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Leny Magalhães Mrech
"Para mim o mundo é uma espécie de enigma constantemente renovado. Cada vez que o olho estou sempre a ver as coisas pela primeira vez. O mundo tem
muito mais para me dizer do que aquilo que sou capaz de entender. Daí que
me tenha de abrir a um entendimento sem baias, de forma a que tudo caiba
nele". | José Saramago, in O Jornal, 1983.
Falar de um livro que aborda a cegueira, em um mundo voltado para a imagem, parece, a princípio, um contra-senso. No entanto, essa estranheza começa a se diluir quando
sabemos que o autor da obra é José Saramago, prêmio Nobel de Literatura de 1998. Alguém que procurou ultrapassar o plano nacional, tentando capturar a essência da alma
humana.
Mas, por que José Saramago escreve sobre a cegueira? E por que esta leitura interessa aos praticantes de Educação Especial, Educação Inclusiva e Psicanálise ? Porque ele
faz uma leitura profunda do que vem acontecendo na sociedade contemporânea. No livro ele revela o nosso ponto de ofuscamento maior. Nós não percebemos que as imagens nos
cegam. Nós não vemos que elas não nos permitem ver o que acontece conosco.
O que se trata de discernir, pelas vias do caminho que ele nos indica,
é a preexistência de um olhar - eu só vejo de um ponto, mas em
minha existência sou olhado de toda parte. (Lacan 1979, p. 73)
Para muitos, pensar na cegueira é apenas refletir a respeito do problema dos olhos que ficam cegos, e não na preexistência de um olhar que pode cegar. Um olhar erotizado.
Um olhar que enxerga o mundo de uma outra forma.
Esta é a diferença entre o olhar do senso comum que se deixa levar e enganar pelo que acredita ver. Ou do olhar técnico que tenta cortar todos os conteúdos emocionais
para ficar apenas com os olhos assépticos, com os olhos do mecanismo da visão.
Por meio da Arte, em seu sentido maior, Saramago revela as diferentes faces e contrafaces que o diferente pode apresentar no escrito. Uma tentativa de capturar o fracasso
do próprio olhar redutor estabelecido em suas múltiplas formas. Dos olhos assépticos, que partem de uma perspectiva de que todos vêem e sentem da mesma forma. Do
achatamento do funcionamento dos olhos e dos sujeitos a uma visão comum, universal e atemporal, facilmente encontrada em todas as culturas e sociedades.
Acreditamos que esse modelo esteja também presente no modelo clássico da Educação Especial, que privilegia a deficiência visual e não
o sujeito. Num modelo que reduz o sujeito a ser apenas olhos e não olhar.
E, no entanto, estes conteúdos não são verdadeiramente novos. Freud, ainda em 1910, assim como Lacan nas décadas posteriores, já revelava a importância de uma apreensão
mais profunda do psiquismo do sujeito em relação à interação entre o olho e o olhar.
As pulsões sexuais e as pulsões do ego têm à sua disposição os mesmos órgãos e sistemas orgânicos. O prazer sexual não se enlaça exclusívamente com a função dos genitais.
A boca serve para beijar tanto como para comer ou para a expressão verbal, e os olhos não percebem somente as modificações do mundo exterior importantes para a
conservação da vida, senão também aquelas qualidades dos objetos que os elevam à categoria de objetos de eleição erótica. (...) Quando a pulsão sexual parcial se serve da
visão chega a provocar com suas exigências a defesa dos instintos do ego, dando lugar à repressão das representações nas quais se manifesta sua tendência, fica perturbada
de um modo geral a relação com os órgãos visuais e à visão como ego e a consciência, O ego perde seu império sobre o órgão, o qual se põe por inteiro à disposição da
pulsão sexual reprimida. (Freud 1973, pp. 1.633 e 1.634)
Os olhos podem entrar em rebelião em relação ao olhar. O olhar pode produzir uma nova forma de os olhos verem. Contudo, para captar essas mudanças, é preciso enxergar as
coisas com outros olhos. É preciso ter olhos para ver o que realmente acontece com o registro do real.
O que não é da mesma ordem da captura da chamada realidade concreta. Esta apenas revela uma concepção prévia de mundo. Uma concepção que reduz todos os sujeitos a
pensarem da mesma forma e a sentirem do mesmo modo.
Nem o olhar científico de abordagens, como o da Medicina, da Psicologia e da Educação Especial, tem conseguido escapar a este olhar prévio. Elas acreditam que basta
apenas privilegiar os olhos e o plano da consciência como os grandes articuladores das atividades humanas. O que tem acarretado a exclusão do inconsciente, da diferença e
de tudo aquilo que não se encaixa no plano dos contextos sociais mais amplos. Isto porque elas possuem uma crença prévia de que apenas os olhos e a consciência
possibilitariam uma melhor localização do sujeito.
O que elas excluem? As descobertas da Psicanálise. A revelação dos limites e alcances do ego e do plano da consciência como capazes de realmente dar conta da história do
sujeito e de uma leitura do mundo.
A análise considera a consciência como irremediavelmente delimitada, e a institui como princípio não só de idealização, mas de desconhecimento (...) num termo que ganha
novo valor por se referir ao domínio visual - como escotoma. (Lacan, op. cit., p. 82)
Os olhos e a consciência costumam seguir o que os outros propuseram, o que faz com que a consciência acabe tecendo um olhar onivoyeur do mundo. Como se todos percebessem
o mundo da mesma forma. Como se todos fossem um único ser que tivesse um olhar absoluto.
Eu entendo, e Merleau Ponty nos mostra isto, que somos seres olhados no espetáculo do mundo. O que nos faz consciência nos instituiu, do mesmo golpe, como speculum mundi.
(...) O espetáculo do mundo, neste sentido, nos parece como onivoyeur . É mesmo essa fantasia que encontramos, na perspectiva platônica, de um ser absoluto ao qual é
transferida a qualidade de onividente. (Lacan, op. cit., p. 76)
A consciência tem forjado, na história da humanidade, uma única forma de olhar o mundo, o que tem sido ainda mais reforçado no mundo atual, pela globalização, em função
da presença maciça de um olhar industrializado. Um olhar que se tomou um produto a ser vendido aos demais, a partir das leituras estabelecidas pela sociedade de massas.
Com isto o sujeito está exposto a um olhar prévio que não é mais o seu, mas, um olhar que se impõe como o modelo máximo de saber.
O olhar que tem sido vendido como
sendo o olhar máximo da nossa cultura é o olhar médico. Um olhar que ultrapassou o modelo antigo do mestre da filosofia grega. Um olhar que era voltado para a construção
do conhecimento. O olhar médico contemporâneo tende a frisar a importância de um corpo saudável.
O novo mestre da sociedade contemporânea - o médico - propõe de que maneira o sujeito deve agir para ter saúde. Como, por exemplo, cortar tudo o que engorda, o que é doce
ou que tem sal demais, O que acaba acarretando a criação de um novo estilo de vida sem colesterol, sem açúcar, sem sal. A criação de um ideal de vida em que todos os
excessos são cortados.
Esta concepção de "saúde" acaba se tornando independente do próprio sujeito. Ela se torna um produto a mais vendido pela sociedade contemporânea, instaurando a crença de
que se o sujeito seguir os parâmetros propostos poderá ter uma vida mais longa e saudável.
Na verdade, esta concepção está a serviço do próprio sistema capitalista. Ela visa levar ao consumo dos produtos que foram considerados saudáveis. Dos ovos com baixo teor
de colesterol ao leite desnatado.
Muitas vezes estes processos levam à crença onipotente de que é possível superar a doença e a morte. O que não se percebe é que o médico não dá conta de apreender o corpo
real dos sujeitos, mas apenas o corpo imaginário e o corpo simbólico estabelecidos pela pesquisa científica de uma determinada época.
O que é visado, então, pelo médico e pela sociedade capitalista contemporânea? A criação de uma ilusão. De que é possível uma vida plenamente saudável, sem doenças, erros
ou falhas. Como se fosse possível ter acesso a uma saúde contínua e a uma vida totalmente plena, na qual toda doença e a morte pudessem ser eliminadas da face da terra.
O que o médico, a sociedade capitalista e os sujeitos normalmente não percebem? Que a vida e os próprios sujeitos não podem ser mapeados pelos esquemas de saúde física e
mental. Que há sempre algo que escapa. Que a cada momento nós podemos nos ver diante do registro do real e dos limites da Medicina no tratamento das doenças, pois sempre
algo não é controlado. Há algo que escapa. Um vírus novo, um surto de gripe, uma epidemia.
É exatamente esse ponto de estrangulamento da cultura contemporânea que foi identificado de forma magistral no livro de José Saramago -
'Ensaio sobre a Cegueira'. Ele nos
revela, ainda em finais da década de 90, no milênio passado, esse encontro com a morte e com a doença. Um encontro com o real. Um encontro para o qual nós nunca estamos
preparados. Um encontro para o qual nós não temos respostas e diante do qual não sabemos como nos comportar, pois, como o oftalmologista do livro, somos apanhados na
surpresa, em nosso saber científico, ao não ter as respostas adequadas diante de algo que emerge do registro do real.
A cegueira branca implanta um novo campo de investigação. Um campo que exige a redefinição de parâmetros. Perante ela os sujeitos não têm respostas. Perante ela nenhum
tratado antigo de medicina serve mais. O mais interessante que o livro revela é que ao constatarem esta situação os sujeitos ficam atônitos, muitos deles adotando uma
posição de ignorância ou de desconhecimento diante do saber que eles precisariam ter.
A maior parte dos personagens do livro não quer saber o que aconteceu com eles. Mesmo os médicos investigam muito pouco o que foi que aconteceu. Eles apenas sofrem as
conseqüências do seu processo. É ocaso também dos militares e das pessoas que interagem com os cegos. Elas não querem chegar perto, elas não querem saber o que eles têm,
como se assim ficassem preservadas de ter o mesmo problema.
Por analogia, acreditamos que quando os sujeitos se vêem perante o registro do real, muitas vezes optam por não querer saber. Uma atitude denegatória, uma atitude de
recusa de saber.
Uma postura bastante próxima à que temos encontrado em muitos professores em relação à Educação Inclusiva. Como se a sua recusa em aprender os postulados referentes à
Educação Inclusiva os levasse a não terem mais de conviver com estes sujeitos. É a crença na preexistência de um olhar prévio, de um olhar mágico. Aquilo que eu não vejo
não existe, não está ali.
O que os professores e os personagens do livro não se dão conta? Que quando o real emerge, não dá mais para o sujeito ficar no modelo antigo. A opção por uma prática
desatualizada e direcionada para o passado acaba sendo paralisadora ou mortífera.
Lacan revelou o impacto desse processo no caso do Joãozinho,
abordado no Seminário II.
Esta estória é verdadeira. Data de alguma coisa como meus vinte anos - e nesse tempo, certamente, jovem intelectual, eu não tinha outra preocupação senão a de ir a algum
lugar, de me banhar em alguma prática direta, rural, caçadora, e mesmo marinha. Um dia eu estava num barquinho com algumas pessoas, membros de uma família de pescadores
de um pequeno porto. Nessa ocasião, nossa Bretanha ainda não estava nas condições de grande indústria, nem da frota de pesca, o pescador pescava em sua casquinha de noz,
com seus riscos e perigos. Eram esses riscos e perigos que eu gostava de partilhar, mas não eram riscos e perigos o tempo todo, havia também dias de bom tempo. Um dia,
então, em que esperávamos o momento de puxar as redes, o chamado Joãozinho, vamos chamá-lo assim - ele desapareceu, como toda a sua família, exatamente pela tuberculose,
que era nessa época a doença verdadeiramente ambiente na qual toda aquela camada social se deslocava - me mostra alguma coisa que boiava na superfície das ondas. Ela
boiava ali ao sol, testemunha da indústria de conserva, que estávamos, aliás, encarregados de alimentar. Ela respelhava ao sol. E Joãozinho me diz - Tá vendo aquela lata?
Pois ela não tá te vendo não!
Ele achava muito engraçado este episódio; eu achava menos. Procurei saber por que eu achava menos engraçado. É muito instrutivo.
Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata de sardinhas não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela
tem algo a ver comigo, no nível do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora. (Lacan 1979, p. 94)
Havia "algo" que a lata de sardinhas precisava dizer a Joãozinho, mas como ele não viu, como ele transferiu esta imagem para Lacan, ele acabou não escutando o que a lata
de sardinha tinha a dizer para ele. E o que era de tão importante ? Que a lata de sardinhas estava vazia, que ele não teria nada para comer. Joãozinho, e toda a sua
família, não quis ver esta imagem e, infelizmente, como assinalou Lacan, ele pagou o preço por isto.
Quando "algo" se toma tão forte a ponto de nos cegar, nós temos que ver do que se trata. Quando "algo" se torna tão forte que nós não queremos ouvir, mais do que nunca é
preciso escutar. Não dá para fazer de conta que este conteúdo que emerge do real não existe. Ele introduz informações novas que podem nos atualizar e nos levar mais para
a frente.
Neste sentido, podemos fazer um certo paralelo entre a cegueira branca e o olhar, que vem se estabelecendo em relação à Educação Inclusiva, o que faz com que, ao mesmo
tempo, ela se torne o ponto de luz e sombra da Educação Comum e da Educação Especial contemporâneas. Como um escotoma, ela revela o olhar cego, antigo, apresentado a
respeito dos alunos, dos processos educativos, da interação professor-aluno etc.
Como um foco de luz, ela atrai todos os olhares, levando as pessoas a ficarem fascinadas por ela, pois, para os que a praticam, não dá mais para olhar da mesma forma nem
a Educação Comum e nem a Educação Especial. Em suma, há um lado da Educação Inclusiva no qual ela apresenta a emergência de um aspecto do real que revoluciona a Educação
contemporânea.
Da mesma forma, pode-se dizer que há um novo olhar, emergindo do real, na maneira como a deficiência visual e o deficiente visual têm sido considerados.
O que se privilegia não é mais apenas a cegueira, o olhar cego, os olhos que não vêem. Constata-se a existência de um olhar novo, um olhar que enxerga além dos olhos. Um
olhar que ultrapassa os limites dos olhos, um olhar que é de uma outra ordem. Um olhar que não é apenas o parceiro sintomático dos olhos normais. Um olhar que se toma
independente dos olhos, mas que assim mesmo vê.
É por tudo isto que acreditamos que a base da Educação tenha que ser repensada. Não dá mais para o professor e o especialista permanecerem no modelo antigo. O que se
introduz agora é um novo circuito de relações, no qual aquilo a que se visa é o sujeito com as suas necessidades educativas especiais, e não mais a sua deficiência visual
e os olhos que não vêem.
No livro, pode-se dizer que o real da cegueira branca introduz um novo olhar que vai se alastrando. Pela cegueira branca os sujeitos são obrigados a rever as suas
práticas, repensando as suas atuações anteriores. Ninguém escapa a ela, nem mesmo a mulher do médico, que permaneceu, durante boa parte do livro, preservada.
A cegueira branca é, ao mesmo tempo, o escotoma (zona do campo visual parcial ou totalmente cega) e a luz que o cega. Ambos implantam um olhar onivoyeur que abarca o
mundo todo. A cegueira acaba instituindo não tanto o que não se vê, mas principalmente o que pode ser visto através da implantação deste novo olhar.
Apenas a mulher do médico consegue, durante um certo tempo, escapar a essa uniformização. Podemos dizer que, de certo modo, ela apresenta um olhar duplo, nistagmático,
mantendo tanto a vertente antiga como a forma mais recente de olhar, obtida pelos relatos dos outros, o que a coloca em uma posição estratégica em relação aos demais. Ela
é o farol que joga luz no escuro das situações vivenciadas pelos cegos, pois apenas ela consegue se manter como ser pensante, como sujeito, isto é, alguém que apresenta
um pensamento e uma individualidade próprios.
Um outro aspecto a ser assinalado é que ela apresenta uma ética de atuação, a ética do amor. Por amor ao marido, ela escolhe ficar com ele o tempo todo. Ela assume a
ética do desejo e as decorrências possíveis deste processo: a cegueira final.
Afasta-te, não te chegues a mim, posso contagiar-te (....) Por favor, não fales dessa maneira, o que tiver de ser será, anda, vem, vou-te preparar o pequeno-almoço.
Deixa-me, deixa-me. Não deixo, gritou a mulher, que queres fazer, andar aí aos tombos, a chocar contra os móveis, à procura do telefone, sem olhos para encontrar na lista
os números que precisas, enquanto eu assisto tranqüilamente o espetáculo, metida numa redoma de cristal à prova de contaminações. Agarrou-o pelo braço com firmeza e
disse: Vamos, meu querido. (Saramago 1999, p. 39)
Os demais personagens ficam cegos para a vida e o mundo, pois eles não percebem as conseqüências da maior parte dos seus atos, como o médico que passa a noite com ela e
não se dá conta de que poderia contaminá-la.
Neste mundo, não há homens e mulheres. Existe um uso da sexualidade que a toma um objeto quase masturbatório, um mundo em que o Outro acaba não sendo reconhecido em sua
singularidade. É ocaso dos cegos malvados que obrigam as mulheres a se prostituírem para dar alimentos aos demais, o que revela que eles não apresentam nenhuma
preocupação com o Outro. Eles se voltam apenas para o seu próprio prazer, numa atuação sem ética ou qualquer respeito.
Os demais homens do grupo submergem as suas ações, numa massa acéfala, inteiramente tomados pelo pânico, impotentes para enfrentar o perigo exterior.
Vivem apenas o momento presente, a sobrevivência pura e simples, e não uma vida maior que ultrapassa o contexto inicial no qual eles foram colocados. Todos acabam vivendo
uma consciência sem ética e sem moral, apenas direcionada para o aqui e agora.
Saramago, como autor, vai além dos seus próprios personagens e da trama que criou. Ele leva os leitores a constatarem aquilo que os seus próprios personagens não vêem: o
distanciamento e a mercantilização das relações. Sendo um comunista convicto, ele não se deixa enganar pela beleza aparente do modelo capitalista. Ele identifica a sua
essência, em que tudo vira mercadoria, em que tudo é produto de troca.
Os verdadeiros representantes desse processo de gozo desenfreado do sistema capitalista são os cegos ladrões. Eles se vêem no direito de ter todos os objetos, de ter
todas as mulheres, de explorar todos os sujeitos. O que é importante para eles é apenas o imperativo: Goze o máximo que você puder.
Das jóias aos pertences pessoais, do dinheiro ao gozo das mulheres. O que interessa é apenas o seu próprio gozo, caracterizando a lógica implacável do sistema em que
apenas o objeto importa.
O consumo insiste em apresentar uma disponibilidade absoluta de todos os possíveis e impõe a aceleração tecnológica, a qual não corresponde o ritmo humano. (...) Curar-se
do consumo é curar-se da voz imperativa do Outro que articula o mercado dos produtos, assim como regula o gozo. Essa voz apenas exige que haja consumidores. O consumo,
como parceiro nos sintomas contemporâneos, convoca o sujeito apenas como consumidor e não como sujeito do desejo (Sadala 1999, p. 49).
Saramago identifica que embora o registro do real tenha introduzido um fator novo, o olhar prévio permanece o mesmo. Apenas os objetos, como produtos, interessam. O
sistema econômico permaneceu o mesmo. Um olhar prévio que visa o gozo máximo das pessoas, não importando se isto pode destruir a eles mesmos ou aos demais. Um olhar que
invalida o Outro em função do próprio gozo. Um olhar que Lacan e
Jacques-Allain Miller denominaram o Outro que não existe. Um olhar em que o que importa é apenas o gozo do próprio sujeito, em que o Outro é deixado de fora ou usado
apenas como instrumento de gozo para o sujeito.
A decorrência é que, nesse sistema, não há uma verdadeira relação entre os sujeitos. Há apenas uma relação de uso. Os sujeitos são reduzidos à categoria de objetos. Os
produtos, as mercadorias é que passam a dar a verdadeira dinâmica, a lógica do processo.
O que revela a predominância do circuito de mercadorias sobre os sujeitos. O que interessa são apenas os sujeitos como consumidores. Eles mesmos transformados em novos
objetos, passíveis de serem trocados entre si.
Mesmo a sexualidade é afetada por esse processo, pois os sujeitos são transformados em meros organismos, que fazem sexo, se alimentam, defecam etc. Organismos que
consomem os produtos. Organismos, e não corpos erógenos, pois no corpo erógeno há o reconhecimento da importância do outro, daquele que erotiza o sujeito.
Na maior parte do livro fica-se apenas no plano do organismo, da reprodução pura e simples, da masturbação. São poucos aqueles que conseguem se ligar ao outro,
constituindo-se em corpos erógenos : a prostituta e o velho, o casal de namorados.
Aliás, a prostituta será uma das primeiras a adquirir novamente o olhar desejante e com isto a própria visão, que a acaba separando do velho, pois só consegue ficar com o
velho no período em que está cega; ao recuperar a visão, ela percebe que não consegue agüentar o peso dos anos que ele apresenta.
E os demais ? Eles atuam como uma grande ameba gigante. Eles ficam reduzidos àquilo que a vida tem de mais essencial: se perpetuar de qualquer forma. Preserva-se a vida,
mas não se preservam os sujeitos. O que emerge é um ser múltiplo, a natureza mesma, como assinala Jacques Aliain-Míller, em seu último seminário L'Expérience da réel dans
la cure analytique. Ii n 'y a qu 'un grand individu, c 'est le tout (Aliain-Miller 1999, p. 220).
Será que nós poderíamos entender este grande indivíduo como sendo o representante do ser universal ? Não acreditamos. O que mais falta a eles é exatamente aquilo que
caracteriza a natureza humana : o desejo. Sem o desejo, o que vemos surgir são apenas organismos atuando passivamente. Falta-lhes algo que os energize, retirando-os da
apatia em que se encontram, levando-os a um outro momento de ruptura nas suas vidas, fora do circuito da repetição. Falta-lhes a descoberta do novo, porque eles apenas
perpetuam a cópia, o igual em suas múltiplas formas.
Acreditamos que, quando o sujeito perde o desejo, ele passa a atuar como uma grande ameba, como um ser que é múltiplo, sem nenhuma característica específica. Ele perde a
sua individualidade, aquilo que o singulariza.
Um processo parecido temos identificado na Educação atual, em que os alunos apresentam uma grande apatia, sem saber o que sentem, sem saber para onde ir.
A pergunta que me faço a partir do livro do Saramago é se, de alguma forma, os professores não têm nenhuma implicação neste processo dos alunos, já que as pesquisas
revelam que, ao entrar na escola, os alunos querem aprender e, aos poucos, vão se desinteressando. Será que nós acabamos cegando os nossos alunos, com nossas práticas
pedagógicas, levando-os a deixar de desejar, de estabelecer aquilo que acham importantes para eles mesmos?
Pela nossa vivência no Ensino Regular percebemos que esse tem sido o relato de grande parte dos professores. Em relação à Educação Inclusiva o circuito tem sido outro, os
professores reportam uma vontade muito grande de aprender, o mesmo acontecendo com os seus alunos.
É por tudo isso que acreditamos que tanto a Psicanálise quanto a Educação Inclusiva tenham respostas para evitar que se caia no engodo do modelo universalista dos seres
humanos. Eles se transformam, assim como as culturas e sociedades às quais pertencem. Com isso, o próprio processo educativo tem que ser continuamente revisto, para
atender à emergência do registro do real.
O que nós precisamos evitar? Cair em comportamentos fossilizados. Acreditar que o modo como nós fomos ensinados é bom para os nossos alunos e será bom para o filho dos
nossos alunos. Com isto, nós excluímos os sujeitos - os nossos alunos - e ficamos com um modelo universal de ser humano. Um modelo que expulsa a individualidade pela
implantação dos tipos e categorias.
Por exemplo, será que a categoria deficiência visual dá conta de dizer o que ocorre com cada sujeito cego, com cada sujeito que apresenta deficiência visual? Será que ela
abarca a realidade de seu dia-a-dia? Para a Psicanálise nós só podemos resgatar os sujeitos se o tomarmos da ordem do um para um, isto é, se cada sujeito tiver a
possibilidade de dizer qual é a sua realidade, de dar conta do seu desejo, o que acarreta que os sujeitos não possam mais ser submergidos no tonel geral daquilo que nós
acreditamos que sejam os seres humanos.
Esse é um processo difícil, no qual apenas alguns, como no livro, conseguem se constituir como sujeitos, o que apresenta a outra faceta do problema. Ser sujeito não é
seguir algo já dado, obtido a partir do biológico. É preciso que o sujeito construa a sua realidade, para que ele possa localizar o que sente, para que ele possa
estabelecer algum tipo de contato com os demais.
Ficar no plano do universal, da ameba, seguindo o que os outros fazem, não possibilita fazer a passagem necessária para o sujeito realmente se constituir. Ele fazer uma
passagem inicial que é a de se diferenciar do Outro, tecer a sua diferença, construir a sua maneira de pensar. E isso ocorre apenas para alguns poucos personagens do
livro: o primeiro cego, o médico e sua mulher, a prostituta e o velho, o jovem que chama a mãe e a mulher do prédio da prostituta. Um processo ainda bastante incompleto,
pois estes sujeitos sequer apresentam um nome, o que lhes possibilitaria adquirir alguma singularidade. Eles são reconhecidos a partir da sua função rotineira.
Um caso ainda mais sério, em que o processo de constituição do sujeito fica incompleto, é o do ladrão que rouba o primeiro sujeito cego. Em nenhum momento ele se
questiona pelo fato de ter roubado o carro do outro. O que o move é somente a acusação de que o Outro o cegou. Ele pode apenas perceber o impacto das ações do Outro nele,
e não o efeito das suas ações no Outro. O que lhe importa é apenas o seu gozo, o que o leva a ser punido por suas ações, quando a prostituta faz a retaliação por ele ter
tentado estuprá-la, provocando-lhe um ferimento mortal.
Com isso, fica mais uma vez evidenciada a lógica da sociedade proposta pelo livro, onde o que importa é apenas o gozo, a satisfação máxima dos sujeitos, não importando o
que eles tenham de fazer para isto. É o caso dos militares que matam os cegos por medo da contaminação, quando eles apenas tentavam chegar até os alimentos, que estavam
depositados em um certo lugar.
Jacques Lacan, ao longo da sua obra, sempre especificou esses processos em suas múltiplas facetas. Pois só quando o sujeito é apanhado pelas cadeias da linguagem é que
ele se torna sujeito. Só quando ele lida com a linguagem, sentindo os seus efeitos, é que ele percebe que nós não somos meros organismos, capturados dentro de uma
concepção de natureza repetitiva e asséptica. Em uma concepção imutável e universalista.
Somente a linguagem introduz a possibilidade de os sujeitos se pensarem ou pensarem nos outros, o que os leva a sair de um plano de atuação imediato para, refletindo a
respeito dos seus atos, atingir uma temporalidade mais complexa, que inclui tanto o passado como o presente e o futuro.
Com a introdução da estrutura da linguagem é possível os sujeitos perceberem que aquilo que acontece com o outro hoje pode nos atingir amanhã. Como no caso dos militares,
que passam a criticar a forma de atuação dos colegas, que acabaram atirando nos cegos. Um primeiro movimento de humanização dos militares, em que a relação EU/Outro passa
a ter uma importância cada vez maior. O que o outro sente, eu posso sentir, o que ele está passando hoje, eu posso passar amanhã. Uma concepção de Eu/Outro que é ainda
bastante simplificada, quase egóica, na qual o sujeito se torna ainda como parâmetro de atuação, como se todos os sujeitos fossem iguais a ele, como se todos sentissem o
mesmo que ele.
Este fenômeno foi abordado por Lacan no estágio do espelho, primeiro momento de captura do humano. No segundo momento, Lacan revela que surge a percepção de que o Outro
não é igual ao sujeito: aparece a agressão. Ele acredita que precisa se defender da entrada do Outro: surge o complexo de intrusão. O Outro toma-se perigoso.
Um aspecto que, muitas vezes, se apresenta na Educação Comum,quando o professor acredita que a criança deficiente pode contagiar os seus alunos normais, quando o
professor sente que ter um aluno que pensa diferente, que sente diferente é um enorme risco para ele.
No livro isso é representado pela emergência da agressividade
trazida pelos cegos malvados. Eles revelam o momento em que o homem torna-se o lobo do próprio homem, quando os homens passam a comer os demais, a torná-los objetos, que
podem e devem satisfazê-los ao máximo.
A partir daí, introduz-se a diferença. Não dá mais para viver na cola de um ser humano abstrato. Os sujeitos precisam se identificar um a um.
É o momento em que a mulher do médico percebe que ela não pode mais se deixar iludir em função da aparência externa de humanidade. O Outro é um inimigo que é preciso
destruir, porque, caso contrário, ele nos atacará e nos matará.
Destruir aqueles que nos atacam toma-se o seu lema básico. Ela mata alguns dos cegos malvados, vingando-se da situação a que as mulheres foram expostas.
A humanidade emerge agora atrelada a uma luta pela manutenção da dignidade, em que não se pode aceitar qualquer coisa. Com isso, há a perda da inocência. O ser humano não
é mais concebido de uma forma ideal. É preciso saber como ele irá agir, o que leva ao esfacelamento do modelo da ação natural. Surge a diferença entre o olho e o olhar,
entre o organismo e o corpo erógeno. Não haverá apenas a fome, mas ela terá que passar pelo crivo da cultura, como a mulher do médico que se recusa a se prostituir por um
prato de comida.
Um dos aspectos que mais têm chamado a atenção atualmente, na sociedade capitalista, é a emergência de um novo tipo de mercado: o comércio de órgãos. O sexo como um órgão
a ser trocado já existe de longa data. No entanto, os órgãos internos também estão se tomando mercadorias. Eles podem ser vendidos e comprados, como mais um produto da
sociedade de consumo atual. O próprio interior dos sujeitos se transforma em produto. Com isto, como demonstra Jacques Allain Miller, não estamos mais apenas no âmbito do
registro do imaginário e do simbólico, mas no plano do próprio registro do real, do real do corpo. De um real do corpo naquilo que ele tem de mais básico, que são os
próprios órgãos que o fazem funcionar.
No livro de Saramago, esse aspecto de ajuste ao mercado de consumo é abordado pelo autor quando a religião tenta se adaptar ao novo sujeito emergente naquela sociedade.
As estátuas são adaptadas aos novos sujeitos: elas deixam de ter olhos ou os seus olhos são tampados, para se adaptarem aos sujeitos da nova sociedade emergente.
Assim, se consolida a emergência de um novo olhar e dos novos olhos: os olhos interiores. Já que todos não vêem, podem-se viver situações como tomar banho de chuva nu, no
terraço do apartamento. Os olhos que observam são apenas aqueles da própria pessoa, ou daqueles que se deixaram contagiar por esse novo olhar, como o velho.
Ao mesmo tempo que os objetos vão perdendo a sua importância,
redefine-se a posse dos objetos. Eles passam a ser comunais. Cada um pode ficar na casa do outro ou ceder a sua própria casa ao outro.
Qual a importância desta passagem no livro? É o momento em que vemos emergir a inclusão. Uma inclusão do Outro da diferença. Uma aceitação da sua singularidade. A partir
daí, os produtos podem ser novamente trocados.
A água vira um artigo de luxo, que se cede aos amigos. Ela é servida com a máxima dignidade e compartilhada com todos, do estoque que a mulher do médico tinha. As roupas
podem ser trocadas entre si. O que importa não são mais os objetos, mas os sujeitos com os quais estamos interagindo.
'Ensaio sobre a Cegueira' é uma crítica à sociedade de consumo. Os olhos não vêem o que o capitalismo está fazendo com os sujeitos, as sociedades e as culturas. Ainda há
poucos dias, o Jornal Nacional anunciava que os norte-americanos estão comprando cada vez mais, O endividamento é geral. Não se poupa mais. Gasta-se tudo o que se tem.
Os países ricos já estão interessados na compra dos órgãos internos e dos olhos dos participantes dos países mais pobres. Tudo pode ser comprado, tudo pode ser vendido.
No entanto, por meio da Arte, Saramago antecipa a possibilidade de um mundo não só regido pelo consumo, mas também pelas regras mínimas de uma sobrevivência mais digna.
Trata-se de sair do piano da satisfação das necessidades básicas para o plano das necessidades básicas mediadas pelo desejo. Necessidades básicas não mais gerais e comuns
a todos, mas específicas a cada sujeito. Tal como o tênis que o adolescente desejava. Ele passa a querer um tênis, e não o tênis proposto apenas pelo mercado consumidor.
Surge uma nova comunidade que passa a se preocupar com a inclusão de todos os sujeitos. Tanto na divisão dos alimentos, da água, das roupas, das chuvas. Emerge um gozo de
uma nova ordem. Onde é possível brincar, é possível sorrir, é possível ir além do olhar cego, para se ver e perceber como corpo próprio. Uma passagem do corpo
indiferenciado para o corpo individual. Uma passagem do coletivo para o individual, a partir da inclusão do Outro da diferença.
A partir daí, os sujeitos não são mais organismos, mas corpos mortificados pelo gozo, corpos que deixaram de ser estátuas, corpos afetados pelo gozo, corpos que não se
reduzem mais nem a imagens e nem a símbolos. Como a prostituta que faz sexo com o velho ou o casal de namorados que "transa" no meio da noite.
Os demais personagens entram em um circuito de repetição. Um repetir do coletivo com a crença de que ali também eles estão. Freud e Lacan revelam que o eixo da repetição
é antivital, como os cegos que ficam esperando que as pessoas façam o que fizeram no início do processo de cegueira: alimentá-los sem que eles precisem batalhar pelo
alimento. O que eles não percebem é que a situação mudou, não há mais
ninguém para cuidar deles. É preciso que eles mesmos aprendam a se
cuidar.
Para aqueles que permaneceram juntos desde o início, como o grupo da mulher do médico, há novas formas de agir. Indo em busca do alimento. Há o retorno das relações e das
informações. Há a troca entre as pessoas, com a mudança para novos locais de vida etc.
Para aqueles que ficam no modelo da repetição, a morte está logo ali. Pelo fascínio e pela manutenção do olhar anterior. Porque a consciência, através do ego, e os olhos
antigos não sabem os caminhos dessa vida nova.
E os olhos são recuperados, no fim da história? O autor dá a entender que sim. Mas, qual será o olhar que prevalecerá posteriormente?
O olhar antigo ou o novo? Isso, nós não sabemos.
Bibliografia
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ALLAIN-MILLER Jacques. L' expérience du réel dans la cure analytique. 1999. (Mimeo.)
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FREUD, Sigmund. "Concepto psicoanalítico de las perturbaciones psicogenas de la visión". in: Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1973.
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LACAN, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
-
Seminário II - os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
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SADALA, Glória. "Consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos". in: Os labirintos do mal-estar. Latusa 3. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, 1999.
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SARAMAGO, José. 'Ensaio sobre a Cegueira'. São Paulo: Cia. das Letras, 1999
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FACES E CONTRAFACES: O
DIFERENTE NO ESCRITO UMA LEITURA PSICANALÍTICA DO LIVRO 'Ensaio sobre a Cegueira' DE
JOSÉ SARAMAGO autora: Leny Magalhães Mrech in "Educação especial: múltiplas leituras e diferentes
significados" Org. por Shirley Silva e Marli Vizim Coleção Leituras no Brasil - Campinas, São Paulo
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