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by Craig Becker
O olhar, segundo Ponty (1992), não determina sempre uma continuidade da presença
física, um corpo eminentemente material. Nossa visão ultrapassa linhas
suscetíveis de
captação. Entre o olhar e as zonas que se estabelecem nessa faculdade, há
possíveis
mecanismos cognoscentes, que disseminam uma maneira de interpretar o mundo,
conforme o
que se vê e mesmo aquilo que não está ao alcance dos olhos. Nas palavras do
filósofo:
Vejo, sinto e é certo que para me dar conta do que seja ver e sentir no visível
e no sensível onde se lançam, circunscrevendo, aquém deles mesmos, um
domínio que não ocupam e a partir do qual se tornam compreensíveis
segundo seu sentido e sua essência. Compreendê-los é surpreendê-los, pois a
visão ingênua me ocupa inteiramente, pois a atenção na visão, que se
acrescenta a ela, retira alguma coisa desse dom total, sobretudo, porque
compreender é traduzir em significações disponíveis um sentido inicialmente
cativo na coisa e no mundo (Idem, 44).
Os olhos são órgãos da visão. Juntamente com ela temos outros sentidos: a
audição, o
tato, o olfato e o paladar. A visão, por sua vez, é considerada como um dos mais
apurados
sentidos dos homens, senão o mais apurado, conforme análise de Gaiarsa (2000:
15), ao
afirmar que:
Os olhos são os maiores espiões do mundo. São dois, mas funcionam como
se fossem um só. [...] Para compreender a visão, as relações pessoais e a
forma da consciência é a diferença entre visão central, ou macular, e visão
periférica da retina. [...] Os globos oculares são, certamente, as partes mais
móveis do corpo humano, são movidos por seis músculos notavelmente
poderosos.
A referência mostra que os olhos são os maiores investigadores. Eles espiam as
pessoas, os objetos e o mundo ao seu redor. Proporcionam ao homem o que nenhum
outro
animal possui, ou seja, a capacidade cerebral de interpretação do mundo. A
acuidade visual é
muito grande, por exemplo, no falcão, mas esse animal não pode ir mais além do
que os seus
olhos vêem. Essa tarefa é exclusivamente uma faculdade cognitiva, racional e
interpretativa
do ser humano.
É muito difícil pensar um mundo sem visão, feito exclusivamente por cheiros e
cores.
Conforme Ponty (1922: 86), ―não há dúvida de que nosso mundo é principal e
essencialmente
visual, não faríamos um mundo com perfumes e cores‖. Olhar o mundo desperta uma
intrínseca ligação entre o ser e o outro, já que é impossível não olhar, no
sentido mais amplo,
pois essa é uma atitude ontológica.
Ainda, de acordo com Ponty (1992: 65), ―o olhar dos outros homens sobre as
coisas é
o ser que reclama o que lhe é devido e que me incita a admitir que minha relação
com ele
passa por ele‖. Esse olhar que Ponty ressalta é a interrogação sobre as coisas e
sobre o
mundo. ―Os acontecimentos deixam transparecer poderes muito gerais, tais como o
olhar ou a
palavra‖ (ibidem: 101).
A relação do ver e do mundo dizem respeito à imanência que eles possuem entre
si, já
que um está inextricavelmente implicado no outro, pois, conforme Ponty (1992:
80),
―compreende-se que a visão seja presença imediata, não se vê, porém, como o nada
que sou
poderia, ao mesmo tempo, separar-me do ser‖. As coisas, as pessoas e o mundo só
terão
significados a partir do momento das observações, extraindo delas uma percepção
irrefutável,
assim, o homem ganha contorno ao redor da existência. É como se pelo olhar
perscrutássemos
as beiras da formação das coisas, tornando-nos familiares. Como declara Ponty
(1992:103),
―No início é o olhar que interroga as coisas‖.
Nesse sentido, a Filosofia percebe o olhar numa concepção metafísica, uma vez
que
olhar não se restringe, especificamente, a um só ângulo da coisa ou do mundo.
Com um olho
vemos o ângulo da largura e comprimento. Com os dois olhos podemos observar as
imagens
em estado tridimensional. Os olhos são formados por nervos e músculos,
diretamente ligados
ao cérebro, mas é com a interpretação que podemos olhar para as coisas de forma
mais ampla.
Mas o que dizer sobre àquelas pessoas que não enxergam no sentido fisiológico? A
resposta para essa questão postula-se no sentido de que olhar, ver e reparar
sugerem mais
interpretações simbólicas diante dos fatos e do mundo. A esse respeito, no
Ensaio sobre a
cegueira (ESC, 1999: 70), três dos personagens, o primeiro cego, o ajudante de
farmácia e o
médico oftalmologista, ao questionarem a repentina cegueira branca, mostram-nos
a relação
entre os olhos e a mente:
Aposto que o que sucedeu foi terem-se entupido os canais que vão dos olhos
até os miolos, Forte besta, resmungou o ajudante de farmácia, Quem sabe, o
médico sorriu sem querer, na verdade os olhos não são mais do que umas
lentes, umas objectivas, o cérebro é o que realmente vê, tal como na película
a imagem aparece, e se os canais se entupirem, como disse aquele Senhor, É
o mesmo que um carburador, se a gasolina não conseguir chegar lá, o
motorista não trabalha e o carro não anda.
Olhar é a sugestão de imagens propiciadas mentalmente. Através de outros olhares
podemos perceber as essências das coisas e do mundo. Essa explicação é aceitável
quando se
considera os olhos do espírito, mas o que significa exatamente essa expressão? A
resposta
seria possível, uma vez que estamos considerando aqui os olhos da alma, do
psiquismo, como
os agentes de outra visão, intercalada por uma que nós já conhecemos, essa outra
visão
ultrapassa os olhos do corpo. Como argumenta Ponty (1992: 107-108):
Quando se reporta do mundo àquilo que o faz mundo, dos seres àquilo que
os faz ser, o puro olhar, que não subentende nada, que não tem atrás de si,
como o de nossos olhos, as trevas de um corpo e de um passado: àquilo que
faz com que o mundo seja mundo, a uma gramática imperiosa do ser, a
núcleos de sentido indecomponíveis, redes de propriedades inseparáveis. As
essências são este sentido intrínseco, estas necessidades de princípio, seja
qual for a realidade em que se misturam e se confundem (sem que, aliás,
suas implicações deixem de fazer-se valer. [...] alguma coisa espiritual, ou
alguma coisa viva.
O filósofo admite nesse trecho a inquestionável invisibilidade. O mundo não é só
aquilo que vemos com os nossos dois olhos. A demonstração desse fato são os
cegos que
vêem de uma maneira muito peculiar, aquela imanada do espírito. Como se observa
ainda
nessa afirmação de Ponty (1992: 110): ―É, portanto, à experiência que pertence o
poder
ontológico último, e as essências, a necessidade de essência, a possibilidade
interna ou lógica,
não obstante a solidez e a incontestabilidade que possuem os olhos do espírito‖.
Daí, podemos nos certificar de que o mundo é eminentemente um mundo visual, em
que os olhos têm um poder sobremaneira na vida das pessoas e no cotidiano. Ver é
uma
sensação cuja percepção realça vários sentimentos, sejam eles de ordem material
ou espiritual.
Olhar é uma maneira de apreender o mundo, de captá-lo segundo normas e valores
préconcebidos ou não. A partir da visão espiritual entendemos ou não os
mistérios e os segredos
da vida.
Pelos olhos o ser humano registra o seu primeiro contato com o mundo externo, ou
seja, fora do útero materno. Ao nascer a criança abre os seus olhos para o
espetáculo que o
mundo oferece, mesmo não sabendo, ela enxerga a luz. Começa aí, o seu estar no
mundo e o
seu devir. Quanto a isso, Ponty (1992: 146) pondera que:
Com a primeira visão, o primeiro contato, o primeiro prazer, há iniciação,
isto é, não posição de um conteúdo, mas abertura de uma dimensão que não
poderá mais vir a ser fechada, estabelecimento de um nível que será ponto de
referência para todas as experiências daqui em diante. A idéia é esta
dimensão, um invisível de fato, como objeto escondido atrás de outro, não é
um invisível absoluto, que nada teria a ver com o visível, mas o invisível
deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visível, sua
possibilidade interior e própria, o Ser desse ente.
Por intermédio da visão inauguramos a presença no mundo até a sua finitude, isto
é,
com a morte fechamos os olhos. Com a visão, experimentamos uma troca que se
estabelece
entre o eu e o outro, entre o ser humano e a imaginação, entre o homem e o
objeto. A visão dá
aos homens a experiência do inefável, possibilita-lhes a entrada num mundo
inusitado, cujas
esferas são as ações simbólicas, cuja imanência é ao mesmo tempo, inovadora e
descoberta
por este sentido.
O olhar é um dos sentidos mais expressivos e simbólicos que o homem possui, é
ainda Ponty (1992: 130) quem afirma: ―O olhar, como dizíamos, envolve, apalpa,
esposa as
coisas visíveis‖. Essa visão ultrapassa os meros olhos físicos, ela é revelada
por outras
subjetividades, ainda de acordo com Ponty (1992: 137):
Entre os meus dois olhos, uma relação muito especial que as transforma num
único órgão de experiência, do mesmo modo que meus dois olhos
constituem os canais de uma única visão ciclópica. Reação difícil de ser
pensada, já que o olho, a mão são capazes de visão, de tato, de modo que o
que falta compreender é que essas visões, esses tatos, essas pequenas
subjetividades, essas consciências de... Possam reunir-se como flores num
buquê, quando uma sendo consciência de... sendo para si, reduz as outras a
objetos. Só sairemos desse impasse admitindo que o meu corpo sinérgico
não é objeto, que reúne um feixe de consciências, aderentes a minhas mãos,
a meus olhos.
Já Jean-Paul Sartre, em 'O ser e o nada' (consulta-se aqui a edição de 1997),
enfatiza o
olhar enquanto consciência do ser, realçando que o homem consciente só adquire
forma a
partir do ― ver-o-outro, maneira pela qual o ser adquire consciência e
liberdade. Sartre ainda
afirma ― que a relação originária entre eu e outro não é somente uma verdade
ausente que viso
através da presença concreta de um objeto em meu universo. [...] a cada instante
o outro me
olha‖ (1997: 332). Isso nos possibilita compreender que nós só olhamos porque
temos o outro
diante de nosso alvo, sem a presença do outro, o mundo seria um vácuo sem
sentido. O visível
para Sartre é uma troca entre um eu e um outro, ligados permanentemente pela
tarefa do ver o
outro, ver o objeto. A visibilidade possui, nos postulados sartreanos, um
significado de extrema importância para entendermos a relação do eu X o outro,
visto que, para ele, o
homem só adquire a consciência da liberdade, quando enxerga a si mesmo e ao
outro, como o
seu duplo.
O olhar na fenomenologia sartreana adquire um valor já afirmado pela análise de
Maurice Merleau-Ponty. Também para Sartre, os olhos não só captam sensações e
percepções
de ordem física perante o homem e o mundo, mas irremediavelmente são os
alicerces da
construção simbólica das coisas e do mundo. A esse respeito, Sartre (1997: 332)
reafirma o
significado do olhar:
Durante um assalto, os homens que rastejam atrás de uma moita captam
como olhar e evitar, não dois olhos, mas toda uma casa de fazenda branca
que se recorta contra o céu no alto da colina. É óbvio que o objeto assim
constituído só manifesta o olhar, por enquanto, com o caráter de provável.
[...] O que importa, antes de tudo, é definir o olhar em si mesmo. O matagal,
a casa de fazenda, não são o olhar: representam somente o olho, pois o olho
não é captado primeiramente como órgão sensível de visão, mas como
suporte para o olhar.
O objeto é captado por meio do olhar, sem este, como inquiri-lo? Assim a visão
tem
um significado filosófico diante do mundo. O homem se destaca por meio da
visibilidade, isto
é, ao ser notado pelo outro, o homem se faz presente no contexto em que vive.
TEMPO DE CEGUEIRA
Da passagem do olhar à cegueira há um fio tênue. Na antiga Grécia, é conhecida a
história do famoso profeta Tirésias, o qual foi imortalizado por Sófocles na
peça Édipo – Rei.
Nessa peça, ele prevê e adverte Édipo do seu fim trágico, juntamente com os
destinos
reservados para Laio e Jocasta. Laio, rei de Tebas é advertido pelo oráculo que
seu próprio
filho o mataria e seria a ruína de sua família.
Esse dom da profecia está, na lenda, diretamente ligado aos olhos e ao seu poder
de
adivinhação. De acordo com Souza e Melo (1953: 46):
[Avultam, na tragédia de Sófocles, figuras de magistral importância.] O
adivinho Tirésias, velho e cego, ousando, na sua pobreza, afrontar o rei que o
ameaçava, e denunciá-lo claramente, é bem sabido o símbolo da sabedoria
humana, que pensa, estuda, sabe e prevê, mas que não convence os
poderosos quando com eles entra em conflito. ―Se tu possuis o régio poder,
Ó Édipo! – eu posso falar-te de igual para igual‖ – declara o destemeroso
sacerdote, cônscio de contra ele nada podia a prepotência do tirano.
Ele foi um dos mais célebres adivinhos na mitologia grega. Segundo a lenda, o
seu
destino se reservaria pela cegueira, como uma punição dos deuses. Mesmo assim,
Tirésias se
transformaria na lendária cidade pela sua cegueira. De acordo com uma das
versões, Tirésias
ficou cego, porque se atreveu a olhar a deusa Athena ou Minerva nua, enquanto
ela se
banhava. Ele possuía o que os gregos denominavam de mántis, isto é, o poder de
previsão2
.
NOTA 2 Outra história na mitologia é a da cegueira de Dáfnis. Ele era filho
de Mercúrio, e conta a lenda que ficou cego
por um deslize de uma feiticeira. Esqueceu por completo o rosto de sua amada
Lice e foi privado da luz
eternamente, ficou vagando cego pelos bosques e montanhas (FRANCIGINI &
SEGANFREDO CARMEN,
2003. p. 268).
Também existem várias versões sobre a figura de Homero, autor da Ilíada e da
Odisséia. Algumas lendas o configuram como sendo cego, porém, estas histórias
são
suscetíveis de controvérsias. Se existiu um Homero cego, ou dois Homeros, ou até
mesmo
muitos poetas chamados Homeros, não se sabe ao certo.
Fora da mitologia grega, também na modernidade, alguns casos de cegueira são
bastante acentuados, como o do escritor Jorge Luís Borges e de James Joyce. Cada
um, a sua
maneira, foi perdendo a capacidade de enxergar o mundo visível, seus olhares se
espaçaram
em nuvens cada vez mais realçadas, demonstrando, porém, como as suas obras
ultrapassaram
os limites físicos do corpo. Sobre a cegueira do escritor argentino Jorge Luís
Borges,
esclarece Lopes, (1999: 102): ―Borges perde o mundo visível, o mundo da
aparência, mas ao
contrário de buscar o mundo das essências, vive a outra aparência: o livro‖. Já
o escritor
inglês James Joyce teve surtos constantes de cegueira até morrer cego de um dos
olhos.
Ainda, na literatura, ao investigarmos a temática da cegueira foi possível
perceber que
outros textos literários já tinham sido escritos, a exemplo da obra do autor
português. Um
desses textos é o do escritor, ensaísta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck
(1862-1946),
simbolista que escreveu a peça Les Aveugles, que em português, significa Os
cegos. A peça
foi escrita no final do século XIX, em 1890, ainda sem tradução para o
português. Outro texto
cujo tema se refere aos olhos e à cegueira é o conto Em terra de cegos, do
inglês Hebert George Wells (1866-1946), escrito em 1904. No universo da poesia
temos um conhecido
poema de Charles Baudelaire, Les Aveugles, Os cegos, do livro, As flores do mal
(1985).
A peça Les Aveugles é um texto dramático do teatro estático simbolista. Nela
Maurice
Maeterlink emprega uma antiga tradição dos coros gregos: em cena, coloca um
grupo de doze
cegos no coro, seis homens cegos e seis mulheres cegas, à espera do seu guia
morto. O espaço
onde acontece a tragédia é em um lugar hostil, uma ilha perdida, nos confins do
mundo, perto
de um hospício, no entardecer da noite. Este é o contexto da peça: o guia vai
buscar água, mas
não volta, e eles o esperam sem obter resultado, já que o guia está morto. O
texto utiliza o
recurso da palavra entre os cegos, sendo que os diálogos são do universo da
cegueira.
Totalmente passada no escuro, a peça demonstra também para o espectador/leitor
as idéias de
estaticidade e tragédia, pois o espectador também está cego. Ela é reproduzida
em total
escuridão. Possivelmente, Maurice Maeterlinck, ao escrevê-la nos finais do
Século XIX,
período do simbolismo e decadentismo francês nas artes e na literatura,
questionava o mundo
da cegueira; a partir do exterior, questiona a cegueira simbólica, a visão
interior.
O texto nos faz lembrar o Ensaio, cuja semelhança é indiscutível, mesmo porque
os
personagens de Les Aveugles, de Maeterlinck, também estão próximos de um
hospital
psiquiátrico. Apesar de tantas semelhanças, dada a natureza deste trabalho,
apenas
sinalizando-o como uma possível fonte de intertextualidades.
'Em terra de cegos', do inglês H.G. Wells escrito em 1904, e publicado em livro,
em
1911, é um conto que fala de um vale enterrado no meio dos Andes, em que os
personagens
expatriados se abrigaram no século XVI. Nesse vale, uma pequena população humana
vive
tranquilamente, com um único mistério, todas as crianças nascem e se desenvolvem
cegas.
Por causa da explosão de um vulcão, o vale acaba se tornando isolado do mundo
exterior, isto
é, das pessoas que enxergam, e, durante três séculos, neste lugar, só nascem
pessoas cegas.
Após esses três séculos, já no século XIX, Nunez, um personagem do conto, guia
de
alpinismo, se perde e é atraído por uma avalanche para dentro do vale. Certo de
que, pelo fato
de possuir visão, será cortejado e invejado pelo povo cego, em alusão ao ditado
popular: ―Em
terra de cego, quem tem um olho é rei‖, o guia se decepciona, não será bem
assim, visto que,
depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo
sobre o mundo
exterior.
No decorrer dos séculos, surgiram entre eles, alguns personagens curiosos e de
questionamentos filosóficos, cujas memórias dos ancestrais se tornaram logo em
crendices.
Questionavam: ―Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?‖
(ALEGRE, 2008: 14). Assim os outros personagens logo esqueciam as indagações
sobre o
universo da visão.
Externamente, o mundo para eles não existia. O único mundo possível era aquele
vale. E não é só, palavras como olhar, ver, dia, noite, luz ou trevas não faziam
parte de seu
vocabulário. Isso é ressaltado no fragmento: ―Não existe a palavra VER, disse o
cego, após
uma pausa. ―Pare com essa loucura e siga os meus pés (ALEGRE, 2008: 12). Muito
menos,
palavras como, cego ou cegueira, já que desconheciam que estavam cegos. A visão
para
aqueles personagens não fazia sentido. As histórias de Nunez a respeito do mundo
da visão
soavam para eles como delírios. Acreditavam que Nunez era um lunático, ou coisa
parecida,
pois tudo o que se referia à palavra ―ver‖, era para eles um absurdo.
O conto provavelmente é uma alegoria sagaz da falta de conhecimento e do mundo
da
ignorância. Esse tópico serve para ilustramos um possível diálogo entre o conto
e o Ensaio.
Vale a pena vermos um fragmento da narrativa, identificando nuanças como a falta
de visão
presente no nosso objeto de estudo:
Venha cá, disse o terceiro cego, seguindo o movimento de Nunez e
agarrando-o. [...] Saí do Mundo. Por montanhas e glaciares; logo ali acima, a
meio caminho do Sol. Saí do grande, do enorme mundo que desce, em doze
dias de jornada, rumo ao mar. Então eles gritaram, e Pedro foi na frente e
tomou Nunez pela mão, para levá-lo às casas. Nunez afastou a mão. Posso
ver disse. ―Ver‖, disse Correa. ―Ver‖, disse Nunez, voltando-se para ele, e
tropeçou no balde de Pedro. "Os sentidos dele ainda são imperfeitos", disse o
terceiro cego. "Tropeça e fala palavras sem sentido. Levem-no pela mão."
―Como vocês quiserem‖, disse Nunez, e foi conduzido pela mão, rindo.
Parecia que eles não sabiam de nada sobre a visão (ALEGRE, 2008: 08).
Trazendo a discussão para a Idade Média, constatamos que os olhos e o seu poder
de
percepção fizeram com que certas personagens fossem atacadas, por causa de suas
visões e
por estas romperem a uma ordem estabelecida. Alguns desses personagens da
História foram
martirizados pela cultura judaico-cristã. Nomes que se rebelaram contra uma
ordem vigente e
pragmática, foram apontados pela Inquisição da Igreja Católica como hereges,
como foi o
caso de Joana D’Arc, cujas visões aterrorizaram a hegemonia da Igreja Católica
que
preconizava um poder canonizado.
Também As Escrituras Sagradas estão repletas de passagens em que são recorrentes
os temas do olhar e da cegueira. No tocante a esse assunto, vários profetas
bíblicos como
Isaías, Jeremias, Zacarias, Daniel, Amós, Obadias e Ezequiel tinham visões
reveladas em
nome de uma fé e de um Deus. Eram homens de um único Senhor, que profetizavam em
nome da fé e do Deus a quem serviam. Nos textos destes profetas destacamos
algumas
passagens contidas em Isaías, Jeremias e Ezequiel, só para salientar alguns
desses homens que
tinham certas revelações, ou seja, tinham um tipo especial de visão.
Em Isaías (2: 1-2) encontramos a passagem em que o profeta tem revelações sobre
Judá e Jerusalém: ―Visão que teve Isaías, filho de Amoz, a respeito de Judá e de
Jerusalém. E
acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos
montes e
se exalçará por cima dos outeiros‖.
Já o profeta Jeremias é escolhido antes do seu nascimento para as visões que
revelarão
o seu dom:
Palavras de Jeremias, filho de Hilquias, dos sacerdotes que estavam em
Anatote, na terra de Benjamim. [...] Antes que te formasse no ventre te
conheci, e antes que saísse da madre te santifiquei: às nações te dei como
profeta. [...] Ainda veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Que é que vês,
Jeremias? E eu disse: Vejo uma vara de amendoeira. [...] E veio a mim a
palavra do Senhor segunda vez, dizendo: Que é que, vês? E eu disse: vejo
uma panela a ferver, cuja face está para a banda do norte (JEREMIAS 1: 1,
11).
O profeta Ezequiel, por sua vez, também tem visões de anjos como expressa a
passagem abaixo:
Olhei e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, e uma grande nuvem,
com um fogo a revolver-se; e um resplendor ao redor dela, e no meio uma
cousa como a cor de âmbar, que saia dentre o fogo. E do meio dela saía a
semelhança de quatro animais; e esta era a sua aparência: tinha a semelhança
de um homem. E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles
quatro asas (EZEQUIEL, 1: 4, 6).
Saindo do velho para o novo testamento, encontramos a narrativa em que Jesus
Cristo,
há mais de dois mil anos, disseminou milagres sobre a terra. Vários desses
milagres são em
relação à cura de cegos que voltaram a enxergar, sendo que a cegueira era um dos
males curados pelo novo Messias. A Bíblia registra diversas imagens sobre os
cegos e a cegueira,
dentre elas, destacamos algumas. A primeira descreve Jesus curando o cego de
Jericó:
E aconteceu que, chegando ele perto de Jericó, estava um cego assentado
junto do caminho, mendigando. E ouvindo passar a multidão, perguntou o
que era aquilo. E disseram que Jesus Nazareno passava. Então clamou,
dizendo: Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim. [...] Dizendo: que
queres que eu faça? E ele disse: Senhor, que eu veja. E Jesus lhe disse: Vê: a
tua fé te salvou. E logo viu, e seguia-o glorificando a Deus (LUCAS 18: 35,
43).
A segunda passagem registra Jesus curando um cego de nascença:
E passando Jesus, viu um homem cego de nascença. [...] Enquanto estou no
mundo, sou a luz do mundo. Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva
fez lodo, e untou com lodo os olhos do cego. E disse-lhe: Vai, lava-te no
tanque de Siloé. Foi pois, lavou-se e voltou vendo (JOÃO 9: 1, 3).
Outra imagem bastante recorrente é a do cego em Betsaída:
E chegou a Betsaida; trouxeram-lhe um cego, e rogaram-lhe que lhe tocasse.
E, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; e, cuspindo-lhe nos
olhos, e impondo-lhes as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa. E,
levantando ele os olhos, disse: Vejo os homens; pois como árvores que
andam. Depois tornou a pôr-lhe as mãos nos olhos, e ele, olhando
firmemente ficou restabelecido (MARCOS 8: 22, 26).
Em Mateus (20: 29, 34), Jesus cura dois cegos e define a cegueira espiritual:
Ao saírem de Jericó, uma grande multidão seguiu Jesus. Dois cegos estavam
sentados à beira do caminho e, quando ouviram falar que Jesus estava
passando, puseram-se a gritar: ―Senhor, filho de Davi, tem misericórdia de
nós!‖ A multidão os repreendeu para que ficassem quietos, mas eles
gritavam ainda mais: ―Senhor, filho de Davi, tem misericórdia de nós!‖
Jesus, parando, chamou-os e perguntou-lhes: ―O que vocês querem que eu
faça? Responderam eles: ―Senhor, queremos que se abram os nossos olhos‖.
Jesus teve compaixão deles e tocou nos olhos deles. Imediatamente eles
recuperam a visão e o seguiram. [...] A cegueira Espiritual – Jesus ouviu que
o haviam expulsado, e, ao encontrá-lo, disse: Você crê no filho do homem? -
Quem é ele? – Você já o tem visto. Eu vim a este mundo para julgamento, a
fim de que os cegos vejam e os que vêem fiquem cegos. Acaso nós também
somos cegos?
Outra passagem bíblica que merece destaque concerne à cegueira de Saulo.
Conforme
as escrituras sagradas, ele perseguia os seguidores de Jesus e ficou cego,
voltando a enxergar
quando se converteu ao cristianismo: ―E Saulo levantou-se da terra, e abrindo os
olhos não via
a ninguém. [...] O Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me
enviou para
que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo‖ (ATOS, 9: 8, 15).
Essa temática do olhar e da cegueira vai estar, respectivamente, de formas
diferentes
em dois romances de José Saramago. Num, ele enfoca o olhar, enquanto
transmutação,
revelação ou dom. Já no Ensaio, o olhar é transformado numa possibilidade de
cegueiras
individuais e coletivas. O narrador utiliza, para isso, a metáfora de uma
―cegueira branca‖: um
mar de leite invade, repentinamente, a população de uma cidade qualquer do
século XX.
Todos, sem nomes, ficam cegos e, posteriormente, prisioneiros em um manicômio. A
cegueira
se instala aí tal, como os ratos invadiram a cidade de Oran em A Peste, romance
de Albert
Camus, de 1947.
Saramago pode ser, assim, considerado pelo Ensaio, como um espécie de visionário
do caos em tempos de contemporaneidade, em que a individualidade, o egoísmo e a
razão em
supremacia são formas de cegueiras. Já num romance anterior ao Ensaio, Memorial
do
Convento, de 1982, o escritor conta a construção do convento de Mafra, no
período da corte
de D. João V e de D. Maria Ana Josefa, esta, obrigada a dar um herdeiro para o
trono
português. Paralelo à edificação do convento, outros personagens darão corpo ao
texto. Dentre
eles, estão os personagens intitulados Blimunda, Baltasar Sete-Sóis e o Frei
Bartolomeu
Lourenço que fazem parte de outro núcleo da história do Memorial do Convento.
Na narrativa, a personagem Blimunda é filha de Sebastiana Maria de Jesus, esta,
condenada pela igreja por heresia e feitiçaria. Blimunda possui um dom, o da
profecia,
herdada desde quando se encontrava na barriga de sua mãe. Assim, a personagem
consegue
vê por dentro das pessoas e das coisas: ―Se o vieres a saber um dia será por
ela, não por mim.
Mas sabe a razão, Sei, E não me diz, Só te direi que se trata de um grande
mistério, voar é
simples coisa comparada com Blimunda‖ (ESC, 1990: 47).
Nesse romance, José Saramago inicia um tema que anos depois será o pano de fundo
do seu Ensaio, ou seja, a possibilidade de olhar de um modo específico, o olhar,
ver e
reparar, desenvolvido no Ensaio sobre a cegueira. Blimunda é a mulher que vê,
que enxerga sob um prisma diferente de todos os outros personagens do Memorial.
Como se pode observar
na passagem abaixo:
Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das
palavras, outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro
das pessoas. Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também
inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das
pessoas, Eu posso. [...] Meu Dom não é heresia, nem feitiçaria, os meus
olhos são naturais, eu só vejo o que está no mundo, não vejo fora dele, céu
ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo. [...] Vejo o que
está por dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o
que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por debaixo das roupas, mas só
vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua
(ESC, 1990: 75-76).
Cegar para poder ver, para poder olhar e reparar o outro e, possivelmente, a si
mesmo,
vai ser a estratégia narrativa empregada pelo autor do Ensaio sobre a cegueira,
que poderia
muito bem ser lido como uma metáfora de como olhar de modo diferente o mundo.
FIM
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excerto da obra
TEMPO DE CEGAR E DE OLHAR: A METÁFORA DA ALIENAÇÃO EM O 'ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA' DE JOSÉ SARAMAGO
Joanice Antónia Santos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós–Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da
UEFS, tendo como Orientador o Professor Doutor
Francisco Ferreira de Lima, como requisito parcial para
obtenção do grau de mestre em Literatura.
Feira de Santana, 28 de agosto de 2009
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