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-excerto-

The Blind Man -
Santi-Moix, 2003
GPS
António, também conhecido nas suas costas por aquele advogado que é cego, ou aquele advogado invisual, ou aquele ceguinho que tirou advocacia, depende de quem o via e a que distância, visitava a Igreja de São Sebastião da Pedreira pela
segunda vez na vida.
António tinha hábitos bizarros como gostar de arte e ir a exposições, e juntara durante anos argumentos para dizer como era isso possível no seu caso, até que os abandonou porque, concluiu, quem precisa da explicação não merece ouvi-la.
Passou a dizer que era bom porque muitas vezes davam croquetes e taças de espumante na inauguração.
Não se zangou com ninguém, porque António também bebia cerveja à pressão e comia caracóis como qualquer pessoa que gosta disso. Chupava o molho da espiral, depois de fisgar o bicho com um alfinete, dos corninhos doces à tripa amarga, numa
esplanada ao fim da tarde, principalmente em Maio e Junho, a altura deles. Duas imperais por petisco era a sua média, e a segunda pousava-a com um suspiro, um som honesto que deixava os clientes alegres. Lambia o bigode de espuma. Às vezes,
limpando o molho dos dedos aos guardanapos de papel, perguntava se algum caracol escapara de ser comido, saltando do pires cheio para o pires das cascas sem lhe passar pela boca, acabando por morrer sem utilidade.
Chocalhava as cascas. Ficaste, molusco, no teu esconderijo..., respondia António. Mas no fim deixava-o em paz: a pessoa que come vê ou não vê, mas sobra sempre um esquecido no caldo de orégãos, no fundo dos panelões que perfumam Lisboa. E
bebia outra imperial em honra do caracol desconhecido.
Esfarelava pão e dava-o aos pardais que o chamavam debaixo da mesa, piu, pulando a pés juntos como criancinhas, depressa, piupiu, antes que cheguem os pombos ladrões que correm como tu. Para os ouvir na cidade António usava solas de
borracha, movia-se com leveza e nunca, dentro do possível, assustava o coração dos pássaros com a ponta da bengala.
Não fazer tic-tic também era bom para escutar automóveis e não ser atropelado.
[...]
A segunda vez que entrou na igreja foi no dia das grandes inundações, que a todos surpreenderam e transformaram Lisboa numa pia de lavatório. Foi muito azarado voltar precisamente naquela tarde caótica, porque os motivos para ele estar
na rua, no alto de São Sebastião da Pedreira, do outro lado dos grandes armazéns espanhóis, não eram estéticos nem espirituais nem fúteis, eram práticos.
António ensaiava um novo passo na sua autonomia de cego. Fazia testes: acabara de comprar um invento que lhe podia ser útil e estava em promoção.
Nesse dia terminara, mais cedo do que o previsto, o relatório dum contencioso particularmente complexo que envolvera um morto, um ferido grave e duas semanas de trabalho duro, no Fundo de Garantia Automóvel. Tratava de acidentes
automóveis em que o condutor não tinha seguro. Nem sempre o chefe dele gostava das suas conclusões e rebatia, às vezes no limite da decência, os relatórios de António financeiramente desvantajosos para o Estado e justos para as vítimas. Se
António mostrava mais coração do que racionamento dos recursos, o chefe dizia-lhe, bem-disposto:
― Gosto muito de si, doutor António, mas primeiro, você é um
advogado e um advogado faz o que convém a quem lhe paga. Neste
caso, o Estado português por meu intermédio. É uma honra para mim servir o Estado e para si obedecer ao que o Estado lhe pede, que é poupar o erário público quando se trata de poupar, e cobrar o mais possível o resto do tempo. Em suma, não lhe pago para ser sentimental.
António sabia que já era bom ter um emprego fixo, na sua condição. Claro que o Estado também ganhava com a sua experiência. Mas nunca o reconheceria num caso como o dele.
Ouviu o seu texto no leitor de voz do computador. Sozinho na sala, não usava auriculares. Era uma voz empastelada e rápida, boa para termos jurídicos. Relembrou os factos do dia do acidente, quem desrespeitou o código, as consequências a
longo prazo para as pessoas envolvidas, os danos morais e materiais de quem se vê privado do ente querido, do chefe-de-família, os argumentos finais, conferiu a pontuação no teclado Braille, piquinho por piquinho na almofada da falangeta,
só mudou duas vírgulas na citação dum artigo do código penal, gravou tudo no desktop, enviou para a sua caixa de correio na Internet por segurança.
Depois carregou imprimir, enter, e enquanto esperava enviou um SMS à mulher,
-
não venhas buscar chego hora
jantar querida depois explico beijo
um dia começo a escrever n em vez de não, e dps, krida e bjs, como toda a gente, pensou, mas ela não poderá fazer o mesmo, o sintetizador do telemóvel baralha-se com abreviaturas e códigos que mudam a toda a hora, na língua apressada dos
jovens.
Tirou as folhas da impressora, agrafou-as, desligou o computador,
bateu à porta do chefe e estendeu-lhe o relatório, que disse já, é o que
eu penso?, muito bem, doutor António, amanhã falamos, se quiser
pode ir embora que eu pico-lhe o ponto, mas esperamos que esteja tudo
como esperamos que esteja, ó esbanjador do erário público! Espere só
um segundo, deixe-me ler aqui no fim... hum, hum, agiu não conforme
às regras do trânsito e com evidente menosprezo por uma conduta
de segurança, bem sabendo
que colocava em risco os valores das outras
pessoas e da sua, e da sua!, muito
bem,... hum, hum,
incluindo a sua integridade física, e o bem supremo que é a vida.
A vida o bem supremo, ouviu António.
― Perfeito, doutor António, mais um que não pagamos. Pode ir.
António acenou com a cabeça e suspirou no corredor. O mais
curioso era que a conversa, em vários processos, tanto se aplicava ao
culpado como à vítima.
Havendo a hipótese de
culpar a vítima era
escolher a mais barata.
Despediu-se da secretária-telefonista, que lhe retribuiu com um toque nos dedos, eram duas mãos hipersensíveis, a dela por solidão, desdobrou a bengala branca, mas a meio das escadas, ao décimo segundo
degrau, o último antes do
patamar onde cheirava a bolor, tim-tim!,
levou o telemóvel ao ouvido e o sintetizado disse-lhe, em sílabas sintéticas,
-
ok mas não te demores beijo
já está em pulgas, riu-se ele, o ok a máquina reconhece.
Finalmente desceu a rua na direcção do metro, apanhou a primeira carruagem da linha verde e saiu sem problemas na estação dos grandes armazéns espanhóis.
António sentiu a porta automática abrir, o ar quente, e ouviu um radiotransmissor...
pchsss, estou no piso cinco, secção de lingerie de senhora, em missão de reconhecimento, escuto, pchsss..., uma voz a fritar em azeite, e a dois metros
de António a resposta divertida doutro homem, mais nítida, ao vivo, disse à primeira... fogo Freitas, ganda tarado, nunca sais daí, o qu'é qu'andas outra vez a cheirar?, ainda m' apareces de cuecas e soutien, escuto.
António chegou-se à voz e perguntou pela área de apetrechos electrónicos, por favor. O segurança apontou-lhe o fundo da loja, mas continuou a olhar para a antena do rádio.
― É ali ao fundo... mas depende do qu'é qu'er, porque... ah, desculpe!, peço imensa desculpa, não vi.
― Nem eu.
― Eu... levo-o lá, desculpe. Freitas, escuto?
― Escuto, pchsss.
― Já falo contigo, terminado.
― Obrigado. Não precisa de me empurrar... largue a bengala... e
não me puxe o braço, deixe-me só tocar-lhe no cotovelo e chega, muito obrigado, explicou António, que dobrou a bengala em quatro partes, seguras pelo elástico interno, e a pôs debaixo do braço.
Seguiram os dois sem que António precisasse de fazer mais nada, uma bengala humana mostrava-lhe o caminho furando entre as pessoas, mas o segurança caminhava emperrado, como se receasse rasgar as calças, ou fosse um camponês na parada da
tropa a acertar os passos com o resto do pelotão. Ninguém sabe qual a velocidade ideal para conduzir um cego que nos toca levemente no cotovelo, pelo chão encerado duma grande loja, à hora das compras.
António disse que queria ver a montra dos GPS, aqueles aparelhos pequeninos e portáteis de orientação por satélite. O segurança disse com certeza, pensando olha-m'esta agora..., mas levou-o lá.
Uma das características de António era não rolar os olhos como um simplório, mostrando em flashes a esclera, o branco do olho. Também tinha as córneas à vista e aparentemente a funcionar. Não usava óculos
escuros. Além disso, nunca fazia
movimentos estranhos com a cabeça,
espasmódicos ou sem
necessidade. Isso
trazia-lhe vantagens,
como não ter que
explicar a certa altura
das conversas, como
tantos outros que conhecia, principalmente os de nascença, que não era atrasado
mental,
que ouvia bem e percebia o que lhe diziam.
Por outro lado, diante da sua calma, algumas pessoas reagiam de
forma emocional, sentindo-se defraudadas por acharem que não podia
ser tão fácil a vida dum ceguinho, e que mais valia que ele se portasse
de acordo com as expectativas, se elas se esforçavam tanto para o
ajudar, e se não andaria por ali a rondar a maldade inata dos cegos.
Outras, pelo contrário, raciocinavam que um invisual devia fazer
um enorme esforço para parecer uma pessoa como as outras, todos os
minutos que saía à rua a fazer de normal, sem estar no Rossio a desafinar
um violino, a trinar ferrinhos e fado, como se a desgraça não fosse
nada com ele, o que em si era meritório e sinal de humanidade, mas
infelizmente, concluíam, a atenção silenciosa que demonstrava ao pedir
uma informação era portanto falsa, sem dúvida, e de facto não
estava a entender nada, só a fazer que sim, não se atrevendo a confessar
a ignorância, pelo que repetiam tudo sem necessidade uma vez e
outra vez, e outra ainda, até que António dizia:
― Basta, já percebi. E o senhor?
Tinha fama de ingrato nalguns estabelecimentos. E umas pessoas
tinham medo dele, mas isso é natural.
António só precisava de colocar os dedos e apurar o ouvido para
sentir a razão de ser e o funcionamento de quase todos os aparelhos
inventados pelo homem.
Tocava, por assim dizer,
na alma mecânica e
electrónica dos instrumentos. E prestava atenção aos livros de instruções,
a melhor ajuda para este talento.
♦♦♦
Quando chegou, o empregado da banca dos GPS concentrou-se
todo. Tinha vários aparelhos em exposição, mais caros e mais baratos,
com programas da Europa e dos Estados Unidos, até uns com carta incorporada das estradinhas da Mauritânia e
do Tibete. Com voz e sem voz, com telemóvel e TV incluídos, para carro da cidade, para veículo do deserto, para todo-o-terreno, também com alarme para aproximação de radar de velocidade e evitar multas de trânsito, com imagem real dos
prédios, etc.
Mas nunca vendera o modelo para cegos. Só tinha um exemplar e
ainda estava na caixa.
― Confesso-lhe que... chegou há pouco tempo e... está em promoção, por acaso!
― Eu sei. Vim por isso.
― Posso ver-lhe aqui as funções...
― Isso também sei, mais ou menos, ajudou António. É um PDA
com sistema GPS aparentemente normal, mas com uma componente mais de voz do que de imagem. A voz é de mulher, chamam-lhe Célia, e indica as ruas da cidade, passo a passo, a um peão. Promete levar-nos até qualquer artéria de Lisboa, ao
prédio que procuramos, com um grau de erro de apenas dois números de porta.
― É... é óptimo, respondeu o vendedor, que não estava à espera
dum eloquente. ― Pode tirar da caixa? Enquanto não carrega a bateria, tem de se
ligar uns minutos à tomada.
Desembrulharam, ligaram e António começou a rodar o aparelho nos dedos. Pouco mais largo do que um telemóvel. De vez em quando perguntava, este botão é?..., e este?..., espere, diz aqui on e off, em Braille.
Mas eu também posso ler aqui no livrinho, é só um instante!, respondia o vendedor, naquele que seria um dos dias mais inesquecíveis da sua vida profissional, depois embebedou-se ligeiramente ao jantar. Tinha pulsões de artista e de
voluntário social, mas aquele balcão foi
o que arranjou para viver.
― Avenida António Augusto de Aguiar, perto do cruzamento com a Rua Engenheiro Canto Resende, disse daí a pouco o aparelho, com voz de mulher ensonada.
― Cá está a Célia. Boa tarde, Célia.
― Diga a direcção que deseja.
― É... é espantoso, suspirou o vendedor, emocionado... e
tem uns
auscultadores, pegue-lhes aqui... eu, eu, eu...
― Então?...
― Não leve a mal, senhor... Mas nem sempre me sinto útil neste
balcão. É, deixe-me dizer-lhe, mal pago e vem aqui gente que... há uns tipos que só querem estes aparelhómetros
― sei que são úteis nalguns casos...
― mas desconfio que é para se mostrarem, saírem daqui uns pavões no carrão ou no jipe. Há
quem compre jipes, com a crise que aí vai no mundo, acredita? Ainda dizem que não há dinheiro. E alguns taxistas, ok, também vêm, agora menos.
― O cérebro dos taxistas desenvolve áreas específicas no lobo frontal, que supervisiona tudo cá dentro, mas também no cerebelo e no parietal, para decorar a localização das ruas. Fizeram um estudo dos cérebros
nos táxis de Londres e eles armazenam, em média, 12 mil artérias e a melhor maneira de chegarem a cada uma de qualquer ponto da grande cidade, têm uma memória operacional e de orientação incrível, semelhante à dos ratos de esgoto. Se um
taxista usa GPS, é mais para o cliente se distrair e pensar que o preço da bandeirada é científico. Bom, por falar nisso, acho que vou levar, quanto é exactamente?
― Mas o que eu lhe queria dizer, não leve a mal é que...
António abriu a carteira.
― Trago o dinheiro em notas. Sabe que se aconselha os cegos a não passarem cheques, nem cartões, porque nem sempre sabem o que lhes dão a assinar.
― Não é isso!... Eu... É que, sabe, pensei agora numa coisa, é triste, mas ao mesmo tempo tem algum interesse, acho eu: que num mundo tão perigoso e injusto tenham inventado este aparelho que serve pessoas como o senhor. Pessoas...
invisuais que...
― Diga cegos, cegos está bem.
― Cegos que andam no mundo, cá em baixo na Terra, guiados por
satélites artificiais a quilómetros de altitude, e aquelas antenas cromadas respondem ao segundo com um bip-bip para baixo que lhes encontra o sítio que eles pedem, por exemplo numa rua de Lisboa, enquanto outros, que têm olhos e tudo vêem,
supostamente...
― É uma metáfora ou uma alegoria?
-Eu...?
O rapaz ficou com as mãos transparentes de aflição. Era muito magro, uma gotinha de suor escorreu-lhe a pique da cara, por falta de rebordos, e precipitou-se na gola da farda. António fixava-o, fazia pelo menos algo de parecido.
― Os artistas, os escritores, os políticos e as pessoas em geral não perdem uma oportunidade de transformar os cegos em imagens. Somos pau-para-toda-a-obra das metáforas do mundo, desde sempre, em todo o lado. Cegueiras morais, cegueiras
políticas, religiosas, do poder e do dinheiro, do amor, cegueiras pretas, cegueiras brancas. O que eu, cego, vejo quanto a isso, se me permite o trocadilho, é que milhões de pessoas não vêem nada ou vêem muitíssimo mal. Têm problemas
graves, irreversíveis, nos olhos ou no cérebro. Doença, acidente, má alimentação, moscas, genética, bactérias, ácidos, guerra, maldade, azar.
― Eu não ia..., começou o rapaz e foi interrompido.
― Mas temos de estar sempre a pagar a falta de drama de outras
doenças e incapacidades, como a tromboflebite, nunca vi um tromboflebítico cheio de varizes a ser usado como exemplo das aflições do mundo. Bom, há os coxos, que também têm a sua dose, o mentiroso é mais fácil de apanhar do que o coxo... o
pior surdo é o que não quer ouvir... Mas não se compara, uma pessoa cega e de repente abandona, pelos vistos, a sua condição estritamente humana. Não acha esta conversa sobre os cegos mais uma espécie de cegueira?
― Lamento.
― É como morrer alguém. Se há funeral, a metáfora está sempre
errada. Um jornalista escreve que a morte dum papa é a morte metafórica duma era histórica... se calhar é para ele, que correu o mundo atrás do papamóvel, ou para mim, se o papa me afectou a vida, mal ou bem. A morte não é metáfora, se a
pessoa morreu. Um pai diz, tu para mim estás morto!, morreste como meu filho... E se o filho for atropelado nesse dia?
― Desculpe.
― A cegueira como alegoria está gasta desde que meteram uma venda na Justiça.
― Lamento se o magoei, senhor.
De repente António pegou-lhe no braço suado, fez-lhe uma festa e disse-lhe, do fundo do coração, que tinha sido um pensamento muito bonito, e que tinha razão. E que para ele, um cego, seria também um dia muito importante na vida, caso
aquela geringonça ligada ao céu funcionasse.
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"Deixem passar o homem
invisível" de
Rui Cardoso Martins debruça-se
sobre o percurso de um
advogado, cego desde os
oito anos, que, durante
uma enxurrada de
dimensões bíblicas em
Lisboa, acaba por cair
numa caixa de esgoto
aberta, nas imediações
da igreja de São
Sebastião da Pedreira.
Idêntico destino tem um
escuteiro que regressava
de uma actividade no
mesmo local. O que o
livro descreve é, pois,
a viagem de ambos,
através de uma Lisboa
subterrânea, enquanto cá
fora são tomadas todas
as medidas para os
salvar.
Com esta obra, Rui
Cardoso Martins
foi o
vencedor, em 2009, do
Grande Prémio de Romance
e Novela da Associação
Portuguesa de Escritores
(APE)/Direcção-Geral do
Livro e das Bibliotecas.
[JN]
ϟ
Deixem
Passar o Homem Invisível
Rui Cardoso Martins
1.ª edição,
2009
Romance
Publicações D. Quixote
2.Out.2011
Publicado por
MJA
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