coração dedicada a Rex), lhes foi ao encontro e, procurando não
olhar o lunático perigoso, apanhou a maleta que Margot trazia.
Enquanto isso, Rex, debruçado sobre o parapeito da janela, saudava Margot com
gestos cômicos: levou a mão ao coração e, depois, abriu bruscamente os braços
(numa imitação de Punch), tudo isso, naturalmente, numa exibição muda, embora,
em circunstâncias mais favoráveis, pudesse ter relinchado de maneira admirável.
Margot sorriu-lhe e entrou na casa, ainda conduzindo Albinus pelo braço.
— Conduza-me a todos os cômodos e descreva-me tudo — disse Albinus.
Na verdade, não estava interessado em conhecer a casa, mas pensou que isso daria
prazer a Margot: ela adorava mudar de casa.
— Uma pequena sala de jantar, uma saleta de estar, um pequeno escritório —
explicava-lhe ela, enquanto o guiava pelo andar térreo.
Albinus tocava nos móveis, dava palmadinhas nos diversos objetos, como se fossem
cabeças de crianças estranhas, e procurava orientar-se.
— Então a janela é ali — disse ele, apontando confiante para uma parede nua.
Colidiu, penosamente, com a ponta da mesa e fingiu que o fizera propositalmente
— apalpando-lhe a superfície, como se quisesse tomar-lhe as medidas.
Depois subiram, lado a lado, a escada de madeira, rangente. Em cima, no último
degrau, estava sentado Rex, a contorcer-se de riso abafado. Margot agitou o dedo
em sua direção; ele, cautelosamente, pôs-se de pé e recuou na ponta dos pés.
Isso, na verdade, era desnecessário, pois que a escada rangia
ensurdecedora-mente sob os passos do cego.
Dobraram para o corredor. Rex, que recuara até à porta de seu quarto, abaixou-se
várias vezes, comprimindo a boca com a mão. Margot abanou a cabeça, zangada:
brincadeira perigosa. Ele, pulando de um lado para outro, estava agindo como um
colegial.
— Este é o meu quarto — disse Margot. — E este outro é o seu.
— Por que não ocupamos apenas um? — indagou ele, expectante.
— Oh, Albert! — Você bem sabe o que disse o médico.
Depois de percorrer todos os cômodos (salvo, é claro, o quarto de Rex), Albinus
tentou andar pela casa sozinho, apenas para mostrar a Margot quão
esplendidamente ela lhe permitira ver tudo. Mas quase imediatamente perdeu o
rumo, foi de encontro a uma parede, sorriu como quem se desculpa, quase
quebrando, logo a seguir, uma jarra. Extraviou-se e por pouco não penetrou no
quarto do fundo (do qual Rex se apropriara e no qual só se podia entrar vindo do
corredor), mas estava já tão confuso que julgou que havia saído do quarto de
banho.
— Cuidado, esse é um quarto de despejo — disse-lhe Margot. — Você vai acabar
quebrando a cabeça. Agora, volte e procure dirigir-se diretamente para a cama.
Na verdade, não sei se andar assim de um lado para outro é bom para você. Não
pense que eu deixarei que você continue a realizar essas explorações pela casa;
hoje é apenas uma exceção.
Ele, porém, já se sentia completamente exausto. Margot meteu-o na cama e
levou-lhe o jantar. Depois que ele adormeceu, juntou-se a Rex. Como ainda não
conheciam bem a acústica da casa, falavam em sussurros. Mas bem podiam ter
falado em voz alta, pois que o quarto de Albinus ficava bem distante.
***
A negra e impenetrável mortalha em que Albinus agora vivia, infundia-lhe uma
certa austeridade e nobreza nos pensamentos e sentimentos. As trevas o separavam
de sua vida anterior, subitamente extinta em sua curva mais acentuada. Cenas
evocadas povoavam-lhe a galeria de quadros do espírito: Margot, num avental
bordado, a descerrar uma cortina roxa (como ansiava, agora, por aquela cor
desbotada!); Margot, debaixo de um guarda-chuva molhado, a caminhar por entre
poças d’água purpurinas; Margot nua diante do espelho do guarda-roupa, roendo
uma rosca amarela; Margot, em seu maiô brilhante, a lançar uma bola, Margot num
vestido de noite, prateado, com os ombros bronzeados de sol.
Depois, pensou em sua própria vida, e sua vida com ela parecia agora ter
mergulhado numa luz pálida e suave, em que só ocasionalmente algo emergia de sua
bruma leitosa: os seus cabelos claros à luz de uma lâmpada, a claridade sobre a
moldura de um quadro, Irma a brincar com bolinhas de gude (um arco-íris em cada
uma delas) e, depois, novamente, bruma... E os movimentos tranqüilos, quase
flutuantes, de Elisabeth.
Tudo — mesmo o que havia de mais triste e de mais vergonhoso em sua vida passada
— estava sobrecarregado com a sedução enganadora das cores. Aterrorizava-o
pensar, agora, em quão pouco usava os seus olhos — pois que aquelas cores se
moviam num segundo plano demasiado vago, e seus contornos eram singularmente
imprecisos. Se, por exemplo, evocava uma paisagem em que antes vivera, não
conseguia citar o nome de uma única planta, exceto carvalhos e roseiras; uma
única voz de pássaro, salvo pardais e corvos, e mesmo estes se aproximavam mais
da heráldica do que da natureza. Albinus tinha agora consciência de que, na
verdade, não se extremara muito de certos especialistas de visão estreita dos
quais costumava zombar: do operário que conhece apenas as suas ferramentas, do
virtuoso que não é senão uma acessória extensão carnal de seu violino. A
especialidade de Albinus tinha sido a sua paixão pela arte; sua descoberta mais
brilhante tinha sido Margot.
Mas, agora, tudo o que restava dela era apenas uma voz, um farfalhar de saias e
um perfume; era como se ele houvesse voltado à escuridão daquele cineminha da
qual a arrancara.
Mas nem sempre Albinus podia consolar-se com reflexões estéticas ou morais; nem
sempre conseguia convencer-se de que a cegueira física era visão espiritual; em
vão tentava ele enganar-se com a idéia de que sua vida com Margot era agora mais
feliz, mais profunda e mais pura — e concentrava-se em vão na idéia de sua
comovente dedicação. Claro que era como vente claro que ela era melhor do que a
esposa mais leal... aquela Margot invisível, aquela frieza angélica aquela voz
que lhe pedia para que ele não se ex citasse Mas, logo que lhe segurava as mãos
nas trevas logo que procurava exprimir-lhe sua gratidão, avivava-as subitamente
nele um desejo intenso de vê-la, e todas aquelas reflexões morais se dissipavam.
Rex gostava muito de sentar-se no quarto em companhia de Albinus e observar-lhe
os movimentos. Margot quando se aconchegava ao peito do cego, afastando-lhe o
ombro com a mão, erguia os olhos ao céu comum ar cômico de resignação, ou
mostrava a língua para Albinus — o que era particularmente divertido, em
contraste com a expressão terna e romântica do rosto do cego. Depois,
desvencilhava-se com um movimento ágil e afastava-se para junto de Rex, que, de
calças brancas, o dorso e os pés, de dedos longos, nus, se sentava no parapeito
da janela — pois que adorava queimar as costas ao sol. Albinus reclinava-e na
poltrona, de pijama e robe-de-chambre. O rosto coberto de pêlos eriçados, uma
cicatriz cor de rosa e brilhante na fronte, parecia um convicto barbudo.
— Margot, venha cá — implorou ele, estendendo os braços.
De vez em quando, Rex, que adorava correr perigo, aproximava-se bastante de
Albinus, na ponta dos pés nus, e tocava no cego com a máxima delicadeza. Albinus
lançava um som afetuoso e satisfeito e tentava abraçar a suposta Margot,
enquanto Rex se afastava sem ruído de volta ao parapeito da janela — seu poleiro
habitual.
— Minha querida, venha cá — gemeu Albinus, erguendo-se da poltrona e avançando,
vacilante, em direção dela. Rex, sentado no parapeito da janela, ergueu as
pernas, e Margot gritou com Albinus, declarando que ela o deixaria imediatamente
com uma enfermeira, se ele não fizesse como ela lhe dizia. Albinus arrastou-se
de volta à poltrona, com um sorriso de culpa.
— Está bem, está bem —suspirou. — Leia alguma coisa para mim, O jornal.
Margot tornou a levantar os olhos para o céu.
Rex sentou-se cautelosamente no sofá e tomou Margot no colo. Ela abriu o jornal
e, após dobrá-lo numa página e percorrer as notícias com os olhos, pôs-se a ler
em voz alta.
Albinus, de vez em quando, acenava com a cabeça e, lentamente, consumia cerejas
invisíveis, cuspindo na mão os caroços invisíveis. Rex imitava Margot,
contraindo e distendendo os lábios, como ela fazia quando lia. Ou fingia que ia
deixá-la cair, de modo que, de repente, sua voz falseava e ela precisava
procurar o fim da frase interrompida.
“Sim, talvez seja melhor assim”, refletia Albinus. “Nosso amor, agora, é mais
puro e elevado. Se ela agora continuar em minha companhia, significa que
realmente me ama. Isso é bom, isso é bom. Mas, de repente, pôs-se a soluçar
alto, contorceu as mãos e suplicou que ela o levasse a outro especialista, a um
terceiro, a um quarto... uma operação. .. tortura...
qualquer coisa que pudesse restaurar-lhe a visão.
Rex, com um bocejo silencioso, apanhou um punhado de cerejas na tigela que
estava sobre a mesa e partiu para o jardim.
Durante os primeiros dias de sua vida em comum, Rex e Margot eram bastante
cautelosos, embora se entregassem a vários gracejos inofensivos. Diante da porta
de seu quarto, que dava para o corredor, Rex erguera, para caso de emergência,
uma barricada de malas e caixotes — barricada essa que, à noite, Margot
transpunha. Albinus, porém, após aquele seu primeiro passeio pela casa, não
estava mais interessado em sua topografia, embora já pudesse orientar-se
bastante bem em seu quarto e no escritório.
Margot descrevera-lhe todas as cores — o papel azul das paredes, as venezianas
amarelas — mas, instigada por Rex, mudara todas as cores. O fato de o cego ser
obrigado a imaginar o seu pequeno mundo segundo os matizes prescritos por Rex,
causava a este último requintado prazer.
Em seus próprios aposentos, Albinus tinha quase a impressão de que podia ver os
móveis e os vários objetos, e isso lhe dava uma sensação de segurança. Mas,
quando se achava sentado no jardim, sentia-se cercado por um vasto mundo
desconhecido, pois tudo era demasiado grande, demasiado inconsistente e cheio de
sons, para que lhe permitisse formar uma imagem daquilo que o rodeava. Procurou
aguçar o ouvido e adivinhar os movimentos pelos sons. Tornou-se logo muito
difícil para Rex aproximar-se ou afastar-se sem ser notado. Por mais
silenciosamente que ele passasse, Albinus voltava imediatamente a cabeça em sua
direção e perguntava: — É você, querida?
E ficava aborrecido por ter-se enganado, se Margot lhe respondia de outro canto.
Passavam os dias, e quanto mais Albinus se esforçava por apurar o ouvido, tanto
mais ousados Rex e Margot se tornavam; tinham-se acostumado à cortina de
segurança de sua cegueira e, ao invés de tomar as refeições na cozinha, sob o
olhar de adoração da velha Emilia, como fizera no começo, Rex agora conseguia
sentar-se à mesa com eles. Comia com silenciosa habilidade, jamais tocando no
prato com o garfo ou a faca, a mastigar como num jantar de filme mudo, movendo
as mandíbulas num ritmo perfeito com as de Albinus, ou ao som da voz musical e
animada de Margot, que falava propositalmente muito alto, enquanto os dois
homens mastigavam e engoliam. Certa vez, Rex engasgou. Albinus, a quem Margot
estava servindo uma xi-cara de café, ouviu subitamente, na outra extremidade da
mesa, um som estranho, esquisito. Margot pôs-se logo a falar, mas ele ergueu a
mão: — O que foi isso? O que foi isso?
Rex apanhara o seu prato e afastara-se na ponta dos pés, o guardanapo colado à
boca. Mas, quando saia sorrateiramente pela porta entreaberta, derrubou um
garfo.
Albinus voltou-se em sua cadeira: — O que é isso? Quem está aí?
— Oh, é apenas Emilia. Por que é que você está tão nervoso?
— Mas ela nunca entra aqui.
— Bem, hoje entrou!
— Julguei que eu estivesse começando a ter alucinações auditivas — disse
Albinus.
— Ontem, por exemplo, tive a impressão exata de que alguém andava descalço,
furtivamente, pelo corredor.
— Você ficará maluco, se não tiver cuidado — disse, secamente; Margot.
À tarde, durante a sesta habitual de Albinus, ela, às vezes, saía a passeio em
companhia de Rex. Iam ou correio, apanhar as cartas e os jornais, ou subiam até
a cascata — e, por duas vezes, foram até a um café situado na bela aldeiazinha,
bem abaixo do lugar em que moravam. Certa vez, ao voltar para casa, quando já se
achavam no caminho que conduzia ao chalé, Rex disse: — Aconselho-a a que não
insista em casamento. Receio muito que ele, só porque abandonou a esposa, tenha
passado a encará-la como a uma santa preciosa de vitral. Ele não estaria
interessado em quebrar essa determinada janela de igreja. O plano mais simples e
melhor, é nos apossarmos, aos poucos, de sua fortuna.
— Bem, mas nós já apanhamos uma grande fatia dela, pois não?
— Você precisa fazer com que ele venda os seus quadros e as terras que tem na
Pomerânia — prosseguiu Rex. — Ou, então, uma de suas casas em Berlim. Com um
pouco de astúcia, poderemos consegui-lo. Por enquanto, o livro de cheque
atenderá admiràvelmente ao nosso propósito. Ele assina tudo como uma máquina...
mas logo ficará sem fundos no banco. Precisamos apressar-nos. Seria bom que o
abandonássemos, digamos, este inverno; mas, antes de dar o fora, nós lhe
compraremos um cachorro.., como uma pequena prova de nossa gratidão.
— Não fale assim tão alto — disse Margot. — Já estamos quase chegando ao marco
de pedra.
Esse marco de pedra, grande e cinzento, recoberto de convólvulos, e que tinha o
aspecto de um carneiro, assinalava o limite além do qual era perigoso falar.
Prosseguiram, pois, em silêncio e, após alguns minutos, já se achavam perto do
portão do jardim. Margot riu subitamente e mostrou um esquilo. Rex atirou uma
pedra contra o animal, mas errou o alvo.
— Oh, mate-o... Eles estragam muito as árvores — murmurou Margot.
— Quem estraga as árvores? — perguntou, alto, uma voz.
Era Albinus.
Estava de pé, a oscilar ligeiramente, em meio a uns arbustos de silindra, sobre
um pequeno degrau de pedra que conduzia do caminho ao gramado.
— Margot, com quem você está falando aí em baixo? — prosseguiu ele.
De repente, tropeçou, derrubou a bengala e sentou-se pesadamente no degrau.
— Como é que você se atreve a andar tão longe sozinho? — exclamou ela,
segurando-o rudemente e ajudando-o a levantar-se.
Ficaram-lhe grudados às mãos alguns pedacinhos de cascalho; ele estendeu os
dedos e procurou limpá-las como o poderia ter feito uma criança.
— Eu queria apanhar um esquilo — disse Margot, metendo-lhe a bengala na mão. —
Que é que você pensou que eu estava fazendo?
— Julguei... — começou Albinus. — Quem está aí? — gritou, quase perdendo de novo
o equilíbrio ao lançar-se na direção de Rex, que caminhava cautelosamente pelo
gramado.
— Não há ninguém aqui — informou Margot. — Estou sozinha! Por que é que você
está nesse estado?
Sentia que estava perdendo a paciência.
— Leve-me para dentro — pediu ele, quase em lágrimas. — Há muitos ruídos por
aqui. Árvores, vento, esquilos e não sei o que mais. Não sei o que está
acontecendo ao meu redor... É tudo muito barulhento.
— Doravante, você ficará fechado — disse Margot, arrastando-o para a casa.
Depois, como sempre, o sol se pôs atrás da cordilheira próxima. Como sempre,
Margot e Rex sentaram-se lado a lado no sofá, a fumar; poucos passos além,
Albinus se achava sentado em sua poltrona de couro, fitando-os fixamente com
seus olhos azuis e turvos. A seu pedido, Margot falou-lhe de sua infância. De
certo modo, ela gostava de fazê-lo. Albinus recolheu-se cedo, subindo lentamente
a escada, a sentir os degraus com os pés e a ponta da bengala.
No meio da noite, despertou e passou os dedos pelo mostrador de um despertador
sem vidro, até encontrar a posição dos ponteiros. Era cerca de uma e meia.
Achava-se tomado de estranha inquietude. Ultimamente algo o impedia de
concentrar-se nos graves e belos pensamentos, os únicos capazes de protegê-lo
contra os horrores da cegueira.
Deitado, pensou: “Que será isso? Elizabeth? Não, ela está muito longe. Está
muito longe, lá em baixo, em algum lugar. Urna sombra querida, pálida, triste,
que não deverei jamais perturbar. Margot? Não. Este estado de coisas de irmão e
irmã é apeias por enquanto.
O que é, então?”
Sem saber bem o que desejava, levantou-se da cama e caminhou, às apalpadelas,
até a porta do quarto de Margot (seu quarto não tinha outra saída). Ela sempre o
fechava à noite, deixando-o, assim, preso.
“Como ela é sensata”, pensou Albinus com ternura.
Colou o ouvido ao buraco da. fechadura, para ouvir-lhe a respiração enquanto
dormia. Mas nada ouviu.
Quieta como um camundongo , murmurou. Se eu pudesse apenas acariciar-lhe a
cabeça e, depois, ir embora. Talvez ela tivesse esquecido de fechar a porta Sem
muita esperança, girou o trinco. Não, não esquecera.
De repente, lembrou-se de como, numa abafada noite de verão, quando ele era
apenas um rapazinho espinhento, caminhara pela cornija de uma casa junto ao
Reno, indo de seu quarto ao da empregada... simplesmente para constatar que ela
não estava dormindo sozinha... Mas, naquele tempo, ele era leve e ágil; naquele
tempo, podia enxergar.
“Ainda assim, por que não tentar?”, pensou com ousada melancolia. “E se eu cair
e quebrar o pescoço, que importa?”.
Primeiro, procurou a bengala; depois, debruçou-se sobre a janela e apalpou a
cornija, à esquerda, junto à janela do quarto contíguo. A janela estava aberta e
a vidraça retiniu, quando ele a tocou com a bengala.
“Como ela dorme profundamente!”, pensou. “Deve ser exaustivo cuidar de mim o dia
inteiro”.
Ao afastar a bengala, esta bateu em algo, escapou-lhe da mão e caiu ao chão,
produzindo um ligeiro baque.
Albinus agarrou-se ao marco da janela, subiu ao parapeito, caminhou para a
esquerda ao longo da cornija, segurando-se ao que parecia ser um cano de água,
frio e redondo, e agarrou-se de novo ao parapeito da janela do quarto contíguo.
“Como foi simples!”, refletiu, sem orgulho.
— Alô, Margot! — disse baixinho, procurando meter-se pela janela aberta.
Escorregou e quase caiu para trás, na abstração de um jardim. Seu coração batia
violentamente. Contorceu-se sobre o parapeito, e um objeto pesado, ao qual foi
de encontro, caiu ruidosamente ao chão.
Ficou imóvel, o rosto banhado de suor. Sentiu na mão algo pegajoso. (Era a
resina que transudava das taboas de pinho de que a casa era construída).
— Margot, querida — exclamou alegremente.
Silêncio. Encontrou a cama, sobre a qual se distendia uma coberta rendada... Uma
cama em que ninguém dormira.
Albinus sentou-se nela e pôs-se a refletir. Se a cama estivesse desarrumada e
quente, seria fácil compreender: Margot voltaria dentro de um momento.
Passado um momento, Albinus saiu para o corredor (com muita dificuldade, devido
à ausência da bengala) e ficou a escutar. Julgou ouvir, algures, um som abafado
— algo assim entre um rangido e sussurrar de vozes. Aquilo começava a ser
misterioso.
— Margot, onde está você? — gritou.
Tudo continuou em silêncio. Depois, uma porta se abriu.
— Margot, Margot — repetiu ele, seguindo, às apalpadelas, pelo corredor.
— Estou aqui — respondeu, calmamente, a voz de Margot.
— Que aconteceu, Margot? Você não se deitou?
Albinus foi de encontro a ela no corredor escuro e, ao tocar-lhe o corpo, sentiu
que Margot estava despida.
— Eu estava deitada ao sol — explicou Margot. — Como sempre faço pela manhã.
— Mas agora é noite! — exclamou ele, respirando pesadamente. — Não posso
compreender. Há alguma coisa errada. Eu apalpei os ponteiros do despertador. É
urna e meia da madrugada.
— Tolice. São seis e meia da manhã e está fazendo uma maravilhosa manhã de sol.
Seu relógio deve estar errado. Você mexe demais nos ponteiros. Mas diga-me uma
coisa: como foi que você saiu de seu quarto?
— Margot, já é manhã, mesmo? Você está me dizendo a verdade?
Subitamente, ela se aproximou muito dele, nas pontas dos pés, e passou-lhe os
braços pelo pescoço, como fazia em outros tempos.
— Embora seja dia — disse ela, baixinho — se você quiser, se você quiser,
querido...
Como uma grande exceção...
Ela não desejava .muito fazê-lo, mas era a única maneira. Agora, Albinus já não
podia mais perceber que o ar estava ainda frio e que nenhum pássaro cantava pois
que sentia apenas uma coisa — uma grande, impetuosa alegria. Depois, mergulhou
num sono profundo, profundo, e dormiu até o meio-dia. Quando acordou, Margot
repreendeu-o pela sua façanha e, mais furiosa ainda ao ver-lhe o sorriso
melancólico, deu-lhe um tapa no rosto.
Durante todo o dia, Albinus permaneceu sentado na sala de estar, pensando
naquela manhã feliz e nos muitos dias que transcorreriam sem que aquela
felicidade se repetisse.
Súbito, ouviu distintamente alguém tossir de leve. Não podia ser Margot. Sabia
que ela estava na cozinha.
— Quem está aí? — indagou.
Nenhuma resposta.
“Outra alucinação!”, pensou, cansado, Albinus, compreendendo, de repente, o que
o preocupara tanto durante a noite... Sim, sim... eram os ruídos que ele, as
vezes, ouvia.
— Diga-me uma coisa, Margot — perguntou ele, quando Margot voltou. — Além de
Emília, não há mais ninguém na casa? Você tem certeza?
— Você está maluco! — respondeu ela, áspera.
Mas, uma vez despertada, aquela suspeita não lhe dava repouso. Ficava o dia todo
sentado, soturno, os ouvidos atentos.
Rex divertia-se muito com aquilo e, embora Margot lhe houvesse pedido que fosse
mais prudente, não dera atenção alguma à sua advertência. Certa vez, mesmo,
quando se achava apenas a dois passos de Albinus, pôs-se a assobiar, habilmente,
como um papafigo.
Margot teve de explicar que o pássaro pousara na janela e lá estava cantando.
— Espante-o! — ordenou Albinus, ríspido.
— Psiu, psiu... — fez Margot, levando a mão aos lábios grossos de Rex.
— Sabe de uma coisa? — disse Albinus, poucos dias depois. — Eu gostaria de ter
uma conversa com Emília. Gosto de seus pudins.
— Isso está absolutamente fora de cogitação — respondeu Margot. — Ela é muito
surda e tem um medo terrível de você.
Albinus ficou alguns minutos a meditar profundamente.
— Impossível — disse, depois, em voz alta.
— O que é que é impossível, Albert?
— Oh, nada — murmurou ele. — Nada.
E, logo depois:
— Sabe, Margot? Preciso muito fazer a barba. Diga ao barbeiro da aldeia que
venha cá.
— Isso é desnecessário — respondeu Margot. — Você fica muito bem de barba.
Albinus teve a impressão de que alguém — não Margot, mas alguém a seu lado — riu
baixinho.
***
Um homem mostrou a Paul, no escritório, o Berliner Zeitung, que estampava breve
descrição do acidente, e ele voltou imediatamente para casa, receoso de que
Elizabeth também já houvesse lido. Mas ela não o tinha feito, embora um exemplar
desse jornal (que eles não costumavam ler) se encontrasse, curiosamente, na
casa. Paul, no mesmo dia, telegrafou para a delegacia de polícia de Grasse e,
eventualmente, conseguiu entrar em contacto com o méd4co do hospital, que o
informou de que Albinus se achava fora de perigo, mas completamente cego. Com
muito tacto, Paul transmitiu a notícia a Elisabeth.
Depois, devido ao simples fato de que tanto ele como o cunhado tinham depósitos
no mesmo banco, descobriu o endereço de Albinus na Suiça. O gerente, um seu
velho companheiro de negócios, mostrou-lhe os cheques que de lá chegavam sem
cessar, com uma espécie de apressada regularidade, e Paul ficou surpreso diante
da quantia que Albinus já havia sacado. A assinatura estava em ordem, embora
fosse muito trêmula nas curvas e descaísse patèticamente, mas as cifras estavam
escritas numa outra caligrafia — uma caligrafia masculina e ousada, de traços
nítidos e floreados, e havia em tudo aquilo, de certo modo, um ar de
mistificação. Perguntou a si mesmo se não seria o fato de o cego assinar tudo
conforme lhe diziam, e não o que ele via, que produzia aquela estranha
impressão.
Estranhas, também, as grandes quantias retiradas — como se ele, ou alguma outra
pessoa, estivesse frenèticamente interessada em retirar, o mais depressa
possível, o máximo de dinheiro. E, depois, chegou um cheque sem fundos.
“Há alguma trapaça em tudo isto”, pensou Paul. “Sinto-o em meus ossos. Mas o que
será, exatamente?”
Imaginou Albinus sozinho em companhia de sua perigosa amante, completamente à
sua mercê, na negra casa de sua cegueira.
Transcorreram alguns dias. Paul sentia-se tremendamente inquieto. Não se tratava
apenas do fato de o pobre homem estar a assinar cheques que não podia ver (de
qualquer forma, o dinheiro era dele, e Albinus podia esbanjá-lo consciente ou
inconscientemente...
pois Elisabeth não precisava daquilo e não havia mais necessidade de se pensar
em Irma), mas, sim, o fato de Albinus se encontrar tão completamente desvalido
em meio ao mundo perverso que ele permitira se erguesse em seu derredor.
Certa tarde, ao chegar à casa, Paul encontrou Elisabeth arrumando uma mala de
mão.
— Que é isso? — indagou ele. — Você vai a algum lugar?
— Você é quem vai — respondeu, em voz baixa, Elisabeth.
***
No dia seguinte seguinte, Paul partiu para a Suiça. Em Brigaud, tomou um táxi e,
transcorrida pouco mais de uma hora, chegou à aldeiazinha junto à qual Albinus
estava vivendo. Paul deteve-se diante do edifício dos correios, e uma jovem
funcionária muito loquaz lhe indicou o caminho que conduzia ao chalé,
informando-o de que Albinus lá se encontrava hospedado em companhia da sobrinha
e de um médico. Paul rumou para lá incontinenti. Sabia quem era a tal sobrinha.
Mas a presença de um médico o surpreendeu. Ao que parecia, Albinus estava sendo
mais bem tratado do que se poderia supor.
“Talvez, afinal de contas, eu tenha feito papel de bobo, vindo até aqui”,
pensou, constrangido, Paul. “Ele talvez esteja bastante satisfeito. Mas, agora
que estou aqui... Bem, de qualquer modo, terei uma conversa com esse médico.
Pobre sujeito... uma vida destroçada...
Quem poderia imaginar. . .“
Aquela manhã, Margot descera até à aldeia em companhia de Emilia. Não notou o
táxi de Paul; mas, no correio, foi informada de que um senhor corpulento acabara
de perguntar por Albinus e rumado para o chalé.
Nesse momento, Albinus e Rex estavam sentados, um diante do outro, na sala de
estar, e o sol penetrava através da vidraça da porta que dava para o terraço.
Rex achava-se sentado num banquinho de lona, de dobrar. Estava completamente nu.
Em conseqüência de seus banhos de sol diários, seu corpo, esguio mas robusto, os
pêlos escuros do peito em forma de uma águia de asas distendidas, era
intensamente bronzeado. Entre os lábios cheios e vermelhos, tinha uma longa
haste de relva e, o rosto pousado sobre a mão (numa pose que se assemelhava um
tanto ao Pensador de Rodin), fitava Albinus, que, por sua vez, parecia olhá-lo
intensamente.
O cego vestia um amplo robe-de-chambre, cor de rato, e seu rosto barbudo
exprimia angustiada tensão. Estava atento, a ouvir... Ultimamente, não fazia
outra coisa senão ouvir.
Rex sabia disso e observava-lhe os pensamentos, à medida que estes se refletiam
na fisionomia de Albinus, como se aquele rosto se houvesse transformado num
único olho, quando os seus olhos se apagaram. Um ou dois pequenos testes
poderiam tornar aquilo mais divertido: bateu, muito de leve, no joelho do cego,
e Albinus, que acabara de levar a mão à testa contraída, ficou petrificado, o
braço erguido. Depois Rex se inclinou lentamente para diante e tocou quase
imperceptivelmente a testa de A1binu com o pedúnculo de relva que estivera a
chupar. Albinus suspirou de modo estranho e afastou com a mão a mosca
imaginária. Rex roçou-lhe os lábios e Albinus tornou a fazer aquele movimento
inútil. Aquilo era divertido, sem dúvida!
De repente, o cego voltou abruptamente a cabeça para o lado. Rex fez o mesmo e,
através da vidraça, viu um senhor corpulento, de boné axadrezado — cujo rosto
reconheceu imediatamente — parado no terraço, a olhar, assombrado, para dentro.
Rex levou o dedo aos lábios e fez-lhe um sinal, significando que iria recebê-lo
dentro de um momento. Mas o outro abriu a porta e entrou no quarto.
— Oh, eu o conheço, sem dúvida. O senhor se chama Rex — disse Paul, respirando
profundamente e fitando aquele homem nu, que, ainda sorrindo, tinha o dedo posto
sobre os lábios.
Entrementes, Albinus pusera-se de pé. O sinal avermelhado de sua cicatriz
parecia ter-se estendido por toda a sua testa. De repente, começou a gritar e a
falar confusamente — e só aos poucos as palavras se f oram formando em meio de
todos aqueles sons entrecortados.
— Paul, estou aqui sozinho — gritou Albinus. — Paul, diga-me que estou sozinho!
Aquele homem está nos Estados Unidos. Ele não está aqui, Paul. Imploro-lhe,
Paul! Acho-me completamente cego!
— Foi uma pena o senhor ter estragado tudo — disse Rex, e saiu correndo em
direção da escada.
Paul apanhou a bengala do cego, alcançou Rex, que se voltou e levantou os braços
para proteger-se — e Paul, o pacífico e bem-humorado Paul, que jamais em sua
vida atacara uma criatura viva, desferiu violenta bengalada na cabeça de Rex,
acertando o alvo em cheio.
Rex saltou para trás, o rosto contraído ainda num sorriso, mas, de repente, algo
extraordinário aconteceu: como Adão depois da Quéda, Rex, acovardado junto da
branca parede, com um sorriso exangue nos lábios, cobriu com a mão a sua nudez.
Paul tomou a investir contra ele, mas Rex desviou-se e subiu correndo a escada.
Nesse momento, alguém caiu por trás sobre Paul Era Albinus — agarrando-se a ele,
a choramingar, tendo na mão um pesa-papéis.
— Paul — gemeu ele. — Agora compreendo tudo, Paul. Dê-me o meu paletó, depressa.
Está pendurado ali, no guarda-roupa.
— Qual deles?... O amarelo? — perguntou Paul, sem fôlego.
Albinus encontrou imediatamente no bolso o que desejava, e deixou de
lastimar-se.
— Vou levá-lo já daqui — disse Paul, arquejante. — Dispa esse robe-de-chambre e
vista o paletó. Dê-me esse pesa-papéis. Vamos. Eu o ajudarei... Tome o meu boné.
Não importa que você esteja de chinelos. Vamo-nos daqui, vamo-nos daqui, Albert.
Tenho aí um táxi à minha espera. A primeira coisa a fazer é tirar você desta
câmara de tortura.
— Espere um momento — respondeu Albinus. — Preciso, primeiro, falar com ela.
Ela deve chegar dentro de um momento. Preciso, Paul. Não demorará.
Mas Paul o empurrou para o jardim e gritou para o chofer.
— Preciso falar com ela — repetiu Albinus. — Bem de perto. Pelo amor de Deus,
Paul, diga-me... Quem sabe ela já está aqui...
— Não, acalme-se. Precisamos ir embora Não há ninguém aqui. Somente aquele
patife nu, a espiar-nos da janela. Vamos, Albert! Vamos embora!
— Sim, vamos. Mas, se você a vir, avise-me. Talvez a encontremos no caminho.
Preciso falar com ela. Bem de perto, bem de perto.
Desceram pela aléia, mas, após alguns passos, Albinus, de repente, abriu os
braços e caiu para trás, desmaiado. O chofer do táxi aproximou-se correndo e,
ambos, carregaram Albinus para o carro. Um dos chinelos de Albinus ficou
abandonado no jardim.
Nesse momento, um carro puxado a cavalo parou junto ao portão e Margot saltou.
Correu na direção deles e gritou algo, mas o táxi já havia chegado à estrada — e
quase a atropelou ao dar marcha a ré; depois, avançou para a frente e
desapareceu numa curva do caminho.
***
Na Terça-feira Elisabeth recebeu um telegrama e, no dia seguinte, cerca das oito
horas da noite, ouviu a voz de Paul no vestíbulo e o toque-toque de uma bengala.
A porta abriu-se e Paul entrou, conduzindo o seu marido.
Albinus estava bem barbeado, usava óculos escuros e tinha uma cicatriz na testa
pálida. A roupa de um marrom avermelhado (de uma cor que ele jamais teria
escolhido) parecia um pouco larga para Albinus.
— Aqui está ele — disse Paul, em voz baixa.
Elisabeth pôs-se a soluçar, apertando o lenço de encontro à boca. Albinus fez
uma ligeira curvatura na direção dos soluços abafados.
— Venha comigo. Vamos lavar as mãos — disse Paul, conduzindo-o lentamente pela
sala.
Depois, os três se sentaram à mesa e jantaram. Elisabeth tinha dificuldade em
acostumar-se com o aspecto do marido. Tinha a impressão de que ele lhe sentia o
olhar. A melancólica gravidade de seus gestos lentos enchiam-na de uma tranqüila
e enlevada piedade.
Paul falava-lhe como se ele fosse uma criança, e cortou-lhe em pedacinhos o
presunto no prato.
Deram-lhe o quarto que fora de Irma. Surpreendeu a própria Elisabeth o fato de
ela achar tão fácil perturbar o sono sagrado daquele quartinho em benefício
daquele estranho, grande e silencioso ocupante, mudando todos os móveis e
objetos, de modo a adaptá-lo às necessidades do cego.
Albinus nada disse. A princípio — enquanto se encontrava ainda na Suiça suplicou
a Paul, com petulante persistência, que pedisse a Margot para que o fosse ver;
jurara-lhe que aquele último encontro não demoraria mais que um momento. (E,
acaso, custaria muito, em sua solidão habitual, estender a mão, agarrá-la
fortemente e despejar contra ela toda a carga de sua pistola automática?) Paul
recusou-se obstinada-mente a atendê-lo e, depois disso, Albinus nada mais disse.
Viajou para Berlim em silêncio, chegou em silêncio permaneceu durante os três
primeiros dias, de modo que Elisabeth não tomou a ouvir-lhe a voz (ou talvez a
tenha ouvido apenas uma vez). Era como se, além de cego, também tivesse ficado
mudo.
Aquele objeto negro e pesado, tesouro de sete mortes comprimidas, permanecia,
envolto num cachenê de seda, no fundo do bolso de seu sobretudo. Depois, ao
chegar, conseguiu transferi-lo para uma cômoda junto de sua cama. Guardava a
chave no bolso do colete, colocando-a, à noite, debaixo do travesseiro. Uma ou
duas vozes, notaram que ele apalpava ou segurava algo — mas ninguém fez
comentário algum. O contacto daquela chave na palma de sua mão, o seu ligeiro
peso em seu bolso, pareciam-lhe uma espécie de Sésamo que — que ele estava certo
disso — lhe abriria algum dia a porta de sua cegueira.
E, no entanto, não dizia uma palavra. A presença de Elisabeth, seus passos
leves, seus sussurros (ela agora sempre se dirigia às criadas e a Paul num
sussurro, como se houvesse uma grande doença na casa), eram tão pálidos e vagos
como a lembrança que ele tinha dela: uma lembrança quase muda a pairar
indiferentemente em torno dele, em meio de um leve rastro de água de Colônia...
eis tudo. A vida real, cruel, flexível e forte como uma sucuri — e que ele
desejava destruir sem demora — jazia algures... Mas onde? Ele não o sabia. Com
extraordinária nitidez, via mentalmente Margot e Rex — ambos vivos e alertas,
membros ágeis e longos olhares radiantes e oblíquos — a fazer as malas após sua
partida.
Margot a adular e a acariciar Rex em meio das malas abertas — e, depois, ambos
partiram.
Mas para onde, onde? Nenhuma luz na escuridão. Mas o caminho sinuoso de ambos o
queimava como a marca que uma taturana rastejante deixa na pele da gente.
Os dias silenciosos passaram. No quarto dia, de manhã, ainda cedo, aconteceu que
Albinus ficou só. Paul fora à polícia (pois havia certas coisas que desejava
elucidar), a criada estava num quarto dos fundos, e Elisabeth, que passara a
noite em claro, ainda estava dormindo. Albinus, tomado de angustiosa inquietude,
andava de um lado para outro, apalpando os móveis e as portas. Durante algum
tempo, o telefone estivera a tocar na biblioteca, e isso fez com que lhe
ocorresse que ali tinha, ao seu alcance, um meio de obter certas informações:
alguém talvez pudesse dizer-lhe se o ilustrador Rex havia tornado a Berlim. Mas
não conseguia lembrar-se de um único número de telefone e sabia, ademais, que
não poderia pronunciar aquele nome, apesar de tão curto. O toque do telefone
tornou-se cada vez mais insistente. Albinus dirigiu-se à mesa e apanhou o
fone...
Uma voz, que lhe pareceu familiar, perguntou por Herr Hochenwart — isto é, por
Paul.
— Ele saiu — respondeu Albinus.
A voz hesitou; depois exclamou, com vivacidade: — Oh, é senhor, Herr Albinus?
— Sim. Quem está falando?
— Schiffermiller. Acabo de ligar para o escritório de Herr Hochenwart, mas ele
ainda não chegou. De modo que pensei que talvez pudesse encontrá-lo aí. Que
sorte ter entrado em contacto com o senhor, Herr Albinus!
— De que se trata? — indagou Albinus.
— Bem, talvez tudo esteja em ordem, mas julguei que devia certificar-me.
Acontece que Fräulein Peters acaba de chegar aqui, a fim de apanhar algumas
coisas e... bem, deixei que ela entrasse em seu apartamento... Mas não sei se...
De modo que achei melhor...
— Está bem — disse Albinus, movendo os lábios com dificuldade. (Não os sentia,
como se estivessem sob efeito de cocaína).
— Que foi que disse, Herr Albinus?
Albinus fez grande esforço para readquirir a voz.
— Está bem — repetiu claramente, dependurando o fone com mão trêmula.
Voltou, às apalpadelas, para o quarto, abriu a cômoda sagrada e dirigiu-se,
depois, ao vestíbulo, à procura do chapéu e da bengala. Mas isso demorou muito,
e desistiu de apanhá-
los. Cautelosamente, com passos arrastados, apalpando as paredes, desceu as
escadas, agarrando-se ao corrimão e murmurando febrilmente coisas para si mesmo.
Instantes depois, estava na calçada. Algo frio pingou-lhe sobre a testa: chuva.
Apoiou-se à grade de ferro do jardim da frente e rogou desesperadamente a Deus
lhe permitisse ouvir a buzina de um táxi. Logo, ouviu o chiar molhado, lento, de
pneumáticos. Gritou, mas o táxi passou, indiferente.
— Posso ajudá-lo a atravessar a rua? — perguntou-lhe uma voz jovem e agradável.
— Pelo amor de Deus, consiga-me um táxi — implorou Albinus.
Novamente o ruído de pneumáticos que se aproximavam. Alguém o ajudou a subir ao
veículo e fechou a porta. (Uma janela se abriu no quarto andar, mas já era
demasiado tarde).
— Toque para a frente, toque para a frente — disse Albinus em voz baixa e,
quando o táxi já se achava em movimento, bateu no vidro e deu ao chofer o
endereço.
“Contarei as esquinas”, pensou Albinus. “A primeira: esta deve ser Motzstrasse”.
Ouviu, à sua esquerda, o ruído estridente de um bonde. Passou a mão pelo
assento, pelo banco da frente e pelo chão, subitamente inquieto ante a idéia de
que alguém talvez pudesse estar sentado a seu lado. Outra volta Será
Victória-Luisenplatz ou Pragerplatz? Dentro de um momento, estaria em
Kaiserallee.
O táxi parou. Será que já cheguei? Não pode ser. Deve ser apenas uma esquina,
com o sinal fechado. Deve haver pelo menos mais uns cinco minutos de caminho...
Mas a porta se abriu.
— Este é o número 56 — disse-lhe o chofer.
Albinus desceu do táxi. No ar, diante dele, ergueu-se alegremente a mesma voz
que ouvira pouco antes pelo telefone. Schiffermiller, o porteiro, saudou-o: —
Muito prazer em tornar a vê-lo, Herr Albinus. A jovem senhora está lá em cima,
em seu apartamento. Ela...
— Silêncio, silêncio — murmurou Albinus. — Pague o táxi, por favor. Meus
olhos...
Bateu com os joelhos de encontro a algo que oscilou e retiniu... talvez alguma
bicicleta de criança que estivesse sobre a calçada.
— Dê-me a chave do apartamento. Depressa, por favor. E, agora, conduza-me até o
elevador. Não, não; pode ficar aqui. Eu subirei sozinho. Eu mesmo apertarei o
botão.
O elevador produziu um som que se assemelhava a um gemido, e ele sentiu-se um
pouco tonto. Depois, a porta pareceu dar um repelão de encontro às solas de seus
chinelos de feltro. Tinha chegado.
Saiu do elevador, caminhou reto e pôs um pé num abismo... Não, não era nada —
apenas a escada que conduzia para baixo. Tremia tanto, que teve de ficar parado
um momento.
— É para a direita, mais para a direita — murmurou de si para consigo.
E, com o braço estendido, atravessou o patamar. Por fim, encontrou o buraco da
fechadura, enfiou a chave e girou-a.
Ah, ali estava ele, o som por que ansiara havia dias... bem à esquerda, na
pequena sala de estar. o ruído de papel de embrulho e um estalido quase
imperceptível, como o que é produzido pelas juntas de uma pessoa que se abaixa.
— Dentro de um minuto, precisarei do senhor, Herr Schiffermiller — disse a voz
tensa de Margot. — Precisa ajudar-me a carregar isto...
A voz cessou.
“Ela me viu”, pensou Albinus, tirando a pistola do bolso.
Vindo da sala de estar, à esquerda, Me ouviu o estalido de um fecho de valise.
Margot lançou um resmungo de satisfação... Aquilo, afinal, havia fechado... E
continuou, num tom cantante: — ... a carregar isto para baixo. Ou talvez o
senhor pudesse vir...
À palavra “vir”, a voz pareceu voltar-se para o seu lado —e calou-se
subitamente.
Albinus empunhava a pistola com a mão direita, pronto para atirar, enquanto que,
com a esquerda, apalpava o marco da porta aberta. Depois entrou, fecho a porta
atrás de si e ficou com as costas voltadas para ela.
Tudo permanecia em silêncio. Mas Albinus sabia que estava a sós com Margot
naquela sala, e que aquela sala tinha apenas uma saída — a porta que ele estava
bloqueando.
Podia ver mentalmente a sala com nitidez — quase como se a enxergasse com seus
próprios olhos: à esquerda, o sofá listrado junto à parede, uma estatueta de
porcelana representando uma bailarina de ballet; no canto, junto à janela, o
armário de vidro com suas preciosas miniaturas; ao centro, outra mesa grande,
muito lisa e brilhante.
Albinus estendeu o braço e moveu lentamente a arma de um lado para outro,
procurando induzir Margot a fazer algum ruído, que trairia a posição exata em
que ela se encontrava. Sentia que ela estava em algum lugar perto das
miniaturas; vindo daquela direção, ele podia sentir uma onda quase imperceptível
de calor, misturada a um perfume chamado L’heure bleue. Naquele canto, algo
tremia como o ar sobre a areia de uma praia, num dia muito quente. Diminuiu a
curva ao longo da qual sua mão girava e, de repente, ouviu um leve farfalhar.
Devia atirar? Não; ainda não. Precisava aproximar-se muito mais dela. Bateu de
encontro à mesa do centro e ficou imóvel. Sentiu que Margot passava furtivamente
para outro lado, mas o seu próprio corpo, embora bastante rígido, fazia tanto
barulho que ele não podia ouvi-la. Sim, agora ela estava mais para a esquerda,
perto da janela.
Oh, se ela perdesse a cabeça, abrisse a janela e se pusesse a gritar, isso seria
divino: ele teria um belo alvo. Mas, e se ela passasse por ele, por trás da
mesa, enquanto ele avançasse?
“Melhor fechar a porta”, pensou. Não, não havia chave (as portas estavam sempre
contra ele). Agarrou a beira da mesa com uma das mãos e, recuando, puxou-a para
junto da porta, de modo que a mesa ficasse atrás dele. Novamente o calor que ele
percebia mudou de lugar, encolheu, diminuiu. Tendo bloqueado a saída, sentia-se
de novo mais livre e, de novo, com o cano da pistola, localizou algo trêmulo,
vivo, em meio da escuridão.
Avançou, então, o mais silenciosamente possível, a fim de que pudesse perceber
qualquer ruído. Nudez de cego, nudez de cego... numa casa campestre, numa noite
de inverno, havia muito, muito tempo. Foi de encontro a algo duro, que apalpou
com a mão, sem perder, por um momento sequer, a direção para a qual se achava
voltado, tenso. Era uma pequena mala. Afastou-a com o joelho e prosseguiu,
conduzindo para um canto imaginário a presa invisível que tinha diante de si. O
silêncio de Margot, a princípio, irritou-o; mas, agora, podia perceber
claramente onde ela se encontrava. Não era a respiração nem o bater do coração
de Margot, mas uma espécie de impressão geral: a voz da própria vida de Margot,
que, dentro de um minuto, ele destruiria. E, depois... paz, serenidade, luz.
Súbito, sentiu um afrouxamento de tensão, no canto que tinha à sua frente. Moveu
a arma, e obrigou a cálida presença de Margot a que recuasse de novo. De
repente, aquela presença pareceu inclinar-se como uma chama numa corrente de ar;
depois, rastejou, distendeu-se... ia se aproximando de suas pernas. Albinus não
pôde mais dominar-se; com violento gemido, apertou o gatilho.
O tiro fendeu a escuridão e, logo em seguida, algo lhe bateu de encontro aos
joelhos, fazendo-o cair; durante um segundo, viu-se embaraçado por uma cadeira
lançada contra ele.
Ao cair, largou a pistola, mas tornou logo a encontrá-la. No mesmo instante,
percebeu uma respiração rápida, um vago e doce perfume chegou-lhe às narinas, e
uma mão fria, ágil, procurou arrancar-lhe a arma. Albinus agarrou algo vivo,
algo que lançou um grito tremendo, como se uma criatura de pesadelo estivesse
sendo tocada por outra criatura de pesadelo. A mão que ele estava agarrando lhe
torceu o pulso e arrancou-lhe a pistola — e ele sentiu o cano de encontro ao
próprio corpo; e, juntamente com uma fraca detonação, que parecia vir de milhas
de distância, de um outro mundo, sentiu uma dor dilacerante em seu flanco, que
lhe encheu os olhos de deslumbrante claridade.
“Então isto é o fim”, pensou, muito suavemente, como se estivesse deitado em sua
cama. “Devo ficar quieto um momento e, depois, caminhar muito devagar por essa
praia cintilante de sofrimento, em direção daquela onda azul, azul. Que
bem-aventurança há no azul! Nunca pensei que o azul pudesse ser assim tão azul!
Que trapalhada foi a minha vida!
Agora, conheço tudo. Aproxima-se, aproxima-se para afogar-me... Aí está ela...
Como dói!
Não posso respirar...“
Sentou-se no chão, a cabeça caída sobre o peito; depois, inclinou-se lentamente
para a frente e caiu como um boneco — um grande e macio boneco — para o lado.
Instruções para a cena final, muda: porta — escancarada. Mesa — atirada para o
lado. Tapete — um tanto levantado junto ao pé da mesa, numa ondulação gelada.
Cadeira — caída junto do cadáver de um homem de roupa marrom-avermelhada e
chinelos de feltro.
Invisível a pistola automática. Acha-se sob o cadáver. Armário onde tinham
estado as miniaturas — vazio. Sobre a outra mesa (pequena), na qual, séculos
atrás, havia uma estatueta de porcelana representando uma bailarina de ballet
(transferida depois para uma outra sala), jaz uma luva de mulher, negra por
fora, branca por dentro. Sobre o sofá listrado, uma pequena mala, com um rótulo
vistoso ainda colado: “Rouginard, Hotel Britannia”.
A porta do vestíbulo, que dá para o corredor, também se acha escancarada.
Fim
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Gargalhada na Escuridão
Vladimir Nabokov
-excerto-
1.ª publicação em russo como 'Kamera Obscura' (1933)
Título original em inglês: 'Laughter in the Dark' (1938)
Tradução: Brenno Silveira
Boa Leitura Editora SA
5.Abr.2024
Publicado por
MJA
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