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Representação de Fim de Jogo/Endgame no Gustavus Adolphus College
em 2016.
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Confinados a um espaço fechado apenas com duas pequenas janelas que dão para um mundo de desolação onde o mar e a terra são uma única cor cinzenta, quatro personagens procuram o fim. Hamm, o patriarca, meio Hamlet, impossibilitado de ver e de se levantar, comanda o patético e trágico universo da peça e simboliza, segundo Beckett, um mau jogador neste sórdido jogo existêncial. Clov, meio escravo meio filho de Hamm, ameaça com recorrência que se vai embora, tal como Hamm do mesmo modo lhe pede que desampare. Mas a peça é ambígua entre o poder e a vontade e liga os dois personagens a uma relação de interdependência, de sadismo e de banalidade. Nagg e Nell, os pais de Hamm, estão dentro de dois caixotes e presos à memória de um tempo que se supõe ter existido outrora, em relação a um outro que se mantém imutável e que parece estar sempre aquém do fim.
Endgame é uma peça circular onde, segundo Beckett, pelas palavras de Hamm - “o fim está no princípio e no entanto prosseguimos.”
JN, 2005
Ato Único
Aposento sem mobília.
Luz cinzenta.
No fundo, nas paredes da esquerda e da direita, no alto, duas janelinhas,
cortinas fechadas. No proscênio, à direita, uma porta. Dependurado perto da
porta, com a face voltada para a parede, um quadro.
No proscênio, à esquerda, encostadas uma na outra, cobertas com um lençol velho,
duas latas de lixo.
No centro, sentado numa poltrona de braços com rodinhas, coberto com um lençol
velho, Hamm.
Imóvel, ao lado da cadeira, olhos fixos em Hamm, Clov. Rosto bastante vermelho.
CLOV caminha até a janela esquerda. Caminhar duro e vacilante. Ergue o olhar
para a janela esquerda, com a cabeça curvada para trás. Gira a cabeça, olha para
a janela à direita.Caminha até a janela direita. Ergue o olhar para a janela
direita, com a cabeça curvada para trás. Gira a cabeça e olha para a janela à
esquerda. Sai, retornando imediatamente com uma escadinha, coloca-a sob a janela
esquerda, sobe, abre a cortina. Desce, dá seis passos na direção da janela
direita, retorna até a escada, pega-a, coloca-a sob a janela direita, sobe, abre
a cortina. Desce, dá três passos na direção da janela esquerda, retorna até a
escada, pega-a, coloca-a sob a janela esquerda, sobe, espia pela janela. Curta
gargalhada. Desce, dá um passo na direção da janela direita, retorna, pega a
escada,coloca-a sob a janela direita, sobe, espia pela janela. Curta gargalhada.
Desce, caminha na direção das latas de lixo, para, retorna até a escada, pega-a,
reflete, deixa a escada no mesmo lugar, caminha até as latas de lixo, retira o
lençol que as cobre, dobra-o cuidadosamente e coloca-o sobre o braço. Ergue uma
tampa, inclina-se e olha para dentro da lata. Curta gargalhada. Recoloca a
tampa. Repete o mesmo jogo com a outra lata.Caminha até Hamm, retira o lençol
que o cobre, dobra-o cuidadosamente e coloca-o sobre o braço. Vestindo um
roupão, uma touca bem enfiada na cabeça, um grande lenço manchado de sangue
sobre o rosto, um apito pendurado no pescoço, um grosso cobertor de lã sobre os
joelhos, grossas meias nos pés, Hamm parece adormecido. Clov observa-o. Curta
gargalhada. Vai até a porta, para, volta-se, contempla a cena, volta-se para o
público.
CLOV (olhar fixo, sem entonação) Acabou, está acabado, isto vai acabar, talvez
isto acabe. (Pausa.) De grão em grão, um a um, e um dia, de repente, vira um
monte, um pequeno monte, o monte impossível. (Pausa.) Não podem mais me punir.
(Pausa.) Vou para minha cozinha, três por três por três, e esperarei ele apitar.
(Pausa.) Agradáveis dimensões,formidáveis proporções, me debruçarei sobre a
mesa, olharei para a parede e esperarei ele apitar.
(Permanece, por alguns instantes, imóvel. Depois sai. Retorna imediatamente, vai
até a janela direita, pega a escada e sai com ela. Pausa. Hamm se mexe. Boceja
debaixo do lenço.Retira o lenço do rosto. Rosto bastante vermelho. Óculos
escuros.)
HAMM Minha... (boceja)...vez. (Segura o lenço estendido diante de si.) Velho
trapo! (Tira os óculos, esfrega os olhos, o rosto, os óculos, coloca-os de novo,
dobra cuidadosamente o lenço e coloca-o, delicadamente, no bolso superior do
roupão. Limpa a garganta, une a ponta dos dedos.)Haverá... (bocejos)... haverá
miséria mais... majestosa do que a minha?Sem dúvida. Outrora. Mas agora?
(Pausa.) Meu pai? (Pausa.) Minha mãe? (Pausa.) Meu... cachorro? (Pausa.) Claro,
estou disposto a admitir que eles sofrem tanto quanto tais criaturas podem
sofrer. Mas isso significa que nossos sofrimentos se equivalem? Sem dúvida.
(Pausa.)Não, tudo é a... (bocejos)... bsoluto (com orgulho), quanto maior for o
homem, mais pleno será. (Pausa. Com tristeza.) E mais vazio. (Funga.)Clov!
(Pausa.) Não? (Pausa.) Bom. (Pausa.) Que sonhos! Aquelas florestas! (Pausa.)
Basta, é hora de acabar, no refúgio também. (Pausa.)E contudo hesito, hesito
em... em acabar. Sim, aí está, é hora de acabar e contudo ainda hesito em a...
(bocejos)... cabar. (Bocejos.) Sinto-me cansado. Acho melhor me deitar. (Apita.
Clov entra imediatamente.Para ao lado da cadeira.) Você polui o ar! (Pausa.)
Prepare-me, vou me deitar.
CLOV Acabei de levantá-lo.
HAMM E daí?
CLOV Não posso ficar levantando-o e deitando-o a cada cinco minutos, tenho mais
o que fazer.
(Pausa.)
HAMM Você já viu meus olhos?
CLOV Não.
HAMM Você nunca teve a curiosidade, quando estou dormindo, de tirar meus óculos
e observar meus olhos?
CLOV Erguendo as pálpebras? (Pausa.) Não.
HAMM Um dia desses eu os mostrarei a você. (Pausa.) Parece que eles ficaram
totalmente brancos. (Pausa.) Que horas são?
CLOV A mesma de sempre.
HAMM Você olhou?
CLOV Olhei.
HAMM E então?
CLOV Nada.
HAMM Precisava chover.
CLOV Não vai chover.
(Pausa.)
HAMM Fora isso, como você se sente?
CLOV Não me queixo.
HAMM Você se sente bem?
CLOV (irritado) Já disse que não me queixo.
HAMM Sinto-me um pouco esquisito. (Pausa.) Clov. Clov Que é?
HAMM Você já não está de saco cheio?
CLOV Estou! (Pausa.) Com o quê?
HAMM Com esta... esta... coisa.
CLOV Sempre estive. (Pausa.) Você não?
HAMM (triste) Então não há razão para que isto mude.
CLOV Mas pode acabar. (Pausa.) Durante toda a vida, as mesmas perguntas, as
mesmas respostas.
HAMM Prepare-me. (Clov não se move). Vá buscar o lençol. (Clov não se move.)
Clov.
CLOV Que é?
HAMM Não lhe darei mais nada para comer.
CLOV Então morreremos.
HAMM Vou lhe dar apenas o suficiente para impedi-lo de morrer. Você estará o
tempo todo com fome.
CLOV Então não morreremos. (Pausa.) Vou buscar o lençol. (Dirige-se para a
porta.)
HAMM Não! (Clov para.) Eu lhe darei um biscoito por dia. (Pausa.) Um biscoito e
meio. (Pausa.) Por que você fica comigo?
CLOV Por que você me mantém?
HAMM Não há mais ninguém.
CLOV Não há outro lugar.
(Pausa.)
HAMM Mesmo assim você me abandona.
CLOV Eu tento.
HAMM Você não me ama.
CLOV Não.
HAMM Antes você me amava.
CLOV Antes!
HAMM Fiz você sofrer muito. (Pausa.) Não é?
CLOV Não é isso.
HAMM (indignado) Não fiz você sofrer muito?
CLOV Fez!
HAMM (aliviado) Ufa, você me deu um susto! (Pausa. Friamente.) Perdão. (Pausa.
Mais alto.) Eu disse, perdão.
CLOV Eu ouvi. (Pausa.) Você tem sangrado?
HAMM Menos. (Pausa.) Não está na hora do meu calmante?
CLOV Não.
(Pausa.)
HAMM Como vão seus olhos?
CLOV Mal.
HAMM Como vão suas pernas?
CLOV Mal.
HAMM Mas você pode andar.
CLOV Posso.
HAMM (com violência) Então ande! (Clov vai até a parede do fundo, apoia-se nela
com a testa e as mãos.) Onde você está?
CLOV Aqui.
HAMM Volte! (Clov retorna ao seu lugar, perto da cadeira.) Onde você está? Clov
Aqui.
HAMM Por que você não me mata?
CLOV Não conheço a combinação da despensa.
(Pausa.)
HAMM Vá buscar duas rodas de bicicleta.
CLOV Não há mais rodas de bicicleta.
HAMM O que você fez com sua bicicleta?
CLOV Nunca tive uma bicicleta.
HAMM Isso é impossível.
CLOV Quando ainda havia bicicletas, eu chorei para ter uma, me arrastei aos seus
pés. Você me mandou pro inferno. Agora, não há mais.
HAMM E suas andanças? Quando você ia ver meus mendigos. Sempre a pé?
CLOV Às vezes, a cavalo. (A tampa de uma das latas de lixo ergue-se e as mãos de
Nagg aparecem, agarradas nas bordas. Em seguida surge a cabeça. Gorro de dormir.
Rosto bastante branco. Nagg boceja, depois fica ouvindo.) Vou deixá-lo, tenho
mais o que fazer.
HAMM Na sua cozinha?
CLOV É.
HAMM Fora daqui está a morte. (Pausa.) Está bem, vá. (Clov sai. Pausa.) Estamos
avançando.
NAGG Minha papa!
HAMM Maldito progenitor!
NAGG Minha papa!
HAMM Ah! Os velhos! Perderam toda a decência! Comer, comer, é só no que eles
pensam! (Apita. Clov entra. Para ao lado da cadeira.) Ora! Pensei que você fosse
me abandonar.
CLOV Ainda não, ainda não.
NAGG Minha papa!
HAMM Dê-lhe a sua papa.
CLOV Não há mais papa.
HAMM (a Nagg) Você ouviu isso? Não há mais papa. Você nunca mais comerá sua
papa.
NAGG Quero minha papa!
HAMM Dê-lhe um biscoito. (Clov sai.) Maldito fornicador! Como vão seus cotos?
NAGG Não se preocupe com os meus cotos.
(Clov entra com um biscoito na mão.)
CLOV Voltei de novo, com o biscoito.
(Dá o biscoito a Nagg, que o segura, apalpa-o e cheira-o.)
NAGG (choramingando) O que é isto?
CLOV Papita.
NAGG (como antes) Está duro! Eu não posso!
HAMM Tampe-o!
(Clov empurra Nagg para dentro da lata, fecha a tampa.)
CLOV (retornando ao seu lugar, perto da cadeira) Se os velhos soubessem!
HAMM Sente-se em cima dele!
CLOV Não posso sentar.
HAMM É verdade. E eu não posso ficar em pé.
CLOV Assim é.
HAMM Cada homem com sua especialidade. (Pausa.) Ninguém telefonou? (Pausa.)
Vamos rir?
CLOV (após refletir) Eu não estou com vontade.
HAMM (após refletir) Nem eu. (Pausa.) Clov.
CLOV Que é?
HAMM A natureza esqueceu-se de nós.
CLOV Não há mais natureza.
HAMM Não há mais natureza! Você exagera.
CLOV Ao redor.
HAMM Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos nossos cabelos, nossos dentes! Nosso
vigor! Nossa beleza! Nossos ideais!
CLOV Então ela não nos esqueceu.
HAMM Mas você disse que não há mais natureza.
(Pausa.)
CLOV (muito triste) Nunca houve no mundo alguém que pensasse de um jeito tão
torto quanto a gente.
HAMM A gente faz o que pode.
CLOV Muito mal.
HAMM Você se acha o dono da verdade, não é?
CLOV Um escravo.
HAMM Isto está muito parado. (Pausa.) Não está na hora do meu calmante?
CLOV Não. (Pausa.) Vou deixá-lo, tenho mais o que fazer.
HAMM Na sua cozinha?
CLOV É.
HAMM Gostaria de saber o quê.
CLOV Olho para a parede.
HAMM A parede! E o que é que você vê na sua parede? Letras de fogo? Profecias?
Corpos nus?
CLOV Vejo minha luz morrendo.
HAMM Sua luz morrendo! Quanta asneira! Seja como for, ela também pode morrer
aqui, sua luz. Dê uma olhada em mim e depois me diga o que você acha da sua luz.
CLOV Você não devia falar assim comigo.
HAMM (friamente) Perdão. (Pausa. Mais alto.) Eu disse, perdão.
CLOV Eu ouvi.
(Pausa. A tampa da lata de Nagg ergue-se. Suas mãos aparecem, agarradas nas
bordas. Em seguida, surge sua cabeça. Em sua boca, o biscoito. Nagg ouve.)
HAMM Suas sementes brotaram?
CLOV Não.
HAMM Você cavou um pouco o terreno para ver se tinham germinado?
CLOV Elas não germinaram.
HAMM Talvez seja muito cedo ainda.
CLOV Se fosse para elas germinarem, elas teriam germinado. ( Violentamente.)
Elas nunca germinarão!
(Pausa. Nagg pega o biscoito com a mão.)
HAMM Isto não está muito divertido. (Pausa.) Mas é sempre assim no fim do dia,
não é, Clov?
CLOV Sempre.
HAMM É um fim de dia igual a qualquer outro, não é, Clov?
CLOV Parece igual.
(Pausa.)
HAMM (com angústia) Mas o que está acontecendo, o que está acontecendo? Clov
Alguma coisa segue o seu curso.
(Pausa.)
HAMM Está bem, vá embora. (Inclina-se para trás, na cadeira, e permanece imóvel.
Clov não se move. Ele solta um profundo suspiro. Hamm se endireita) Acho que
disse para você ir embora.
CLOV Estou tentando. (Vai até a porta, para.) Desde que nasci. (Sai.)
HAMM Estamos avançando.

(Hamm inclina-se na cadeira, para trás, e permanece imóvel. Nagg bate na tampa
da outra lata. Pausa. Bate mais forte. A tampa ergue-se e aparecem as mãos de
Nell, agarradas nas bordas. Em seguida, surge sua cabeça. Touca de renda. Rosto
bastante branco.)
NELL O que é, meu gatinho? (Pausa.) Hora de amar?
NAGG Você estava dormindo?
NELL Eu? Não!
NAGG Me dá um beijo.
NELL Mas não dá!
NAGG Vamos tentar.
(Suas cabeças esforçam-se por se aproximar uma da outra, não conseguem,
afastam-se de novo.)
NELL Por que esta farsa, dia após dia?
(Pausa.)
NAGG Perdi meu dente.
NELL Quando?
NAGG Ele ainda estava aqui ontem.
NELL (melancólica) Ah, ontem!
(Viram-se, penosamente, um na direção do outro.)
NAGG Você pode me ver?
NELL Muito mal. E você?
NAGG O quê?
NELL Você pode me ver?
NAGG Muito mal.
NELL Ainda bem, é melhor assim.
NAGG Não diga isso. (Pausa.) Nossas vistas estão fracas.
NELL Estão.
(Pausa. Retornam à posição inicial.)
NAGG Você pode me ouvir?
NELL Posso. E você?
NAGG Posso. (Pausa.) Nossos ouvidos não estão fracos.
NELL Nossos o quê?
NAGG Nossos ouvidos.
NELL Não. (Pausa.) Você tem mais alguma coisa para me dizer?
NAGG Você se lembra...
NELL Não.
NAGG Quando nós nos espatifamos com a bicicleta e perdemos as pernas? (Riem com
entusiasmo.)
NELL Foi nas Ardenas.
(Riem com menos entusiasmo.)
NAGG Na estrada para Sedan. (Riem com menos entusiasmo ainda. Pausa.) Você está
com frio?
NELL Estou morrendo de frio. E você?
NAGG Estou congelado. (Pausa.) Você quer entrar?
NELL Quero.
NAGG Então entre. (Nell não se move.) Por que você não entra?
NELL Não sei.
(Pausa.)
NAGG Ele trocou sua serragem?
NELL Não é serragem. (Pausa. Cansada.) Você não pode ser um pouco mais preciso,
Nagg?
NAGG Sua areia então. Não é importante.
NELL É importante.
(Pausa.)
NAGG Antes era serragem.
NELL Antes!
NAGG E agora é areia. (Pausa.) Da praia. (Pausa. Mais alto.) Agora é areia que
ele vai buscar na praia.
NELL Agora é areia.
NAGG Ele trocou a sua areia?
NELL Não.
NAGG Nem a minha. (Pausa.) Preciso reclamar! (Pausa. Mostrando o biscoito.) Quer
um pedaço?
NELL Não. (Pausa.) De quê?
NAGG Biscoito. Guardei metade para você. (Olha para o biscoito. Orgulhoso.) Três
quartos. Para você. Toma. (Oferece o biscoito.) Não? (Pausa.)Você não se sente
bem?
HAMM (exausto) Calem a boca, calem a boca, vocês não estão me deixando dormir.
(Pausa.) Falem mais baixo. (Pausa.) Se conseguisse dormir,talvez fizesse amor.
Poderia ir para os bosques. Meus olhos veriam... o céu, a terra. Eu poderia
correr, correr, eles nunca me alcançariam.(Pausa.) A natureza! (Pausa.) Esta
coisa latejando na minha cabeça.(Pausa.) Um coração, um coração na minha cabeça.
(Pausa.)
NAGG (em voz baixa) Você ouviu? Um coração em sua cabeça! (Ri bem baixinho.)
NELL Não se deve rir dessas coisas, Nagg. Por que você precisa sempre rir delas?
NAGG Não tão alto!
NELL (sem baixar a voz) Não há nada mais engraçado do que a infelicidade,
concordo com você. Mas...
NAGG (escandalizado) Oh!
NELL Sim, sim, é a coisa mais cômica do mundo. E nós rimos, rimos, com vontade,
no começo. Mas é sempre a mesma coisa. Sim, é como aquela história engraçada que
já ouvimos muitas vezes, nós ainda a achamos engraçada, mas não rimos mais.
(Pausa.) Você tem mais alguma coisa para me dizer?
NAGG Não.
NELL Tem certeza? (Pausa.) Então vou deixá-lo.
NAGG Não quer seu biscoito? (Pausa.) Eu guardo para você. (Pausa.) Pensei que
você fosse me deixar.
NELL Vou deixá-lo.
NAGG Poderia me coçar antes de ir?
NELL Não. (Pausa.) Onde?
NAGG Nas costas.
NELL Não. (Pausa.) Esfregue-se nas bordas da lata.
NAGG É mais embaixo. No buraco.
NELL Que buraco?
NAGG O buraco. (Pausa.) Você não poderia? (Pausa.) Ontem você me coçou ali.
NELL (melancólica) Ah, ontem!
NAGG Não poderia? (Pausa.) Quer que eu a coce? (Pausa.) Está chorando outra vez?
NELL Estava tentando.
(Pausa.)
HAMM (voz baixa) Talvez seja uma pequena veia.
(Pausa.)
NAGG O que foi que ele disse?
NELL Talvez seja uma pequena veia.
NAGG O que isso significa? (Pausa.)Não significa nada. (Pausa.) Quer que eu lhe
conte a piada do alfaiate?
NELL Não. (Pausa.) Para quê?
NAGG Para alegrá-la.
NELL Não é engraçada.
NAGG Sempre fez você rir. (Pausa.) A primeira vez pensei que você fosse morrer.
NELL Foi no lago de Como. (Pausa.) Numa tarde de abril. (Pausa.) Você pode
acreditar?
NAGG O quê?
NELL Que nós, um dia, estivemos passeando de barco no lago de Como. (Pausa.)
Numa tarde de abril.
NAGG Ficamos noivos na véspera.
NELL Noivos!
NAGG Você deu tanta risada que o barco até virou. A gente quase morreu afogado.
NELL Foi porque eu me sentia feliz.
NAGG (indignado) Não, não foi não, foi por causa da minha piada. Feliz! Você não
ri dela ainda? Cada vez que eu lhe conto. Feliz!
NELL Era tão profundo, tão profundo. E podia-se ver o fundo, lá embaixo. Tão
branco. Tão limpo.
NAGG Deixe-me contá-la mais uma vez. (Voz de narrador.) Um inglês (assume a cara
de um inglês, por um instante; retoma a sua) que precisava urgentemente de um
par de calças listradas para a festa de Ano Novo, vai ao seu alfaiate, o qual
lhe tira as medidas. (Voz do alfaiate.) “Pronto, volte daqui a quatro dias,
estarão prontas.” OK. Quatro dias depois. (Voz do alfaiate.) “Sorry, volte daqui
a oito dias, cometi um engano no fundilho.” OK, um fundilho feito a capricho
deve ser bastante difícil.Oito dias depois. (Voz do alfaiate.) “Sorry
muitissimamente, volte daqui a dez dias, estraguei a braguilha.” OK, concordo,
uma braguilha bem-feita é algo muito delicado. Dez dias depois. (Voz do
alfaiate.) “Sorry terrivelmente, volte daqui a quinze dias, a braguilha agora
está emperrando.” OK, em caso de emergência, uma braguilha em boa ordem é algo
indispensável. (Pausa. Voz normal.) Eu nunca a contei tão mal.(Pausa. Triste.)
Conto esta piada cada dia pior. (Pausa. Voz de narrador) Bom, para encurtar, já
tinha chegado a Páscoa e ele em briga com a braguilha. (Faz o rosto, depois a
voz do inglês.) “Mas, sir, mas, sir, vá pro inferno, é intolerável, há limites!
Em seis dias, está ouvindo,seis dias, Deus fez o mundo. Yes, sir, nada menos do
que o MUNDO! E you, you não tem capacidade para me fazer um par de calças em
três meses!” (Voz do alfaiate, escandalizado.) “Mas, Milord! Mas, Milord!
Olhe... (gesto de desprezo, com repulsa)... para o mundo... (pausa)... e olhe...
(gesto afetuoso, com orgulho)... para as minhas CALÇAS!”
(Pausa. Ele olha para Nell, que permanece impassível, com os olhos vagos; solta
uma sonora gargalhada forçada, interrompe-se, aproxima a cabeça na direção de
Nell, solta outra vez a gargalhada.)
HAMM Silêncio!
(Nagg se assusta, interrompendo sua gargalhada.)
NELL Podia-se ver o fundo, lá embaixo.
HAMM (irritado) Vocês não acabaram? Vocês nunca acabarão? (Com repentina
violência.) Isto nunca acabará? (Nagg desaparece dentro da lata e fecha muito
bem a tampa. Nell não se move.) Mas do que é que eles tanto falam? Do que ainda
se pode falar? (Fora de si.) Meu reino por um lixeiro! (Apita. Clov entra.)
Jogue fora esse lixo! Jogue no mar!
(Clov caminha na direção das latas, para.)
NELL Tão branco.
HAMM O quê? O que ela está tagarelando?
(Clov inclina-se sobre Nell, pega-lhe o pulso.)
NELL (baixo, para Clov) Deserto!
(Clov solta o pulso dela, empurra sua cabeça para dentro da lata, fecha a tampa,
endireita-se.)
CLOV (voltando ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Ela não tem mais pulso.
HAMM Que tolices esse lixo estava dizendo?
CLOV Disse-me para partir, para o deserto.
HAMM Maldita bisbilhoteira! Só isso?
CLOV Não.
HAMM Que mais?
CLOV Não entendi.
HAMM Você a tampou?
CLOV Tampei.
HAMM Os dois estão tampados?
CLOV Estão.
HAMM Pregue as tampas. (Clov dirige-se para a porta.) Não há pressa. (Clov
para.) Meu ódio se aplaca, estou com vontade de mijar.
CLOV (com entusiasmo) Vou buscar a sonda. (Dirige-se para a porta.)
HAMM Não há pressa. (Clov para.) Me dê meu calmante.
CLOV É muito cedo. (Pausa.) É muito cedo, em cima do excitante não faria efeito.
HAMM Pela manhã, eles o excitam e, à noite, eles o acalmam. Ou o contrário.
(Pausa.) Aquele velho médico, ele morreu, naturalmente?
CLOV Ele não era velho.
HAMM Mas ele morreu?
CLOV Naturalmente. (Pausa.) É você quem me pergunta isso?
(Pausa.)
HAMM Leve-me para dar um pequeno passeio. (Clov põe-se atrás da cadeira e
empurra-a para a frente.) Não tão depressa! (Clov empurra a cadeira.)Ao redor do
mundo! (Clov empurra a cadeira.) Perto das paredes,depois você me leva de volta
ao centro. (Clov empurra a cadeira.) Eu estava exatamente no centro, não estava?
CLOV (empurrando) Estava.
HAMM Precisamos de uma boa cadeira de rodas. Com rodas grandes. Rodas de
bicicleta! (Pausa.) Você está perto das paredes?
CLOV (empurrando) Estou.
HAMM (procurando a parede com a mão) Mentira! Por que você mente para mim?
CLOV (aproximando-se mais da parede) Pronto! Pronto!
HAMM Pare! (Clov para a cadeira junto à parede do fundo. Hamm coloca a mão na
parede. Pausa.) Velha parede! (Pausa.) Do outro lado está o... o outro inferno.
(Pausa. Com violência.) Mais perto! Mais perto! Encoste nela!
CLOV Tire a mão. (Hamm retira a mão. Clov bate a cadeira de encontro à parede.)
Pronto!
(Hamm inclina-se na direção da parede, encosta o ouvido nela.)
HAMM Você está ouvindo? (Bate na parede com os nós dos dedos. Pausa.) Está
ouvindo? Tijolos ocos! (Bate outra vez.) Está tudo oco! (Pausa. Endireita-se.
Com violência.) Basta! Volte!
CLOV Nós não demos a volta.
HAMM Leve-me ao meu lugar! (Clov empurra a cadeira de volta ao centro.) É aqui o
meu lugar?
CLOV É, este é o seu lugar.
HAMM Estou bem no centro?
CLOV Vou medir.
HAMM Mais ou menos! Mais ou menos!
CLOV (movendo levemente a cadeira) Pronto!
HAMM Estou mais ou menos no centro?
CLOV Eu diria que sim.
HAMM Você diria que sim! Ponha-me bem no centro!
CLOV Vou buscar a fita métrica.
HAMM Aproximadamente! Aproximadamente! (Clov move levemente a cadeira.) Bem no
centro!
CLOV Pronto!
(Pausa.)
HAMM Sinto-me um pouco à esquerda. (Clov move levemente a cadeira. Pausa.)
Agora, sinto-me um pouco à direita. (Clov move levemente a cadeira. Pausa.)
Sinto-me um pouco para a frente. (Clov move levemente a cadeira. Pausa.) Agora,
sinto-me um pouco para trás. (Clov move levemente a cadeira. Pausa.) Não fique
aí (Clov está atrás da cadeira), você me dá arrepios.
(Clov retorna ao seu lugar, ao lado da cadeira.)
CLOV Se eu pudesse matá-lo, morreria feliz.
(Pausa.)
HAMM Como está o tempo?
CLOV O mesmo de sempre.
HAMM Dê uma olhada na terra.
CLOV Já olhei.
HAMM Com a luneta?
CLOV Não é preciso luneta.
HAMM Olhe com a luneta.
CLOV Vou buscar a luneta. (Sai.)
HAMM Não é preciso luneta!
(Clov entra, com a luneta.)
CLOV Estou de volta, com a luneta. (Vai até a janela direita, ergue o olhar para
ela.) Preciso da escada.
HAMM Por quê? Você encolheu? (Clov sai, com a luneta.) Não gosto disso, não
gosto disso.
(Clov entra, com a escada, mas sem a luneta.)
CLOV Estou de volta, com a escada. (Coloca a escada sob a janela direita, sobe,
percebe que não está com a luneta, desce.) Preciso da luneta.(Dirige-se para a
porta.)
HAMM (com violência) Mas você está com a luneta!
CLOV (para, com violência) Não, eu não estou com a luneta! (Sai.)
HAMM Isto é de uma tristeza.
(Clov entra, com a luneta. Dirige-se até a escada.)
CLOV Isto está ficando divertido. (Sobe na escada, aponta a luneta para fora.)
Vejamos... (Olha, movendo a luneta.) Zero... (olha)...zero... (olha)... e zero.
(Abaixa a luneta, vira-se para Hamm.) E agora? Está mais tranquilo?
HAMM Nada se move. Tudo é...
CLOV Ze...
HAMM (com violência) Espere até eu lhe perguntar! (Voz normal.) Tudo é... tudo
é... tudo é o quê? (Com violência.) Tudo é o quê?
CLOV O que tudo é? Numa única palavra? É isso o que você quer saber? Um
momentinho. (Aponta a luneta para fora, olha, abaixa a luneta, vira-se para
Hamm.) Cadavérico. (Pausa.) Está satisfeito agora?
HAMM Olhe para o mar.
CLOV É a mesma coisa.
HAMM Olhe para o oceano!
(Clov desce da escada, caminha alguns passos na direção da janela esquerda,
volta até a escada, pega-a e coloca-a sob a janela esquerda, sobe, aponta a
luneta para fora, olha em toda a extensão. Para, de repente, com um sobressalto.
Abaixa a luneta, examina-a, aponta-a de novo para fora.)
CLOV Puta que te pariu!
HAMM (inquieto) O quê? Uma vela? Uma barbatana? Fumaça?
CLOV (sempre olhando) O farol afundou.
HAMM (aliviado) Ah! Isso não é nenhuma novidade.
CLOV (olhando) Ainda havia um pedaço.
HAMM A base.
CLOV (olhando) É.
HAMM E agora?
CLOV (olhando) Mais nada.
HAMM Nenhuma gaivota?
CLOV (olhando) Gaivota!
HAMM E o horizonte? Nada no horizonte?
CLOV (abaixando a luneta, voltando-se para Hamm, irritado) Mas que diabo poderia
haver no horizonte?
(Pausa.)
HAMM As ondas, como estão as ondas?
CLOV As ondas? (Aponta a luneta.) Plúmbeas.
HAMM E o sol?
CLOV (sempre olhando) Nada.
HAMM Mas ele deveria estar se pondo. Olhe bem.
CLOV (olhando) Nenhum sinal.
HAMM Então, já é de noite?
CLOV (sempre olhando) Não. (olhando) Cinza. (Abaixando a luneta e voltando-se
para Hamm, mais alto.) Cinza! (Pausa. Mais alto ainda.) CIIINZA! (Pausa.
Desce,aproxima-se de Hamm por trás, sussurra em seu ouvido.)
HAMM (com um sobressalto) Cinza! Ouvi você dizer cinza?
CLOV Preto claro. De polo a polo.
HAMM Você exagera. (Pausa.) Não fique aí, você me dá arrepios.
(Clov retorna ao seu lugar, ao lado da cadeira.)
HAMM Rotina. Nunca se sabe. (Pausa.) Esta noite vi o interior de meu peito.
Havia uma enorme ferida.
CLOV Ah! Você viu seu coração.
HAMM Não, estava viva. (Pausa. Com angústia.) Clov!
CLOV O que é?
HAMM O que está acontecendo?
CLOV Alguma coisa segue o seu curso.
(Pausa.)
HAMM CLOV!
CLOV (impaciente) Mas o que é?
HAMM Nós não estamos começando a... a... significar alguma coisa?
CLOV Significar alguma coisa! Você e eu, significar alguma coisa! (Curta
gargalhada.) Essa é muito boa!
HAMM Estou curioso. (Pausa.) Imagine se um ser racional voltasse à terra, ele
não estaria sujeito a conceber ideias em sua cabeça caso nos observasse durante
muito tempo? (Voz de um ser racional.) Ah, claro, claro, agora compreendo, sim,
sim, agora estou entendendo o que eles estão fazendo!(Clov sobressalta-se, larga
a luneta e começa a coçar a barriga, na altura do umbigo, com as duas mãos. Voz
normal.) E mesmo sem precisar chegar a esse ponto, nós mesmos... (com emoção)...
nós mesmos... em certos momentos... (Com veemência.) Pensar que tudo isto não
terá sido talvez em vão!
CLOV (angustiado, coçando-se) Há uma pulga em mim!
HAMM Uma pulga! Ainda existem pulgas?
CLOV (coçando-se) Há uma em mim. A menos que seja um chato.
HAMM (muito perturbado) Mas toda a humanidade poderia se originar novamente a
partir daí! Pegue-a, pelo amor de Deus!
CLOV Vou buscar o pó. (Sai.)
HAMM Uma pulga! Isso é terrível! Mas que dia!
CLOV (entra com uma latinha) Estou de volta, com o inseticida.
HAMM Jogue bem no focinho dela!
(Clov tira a camisa de dentro das calças, desabotoa a parte superior das calças,
puxa-a para a frente e joga o pó na abertura. Inclina-se, olha, espera,
sobressalta-se, joga mais pó,freneticamente, inclina-se, olha, espera.)
CLOV Sua vaca!
HAMM Pegou?
CLOV Acho que sim. (Larga a latinha e arruma as calças e a camisa.) A menos que
ela esteja no coito.
HAMM No coito? Você quer dizer acoita. A menos que ela esteja acoita.
CLOV Ahn? Acoita? Não se diz no coito?
HAMM Pense um pouco. Se ela estivesse no coito, estaríamos fodidos.
(Pausa.)
CLOV E sua vontade de mijar?
HAMM Estou mijando.
CLOV Isso é bom, isso é bom!
(Pausa.)
HAMM (com ardor) Vamos embora daqui, os dois! Para o Sul! Pelo mar! Você
construirá uma jangada e as correntes nos levarão, para longe, para
outros...outros... mamíferos!
CLOV Deus me livre!
HAMM Sozinho, embarcarei sozinho! Comece a construir a jangada imediatamente.
Amanhã, terei partido para sempre.
CLOV (apressando-se em direção da porta.) Começarei imediatamente.
HAMM Espere! (Clov para.) Você acha que há tubarões?
CLOV Tubarões? Não sei. Se houver, haverá. (Dirige-se para a porta.)
HAMM Espere! (Clov para) Ainda não está na hora do meu calmante?
CLOV (com violência) Não! (Dirige-se para a porta.)
HAMM Espere! (Clov para.) Como estão seus olhos?
CLOV Mal.
HAMM Mas você pode ver.
CLOV O suficiente.
HAMM Como estão suas pernas?
CLOV Mal.
HAMM Mas você pode andar.
CLOV Eu vou, eu venho.
HAMM Em minha casa. (Pausa. Profético e com volúpia.) Um dia você ficará cego.
Como eu. Ficará sentado por aí, uma partícula perdida no vazio,na escuridão,
para sempre. Como eu. (Pausa.) Um dia você dirá a si mesmo, estou cansado, vou
me sentar, e se sentará. Então dirá, estou com fome, vou me levantar e buscar
alguma coisa para comer. Mas você não se levantará. Você dirá, eu não devia ter
me sentado, mas já que me sentei, vou continuar sentado mais um pouco, depois me
levantarei e buscarei alguma coisa para comer. Mas você não se levantará e nem
buscará nada para comer. (Pausa.) Você olhará durante algum tempo para a parede,
então dirá, vou fechar os olhos, talvez durma um pouco,depois me sentirei
melhor, e você os fechará. E quando tornar a abri-los, não haverá mais nenhuma
parede. (Pausa.) Um infinito vazio o circundará, todos os mortos ressuscitados
de todos os tempos não poderiam preenchê-lo, e nele você se sentirá como um
minúsculo grão no meio da estepe. (Pausa.) Sim, um dia você saberá como é, será
iguala mim, só que você não terá ninguém ao seu lado, porque você jamais teve
piedade por alguém e porque não haverá mais ninguém para se apiedar.
(Pausa.)
CLOV Talvez. (Pausa.) Mas você se esquece de uma coisa.
HAMM De quê?
CLOV Não posso me sentar.
HAMM (impaciente) Então você se deitará, merda! Ou sofrerá uma paralisação,
simplesmente parará e permanecerá imóvel, assim, em pé, como você está agora. Um
dia você dirá, estou cansado, vou parar. Que importa aposição?
(Pausa.)
CLOV Vocês querem então que eu os abandone?
HAMM Exatamente.
CLOV Então, vou abandoná-los.
HAMM Você não pode nos abandonar.
CLOV Então, não os abandonarei.
(Pausa.)
HAMM Por que você não acaba com a gente? (Pausa.) Eu lhe ensino a combinação da
despensa se você prometer que acaba comigo.
CLOV Eu não poderia acabar com você.
HAMM Então, você não acabará comigo.
(Pausa.)
CLOV Vou deixá-lo, tenho mais o que fazer.
HAMM Você se lembra do dia em que chegou aqui?
CLOV Não. Muito pequeno, você me contou.
HAMM Lembra-se de seu pai?
CLOV (cansado) A resposta é a mesma. (Pausa.) Você já me fez essas perguntas um
milhão de vezes.
HAMM Amo as velhas perguntas. (Com fervor.) Ah, as velhas perguntas, as velhas
respostas, não há nada igual! (Pausa.) A verdade é que eu fui um pai para você.
CLOV É. (Olha fixamente para Hamm.) Você foi isso para mim.
HAMM Minha casa, um lar para você.
CLOV É. (Olha longamente ao redor.) Isto foi isso para mim.
HAMM (orgulhoso) Sem mim (aponta para si mesmo), nenhum pai. Sem Hamm (faz um
gesto largo ao redor), nenhum lar.
(Pausa.)
CLOV Vou deixá-lo.
HAMM Você nunca pensou numa coisa?
CLOV Nunca.
HAMM Que aqui nós estamos no fundo de um buraco. (Pausa.) Mas e além das
colinas? Hein? Talvez ainda exista o verde. Hein? (Pausa.) Flora!Pomona! (Pausa.
Em êxtase.) Ceres! (Pausa.) Talvez você não precisasse ir muito longe.
CLOV Não posso ir muito longe. (Pausa.) Vou deixá-lo.
HAMM Meu cachorro está pronto?
CLOV Falta uma pata.
HAMM Ele é macio?
CLOV É uma espécie de lulu.
HAMM Vá buscá-lo.
CLOV Falta uma pata.
HAMM Vá buscá-lo! (Clov sai.) Estamos avançando. (Tira o lenço, enxuga o rosto
sem desdobrá-lo, coloca-o de novo no bolso.)
(Clov entra, segurando um cachorro negro de pelúcia por uma de suas três patas.)
CLOV Aqui estão os seus cachorros.
(Clov entrega o cachorro a Hamm, que o coloca nos joelhos, apalpa-o e
acaricia-o.)
HAMM Ele é branco, não é?
CLOV Quase.
HAMM Como assim quase? Ele é branco ou não?
CLOV Não.
(Pausa.)
HAMM Você se esqueceu do sexo.
CLOV (vexado) Mas ele não está terminado. O sexo a gente faz no fim.
(Pausa.)
HAMM Você não colocou a fita.
CLOV (furioso) Mas ele não está terminado, eu já lhe disse! Primeiro, você
termina o cachorro, e depois põe a fita!
(Pausa.)
HAMM Ele pode ficar em pé?
CLOV Não sei.
HAMM Tente. (Entrega o cachorro a Clov, que o coloca no chão.) E então?
CLOV Espere.
(Clov se agacha e tenta colocar o cachorro de pé sobre suas três patas, não
consegue, desiste. O cachorro cai de lado.)
HAMM (impaciente) E então?
CLOV Ele está em pé.
HAMM (procurando o cachorro) Onde? Onde ele está?
CLOV (segura o cachorro, mantendo-o em pé) Aqui. (Pega a mão de Hamm e leva-a
até a cabeça do cachorro.)
HAMM (com a mão na cabeça do cachorro) Ele está olhando para mim?
CLOV Está.
HAMM (orgulhoso) Como se estivesse me pedindo que o leve passear?
CLOV Se lhe agrada...
HAMM (idem) Ou como se estivesse me implorando um osso. (Retira a mão.) Deixe-o
exatamente assim, em pé, aí, implorando-me.
(Clov se endireita. O cachorro cai de lado.)
CLOV Vou deixá-lo.
HAMM Você tem tido aquelas visões?
CLOV Menos.
HAMM A luz da mamãe Pegg está acesa?
CLOV Luz! Como poderia a luz de alguém estar acesa?
HAMM Apagada!
CLOV Claro que está apagada! Se não está acesa, está apagada.
HAMM Estou me referindo à mamãe Pegg.
CLOV Mas é claro que ela apagou! (Pausa.) O que há com você hoje?
HAMM Sigo meu curso. (Pausa.) Ela está enterrada?
CLOV Enterrada! Quem a enterraria?
HAMM Você.
CLOV Eu! Já não tenho muito o que fazer para ficar enterrando pessoas?
HAMM Mas você me enterrará.
CLOV Não, eu não o enterrarei!
(Pausa.)
HAMM Ela era bonita, outrora, como uma flor no campo. (Num tom de
reminiscência.) E uma magnífica flor para os homens!
CLOV Nós também éramos bonitos... outrora. É muito raro não ter sido bonito...
outrora.
(Pausa.)
HAMM Vá buscar o arpão.
(Clov vai até a porta, para.)
CLOV Faça isto, faça aquilo, e eu faço. Nunca recuso. Por quê?
HAMM Você não consegue.
CLOV Em breve não farei mais nada.
HAMM Porque você não conseguirá. (Clov sai.) Ah, as criaturas, as criaturas,
precisamos explicar tudo a elas.
(Clov entra com o arpão.)
CLOV Aqui está o seu arpão. Enfie-o no cu.
(Clov dá o arpão a Hamm que, usando-o como um ponto de apoio, à direita, à
esquerda, na frente, tenta mover a cadeira.)
HAMM Eu me movi?
CLOV Não.
(Hamm atira o arpão fora.)
HAMM Vá buscar o óleo.
CLOV Para quê?
HAMM Para lubrificar as rodinhas.
CLOV Já lubrifiquei ontem.
HAMM Ontem! O que isso significa? Ontem!
CLOV (com violência) Isso significa aquele maldito e terrível dia, há muito
tempo, antes deste maldito e terrível dia. Uso as palavras que você me ensinou.
Se elas não significam mais nada, ensine-me outras. Ou deixe-me permanecer
calado.
(Pausa.)
HAMM Uma vez conheci um louco que pensava que o fim do mundo havia chegado. Ele
era pintor... e escultor. Eu tinha uma grande afeição por ele. Costumava ir
vê-lo, no asilo. Pegava em sua mão e arrastava-o até a janela. Olhe! Ali! Todo
aquele trigo crescendo! E ali! Olhe! As velas dos barcos de pesca! Toda essa
beleza! (Pausa.) Ele arrebatava sua mão e retornava para seu canto. Horrorizado.
Não vira outra coisa senão cinzas. (Pausa.) Apenas ele havia sido poupado.
(Pausa.) Esquecido.(Pausa.) Parece que essa doença não é... não era tão... tão
incomum.
CLOV Um louco? Quando foi isso?
HAMM Oh, há muito tempo, há muito tempo, você ainda não estava neste mundo.
CLOV Abençoados dias!
HAMM Tinha uma grande afeição por ele. (Pausa. Coloca novamente a touca. Pausa.)
Era pintor... e escultor.
CLOV Há tantas coisas terríveis.
HAMM Não, não, não há tantas agora. (Pausa.) Clov.
CLOV Que é?
HAMM Você não acha que isto já foi longe demais?
CLOV E como! (Pausa.) O quê?
HAMM Isto... esta... coisa.
CLOV Sempre achei. (Pausa.) Você não?
HAMM (triste) Enfim, um dia como outro qualquer.
CLOV Tão longo como outro qualquer. (Pausa.) A vida toda, as mesmas banalidades.
(Pausa.)
HAMM Quanto a mim, não posso deixá-lo.
CLOV Eu sei. E não pode me seguir.
(Pausa.)
HAMM Se você me abandonar, como saberei?
CLOV (com vivacidade) Ora, você simplesmente apita e, se eu não vier correndo,
significa que abandonei.
(Pausa.)
HAMM Você não me daria um beijo de despedida?
CLOV Nem me passaria pela cabeça.
(Pausa.)
HAMM Mas você podia simplesmente estar morto na sua cozinha.
CLOV O resultado seria o mesmo.
HAMM Sim, mas como eu saberia, se você simplesmente estivesse morto em sua
cozinha?
CLOV Bem... mais cedo ou mais tarde eu começaria a feder.
HAMM Você já fede. A casa toda fede a defunto.
CLOV O universo todo.
HAMM (irritado) Que se foda o universo! (Pausa.) Pense em alguma coisa.
CLOV O quê?
HAMM Um plano, bole um plano. (Pausa. Furioso.) Um plano brilhante!
CLOV Está bem. (Começa a andar de um lado para o outro, com os olhos fixos no
chão, as mãos atrás das costas. Para.) Essa dor nas minhas pernas! É incrível!
Logo, logo não poderei mais pensar.
HAMM Você não será capaz de me abandonar. (Clov retoma sua caminhada.) O que
você está fazendo?
CLOV Bolando um plano. (Anda.) Ah! (Para.)
HAMM Que cérebro! (Pausa.) E então?
CLOV Espere! (Reflete. Sem muita convicção.) É... (Pausa. Um pouco mais
convencido.) É! (Ergue a cabeça.) Achei! Coloco o despertador.
(Pausa.)
HAMM Talvez não esteja num dos meus mais brilhantes dias, mas francamente...
CLOV Você apita. Eu não venho. O despertador toca. Eu parti. Ele não toca. Eu
morri.
(Pausa.)
HAMM Ele está funcionando? (Pausa. Impaciente.) O despertador está funcionando?
CLOV Por que não estaria funcionando?
HAMM Porque ele já funcionou demais.
CLOV Pelo contrário, quase nunca foi usado.
HAMM (furioso) Então porque funcionou muito pouco!
CLOV Vou ver. (Sai. Jogo do lenço. Curto ruído de despertador. Clov entra com o
despertador. Aproxima-o da orelha de Hamm e liga-o. Eles ouvem o despertador
tocar até acabar a corda. Pausa.) Capaz de despertar um morto! Você ouviu?
HAMM Vagamente.
CLOV O final é magnífico!
HAMM Prefiro a parte do meio. (Pausa.) Não está na hora do meu calmante? Clov
Não. (Vai até a porta, volta-se) Vou deixá-lo.
HAMM Está na hora da minha história. Quer ouvir minha história?
CLOV Não.
HAMM Pergunte a meu pai se ele quer ouvir minha história.
(Clov vai até as latas de lixo, ergue a tampa da lata de Nagg, olha para dentro
dela, inclina-se. Pausa. Endireita-se.)
CLOV Ele está dormindo.
HAMM Acorde-o.
(Clov inclina-se, acorda Nagg fazendo soar o despertador. Palavras
ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Ele não quer ouvir sua história.
HAMM Eu lhe darei uma bala.
(Clov inclina-se. Palavras ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Ele quer um bombom.
HAMM Ele ganhará um bombom.
(Clov se inclina. Palavras ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Negócio fechado. (Caminha em direção da porta. Aparecem as mãos de Nagg,
agarradas nas bordas. A seguir, surge sua cabeça. Clov abre aporta, vira-se)
Você acredita numa vida futura?
HAMM Eu sou o futuro. (Clov sai, batendo a porta.) Bem na mosca!
NAGG Estou ouvindo.
HAMM Seu porco imundo! Por que você me fez?
NAGG Não sabia.
HAMM O quê? O que é que você não sabia?
NAGG Que seria você. (Pausa.) Você vai me dar um bombom?
HAMM Depois de me ouvir.
NAGG Jura?
HAMM Juro.
NAGG Pelo quê?
HAMM Pela minha honra.
(Pausa. Eles explodem numa gargalhada entusiástica.)
NAGG Dois?
HAMM Um.
NAGG Um para mim e um para...
HAMM Um! Silêncio! (Pausa.) Onde eu estava? (Pausa. Triste.) É o fim, estamos no
fim. (Pausa.) Próximos do fim. (Pausa.) Não haverá mais fala. (Pausa.) Esta
coisa latejando na minha cabeça, desde criança.(Hilaridade abafada de Nagg.)
Tuntum, tuntum, sempre no mesmo lugar. (Pausa.) Talvez seja uma pequena veia.
(Pausa.) Uma pequena artéria. (Pausa. Mais animado.) Basta, está na hora da
minha história,onde eu estava? (Pausa. Tom de narrador.) O homem aproximou-se de
mim, lentamente, rastejando sobre seu ventre. Pálido, incrivelmente pálido e
magro, parecia a ponto de... (Pausa. Tom normal.) Não, já conclui este trecho.
(Pausa. Tom de narrador.) Calmamente, enchi meu cachimbo... feito de magnesita,
acendi-o com... digamos, com uma vela, soltei algumas baforadas. Aah! (Pausa.) E
então, o que é que você quer? (Pausa.) Naquele dia, eu me recordo, fazia um frio
extraordinariamente intenso, o termômetro registrava zero. Mas considerando-se
que era véspera de Natal, não havia nada de... de extraordinário nisso. Um
tempo, de certo modo, adequado para essa ocasião. (Pausa.) E então,que maléficos
ventos o trouxeram ao meu caminho? Ele ergueu a face enegrecida , uma mistura de
lama e lágrimas. (Pausa. Tom normal.) Isto deve servir. (Tom de narrador.) Não,
não, não olhe para mim, não olhe para mim! Ele abaixou os olhos, murmurando
alguma coisa, desculpas,presumo. (Pausa.) Estou muito ocupado, você entende não
é, os últimos preparativos, antes das festividades, sabe como é. (Pausa.
Enérgico.)Vamos, prossiga, qual é o propósito dessa invasão? (Pausa.) Naquele
dia, eu me recordo, fazia um sol verdadeiramente esplêndido, o heliômetro
registrava cinquenta, mas o sol já mergulhava no...mergulhava entre os mortos.
(Tom normal.) Isto ficou muito bonito.(Tom de narrador.) Vamos, vamos, prossiga,
apresente sua petição, mil deveres me chamam. (Pausa.) Foi então que ele se
decidiu. É a minha criança, ele disse. Aiaiaiaiai, uma criança, só me faltava
essa. Meu menininho, ele disse, como se o sexo fizesse alguma diferença. De onde
ele viera? Ele mencionou o buraco. Quase meio dia, a cavalo. O que você está
insinuando? Que o lugar ainda é habitado? Não, não, nem uma alma, a não ser ele
próprio e a criança... admitindo-se que ela existisse.Bom. Perguntei a respeito
da situação em Kov, do outro lado do golfo. Nem um pecador. Bom. E você espera
que eu acredite que você tenha deixado sua criança nesse lugar, totalmente
sozinha, e que ainda por cima ela esteja viva? Ora, vamos! (Pausa.) Naquele dia,
eu me recordo,fazia um vento açoitador, o anemômetro registrava cem. O vento
arrancava os pinheiros mortos e arrastava-os... para longe. (Pausa. Tom normal.)
Ficou um pouco fraco isso. (Tom de narrador.) Vamos,homem, diga logo, o que é
que você quer de mim, preciso preparar minha árvore de Natal. (Pausa.) Não
demorou muito para eu compreender que o que ele queria de mim era... pão para
seu pirralho?Pão? Mas não tenho pão, não me faz bem. Bom. Então talvez um pouco
de trigo? (Pausa. Tom normal.) Isto deve servir. (Tom de narrador.)Trigo, sim,
tenho trigo, é verdade, em meus celeiros. Mas, reflita, reflita. Dou-lhe um
pouco de trigo, um quilo, um quilo e meio, você o leva para sua criança e faz
para ela... caso ainda esteja viva... um saboroso prato de mingau (Nagg reage),
um saboroso prato e meio de mingau, bem nutritivo. Muito bem. As cores voltam a
suas pequenas bochechas...talvez. E depois? (Pausa.) Perdi a paciência.
(Violento.) Reflita, vamos,use a cabeça, você está na terra, não há remédio para
isso! (Pausa.)Naquele dia, eu me recordo, fazia um tempo excessivamente seco, o
higrômetro registrava zero. Tempo ideal, para o meu reumatismo.(Pausa.
Violento.) Mas, em nome de Deus, o que você espera? Que aterra renasça na
primavera? Que os rios e os mares fluam novamente repletos de peixes? Que ainda
haja maná nos céus para imbecis iguais a você? (Pausa.) Aos poucos, fui me
acalmando, pelo menos o suficiente para lhe perguntar quanto tempo havia gasto
na viagem. Três dias e três noites. Bom. Em que condições ele havia deixado a
criança.Profundamente adormecida. (Enérgico.) Mas profundamente adormecida como,
profundamente adormecida em que tipo de sono?(Pausa.) Bom, para resumir,
disse-lhe finalmente que poderia empregá-lo como meu criado. Ele me comovera. E
depois imaginei que já não me restava muito tempo de vida. (Ri. Pausa.) E então?
(Pausa.) E então?Aqui, se você for cuidadoso, poderá desfrutar de uma linda
morte natural, em paz e com conforto. (Pausa.) E então? (Pausa.) Finalmente ele
me perguntou se eu aceitaria também a criança... caso ela ainda estivesse viva.
(Pausa.) Era o instante que eu tanto esperara. (Pausa.) Se eu aceitaria também a
criança... (Pausa.) Ainda posso vê-lo, ajoelhado,as mãos derreadas, fitando-me
com seu olhar de demente,desobedecendo minhas ordens. (Pausa. Tom normal.) Não
falta muito para eu chegar ao fim desta história. (Pausa.) A menos que crie
outros personagens. (Pausa.) Mas onde os encontraria? (Pausa.) Onde os
procuraria? (Pausa. Apita. Clov entra.) Oremos a Deus.
NAGG Meu bombom!
CLOV Há um rato na cozinha!
HAMM Um rato! Ainda existem ratos?
CLOV Há um na cozinha.
HAMM E você não o exterminou?
CLOV Pela metade. Você nos interrompeu.
HAMM Ele não pode escapar?
CLOV Não.
HAMM Depois você acaba com ele. Oremos a Deus.
CLOV De novo?
NAGG Meu bombom!
HAMM Deus primeiro! (Pausa.) Estão prontos?
CLOV (resignado) Vamos em frente.
HAMM (a Nagg) E vós?
NAGG (enclavinha os dedos, fecha os olhos, fala rapidamente) Pai nosso que
estais...
HAMM Silêncio! Em silêncio! Onde estão seus modos? (Pausa.) Comecemos.
(Posições de oração. Silêncio. Hamm desfaz sua posição, desanimado.) E então?
CLOV (desfazendo a posição) Que esperança!
NAGG (desfazendo a posição) Nada a fazer!
HAMM O bastardo! Ele não existe!
CLOV Ainda não.
NAGG Meu bombom!
HAMM Não há mais bombons! Você nunca mais comerá o seu bombom!
(Pausa.)
NAGG É natural. Mas apesar de tudo, sou seu pai. É verdade que, se não fosse eu,
teria sido outro qualquer. Mas isso não é desculpa. (Pausa.) O doce sírio, por
exemplo, que não existe mais, todos nós sabemos disso, não há nada no mundo que
eu goste mais. E um dia eu lhe pedirei um, em troca de algum favor, e você me
prometerá. Deve-se viver de acordo com os tempos. (Pausa.) Quem você chamava
quando era bem pequenininho e ficava assustado, no escuro? Sua mãe? Não. Eu.
Deixávamos você gritar. Depois, o levávamos para bem longe, para que pudéssemos
dormir em paz. (Pausa.) Eu estava adormecido, feliz da vida, e você me acordou
para que eu o ouvisse. Não era necessário, você não necessitava realmente da
minha atenção. Além do mais, eu nem prestei atenção.(Pausa.) Um dia virá,
espero, em que você precisará realmente da minha atenção, e precisará ouvir
minha voz, qualquer voz. (Pausa.) Espero viver até esse dia, para ouvir você me
chamar do mesmo modo que me chamava quando era bem pequenininho, e ficava
assustado, no escuro, e eu era sua única esperança. (Pausa. Bate na tampa da
lata de Nell.
Pausa.) Nell! (Pausa. Bate mais forte. Pausa. Mais alto.) Nell! (Pausa. Nagg se
enfia na lata, fechando a tampa atrás dele.)
(Pausa.)
HAMM Acabou a brincadeira. (Procura, tateando, pelo cachorro.) O cachorro foi
embora.
CLOV Não é um cachorro de verdade, não pode ir embora.
HAMM (tateando) Ele não está aqui.
CLOV Ele se deitou.
HAMM Pegue-o. (Clov pega o cachorro e entrega-o a Hamm. Hamm o segura nos
braços. Pausa. Atira o cachorro para longe.) Animal imundo!
(Clov começa a pegar os objetos espalhados pelo chão.) O que você está fazendo?
CLOV Colocando as coisas em ordem. (Endireita-se. Com veemência.) Vou deixar
tudo limpo. (Começa a pegar novamente)
HAMM Ordem!
CLOV (endireitando-se) Amo a ordem. É meu sonho. Um mundo onde tudo fosse
silencioso e imóvel, cada coisa em seu derradeiro lugar, sob o derradeiro pó.
(Começa a pegar os objetos novamente)
HAMM (irritado) Mas o que é que você pensa que está fazendo?
CLOV (endireitando-se) Estou fazendo o possível para criar alguma ordem.
HAMM Pare com isso!
(Clov larga todos os objetos que pegara.)
CLOV Afinal, aqui ou ali. (Caminha em direção à porta.)
HAMM (irritado) O que há de errado com seus pés?
CLOV Meus pés?
HAMM Pah! Pah!
CLOV Precisei pôr minhas botas.
(Pausa.)
CLOV Vou deixá-lo.
HAMM Não!
CLOV Mas para que é que eu sirvo aqui?
HAMM Para me dar a réplica. (Pausa.) Minha história está indo bem. (Pausa.)
Minha história está indo muito bem. (Pausa. Irritado.) Pergunte-me onde é que eu
parei?
CLOV Oh, a propósito, e sua história?
HAMM (surpreso) Que história?
CLOV Aquela que você tem contado para si mesmo durante toda a sua... vida.
HAMM Ah, refere-se à minha crônica?
CLOV Essa mesma.
(Pausa.)
HAMM (irritado.) Merda! Continua, porra, continua!
CLOV Sua crônica esta indo bem, espero.
HAMM (modesto) Oh, não muito, não muito. (Suspira.) Há dias, como hoje, que a
gente não está muito inspirado. (Pausa.) Não se pode fazer nada, a não ser que a
inspiração venha. (Pausa.) Não adianta forçar, não adianta forçar, seria
desastroso. (Pausa.) Apesar de tudo, estou me saindo bem.
(Pausa.) Você sabe como é, técnica. (Pausa. Irritado.) Eu disse que, apesar de
tudo, estou me saindo bem.
CLOV (admirado) Que maravilha! É fantástico! Apesar de tudo, você está se saindo
bem!
HAMM (modesto) Oh, não muito, você sabe, não muito, mas melhor do que nada.
CLOV Melhor do que nada! É inacreditável!
HAMM Vou lhe contar como está. Ele vem rastejando, sobre seu ventre...
CLOV Quem?
HAMM O quê?
CLOV Ele! Quem é ele?
HAMM Como quem é ele? Ele! O outro!
CLOV Ah, o outro! Não tinha certeza.
HAMM Rastejando sobre a barriga, suplicando um pedaço de pão para seu pirralho.
Oferecem-lhe um emprego de jardineiro. Em vez de... (Clov cai na gargalhada.) O
que há de tão engraçado?
CLOV Um emprego de jardineiro!
HAMM É isso que lhe faz cócegas?
CLOV Deve ser isso.
HAMM Não seria o pão?
CLOV Ou o pirralho.
(Pausa.)
HAMM A coisa toda é cômica, garanto-lhe. (Pausa.) Bom... continuo. Em vez de
aceitar com gratidão, ele pergunta se poderia trazer seu menininho com ele.
CLOV Que idade?
HAMM Oh, muito pequeno.
CLOV Ele poderia trepar nas árvores.
HAMM Todos os pequenos serviços.
CLOV E depois ele poderia crescer.
HAMM Provavelmente.
(Pausa.)
CLOV Mas continue, porra, continue!
HAMM É tudo. Parei aí.
(Pausa.)
CLOV Mas você sabe como ela continua?
HAMM Mais ou menos.
CLOV Não estará perto do fim?
HAMM É isso que me amedronta.
CLOV Ah! Você criará outra.
HAMM Não sei. (Pausa.) Sinto-me exausto. (Pausa.) O esforço criativo
prolongado. (Pausa.) Se pudesse me arrastar até o mar! Faria um travesseiro de
areia para minha cabeça e a maré viria.
CLOV Não há mais marés.
(Pausa.)
HAMM Vá ver se ela está morta.
(Clov vai até a lata de lixo de Nell, ergue a tampa, inclina-se. Pausa.)
CLOV Parece que sim.
(Clov fecha a tampa, endireita-se. Hamm ergue a touca. Pausa. Coloca-a
novamente.)
HAMM (com a mão na touca) E Nagg?
(Clov ergue a tampa da lata de Nagg, inclina-se. Pausa.)
CLOV Parece que não. (Fecha a tampa, endireita-se.)
HAMM (tirando a mão da touca) O que ele está fazendo?
(Clov ergue a tampa da lata de Nagg, inclina-se. Pausa.)
CLOV Ele chora. (Fecha a tampa, endireita-se.)
HAMM Portanto, ele vive. (Pausa.) Você já teve alguma vez um instante de
felicidade?
CLOV Não que eu saiba.
(Pausa.)
HAMM Leve-me até a janela. (Clov vai até a cadeira.) Quero sentir a luz no meu
rosto. (Clov empurra a cadeira.) Você se lembra, no começo,quando você me levava
passear? Você costumava segurar a cadeira muito em cima. A cada passo, você
quase me derrubava. (Com um tremor senil na voz.) Ah, como nós nos divertíamos,
os dois, nos divertíamos muito! (Triste.) Mas depois, foi-se tornando uma
rotina.(Clov para a cadeira sob a janela direita.) Já chegou? (Pausa. Inclina a
cabeça para trás. Pausa.) Está claro?
CLOV Não está escuro.
HAMM (irritado) Perguntei se está claro!
CLOV Está.
(Pausa.)
HAMM A cortina não está fechada?
CLOV Não.
(Pausa.)
HAMM Que janela é essa?
CLOV A terra.
HAMM Eu sabia! (Irritado.) Mas não há nenhuma luz aí! A outra! (Clov empurra a
cadeira na direção da janela esquerda.) A terra! (Clov para a cadeira sob a
janela esquerda. Hamm inclina a cabeça para trás.) É isso que eu chamo de luz!
(Pausa.) Parece um raio de sol. (Pausa.) Não?
CLOV Não.
HAMM Não é um raio de sol que sinto em meu rosto?
CLOV Não.
(Pausa.)
HAMM Estou muito branco? (Pausa. Violento.) Perguntei se estou muito branco!
CLOV Não mais do que o de costume.
(Pausa.)
HAMM Abra a janela.
CLOV Para quê?
HAMM Quero ouvir o mar.
CLOV Você não poderia ouvi-lo.
HAMM Mesmo se você abrisse a janela?
CLOV Mesmo.
HAMM Então não vale a pena abri-la?
CLOV Não.
HAMM (violento) Abra assim mesmo! (Clov sobe na escada, abre a janela. Pausa.)
Abriu?
CLOV Abri.
(Pausa.)
HAMM Você jura que abriu?
CLOV Juro.
(Pausa.)
HAMM Bom...! (Pausa.) Deve estar bem calmo. (Pausa. Violento.) Estou lhe
perguntando se está bem calmo!
CLOV Está.
HAMM É porque não há mais navegadores. (Pausa.) De repente, você não tem muito
mais o que dizer. Não se sente bem?
CLOV Estou com frio.
HAMM Em que mês estamos? (Pausa.) Feche a janela, vamos voltar. (Clov fecha a
janela, desce da escada, empurra a cadeira de volta ao seu lugar, permanece em
pé atrás dela, cabeça curvada.) Não fique aí, você me dá arrepios! (Clov retorna
ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Pai! (Pausa. Mais alto.) Pai! (Pausa.) Vá ver
se ele me ouviu.
(Clov vai até a lata de Nagg, ergue a tampa, inclina-se. Palavras
ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Ouviu.
HAMM As duas vezes?
(Clov inclina-se. Palavras ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Só uma.
HAMM A primeira ou a segunda?
(Clov inclina-se. Palavras ininteligíveis. Clov se endireita.)
CLOV Ele não sabe.
HAMM Deve ter sido a segunda.
CLOV Nunca saberemos. (Fecha a tampa.)
HAMM Ele ainda está chorando?
CLOV Não.
HAMM A morte se aproxima. (Pausa.) O que ele está fazendo?
CLOV Chupando o biscoito.
HAMM A vida continua. (Clov retorna ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Pegue um
cobertor, estou gelando.
CLOV Não há mais cobertores.
(Pausa.)
HAMM Dê-me um beijo. (Pausa.) Você não vai me dar um beijo?
CLOV Não.
HAMM Na testa.
CLOV Não o beijarei em parte alguma.
(Pausa.)
HAMM (erguendo a mão) Dê-me sua mão, pelo menos. (Pausa.) Não vai me dar a mão?
CLOV Não tocarei em você.
(Pausa.)
HAMM Dê-me o cachorro. (Clov procura ao redor pelo cachorro.) Não!
CLOV Não quer seu cachorro?
HAMM Não.
CLOV Então, vou deixá-lo.
HAMM (cabeça curvada, ausente) Está bem.
(Clov vai até a porta, vira-se.)
CLOV Se eu não matar aquele rato, ele morrerá.
HAMM (como antes) Está bem. (Clov sai. Pausa.) Minha vez. (Tira o lenço,
desdobra-o, segura-o estendido à sua frente.) Estamos avançando. (Pausa.)
Choramos,choramos, para nada, para não rir, e aos poucos... uma verdadeira
tristeza nos invade. (Dobra o lenço, guarda-o no bolso, ergue um pouco a cabeça)
Todos aqueles que eu poderia ter ajudado. (Pausa.) Ajudado! (Pausa.) Salvado.
(Pausa.)Salvado! (Pausa.) O lugar fervilhava deles! (Pausa. Violento.) Reflitam,
vamos,usem a cabeça, vocês estão na terra, não há remédio para isso! (Pausa.)
Saiam daqui e amem-se uns aos outros! Fodam-se uns aos outros! (Pausa. Mais
calmo.)Quando não pediam pão, pediam bolo. (Pausa. Violento.) Saiam da minha
frente e voltem às suas bacanais! (Pausa. Em voz baixa.) Tudo isso, tudo isso!
(Pausa.)Nem ao menos um cachorro de verdade! (Mais calmo.) O fim está no começo
e contudo você continua. (Pausa.) Talvez pudesse continuar minha história,
terminá-la e começar uma outra. (Pausa.) Talvez pudesse atirar-me ao chão. (Ele
se ergue,penosamente, do assento, deixa-se cair de novo, sentado.) Enfiar minhas
unhas nas fendas e arrastar-me para a frente, com a força dos dedos. (Pausa.)
Será o fim e ali estarei, perguntando-me o que possa tê-lo provocado e
perguntando-me o que possa... (hesita)... por que demorou tanto a chegar.
(Pausa.) Ali estarei, no velho refúgio, sozinho, diante do silêncio e...
(hesita)... da imobilidade. Se eu conseguir ficar calado e tranquilo, estará
tudo acabado, o som, o movimento, tudo acabado e concluído. (Pausa.) Terei
chamado meu pai e terei chamado meu... (hesita)...meu filho. E até duas ou três
vezes, caso não tivessem me ouvido da primeira vez ou da segunda. (Pausa.) Direi
para mim mesmo, Ele voltará. (Pausa.) E depois? (Pausa.) E depois? (Pausa.) Ele
não poderia, partiu para bem longe. (Pausa.) E depois?(Pausa. Muito agitado.)
Todos os tipos de fantasias! Que estou sendo observado! Um rato! Passos!
Respiração retida e então... (exala). Então balbucio, balbucio palavras, como a
criança solitária que se transforma em duas, três, várias crianças,para estarem
juntas e murmurarem juntas, no escuro. (Pausa.) Os segundos se acumulando,
tique-taque, tique-taque, como os grãos de milho de... (hesita)...daquele antigo
grego, e durante toda a vida você espera que isso lhe crie uma vida. (Pausa.
Abre a boca para continuar, desiste. Pausa.) Ah, acabemos com isto! (Apita. Clov
entra com o despertador. Ele para ao lado da cadeira.) Como? Nem partiu nem
morreu?
CLOV Apenas interiormente.
HAMM Qual dos dois?
CLOV Ambos.
HAMM Longe de mim, você estaria morto.
CLOV E vice-versa.
HAMM (altivamente) Fora daqui está a morte! (Pausa.) E o rato?
CLOV Escapou.
HAMM Não pode ir longe. (Pausa. Inquieto.) Não é?
CLOV Ele não precisa ir longe.
(Pausa.)
HAMM Não está na hora do meu calmante?
CLOV Está.
HAMM Ah! Finalmente! Vá buscar! Rápido!
(Pausa.)
CLOV Não há mais calmante.
(Pausa.)
HAMM (apavorado) Meu...! (Pausa.) Não há mais calmante!
CLOV Não há mais calmante. Você nunca mais tomará o seu calmante.
(Pausa.)
HAMM Mas a caixinha redonda. Estava cheia!
CLOV Estava, mas agora está vazia.
(Pausa. Clov põe-se a andar ao redor do aposento. Procura um lugar para colocar
o despertador.)
HAMM (voz baixa) O que é que eu vou fazer? (Pausa. Num grito.) O que é que eu
vou fazer? (Clov vê o quadro, tira-o, coloca-o em pé, no chão,sempre com a face
voltada para a parede, pendura o despertador em seu lugar.) O que é que você
está fazendo?
CLOV Dando os últimos retoques.
HAMM Dê uma olhada na terra.
CLOV De novo?
HAMM Já que ela tanto o atrai.
CLOV Sua garganta está dolorida? (Pausa.) Quer uma pastilha? (Pausa.) Não?
(Pausa.) É uma pena.
(Clov dirige-se, cantarolando, até a janela direita, para diante dela, ergue o
olhar para ela, jogando a cabeça para trás.)
HAMM Não cante!
CLOV (virando-se para Hamm) Não se tem mais o direito de cantar?
HAMM Não.
CLOV Então, como você quer que isto acabe?
HAMM Você quer que isto acabe?
CLOV Quero cantar.
HAMM Não posso impedi-lo.
(Pausa. Clov vira-se para a janela direita.)
CLOV O que fiz com aquela escada? (Olha ao redor procurando a escada.) Você não
viu aquela escada? (Procura. Vê a escada.) Ah, já era tempo. (Vai até a janela
esquerda.) Às vezes, não sei onde é que estou com a cabeça. Depois, passa, e
fico tão lúcido quanto antes. (Sobe na escada, olha para fora, pela janela.)
Puta que pariu! Ela está debaixo da água! (Olha.) Como pode ser? (Inclina a
cabeça para a frente, espia com a mão acima dos olhos.) Não choveu. (Limpa a
vidraça, olha. Pausa. Bate com a mão na testa.) Mas que idiota! Estou do lado
errado! (Desce da escada, dá alguns passos em direção da janela direita.)
Debaixo da água! (Volta para pegar a escada.) Mas que idiota! (Leva a escada
para a janela direita.) Às vezes me pergunto se estou em meu juízo perfeito.
Depois, passa, e fico tão ajuizado quanto antes. (Coloca a escada debaixo da
janela direita, sobe, olha pela janela. Vira-se para Hamm.) Tem preferência por
algum setor em particular? (Pausa.) Ou apenas pelo todo?
HAMM (com voz fraca) O todo.
CLOV O panorama geral? (Pausa. Vira-se para a janela.) Vejamos. (Olha.)
HAMM Clov!
CLOV (absorto) Hum...
HAMM Sabe de uma coisa?
CLOV (como antes) Hum...
HAMM Nunca estive lá. (Pausa.) Clov!
CLOV (vira-se para Hamm, exasperado) O que é?
HAMM Nunca estive lá.
CLOV Sorte sua. (Vira-se para a janela.)
HAMM Ausente, sempre. Tudo aconteceu sem mim. Não sei o que aconteceu. (Pausa.)
Você sabe o que aconteceu? (Pausa.) Clov!
CLOV (vira-se para Hamm, exasperado) Você quer que eu olhe para este monte de
merda ou não?
HAMM Responda primeiro.
CLOV O quê?
HAMM Você sabe o que aconteceu?
CLOV Onde? Quando?
HAMM (violento) Quando! O que aconteceu? Não compreende? Reflita! Vamos! Use a
cabeça! O que aconteceu?
CLOV E o que importa o que aconteceu? (Vira-se para a janela.)
HAMM Eu... eu não sei.
(Pausa. Clov vira-se para Hamm.)
CLOV (áspero) Quando a velha mamãe Pegg lhe pediu óleo para sua lamparina e você
a mandou para o inferno, sabia então o que estava acontecendo, não é? (Pausa.)
Sabe do que ela morreu, a mamãe Pegg? De escuridão.
HAMM (com voz fraca) Eu não tinha mais óleo.
CLOV (como antes) Tinha, sim!
(Pausa.)
HAMM Você está com a luneta?
CLOV Não. Está suficientemente claro.
HAMM Vá buscá-la.
(Pausa. Clov olha para cima e ergue os braços com os punhos cerrados. Perde o
equilíbrio, agarra-se à escada. Começa a descer, para.)
CLOV Há uma coisa que está além da minha compreensão. (Desce. Para.) Por que eu
lhe obedeço sempre? Você pode me explicar isso?
HAMM Não... Talvez seja compaixão. (Pausa.) Uma espécie de imensa compaixão.
(Pausa.) Você não descobrirá facilmente, não descobrirá facilmente.
(Pausa. Clov põe-se a andar pela sala em busca da luneta.)
CLOV Estou cansado de nossas leviandades, muito cansado. (Procura.) Você não
está sentado em cima dela? (Move a cadeira, olha para o lugar onde ela estava,
continua a procurar.)
HAMM (angustiado) Não me deixe aqui! (Clov, irritado, recoloca a cadeira em seu
lugar. Continua a procurar. Com voz fraca.) Estou bem no centro?
CLOV Seria necessário um microscópio para descobrir isso. (Vê a luneta.) Ah, já
era tempo! (Pega a luneta, vai até a escada, sobe, aponta a luneta para fora.)
HAMM Dê-me o cachorro.
CLOV (olhando) Quieto!
HAMM (mais alto) Dê-me o cachorro!
(Clov larga a luneta, agarra a cabeça com as mãos. Pausa. Desce
precipitadamente, procura o cachorro, encontra-o, pega-o, dirige-se
apressadamente na direção de Hamm e golpeia-o, com violência, na cabeça com o
cachorro.)
CLOV Tome o seu cachorro!
(O cachorro cai no chão. Pausa.)
HAMM Ele me bateu!
CLOV Você me deixa louco, estou louco!
HAMM Se quer me bater, bata-me com o martelo. (Pausa.) Ou com o arpão, vamos,
bata-me com o arpão. Não com o cachorro. Com o arpão. Ou com o martelo.
(Clov pega o cachorro e entrega-o a Hamm, que o pega em seus braços.)
CLOV (implorando) Vamos acabar com este jogo!
HAMM Nunca! (Pausa.) Ponha-me no meu caixão.
CLOV Não há mais caixões.
HAMM Que vá tudo à merda! (Clov vai até a escada. Com violência.) Que vá tudo
pelos ares! (Clov sobe na escada, para, desce, procura a luneta, acha-a, pega-a,
sobe na escada, ergue a luneta.) De escuridão! E eu? Alguma vez alguém teve
piedade de mim?
CLOV (abaixando a luneta, virando-se para Hamm) O quê? (Pausa.) Você está se
referindo a mim?
HAMM (furioso) É um aparte, imbecil! Você nunca ouviu um aparte antes? (Pausa.)
Estou me preparando para o meu último solilóquio.
CLOV Ouça bem. Olharei para esta merda já que você me pediu. Mas será a última
vez. (Aponta a luneta para fora.) Vejamos. (Movimenta a luneta.) Nada... nada...
nada... (Sobressalta-se, abaixa a luneta, examina-a, aponta-a novamente para
fora. Pausa.) Puta que pariu!
HAMM Mais complicações! Espero que não seja outra tolice!
CLOV (Apavorado.) Parece... um menino.
HAMM (Sarcástico.) Um menino... (Pausa.) É o fim, Clov, chegamos ao fim. Não
preciso mais de você.
(Pausa.)
CLOV Sorte sua. (Dirige-se para a porta.)
HAMM Deixe-me o arpão.
(Clov dá o arpão a Hamm, dirige-se para a porta, para, olha para o despertador,
tira-o da parede, olha ao redor em busca de um lugar melhor para colocá-lo, vai
até a escada, coloca-o em cima da escada, retoma seu lugar perto da cadeira.
Pausa.)
CLOV Vou deixá-lo. (Dirige-se para a porta.)
HAMM Antes de ir... (Clov para perto da porta.)... diga alguma coisa.
CLOV Não há nada para dizer.
HAMM Algumas palavras... que eu possa guardar... em meu coração.
CLOV Seu coração!
HAMM Sim. (Pausa. Violento.) Sim! (Pausa.) No fim, nos últimos instantes, nas
sombras, nos murmúrios, todo aquele sofrimento, para terminar. (Pausa.) Clov...
ele nunca me havia dito. Então, no fim, antes de partir, sem que eu lhe tenha
perguntado nada, ele me contou. Ele me disse...
CLOV (vencido) Ah...!
HAMM Qualquer coisa... que venha do seu coração.
CLOV Meu coração!
HAMM Algumas palavras... do seu coração.
(Pausa.)
CLOV (olhar fixo, sem entonação, para o público) Disseram-me, Isto é o amor,
sim, sim, não tenha dúvida, você vê agora como...
HAMM Com sentimento!
CLOV (como antes) Como é fácil. Disseram-me, Isto é a amizade, sim, sim, não
tenha a menor dúvida, você não precisa procurá-la em outra parte. Disseram-me,
Está tudo aqui, pare, erga a cabeça e olhe para todo este esplendor. Que ordem!
Disseram-me, Vamos, você não é nenhum idiota,reflita sobre todas estas coisas e
verá como tudo se torna claro. E simples! Disseram-me, Todos esses feridos
mortalmente, com que sabedoria cuidam deles.
HAMM Chega!
CLOV (como antes) Digo para mim mesmo... às vezes... Clov, você precisa aprender
a sofrer muito mais do que isto, se deseja, um dia, vê-los cansados de tanto
puni-lo. Digo para mim mesmo... às vezes... Clov, você precisa permanecer aqui
muito mais do que isto, se deseja que eles,um dia, deixem-no partir. Mas
sinto-me muito velho, e muito distante, para formar novos hábitos. Bom, isto
nunca acabará, eu nunca partirei.(Pausa.) Então, um dia, de repente, isto acaba,
muda, não sei, morre, ousou eu, não entendo isso também. Interrogo as palavras
que restam... dormir, acordar, manhã, noite. Elas não têm nada a dizer. (Pausa.)
Abro a porta da cela e parto. Estou tão curvado que, quando abro os olhos,vejo
apenas meus pés, e entre eles uma pequena trilha de poeira escura.Digo para mim
mesmo que a terra está morta, embora nunca a tenha visto antes com vida.
(Pausa.) É fácil partir. (Pausa.) Quando cair, chorarei de felicidade. (Pausa.
Dirige-se para a porta.)
HAMM Clov! (Clov para, sem se virar.) Nada. (Clov se move.) Clov!
(Clov para, sem se virar.)
HAMM Fico-lhe grato, Clov. Pelos seus serviços.
CLOV (virando-se, atencioso) Perdão, sou eu que lhe fico grato.
HAMM Somos nós que ficamos gratos um pelo outro. (Pausa. Clov dirige-se para a
porta.) Só mais uma coisa. (Clov para.) Um último favor. (Clov sai.) Cubra-me
com o lençol. (Longa pausa.) Não? (Pausa.) Bom. (Pausa.) Minha vez. (Pausa.
Exausto.) O último lance do velho jogo, há muito tempo perdido. (Pausa. Mais
animado.) Vejamos. (Pausa.) Ah, sim! (Tenta mover a cadeira, usando o arpão,
como antes. Nesse ínterim, Clov entra, vestido para a viagem. Chapéu, casaco,
uma capa no braço, guarda-chuva, mala. Ele para perto da porta e permanece
aí,indiferente e imóvel, com os olhos fixos em Hamm, até o fim. Hamm desiste.)
Bom. (Pausa.) Descartar. (Atira o arpão, faz menção de atirar o cachorro, pensa
melhor.) Calma. (Pausa.) E agora? (Pausa.) Tirar o chapéu. (Ergue a touca.) Paz,
aos nossos... cus. (Pausa.) Pôr o chapéu outra vez. (Coloca a touca.) Merda.
(Pausa.) Um pouco de poesia. (Pausa.) Tu appelais... (Pausa. Corrige-se) Tu
réclamais le soir... il vient... (Pausa. Corrige-se.) Il descend... le voici.
(Repete, declamando.) Tu réclamais le soir... il descend... le voici. (Pausa.)
Bonito isso. (Pausa.) E agora? (Pausa.) Momentos vazios, agora e sempre, o tempo
nunca existiu e o tempo acabou, a conta encerrada e a história terminada.
(Pausa. Tom de narrador.) Se ele podia trazer sua criança com ele... (Pausa.)
Era o instante que eu tanto esperara. (Pausa.) Você não quer abandoná-la? Quer
vê-la desabrochando enquanto você vai murchando? Ter um consolo durante os
últimos milhões de seus últimos momentos? (Pausa.) Ela não compreende, tudo que
conhece é a fome, e o frio, e a morte a coroá-la. Mas você! Você deveria saber o
que é aterra, hoje em dia. (Pausa.) Oh, eu fiz com que ele encarasse suas
responsabilidades! (Pausa. Tom normal) Bom, aqui estamos, aqui estou, isso
basta. (Leva o apito aos lábios, hesita, larga-o. Pausa.) Sim,de fato! (Apita.
Pausa. Apita mais alto. Pausa.) Bom. (Pausa.) Pai!(Pausa.) Não? (Pausa.) Bom.
(Pausa.) Estamos chegando. (Pausa.) E para terminar? (Pausa.) Descartar. (Atira
fora o cachorro. Arranca, com violência, o apito do pescoço e atira-o longe.
Pausa. Funga. Em voz baixa.) Clov! (Pausa.) Clov! (Pausa.) Não? (Pausa.) Bom.
(Tira o lenço.) Já que o jogo é assim... (desdobra o lenço)... joguemos
assim...(desdobra)... e não digamos mais nada... (acaba de desdobrá-lo)... mais
nada. (Segura o lenço estendido diante de si.) Velho trapo! (Pausa.) Você...
fica. (Pausa. Cobre o rosto com o lenço, coloca os braços nos braços da cadeira,
permanece imóvel.)
(Silêncio.)
FIM

FIM DE PARTIDA, obra-prima de Samuel Beckett
(prémio Nobel 1969) apresenta 4 personagens que interagem por hábito e
dependência: Hamm é cego e ocupa o centro da cena, sentado no seu cadeirão de
rodas. Clov, o empregado/escravo, que hesita entre a vontade de abandonar ou matar Hamm.
Nell e Nagg, pais de Hamm, perderam as pernas e vivem fechados em grandes
latas de lixo.
ϟ
Fim de Jogo
Peça em 1 Acto
Samuel Beckett
-texto integral-
Título original: Fin de Partie | Endgame (1957)
Tradução: Rubens Rusche
1.Fev.2024
Publicado por
MJA
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