|
Alexandre Moschella
Magnólias em flor nos Jardins
de Aranjuez
«Eu só queria que fosse bom. Que desse prazer». Foi com frases simples como
esta que Joaquín Rodrigo [1901–1999], aos 97 anos, explicou ao público
o que sentia e desejava ao escrever uma das obras mais ouvidas e festejadas da
história da música, o Concerto de Aranjuez.
E foi com essa mesma modéstia que o
compositor espanhol, acusado por muitos de renegar as linguagens «modernas» em
nome do conservadorismo e da «simplicidade», se impôs ao conturbado século XX
com um estilo altamente pessoal, unindo o riquíssimo folclore de seu país às
refinadas técnicas de composição e instrumentação herdadas de Granados, Falla e
outros mestres e de seu grande professor Paul Dukas.
Em vez de devaneios estéticos e filosóficos tão comuns na nossa época,
Rodrigo gostava de explicar a sua inspiração afirmando que, graças à cegueira que
o acompanhou desde os três anos de idade, a sua era uma visão interior. «A perda
da visão levou-me à música», dizia ele. «As pessoas cegas são mais
felizes, talvez por causa deste rico mundo que permite os vôos da imaginação.»
Cinco anos depois de perder a visão, resultado de uma epidemia de difteria,
Rodrigo iniciou os seus estudos musicais com o piano e o violino. Aos 16 anos, já
estudava harmonia e composição no Conservatório de Valência, com mestres como
Antich, Gomá e López Chavarri. Desde o começo, Rodrigo escreveu todas as suas
peças em Braille, ditando-as depois a um copista. Em 1927, seguindo o exemplo de
seus predecessores Albéniz, Granados, Falla e Turina, mudou-se para
Paris, onde estudou com Dukas. Logo se tornou conhecido como compositor e
pianista, tornando-se amigo de Falla, Honegger, Milhaud, Ravel e outras
celebridades da época. A vida em França e posteriormente na Alemanha tornou-se difícil para Rodrigo,
que perdeu a bolsa de estudos com a eclosão da Guerra Civil Espanhola.
Voltou ao
seu país com o fim da guerra, em 1939, trazendo na bagagem o manuscrito do
Concerto de Aranjuez, que veio a ser estreado no ano seguinte.
A obra - escrita
em homenagem à beleza dos jardins de Aranjuez, onde passeou com a
esposa, durante a lua de mel, em 1933 - é a captação, segundo o próprio
compositor, “da fragrância das magnólias, do cantar dos pássaros e do jorrar dos
chafarizes (...)”, as belezas que um homem cego dotado poderia apreciar.
Embora avisando que não se tratava de música programática, Rodrigo tentou
inspirar os intérpretes do Concerto: «Eu queria indicar uma época específica, o
final do século XVIII e o início do XIX, as cortes de Carlos IV e Fernando VII,
uma atmosfera de majas, toureiros, e sons espanhóis regressados da América.»
Rodrigo foi autor de uma vasta obra que inclui onze concertos para diversos
instrumentos, mais de 60 canções, peças para orquestra e para instrumentos solo,
incluindo um dos mais ricos repertórios para violão (pelo menos 27 peças), além
de música para teatro e cinema. Mas foi o Concerto de Aranjuez que o consagrou
mundialmente, a ponto de o próprio Rodrigo ter reclamado que esta peça se tornou
«uma grande árvore que não deixa que se veja o resto de minha música».
O Concerto teve até hoje mais de 50 gravações - e, curiosamente, a mais
vendida é a do violonista flamenco Paco de Lucía. Foi mais ouvido que o
popularíssimo Amor Brujo, de Manuel de Falla. [...] E foi até levado para a Lua, em 1969, para inspirar o astronauta
americano Neil Armstrong.
Rodrigo nunca abandonou o estilo consagrado pelo Concerto e outras
obras-primas, estilo que ele mesmo chamava de «neocasticismo». Em suas
composições, a originalidade da inspiração musical é acompanhada pela devoção
aos valores fundamentais da tradição tonal, a preferência pelas formas clássicas
e o uso de um vasto material folclórico tanto geograficamente, nas diversas
regiões da Espanha, quanto historicamente, nas diversas épocas. Para o poeta
Gerardo Diego, Rodrigo compôs «paisagens acústicas». Yehudi Menuhin gostava de
comparar Rodrigo ao húngaro Béla Bartók, afirmando que os dois compositores
deram voz universal às suas culturas. Algo que lembra também Villa-Lobos e a
cultura brasileira. [...]
Ao retornar à Espanha, Rodrigo desenvolveu intensa carreira académica. Foi,
entre outras coisas, professor de História da Música na Universidade de Madrid,
director musical da Rádio Espanhola, crítico de vários jornais e - mantendo a
solidariedade a seus companheiros de inspiração - director do Departamento de
Artes da ONCE - Organização Nacional Espanhola para os Cegos. Acumulou mais prémios e
honras que qualquer outro colega espanhol. Ao receber, em 1996, o prémio
Principe de Asturias, a mais alta distinção da Espanha, perguntou: «Por que eu?»
Rodrigo morreu em sua casa, em Madrid, rodeado por familiares ocupados com a
continuação de seu trabalho, centralizado na casa Editorial Joaquín Rodrigo. O
estrondoso sucesso comercial do Concerto de Aranjuez ainda leva alguns críticos
a falar sobre a «facilidade» de sua música, mas esta continuará certamente a
ocupar lugar de destaque no cenário internacional. Existem até mesmo peças que,
embora colocadas entre as suas melhores pelos críticos e pelo compositor, ainda não
foram gravadas, como Ausencias de Dulcinea de 1948, (para baixo, quatro sopranos e
orquestra), sobre textos do Quixote de Cervantes e Musica para un Codice
Salamantino de 1982, (para baixo, coro misto e 11 instrumentos), sobre textos de São
Francisco de Assis, um dos últimos trabalhos de Rodrigo. Aos críticos que
insistirem em detectar a falta de linguagens «vanguardistas» na sua música,
Joaquín Rodrigo deverá continuar respondendo como costumava: «Meu copo pode ser
pequeno. Mas é do meu próprio copo que bebo.»
FIM
Joaquín Rodrigo
ϟ
Alexandre Moschella, 'Uma visão interior' - 1999
Artigo escrito para a revista
Violão Intercâmbio
por
ocasião da morte do compositor espanhol
Joaquín Rodrigo, em 6 de Julho de 1999.
Δ
6.Abr.2008
Publicado por
MJA
|