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excerto

Woody, um velho cego - ilustração de Gabriel Rodriguez para 'Fairy Tale'
Percebi que tinha deixado a guia de Radar na carroça.
— Hum, acho que preciso pegar a guia da minha cadela primeiro, senhor.
Não sei como ela reage a gatos.
— Ela vai ficar bem — disse o homem idoso. — Mas, se você tiver comida,
sugiro que traga para dentro. Se não quiser descobrir de manhã que foi
roubada, claro.
Eu voltei, peguei o pacote de Dora e a minha mochila. E a guia, só por
garantia. O homem da casa chegou para o lado e fez uma pequena
reverência.
— Vem, Rad, mas se comporta. Estou contando com você.
Radar me seguiu para uma salinha arrumada com um tapete de retalhos
sobre o piso de madeira. Havia duas poltronas perto da lareira. Um livro
estava apoiado e aberto no braço de uma delas. Havia alguns outros em
uma prateleira próxima dali. O outro lado da sala era uma cozinha
estreita como a de um navio. Na mesa havia pão, queijo, frango e uma
tigela de algo que eu tinha quase certeza que era geleia de cranberry.
Também uma jarra de cerâmica. Meu estômago soltou um ronco alto.
O homem riu.
— Eu ouvi isso. Tem um ditado antigo que diz que a juventude precisa ser
alimentada. Ao qual podemos acrescentar “e com frequência”.
Havia dois lugares na mesa e uma tigela no chão perto de uma das
poltronas, da qual Radar já estava bebendo ruidosamente.
— Você sabia que eu vinha, não sabia? Como você soube?
— Você sabe o nome que preferimos não dizer?
Eu assenti. É claro que, nas histórias como essa em que eu parecia ter
entrado, geralmente há um nome que não deve ser falado para que não se
desperte o mal.
— Ele não tirou tudo de nós. Você viu que minha sobrinha conseguiu falar
com você, não foi?
— Sim. Pela égua.
— Falada, sim. Leah também fala comigo, jovem príncipe, ainda que
raramente. Quando fala, a comunicação dela nem sempre é clara, e
projetar os pensamentos a cansa ainda mais do que projetar a voz. Nós
temos muito a discutir, mas primeiro vamos comer. Venha.
Ele está falando de telepatia, pensei. Deve ser, porque ela não ligou
pra ele nem mandou mensagem de texto.
— Por que você me chamou de jovem príncipe?
Ele deu de ombros. O gato no seu ombro balançou.
— Uma forma familiar de tratamento, só isso. Bem antiquada. Um dia
talvez um príncipe de verdade apareça, mas, pelo som da sua voz, não é
você. Você é muito jovem.
Ele sorriu e se virou para a cozinha. A luz do fogo bateu toda no rosto
dele pela primeira vez, mas eu acho que já sabia, só pela forma como ele
esticava a mão ao andar, testando o ar em busca de obstáculos. Ele era
cego.
*
Quando nos sentamos, o gato pulou
para o chão. Seu pelo era de um marrom cor de fumaça intenso. Ele se
aproximou de Radar e eu me preparei para segurar a coleira dela se ela
fosse para cima dele. Mas ela não foi, só abaixou a cabeça e farejou o
focinho do gato. Em seguida, se deitou. O gato andou na frente dela como
um policial inspecionando um soldado em um desfile (e a achando
descuidada), depois andou até a sala, pulou na poltrona que tinha o
livro no braço e se deitou enrolado.
— Meu nome é Charles Reade. Charlie. Leah te contou isso?
— Não, não funciona assim. É mais como ter uma intuição. É um prazer te
conhecer, Príncipe Charlie. — Agora que a luz estava no seu rosto, dava
para ver que os olhos não existiam, da mesma forma que a boca de Leah,
só com cicatrizes antigas marcando onde antes ficavam. — Meu nome é
Stephen Woodleigh. Eu já tive um título, príncipe regente, na verdade,
mas esses dias estão no passado. Pode me chamar de Woody se quiser. Nós
moramos aqui perto do bosque. Eu e Catriona.
— Sua gata?
— É. E acredito que sua cadela é… Ramar? Algo assim, claro. Não consigo
lembrar.
— Radar. Ela era do sr. Bowditch. Ele morreu.
— Ah, sinto muito. — Ele pareceu triste, mas não surpreso.
— O senhor o conhecia bem?
— Você, por favor. Nós passamos um tempo juntos. Como você e eu vamos
passar, Charlie, assim espero. Mas temos que comer primeiro, porque acho
que a viagem que você fez hoje foi longa.
— Posso fazer uma pergunta antes?
Ele abriu um sorriso largo e transformou o rosto em um rio de rugas.
— Se quiser saber quantos anos eu tenho, eu não consigo lembrar. Às
vezes acho que eu já era velho quando o mundo era jovem.
— Não é isso. Eu vi o livro e me perguntei… se você… sabe como é…
— Como eu leio se sou cego? Dá uma olhada. Aliás, você prefere coxa ou
peito?
— Peito, por favor.
Ele começou a servir a comida, e devia estar acostumado a fazer isso no
escuro havia muito tempo, porque não houve hesitação nos movimentos. Eu
me levantei e fui até a sua cadeira. Catriona olhou para mim com olhos
verdes sábios. O livro era velho, a capa mostrava morcegos voando na
frente de uma lua cheia: The Black Angel, de Cornell Woolrich. Poderia
ter vindo das estantes do quarto do sr. Bowditch. Só que, quando o
peguei e olhei o ponto em que Woody tinha parado, não vi palavras, só
grupinhos de pontos. Coloquei-o no lugar e voltei para a mesa.
— Você lê braile — falei. Pensando: a linguagem nos livros deve mudar
também. Não é loucura?
— Leio. Adrian trouxe um livro que ensinava e me mostrou as letras.
Depois disso, consegui aprender sozinho. Ele trouxe outros livros em
braile de tempos em tempos. Ele gostava de histórias fantasiosas, como a
que eu estava lendo enquanto esperava sua chegada. Homens perigosos e
donzelas em perigo vivendo em um mundo bem diferente deste.
Ele balançou a cabeça e riu, como se ler ficção fosse uma atividade
frívola, talvez até maluca. Suas bochechas estavam rosadas de ter ficado
perto do fogo e não vi sinal de cinza nele. Ele estava inteiro, mas não
estava. Nem sua sobrinha. Ele não tinha olhos com que enxergar e ela não
tinha boca com que falar, só uma ferida que abria com a unha para
ingerir o pouco que conseguia. Isso sim era uma donzela em perigo.
— Venha. Sente-se.
Fui até a mesa. Lá fora, um lobo uivou, então a lua, as luas deviam ter
aparecido. Mas estávamos seguros na casa de tijolos. Se um lobinho
descesse pela chaminé, ele torraria a bunda peluda no fogo.
— Esse mundo me parece todo fantasioso — falei.
— Fique por um tempo e vai ser o seu que vai parecer de faz de conta.
Agora, coma, Charlie.
*
Eu comi, e a comida estava deliciosa.
Pedi para repetir e depois de novo. Fiquei me sentindo meio culpado, mas
o dia tinha sido longo e eu tinha puxado aquela carroça por uns trinta
quilômetros. Woody comeu pouco, só um drumete e um pouco da geleia de
cranberry. Senti mais culpa quando vi isso. Lembrei-me da minha mãe me
levando para dormir na casa do Andy Chen, dela dizendo para a mãe do
Andy que eu era um poço sem fundo e comeria eles e a casa se ela
deixasse. Perguntei a Woody onde ele conseguia os alimentos.
— Em Enseada. Tem alguns lá que ainda se lembram de nós… ou de como nós
fomos… e pagam tributo. O cinza chegou lá agora. As pessoas estão indo
embora. Você deve ter encontrado algumas na estrada.
— Encontrei — falei e contei sobre Peterkin.
— Grilo vermelho, você diz? Há lendas… mas deixa pra lá. Que bom que
você pôs fim nisso. Talvez você seja um príncipe, no fim das contas.
Cabelo louro, olhos azuis? — Ele estava me provocando.
— Não. Ambos castanhos.
— Ah. Não é um príncipe, nem o Príncipe.
— Quem é o Príncipe?
— Só mais uma lenda. Este é um mundo de histórias e lendas, assim como o
seu. Quanto à comida… eu recebia mais mantimentos do que conseguia comer
das pessoas de Enseada, embora mais peixe do que carne. Como você deve
imaginar pelo nome. Demorou para o cinza chegar naquela parte do mundo;
quanto tempo, não sei dizer, os dias se misturam quando se está sempre
no escuro. — Ele falou sem autopiedade, só como constatação. — Acredito
que Enseada pode ter sido poupada por um tempo, porque fica numa
península estreita, onde o vento sempre sopra, mas ninguém tem certeza.
Ano passado, Charlie, você teria encontrado dezenas de pessoas na
Estrada do Rei. Agora, a maré está baixando.
— Estrada do Rei? É assim que vocês chamam?
— É, mas, quando passa da bifurcação, é Estrada do Reino. Se você
escolhesse ir para a esquerda na bifurcação, você estaria na Estrada de
Enseada.
— Pra onde eles estão indo? Depois da casa da Dora e a fazenda da Leah e
da loja que o irmão da Dora tem?
Woody pareceu surpreso.
— Ele ainda tem? Estou impressionado. O que será que ele tem pra vender?
— Não sei. Só sei que ele dá sapatos novos pra substituir os estragados.
Woody riu, satisfeito.
— Dora e James! Sempre com os truques deles! A resposta pra sua pergunta
é: eu não sei e tenho certeza de que eles também não sabem. Só pra
longe. Longe, longe, longe.
Os lobos, que estavam em silêncio, começaram a uivar de novo. Parecia
que eram dezenas, e fiquei bem feliz por ter chegado à casa de tijolos
do Woody na hora em que cheguei. Radar choramingou. Eu fiz carinho na
cabeça dela.
— A lua deve estar aparecendo. Luas.
— De acordo com Adrian, só tem uma no seu reino de faz de conta. Como
diz um dos personagens do livro do sr. Cornell Woolrich: “Vocês foro
robados”. Quer uma fatia de bolo, Charlie? Talvez você o ache um pouco
duro.
— Bolo seria uma maravilha. Quer que eu pegue?
— De jeito nenhum. Depois de tantos anos aqui… um abrigo bem
aconchegante para um exílio, não acha? Eu estou bem hábil. Está numa
prateleira na despensa fria. Fique aí. Volto em dois momentos.
Enquanto ele pegava o bolo, eu me servi de mais limonada da jarra.
Limonada parecia ser a bebida padrão de Empis. Ele trouxe uma fatia de
bolo de chocolate para mim e outra para ele. Fazia o bolo que a gente
comia no refeitório da escola parecer bem ruim. Não achei nada duro, só
um pouquinho nas bordas.
Os lobos pararam de repente, me fazendo pensar de novo em alguém tirando
o plugue de um amplificador que tinha sido aumentado até o volume onze.
Passou pela minha cabeça que ninguém naquele mundo entenderia essa
referência a Isto é Spinal Tap. Nem a nenhum outro filme.
— As nuvens devem ter voltado — falei. — Elas vão embora, né?
Ele balançou a cabeça lentamente.
— Não desde que ele veio. Chove aqui, Príncipe Charlie, mas o sol quase
nunca brilha.
— Jesus — falei.
— Outro príncipe — respondeu Woody, novamente com um sorriso largo. — De
paz, de acordo com a Bíblia em braile que Adrian trouxe. Você está
satisfeito? Significa…
— Eu sei o que significa, e estou, sim.
Ele se levantou.
— Então venha se sentar junto ao fogo. Nós precisamos conversar.
Eu o segui até as duas poltronas na salinha. Radar foi atrás. Woody
procurou Catriona, encontrou-a e a pegou. Ela se deitou sobre as mãos
dele como uma estola de pele até ele a largar no chão. Dali, ela lançou
um olhar arrogante para a minha cadela, balançou a cauda com desprezo e
se afastou. Radar se deitou entre as duas poltronas. Eu tinha dado um
pouco do meu frango a ela, mas ela comeu pouco. Ela olhava para o fogo
como se tentasse decifrar os segredos dele. Pensei em perguntar a Woody
o que ele faria para conseguir alimentos, já que a cidade de Enseada
tinha entrado na evacuação, mas decidi não falar nada. Temia que ele me
dissesse que não fazia ideia.
— Quero agradecer pela refeição.
Ele fez um gesto de dispensa.
— Você deve estar se perguntando o que estou fazendo aqui.
— De jeito nenhum. — Ele esticou a mão e fez carinho nas costas de
Radar. Em seguida, voltou as cicatrizes do que já tinham sido olhos para
mim. — Sua cadela está morrendo e não há tempo a perder se você quer
fazer o que veio fazer.
*
Cheio de comida, seguro na casa de
tijolos com os lobos silenciosos e a lareira me aquecendo, eu estava
relaxando. Me sentindo satisfeito. Mas quando ele disse que Rad estava
morrendo, eu me ajeitei na poltrona.
— Não necessariamente. Ela está velha e tem artrite nos quadris, mas não
está…
Pensei na assistente do veterinário dizendo que ficaria surpresa se
Radar vivesse até o Halloween e fiz silêncio.
— Eu sou cego, mas meus outros sentidos funcionam muito bem para um
velho. — A voz dele soou gentil e isso tornou tudo horrível. — Na
verdade, meus ouvidos ficaram mais apurados do que nunca. Eu tinha
cavalos e cachorros no palácio quando garoto, e quando jovem eu sempre
saía com eles e amava todos. Sei como soam quando estão chegando perto
do suspiro final. Escuta! Fecha os olhos e escuta!
Eu fiz o que ele mandou. Ouvi um estalo ocasional vindo da lareira. Em
algum lugar, um relógio tiquetaqueava. Uma brisa tinha surgido lá fora.
E eu ouvi Radar: o chiado cada vez que ela inspirava, o sacolejo cada
vez que ela expirava.
— Você veio colocá-la no relógio de sol.
— Sim. E tem ouro. Bolinhas de ouro, como bilhas. Não preciso disso
agora, mas o sr. Bowditch disse que mais pra frente…
— Deixa o ouro pra lá. Só chegar no relógio de sol… e usá-lo… já é uma
missão perigosa demais para um jovem príncipe como você. Tem o risco da
Hana. Ela não estava lá na época do Bowditch. Você talvez consiga passar
por ela se tomar cuidado… e tiver sorte. A sorte não pode ficar de lado
numa empreitada dessas. Quanto ao ouro… — Ele balançou a cabeça. — Isso
é ainda mais arriscado. É bom você não precisar dele agora.
Hana. Guardei o nome para depois. Havia outra coisa sobre a qual fiquei
curioso.
— Por que você está bem? Exceto pela cegueira, claro. — Desejei poder
retirar as palavras assim que as falei. — Desculpa. Isso não saiu
direito.
Ele sorriu.
— Não precisa pedir desculpas. Considerando uma escolha entre ser cego e
ter o cinza, eu escolheria a escuridão com facilidade. Eu me ajustei
muito bem. Graças ao Adrian, eu até tenho histórias de faz de conta pra
ler. O cinza é uma morte lenta. Vai ficando mais difícil respirar. O
rosto é engolido por carne inútil. O corpo se fecha. — Ele levantou uma
das mãos e fez um punho. — Assim.
— Isso vai acontecer com a Dora?
Ele assentiu, mas não precisou. Foi uma pergunta infantil. Eu a tinha
visto e a tinha ouvido.
— Quanto tempo ela tem?
Woody balançou a cabeça.
— Impossível dizer. É lento e não do mesmo jeito para todo mundo, mas é
implacável. Por isso é tão horrível.
— E se ela fosse embora? Fosse para onde os outros estão indo?
— Acho que não faz diferença. Quando começa, não dá pra escapar. Como a
doença que definha. Foi isso que matou Adrian?
Supus que ele estivesse falando do câncer.
— Não, ele teve um ataque cardíaco.
— Ah. Um pouco de dor e fim. Melhor do que o cinza. Quanto à sua
pergunta, era uma vez… Adrian disse que muitas histórias começam assim
no mundo de onde ele vinha.
— É. É verdade. E coisas que eu vi aqui são como essas histórias.
— Assim como as de onde você veio, tenho certeza. Tudo são histórias,
Príncipe Charlie.
Os lobos começaram a uivar. Woody passou o dedo pelo livro em braile,
fechou-o e o largou numa mesinha ao lado da poltrona. Eu me perguntei
como ele acharia o ponto onde tinha parado. Catriona voltou, pulou no
colo dele e começou a ronronar.
— Era uma vez, na terra de Empis e na cidade de Lilimar, que é seu
destino, uma família real que datava de milhares de anos. A maioria, não
todos, mas a maioria, governava sabiamente e bem. Mas quando a época
terrível chegou, quase toda a família foi morta. Massacrada.
— Leah me contou um pouco disso. Você sabe, por meio de Falada. Ela
disse que a mãe e o pai dela tinham morrido. Eles eram o rei e a rainha,
né? Porque ela disse que era a princesa. A menor de todas.
Ele sorriu.
— Sim, de fato, a menor de todas. Ela contou que as irmãs foram mortas?
— Sim.
— E dos irmãos?
— Que eles também foram mortos.
Ele suspirou, fez carinho na gata e olhou para o fogo. Tenho certeza de
que ele sentia o calor e me perguntei se conseguia ver um pouco… da
forma que podemos virar o rosto para o sol de olhos fechados e ver uma
vermelhidão quando o sangue se ilumina. Ele abriu a boca como se para
dizer alguma coisa, mas fechou-a e balançou de leve a cabeça. Os lobos
tinham parecido estar bem perto… mas pararam. A forma como isso
acontecia subitamente era sinistra.
— Foi um expurgo. Você sabe o que isso quer dizer?
— Sei.
— Mas alguns de nós sobrevivemos. Fugimos da cidade, e Hana não sai de
lá porque é exilada do mundo dela, no norte. Oito de nós conseguimos
passar pelo portão. Seríamos nove, mas meu sobrinho Aloysius… — Woody
balançou a cabeça de novo. — Oito de nós escapamos da morte na cidade e
nosso sangue nos protege do cinza, mas outra maldição nos seguiu. Você
consegue adivinhar?
Eu conseguia.
— Cada um perdeu um dos sentidos?
— É. Leah consegue comer, mas é doloroso para ela, como você deve ter
visto.
Eu assenti, embora ele não tivesse como ver.
— Ela mal consegue sentir o gosto do que come, como você viu, não
consegue falar, exceto por meio de Falada. Ela está convencida de que
ele será enganado por isso caso ouça. Eu não sei. Talvez ela esteja
certa. Talvez ele ouça e ache graça.
— Quando você diz ele… — Eu parei aí.
Woody segurou minha camisa e puxou. Eu me inclinei na sua direção. Ele
encostou os lábios no meu ouvido e sussurrou. Eu esperava Gogmagog, mas
não foi isso que ele disse. O que ele disse foi Assassino Voador.
*
— Ele poderia ter enviado assassinos
atrás de nós, mas não enviou. Ele nos deixa viver, os que restaram, e
viver já é punição suficiente. Aloysius, como falei, não conseguiu sair
da cidade. Ellen, Warner e Greta tiraram as próprias vidas. Acho que
Yolande ainda está viva, mas vaga por aí, insana. Como eu, ela é cega e
vive basicamente da gentileza de estranhos. Eu a alimento quando ela vem
aqui e concordo com as baboseiras que diz. Eles são meus sobrinhos e
sobrinhas, sangue do meu sangue. Entende?
— Sim. — Eu entendia. Mais ou menos.
— Burton se tornou anacoreta, mora no meio do bosque e vive orando para
a libertação de Empis com mãos que ele não consegue mais sentir mesmo
quando as aperta. Ele não consegue sentir feridas a menos que veja o
sangue, ele não tem nenhuma consciência se seu estômago está cheio ou
vazio.
— Meu Deus... — Eu tinha imaginado que a cegueira fosse o pior. Não era.
— Os lobos o deixam em paz. Pelo menos, deixavam. Tem dois anos ou mais
que ele não vem aqui. Ele talvez esteja morto. Meu pequeno grupo partiu
em uma carroça de ferrador comigo, ainda não cego como você me vê agora,
de pé e estalando um chicote num grupo de seis cavalos que estavam
descontrolados de medo. Comigo estavam minha prima Claudia, meu sobrinho
Aloysius e minha sobrinha Leah. Nós voamos como o vento, Charlie, as
rodas de ferro da carroça gerando fagulhas nos paralelepípedos e até
voando no ar por uns três metros ou mais do alto da ponte Rumpa. Achei
que a carroça fosse virar ou se quebrar quando batemos no chão, mas era
firme e aguentou bem. Dava para ouvir Hana rugindo atrás de nós, rugindo
como uma tempestade, chegando cada vez mais perto. Ainda ouço os
rugidos. Chicoteei os cavalos e eles correram como se o diabo estivesse
atrás deles… e estava. Aloysius olhou para trás logo antes de chegarmos
ao portão e Hana arrancou a cabeça dele dos ombros. Eu não vi isso
acontecer, toda a minha atenção estava voltada para a frente, mas
Claudia viu. Leah não, graças a Deus. Ela estava enrolada em um
cobertor. O golpe seguinte da mão da Hana arrancou a parte de trás da
carroça. Eu sentia o bafo dela, ainda sinto. Peixe e carne podre e o
fedor do suor dela. Passamos pelo portão bem a tempo. Ela rugiu quando
viu que tínhamos escapado. O ódio e a frustração naquele som! Ainda
consigo ouvir.
Ele parou e passou a mão pela boca. Tremeu ao fazer isso. Eu nunca tinha
visto TEPT fora de filmes como Guerra ao terror, mas estava vendo agora.
Não sei quanto tempo antes aquilo tinha acontecido, mas o horror ainda
estava com ele, ainda recente. Não gostei de ser responsável por fazê-lo
se lembrar daquela época e falar dela, mas eu precisava saber em que
estava me metendo.
— Charlie, se você for até minha despensa, vai encontrar uma garrafa de
vinho de amora no armário frio. Eu gostaria de uma taça pequena se você
não se importar. Tome também se quiser.
Eu encontrei a garrafa e servi uma taça para ele. O cheiro de amoras
fermentadas foi forte o suficiente para matar qualquer desejo que eu
pudesse ter de servir uma taça para mim, mesmo sem a cautela saudável
que eu tinha com álcool por causa do meu pai, então me servi de mais
limonada.
Ele tomou dois goles grandes, boa parte do que estava no copo, e deu um
suspiro.
— Assim está melhor. Essas lembranças são tristes e dolorosas. Está
ficando tarde e você deve estar cansado, então está na hora de falar
sobre o que você precisa fazer para salvar sua amiga. Se você ainda
pretender ir em frente, claro.
— Eu pretendo.
— Você arriscaria sua vida e sanidade pela cadela?
— Ela é tudo que eu tenho do sr. Bowditch. — Eu hesitei, mas falei o
resto. — E eu a amo.
— Muito bem. Eu entendo o amor. O que você precisa fazer é o seguinte.
Escute com atenção. Mais um dia de caminhada vai te levar até a casa da
minha prima, Claudia. Se você andar rapidamente, claro. Quando chegar
lá…
Ouvi com atenção. Como se a minha vida dependesse daquilo. Os lobos
uivando lá fora sugeriam fortemente que dependia mesmo.
*
O banheiro do Woody era uma casinha
do lado de fora conectada ao seu quarto por uma passagem curta de
tábuas. Quando andei por ela, segurando uma lanterna (do tipo antiquado,
não uma Coleman), algo bateu na parede com um baque forte. Algo faminto,
supus. Escovei os dentes a seco e usei a latrina. Eu esperava que Rad
conseguisse se segurar até de manhã, porque eu que não ia levá-la lá
fora até amanhecer.
Não precisei dormir junto à lareira, porque havia um segundo quarto. A
caminha tinha uma manta com babados coberta de borboletas que só podia
ser coisa da Dora, e as paredes eram pintadas de rosa. Woody me falou
que Leah e Claudia já o tinham usado, Leah muitos anos antes.
— Aqui elas estão como eram — disse ele. Esticou a mão com cuidado e
pegou uma foto oval pequena em uma moldura dourada numa prateleira. Vi
uma garota adolescente e uma mulher jovem. As duas eram lindas. Elas
estavam com os braços em volta uma da outra na frente de um chafariz.
Estavam usando vestidos bonitos e renda no cabelo arrumado. Leah tinha
boca com que sorrir e, sim, elas pareciam da realeza.
Apontei para a garota.
— Essa era Leah? Antes…?
— Sim. — Woody voltou a foto ao lugar com cuidado. — Antes. O que
aconteceu conosco não foi muito depois que fugimos da cidade. Um ato de
vingança pura e ressentida. Elas eram lindas, você não acha?
— Acho, sim.
Fiquei olhando para a garota mais nova e pensei que a maldição da Leah
era duplamente mais terrível do que a cegueira do Woody.
— Vingança de quem?
Ele balançou a cabeça.
— Não quero falar disso. Só queria poder ver essa foto de novo. Mas
desejos são como a beleza, coisas vãs. Durma bem, Charlie. Você precisa
partir cedo se quiser chegar à casa da Claudia antes do pôr do sol
amanhã. Ela pode te contar mais. E se você acordar à noite, ou se a
cadela te acordar, não saia. Por nada.
— Entendi perfeitamente.
— Que bom. Estou muito feliz de ter te conhecido, jovem príncipe.
Qualquer amigo do Adrian, como dizem, é meu amigo.
Ele saiu, andando com confiança, mas com uma das mãos na frente do
corpo, como devia ser natural para ele depois de tantos anos passados no
escuro. Quantos teriam sido, me perguntei.
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'Conto de fadas' é uma história
fascinante e assustadora de Stephen King. Charlie Reade, um jovem de 17
anos, que herda as chaves de um mundo paralelo, onde o Bem e o Mal estão
em guerra.
Conto de Fadas
excerto
cap. 15 (partes 7 a 12)
Stephen King
Título original: Fairy Tale
data da 1.ª publicação: Set 2022
tradução pt-br de Regiane Winarski
edição: Companhia das Letras
in
Amazon
22.Jan.2023
Publicado por
MJA
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