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 Sobre a Deficiência Visual


Conto de Fadas

Stephen_King

excerto

Ilustração de Gabriel Rodriguez para 'Fairy Tale' de Stephen King
Woody, um velho cego - ilustração de Gabriel Rodriguez para 'Fairy Tale'


Percebi que tinha deixado a guia de Radar na carroça.

— Hum, acho que preciso pegar a guia da minha cadela primeiro, senhor. Não sei como ela reage a gatos.

— Ela vai ficar bem — disse o homem idoso. — Mas, se você tiver comida, sugiro que traga para dentro. Se não quiser descobrir de manhã que foi roubada, claro.

Eu voltei, peguei o pacote de Dora e a minha mochila. E a guia, só por garantia. O homem da casa chegou para o lado e fez uma pequena reverência.

— Vem, Rad, mas se comporta. Estou contando com você.

Radar me seguiu para uma salinha arrumada com um tapete de retalhos sobre o piso de madeira. Havia duas poltronas perto da lareira. Um livro estava apoiado e aberto no braço de uma delas. Havia alguns outros em uma prateleira próxima dali. O outro lado da sala era uma cozinha estreita como a de um navio. Na mesa havia pão, queijo, frango e uma tigela de algo que eu tinha quase certeza que era geleia de cranberry. Também uma jarra de cerâmica. Meu estômago soltou um ronco alto.

O homem riu.

— Eu ouvi isso. Tem um ditado antigo que diz que a juventude precisa ser alimentada. Ao qual podemos acrescentar “e com frequência”.

Havia dois lugares na mesa e uma tigela no chão perto de uma das poltronas, da qual Radar já estava bebendo ruidosamente.

— Você sabia que eu vinha, não sabia? Como você soube?

— Você sabe o nome que preferimos não dizer?

Eu assenti. É claro que, nas histórias como essa em que eu parecia ter entrado, geralmente há um nome que não deve ser falado para que não se desperte o mal.

— Ele não tirou tudo de nós. Você viu que minha sobrinha conseguiu falar com você, não foi?

— Sim. Pela égua.

— Falada, sim. Leah também fala comigo, jovem príncipe, ainda que raramente. Quando fala, a comunicação dela nem sempre é clara, e projetar os pensamentos a cansa ainda mais do que projetar a voz. Nós temos muito a discutir, mas primeiro vamos comer. Venha.

Ele está falando de telepatia, pensei. Deve ser, porque ela não ligou pra ele nem mandou mensagem de texto.

— Por que você me chamou de jovem príncipe?

Ele deu de ombros. O gato no seu ombro balançou.

— Uma forma familiar de tratamento, só isso. Bem antiquada. Um dia talvez um príncipe de verdade apareça, mas, pelo som da sua voz, não é você. Você é muito jovem.

Ele sorriu e se virou para a cozinha. A luz do fogo bateu toda no rosto dele pela primeira vez, mas eu acho que já sabia, só pela forma como ele esticava a mão ao andar, testando o ar em busca de obstáculos. Ele era cego.


*

Quando nos sentamos, o gato pulou para o chão. Seu pelo era de um marrom cor de fumaça intenso. Ele se aproximou de Radar e eu me preparei para segurar a coleira dela se ela fosse para cima dele. Mas ela não foi, só abaixou a cabeça e farejou o focinho do gato. Em seguida, se deitou. O gato andou na frente dela como um policial inspecionando um soldado em um desfile (e a achando descuidada), depois andou até a sala, pulou na poltrona que tinha o livro no braço e se deitou enrolado.

— Meu nome é Charles Reade. Charlie. Leah te contou isso?

— Não, não funciona assim. É mais como ter uma intuição. É um prazer te conhecer, Príncipe Charlie. — Agora que a luz estava no seu rosto, dava para ver que os olhos não existiam, da mesma forma que a boca de Leah, só com cicatrizes antigas marcando onde antes ficavam. — Meu nome é Stephen Woodleigh. Eu já tive um título, príncipe regente, na verdade, mas esses dias estão no passado. Pode me chamar de Woody se quiser. Nós moramos aqui perto do bosque. Eu e Catriona.

— Sua gata?

— É. E acredito que sua cadela é… Ramar? Algo assim, claro. Não consigo lembrar.

— Radar. Ela era do sr. Bowditch. Ele morreu.

— Ah, sinto muito. — Ele pareceu triste, mas não surpreso.

— O senhor o conhecia bem?

— Você, por favor. Nós passamos um tempo juntos. Como você e eu vamos passar, Charlie, assim espero. Mas temos que comer primeiro, porque acho que a viagem que você fez hoje foi longa.

— Posso fazer uma pergunta antes?

Ele abriu um sorriso largo e transformou o rosto em um rio de rugas.

— Se quiser saber quantos anos eu tenho, eu não consigo lembrar. Às vezes acho que eu já era velho quando o mundo era jovem.

— Não é isso. Eu vi o livro e me perguntei… se você… sabe como é…

— Como eu leio se sou cego? Dá uma olhada. Aliás, você prefere coxa ou peito?

— Peito, por favor.

Ele começou a servir a comida, e devia estar acostumado a fazer isso no escuro havia muito tempo, porque não houve hesitação nos movimentos. Eu me levantei e fui até a sua cadeira. Catriona olhou para mim com olhos verdes sábios. O livro era velho, a capa mostrava morcegos voando na frente de uma lua cheia: The Black Angel, de Cornell Woolrich. Poderia ter vindo das estantes do quarto do sr. Bowditch. Só que, quando o peguei e olhei o ponto em que Woody tinha parado, não vi palavras, só grupinhos de pontos. Coloquei-o no lugar e voltei para a mesa.

— Você lê braile — falei. Pensando: a linguagem nos livros deve mudar também. Não é loucura?

— Leio. Adrian trouxe um livro que ensinava e me mostrou as letras. Depois disso, consegui aprender sozinho. Ele trouxe outros livros em braile de tempos em tempos. Ele gostava de histórias fantasiosas, como a que eu estava lendo enquanto esperava sua chegada. Homens perigosos e donzelas em perigo vivendo em um mundo bem diferente deste.

Ele balançou a cabeça e riu, como se ler ficção fosse uma atividade frívola, talvez até maluca. Suas bochechas estavam rosadas de ter ficado perto do fogo e não vi sinal de cinza nele. Ele estava inteiro, mas não estava. Nem sua sobrinha. Ele não tinha olhos com que enxergar e ela não tinha boca com que falar, só uma ferida que abria com a unha para ingerir o pouco que conseguia. Isso sim era uma donzela em perigo.

— Venha. Sente-se.

Fui até a mesa. Lá fora, um lobo uivou, então a lua, as luas deviam ter aparecido. Mas estávamos seguros na casa de tijolos. Se um lobinho descesse pela chaminé, ele torraria a bunda peluda no fogo.

— Esse mundo me parece todo fantasioso — falei.

— Fique por um tempo e vai ser o seu que vai parecer de faz de conta. Agora, coma, Charlie.


*

Eu comi, e a comida estava deliciosa. Pedi para repetir e depois de novo. Fiquei me sentindo meio culpado, mas o dia tinha sido longo e eu tinha puxado aquela carroça por uns trinta quilômetros. Woody comeu pouco, só um drumete e um pouco da geleia de cranberry. Senti mais culpa quando vi isso. Lembrei-me da minha mãe me levando para dormir na casa do Andy Chen, dela dizendo para a mãe do Andy que eu era um poço sem fundo e comeria eles e a casa se ela deixasse. Perguntei a Woody onde ele conseguia os alimentos.

— Em Enseada. Tem alguns lá que ainda se lembram de nós… ou de como nós fomos… e pagam tributo. O cinza chegou lá agora. As pessoas estão indo embora. Você deve ter encontrado algumas na estrada.

— Encontrei — falei e contei sobre Peterkin.

— Grilo vermelho, você diz? Há lendas… mas deixa pra lá. Que bom que você pôs fim nisso. Talvez você seja um príncipe, no fim das contas. Cabelo louro, olhos azuis? — Ele estava me provocando.

— Não. Ambos castanhos.

— Ah. Não é um príncipe, nem o Príncipe.

— Quem é o Príncipe?

— Só mais uma lenda. Este é um mundo de histórias e lendas, assim como o seu. Quanto à comida… eu recebia mais mantimentos do que conseguia comer das pessoas de Enseada, embora mais peixe do que carne. Como você deve imaginar pelo nome. Demorou para o cinza chegar naquela parte do mundo; quanto tempo, não sei dizer, os dias se misturam quando se está sempre no escuro. — Ele falou sem autopiedade, só como constatação. — Acredito que Enseada pode ter sido poupada por um tempo, porque fica numa península estreita, onde o vento sempre sopra, mas ninguém tem certeza. Ano passado, Charlie, você teria encontrado dezenas de pessoas na Estrada do Rei. Agora, a maré está baixando.

— Estrada do Rei? É assim que vocês chamam?

— É, mas, quando passa da bifurcação, é Estrada do Reino. Se você escolhesse ir para a esquerda na bifurcação, você estaria na Estrada de Enseada.

— Pra onde eles estão indo? Depois da casa da Dora e a fazenda da Leah e da loja que o irmão da Dora tem?

Woody pareceu surpreso.

— Ele ainda tem? Estou impressionado. O que será que ele tem pra vender?

— Não sei. Só sei que ele dá sapatos novos pra substituir os estragados.

Woody riu, satisfeito.

— Dora e James! Sempre com os truques deles! A resposta pra sua pergunta é: eu não sei e tenho certeza de que eles também não sabem. Só pra longe. Longe, longe, longe.

Os lobos, que estavam em silêncio, começaram a uivar de novo. Parecia que eram dezenas, e fiquei bem feliz por ter chegado à casa de tijolos do Woody na hora em que cheguei. Radar choramingou. Eu fiz carinho na cabeça dela.

— A lua deve estar aparecendo. Luas.

— De acordo com Adrian, só tem uma no seu reino de faz de conta. Como diz um dos personagens do livro do sr. Cornell Woolrich: “Vocês foro robados”. Quer uma fatia de bolo, Charlie? Talvez você o ache um pouco duro.

— Bolo seria uma maravilha. Quer que eu pegue?

— De jeito nenhum. Depois de tantos anos aqui… um abrigo bem aconchegante para um exílio, não acha? Eu estou bem hábil. Está numa prateleira na despensa fria. Fique aí. Volto em dois momentos.

Enquanto ele pegava o bolo, eu me servi de mais limonada da jarra. Limonada parecia ser a bebida padrão de Empis. Ele trouxe uma fatia de bolo de chocolate para mim e outra para ele. Fazia o bolo que a gente comia no refeitório da escola parecer bem ruim. Não achei nada duro, só um pouquinho nas bordas.

Os lobos pararam de repente, me fazendo pensar de novo em alguém tirando o plugue de um amplificador que tinha sido aumentado até o volume onze. Passou pela minha cabeça que ninguém naquele mundo entenderia essa referência a Isto é Spinal Tap. Nem a nenhum outro filme.

— As nuvens devem ter voltado — falei. — Elas vão embora, né?

Ele balançou a cabeça lentamente.

— Não desde que ele veio. Chove aqui, Príncipe Charlie, mas o sol quase nunca brilha.

— Jesus — falei.

— Outro príncipe — respondeu Woody, novamente com um sorriso largo. — De paz, de acordo com a Bíblia em braile que Adrian trouxe. Você está satisfeito? Significa…

— Eu sei o que significa, e estou, sim.

Ele se levantou.

— Então venha se sentar junto ao fogo. Nós precisamos conversar.

Eu o segui até as duas poltronas na salinha. Radar foi atrás. Woody procurou Catriona, encontrou-a e a pegou. Ela se deitou sobre as mãos dele como uma estola de pele até ele a largar no chão. Dali, ela lançou um olhar arrogante para a minha cadela, balançou a cauda com desprezo e se afastou. Radar se deitou entre as duas poltronas. Eu tinha dado um pouco do meu frango a ela, mas ela comeu pouco. Ela olhava para o fogo como se tentasse decifrar os segredos dele. Pensei em perguntar a Woody o que ele faria para conseguir alimentos, já que a cidade de Enseada tinha entrado na evacuação, mas decidi não falar nada. Temia que ele me dissesse que não fazia ideia.

— Quero agradecer pela refeição.

Ele fez um gesto de dispensa.

— Você deve estar se perguntando o que estou fazendo aqui.

— De jeito nenhum. — Ele esticou a mão e fez carinho nas costas de Radar. Em seguida, voltou as cicatrizes do que já tinham sido olhos para mim. — Sua cadela está morrendo e não há tempo a perder se você quer fazer o que veio fazer.


*

Cheio de comida, seguro na casa de tijolos com os lobos silenciosos e a lareira me aquecendo, eu estava relaxando. Me sentindo satisfeito. Mas quando ele disse que Rad estava morrendo, eu me ajeitei na poltrona.

— Não necessariamente. Ela está velha e tem artrite nos quadris, mas não está…

Pensei na assistente do veterinário dizendo que ficaria surpresa se Radar vivesse até o Halloween e fiz silêncio.

— Eu sou cego, mas meus outros sentidos funcionam muito bem para um velho. — A voz dele soou gentil e isso tornou tudo horrível. — Na verdade, meus ouvidos ficaram mais apurados do que nunca. Eu tinha cavalos e cachorros no palácio quando garoto, e quando jovem eu sempre saía com eles e amava todos. Sei como soam quando estão chegando perto do suspiro final. Escuta! Fecha os olhos e escuta!

Eu fiz o que ele mandou. Ouvi um estalo ocasional vindo da lareira. Em algum lugar, um relógio tiquetaqueava. Uma brisa tinha surgido lá fora. E eu ouvi Radar: o chiado cada vez que ela inspirava, o sacolejo cada vez que ela expirava.

— Você veio colocá-la no relógio de sol.

— Sim. E tem ouro. Bolinhas de ouro, como bilhas. Não preciso disso agora, mas o sr. Bowditch disse que mais pra frente…

— Deixa o ouro pra lá. Só chegar no relógio de sol… e usá-lo… já é uma missão perigosa demais para um jovem príncipe como você. Tem o risco da Hana. Ela não estava lá na época do Bowditch. Você talvez consiga passar por ela se tomar cuidado… e tiver sorte. A sorte não pode ficar de lado numa empreitada dessas. Quanto ao ouro… — Ele balançou a cabeça. — Isso é ainda mais arriscado. É bom você não precisar dele agora.

Hana. Guardei o nome para depois. Havia outra coisa sobre a qual fiquei curioso.

— Por que você está bem? Exceto pela cegueira, claro. — Desejei poder retirar as palavras assim que as falei. — Desculpa. Isso não saiu direito.

Ele sorriu.

— Não precisa pedir desculpas. Considerando uma escolha entre ser cego e ter o cinza, eu escolheria a escuridão com facilidade. Eu me ajustei muito bem. Graças ao Adrian, eu até tenho histórias de faz de conta pra ler. O cinza é uma morte lenta. Vai ficando mais difícil respirar. O rosto é engolido por carne inútil. O corpo se fecha. — Ele levantou uma das mãos e fez um punho. — Assim.

— Isso vai acontecer com a Dora?

Ele assentiu, mas não precisou. Foi uma pergunta infantil. Eu a tinha visto e a tinha ouvido.

— Quanto tempo ela tem?

Woody balançou a cabeça.

— Impossível dizer. É lento e não do mesmo jeito para todo mundo, mas é implacável. Por isso é tão horrível.

— E se ela fosse embora? Fosse para onde os outros estão indo?

— Acho que não faz diferença. Quando começa, não dá pra escapar. Como a doença que definha. Foi isso que matou Adrian?

Supus que ele estivesse falando do câncer.

— Não, ele teve um ataque cardíaco.

— Ah. Um pouco de dor e fim. Melhor do que o cinza. Quanto à sua pergunta, era uma vez… Adrian disse que muitas histórias começam assim no mundo de onde ele vinha.

— É. É verdade. E coisas que eu vi aqui são como essas histórias.

— Assim como as de onde você veio, tenho certeza. Tudo são histórias, Príncipe Charlie.

Os lobos começaram a uivar. Woody passou o dedo pelo livro em braile, fechou-o e o largou numa mesinha ao lado da poltrona. Eu me perguntei como ele acharia o ponto onde tinha parado. Catriona voltou, pulou no colo dele e começou a ronronar.

— Era uma vez, na terra de Empis e na cidade de Lilimar, que é seu destino, uma família real que datava de milhares de anos. A maioria, não todos, mas a maioria, governava sabiamente e bem. Mas quando a época terrível chegou, quase toda a família foi morta. Massacrada.

— Leah me contou um pouco disso. Você sabe, por meio de Falada. Ela disse que a mãe e o pai dela tinham morrido. Eles eram o rei e a rainha, né? Porque ela disse que era a princesa. A menor de todas.

Ele sorriu.

— Sim, de fato, a menor de todas. Ela contou que as irmãs foram mortas?

— Sim.

— E dos irmãos?

— Que eles também foram mortos.

Ele suspirou, fez carinho na gata e olhou para o fogo. Tenho certeza de que ele sentia o calor e me perguntei se conseguia ver um pouco… da forma que podemos virar o rosto para o sol de olhos fechados e ver uma vermelhidão quando o sangue se ilumina. Ele abriu a boca como se para dizer alguma coisa, mas fechou-a e balançou de leve a cabeça. Os lobos tinham parecido estar bem perto… mas pararam. A forma como isso acontecia subitamente era sinistra.

— Foi um expurgo. Você sabe o que isso quer dizer?

— Sei.

— Mas alguns de nós sobrevivemos. Fugimos da cidade, e Hana não sai de lá porque é exilada do mundo dela, no norte. Oito de nós conseguimos passar pelo portão. Seríamos nove, mas meu sobrinho Aloysius… — Woody balançou a cabeça de novo. — Oito de nós escapamos da morte na cidade e nosso sangue nos protege do cinza, mas outra maldição nos seguiu. Você consegue adivinhar?

Eu conseguia.

— Cada um perdeu um dos sentidos?

— É. Leah consegue comer, mas é doloroso para ela, como você deve ter visto.

Eu assenti, embora ele não tivesse como ver.

— Ela mal consegue sentir o gosto do que come, como você viu, não consegue falar, exceto por meio de Falada. Ela está convencida de que ele será enganado por isso caso ouça. Eu não sei. Talvez ela esteja certa. Talvez ele ouça e ache graça.

— Quando você diz ele… — Eu parei aí.

Woody segurou minha camisa e puxou. Eu me inclinei na sua direção. Ele encostou os lábios no meu ouvido e sussurrou. Eu esperava Gogmagog, mas não foi isso que ele disse. O que ele disse foi Assassino Voador.


*

— Ele poderia ter enviado assassinos atrás de nós, mas não enviou. Ele nos deixa viver, os que restaram, e viver já é punição suficiente. Aloysius, como falei, não conseguiu sair da cidade. Ellen, Warner e Greta tiraram as próprias vidas. Acho que Yolande ainda está viva, mas vaga por aí, insana. Como eu, ela é cega e vive basicamente da gentileza de estranhos. Eu a alimento quando ela vem aqui e concordo com as baboseiras que diz. Eles são meus sobrinhos e sobrinhas, sangue do meu sangue. Entende?

— Sim. — Eu entendia. Mais ou menos.

— Burton se tornou anacoreta, mora no meio do bosque e vive orando para a libertação de Empis com mãos que ele não consegue mais sentir mesmo quando as aperta. Ele não consegue sentir feridas a menos que veja o sangue, ele não tem nenhuma consciência se seu estômago está cheio ou vazio.

— Meu Deus... — Eu tinha imaginado que a cegueira fosse o pior. Não era.

— Os lobos o deixam em paz. Pelo menos, deixavam. Tem dois anos ou mais que ele não vem aqui. Ele talvez esteja morto. Meu pequeno grupo partiu em uma carroça de ferrador comigo, ainda não cego como você me vê agora, de pé e estalando um chicote num grupo de seis cavalos que estavam descontrolados de medo. Comigo estavam minha prima Claudia, meu sobrinho Aloysius e minha sobrinha Leah. Nós voamos como o vento, Charlie, as rodas de ferro da carroça gerando fagulhas nos paralelepípedos e até voando no ar por uns três metros ou mais do alto da ponte Rumpa. Achei que a carroça fosse virar ou se quebrar quando batemos no chão, mas era firme e aguentou bem. Dava para ouvir Hana rugindo atrás de nós, rugindo como uma tempestade, chegando cada vez mais perto. Ainda ouço os rugidos. Chicoteei os cavalos e eles correram como se o diabo estivesse atrás deles… e estava. Aloysius olhou para trás logo antes de chegarmos ao portão e Hana arrancou a cabeça dele dos ombros. Eu não vi isso acontecer, toda a minha atenção estava voltada para a frente, mas Claudia viu. Leah não, graças a Deus. Ela estava enrolada em um cobertor. O golpe seguinte da mão da Hana arrancou a parte de trás da carroça. Eu sentia o bafo dela, ainda sinto. Peixe e carne podre e o fedor do suor dela. Passamos pelo portão bem a tempo. Ela rugiu quando viu que tínhamos escapado. O ódio e a frustração naquele som! Ainda consigo ouvir.

Ele parou e passou a mão pela boca. Tremeu ao fazer isso. Eu nunca tinha visto TEPT fora de filmes como Guerra ao terror, mas estava vendo agora. Não sei quanto tempo antes aquilo tinha acontecido, mas o horror ainda estava com ele, ainda recente. Não gostei de ser responsável por fazê-lo se lembrar daquela época e falar dela, mas eu precisava saber em que estava me metendo.

— Charlie, se você for até minha despensa, vai encontrar uma garrafa de vinho de amora no armário frio. Eu gostaria de uma taça pequena se você não se importar. Tome também se quiser.

Eu encontrei a garrafa e servi uma taça para ele. O cheiro de amoras fermentadas foi forte o suficiente para matar qualquer desejo que eu pudesse ter de servir uma taça para mim, mesmo sem a cautela saudável que eu tinha com álcool por causa do meu pai, então me servi de mais limonada.

Ele tomou dois goles grandes, boa parte do que estava no copo, e deu um suspiro.

— Assim está melhor. Essas lembranças são tristes e dolorosas. Está ficando tarde e você deve estar cansado, então está na hora de falar sobre o que você precisa fazer para salvar sua amiga. Se você ainda pretender ir em frente, claro.

— Eu pretendo.

— Você arriscaria sua vida e sanidade pela cadela?

— Ela é tudo que eu tenho do sr. Bowditch. — Eu hesitei, mas falei o resto. — E eu a amo.

— Muito bem. Eu entendo o amor. O que você precisa fazer é o seguinte. Escute com atenção. Mais um dia de caminhada vai te levar até a casa da minha prima, Claudia. Se você andar rapidamente, claro. Quando chegar lá…

Ouvi com atenção. Como se a minha vida dependesse daquilo. Os lobos uivando lá fora sugeriam fortemente que dependia mesmo.


*

O banheiro do Woody era uma casinha do lado de fora conectada ao seu quarto por uma passagem curta de tábuas. Quando andei por ela, segurando uma lanterna (do tipo antiquado, não uma Coleman), algo bateu na parede com um baque forte. Algo faminto, supus. Escovei os dentes a seco e usei a latrina. Eu esperava que Rad conseguisse se segurar até de manhã, porque eu que não ia levá-la lá fora até amanhecer.

Não precisei dormir junto à lareira, porque havia um segundo quarto. A caminha tinha uma manta com babados coberta de borboletas que só podia ser coisa da Dora, e as paredes eram pintadas de rosa. Woody me falou que Leah e Claudia já o tinham usado, Leah muitos anos antes.

— Aqui elas estão como eram — disse ele. Esticou a mão com cuidado e pegou uma foto oval pequena em uma moldura dourada numa prateleira. Vi uma garota adolescente e uma mulher jovem. As duas eram lindas. Elas estavam com os braços em volta uma da outra na frente de um chafariz. Estavam usando vestidos bonitos e renda no cabelo arrumado. Leah tinha boca com que sorrir e, sim, elas pareciam da realeza.

Apontei para a garota.

— Essa era Leah? Antes…?

— Sim. — Woody voltou a foto ao lugar com cuidado. — Antes. O que aconteceu conosco não foi muito depois que fugimos da cidade. Um ato de vingança pura e ressentida. Elas eram lindas, você não acha?

— Acho, sim.

Fiquei olhando para a garota mais nova e pensei que a maldição da Leah era duplamente mais terrível do que a cegueira do Woody.

— Vingança de quem?

Ele balançou a cabeça.

— Não quero falar disso. Só queria poder ver essa foto de novo. Mas desejos são como a beleza, coisas vãs. Durma bem, Charlie. Você precisa partir cedo se quiser chegar à casa da Claudia antes do pôr do sol amanhã. Ela pode te contar mais. E se você acordar à noite, ou se a cadela te acordar, não saia. Por nada.

— Entendi perfeitamente.

— Que bom. Estou muito feliz de ter te conhecido, jovem príncipe. Qualquer amigo do Adrian, como dizem, é meu amigo.

Ele saiu, andando com confiança, mas com uma das mãos na frente do corpo, como devia ser natural para ele depois de tantos anos passados no escuro. Quantos teriam sido, me perguntei.


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Conto de fadas - Stephen King - Grupo Companhia das Letras
'Conto de fadas' é uma história fascinante e assustadora de Stephen King. Charlie Reade, um jovem de 17 anos, que herda as chaves de um mundo paralelo, onde o Bem e o Mal estão em guerra.
Conto de Fadas
excerto
cap. 15 (partes 7 a 12)
Stephen King
Título original: Fairy Tale
data da 1.ª publicação: Set 2022
tradução pt-br de Regiane Winarski
edição: Companhia das Letras

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22.Jan.2023
Publicado por MJA