Ξ  

 

 Sobre a Deficiência Visual


O Concerto de Aranjuez e a Fragrância das Magnólias

Alexandre Moschella


Magnólias em flor nos Jardins de Aranjuez

♪♪♪
https://youtube.com/clip/
Concerto de Aranjuez de Joaquín Rodrigo


«Eu só queria que fosse bom. Que desse prazer». Foi com frases simples como esta que Joaquín Rodrigo [1901–1999], aos 97 anos, explicou ao público o que sentia e desejava ao escrever uma das obras mais ouvidas e festejadas da história da música, o Concerto de Aranjuez.

E foi com essa mesma modéstia que o compositor espanhol, acusado por muitos de renegar as linguagens «modernas» em nome do conservadorismo e da «simplicidade», se impôs ao conturbado século XX com um estilo altamente pessoal, unindo o riquíssimo folclore de seu país às refinadas técnicas de composição e instrumentação herdadas de Granados, Falla e outros mestres e de seu grande professor Paul Dukas.

Em vez de devaneios estéticos e filosóficos tão comuns na nossa época, Rodrigo gostava de explicar a sua inspiração afirmando que, graças à cegueira que o acompanhou desde os três anos de idade, a sua era uma visão interior. «A perda da visão  levou-me à música», dizia ele. «As pessoas cegas são mais felizes, talvez por causa deste rico mundo que permite os vôos da imaginação.»

Cinco anos depois de perder a visão, resultado de uma epidemia de difteria, Rodrigo iniciou os seus estudos musicais com o piano e o violino. Aos 16 anos, já estudava harmonia e composição no Conservatório de Valência, com mestres como Antich, Gomá e López Chavarri. Desde o começo, Rodrigo escreveu todas as suas peças em Braille, ditando-as depois a um copista. Em 1927, seguindo o exemplo de seus predecessores Albéniz, Granados, Falla e Turina, mudou-se para Paris, onde estudou com Dukas. Logo se tornou conhecido como compositor e pianista, tornando-se amigo de Falla, Honegger, Milhaud, Ravel e outras celebridades da época. A vida em França e posteriormente na Alemanha tornou-se difícil para Rodrigo, que perdeu a bolsa de estudos com a eclosão da Guerra Civil Espanhola.

Voltou ao seu país com o fim da guerra, em 1939, trazendo na bagagem o manuscrito do Concerto de Aranjuez, que veio a ser estreado no ano seguinte.

A obra - escrita em homenagem à beleza dos jardins de Aranjuez, onde passeou com a esposa, durante a lua de mel, em 1933 - é a captação, segundo o próprio compositor, “da fragrância das magnólias, do cantar dos pássaros e do jorrar dos chafarizes (...)”, as belezas que um homem cego dotado poderia apreciar.

Embora avisando que não se tratava de música programática, Rodrigo tentou inspirar os intérpretes do Concerto: «Eu queria indicar uma época específica, o final do século XVIII e o início do XIX, as cortes de Carlos IV e Fernando VII, uma atmosfera de majas, toureiros, e sons espanhóis regressados da América.»

Rodrigo foi autor de uma vasta obra que inclui onze concertos para diversos instrumentos, mais de 60 canções, peças para orquestra e para instrumentos solo, incluindo um dos mais ricos repertórios para violão (pelo menos 27 peças), além de música para teatro e cinema. Mas foi o Concerto de Aranjuez que o consagrou mundialmente, a ponto de o próprio Rodrigo ter reclamado que esta peça se tornou «uma grande árvore que não deixa que se veja o resto de minha música».

O Concerto teve até hoje mais de 50 gravações - e, curiosamente, a mais vendida é a do violonista flamenco Paco de Lucía. Foi mais ouvido que o popularíssimo Amor Brujo, de Manuel de Falla. [...] E foi até levado para a Lua, em 1969, para inspirar o astronauta americano Neil Armstrong.

Rodrigo nunca abandonou o estilo consagrado pelo Concerto e outras obras-primas, estilo que ele mesmo chamava de «neocasticismo». Em suas composições, a originalidade da inspiração musical é acompanhada pela devoção aos valores fundamentais da tradição tonal, a preferência pelas formas clássicas e o uso de um vasto material folclórico tanto geograficamente, nas diversas regiões da Espanha, quanto historicamente, nas diversas épocas. Para o poeta Gerardo Diego, Rodrigo compôs «paisagens acústicas». Yehudi Menuhin gostava de comparar Rodrigo ao húngaro Béla Bartók, afirmando que os dois compositores deram voz universal às suas culturas. Algo que lembra também Villa-Lobos e a cultura brasileira. [...]

Ao retornar à Espanha, Rodrigo desenvolveu intensa carreira académica. Foi, entre outras coisas, professor de História da Música na Universidade de Madrid, director musical da Rádio Espanhola, crítico de vários jornais e - mantendo a solidariedade a seus companheiros de inspiração - director do Departamento de Artes da ONCE - Organização Nacional Espanhola para os Cegos. Acumulou mais prémios e honras que qualquer outro colega espanhol. Ao receber, em 1996, o prémio Principe de Asturias, a mais alta distinção da Espanha, perguntou: «Por que eu?»

Rodrigo morreu em sua casa, em Madrid, rodeado por familiares ocupados com a continuação de seu trabalho, centralizado na casa Editorial Joaquín Rodrigo. O estrondoso sucesso comercial do Concerto de Aranjuez ainda leva alguns críticos a falar sobre a «facilidade» de sua música, mas esta continuará certamente a ocupar lugar de destaque no cenário internacional. Existem até mesmo peças que, embora colocadas entre as suas melhores pelos críticos e pelo compositor, ainda não foram gravadas, como Ausencias de Dulcinea de 1948, (para baixo, quatro sopranos e orquestra), sobre textos do Quixote de Cervantes e Musica para un Codice Salamantino de 1982, (para baixo, coro misto e 11 instrumentos), sobre textos de São Francisco de Assis, um dos últimos trabalhos de Rodrigo. Aos críticos que insistirem em detectar a falta de linguagens «vanguardistas» na sua música, Joaquín Rodrigo deverá continuar respondendo como costumava: «Meu copo pode ser pequeno. Mas é do meu próprio copo que bebo.»

FIM

Fotografia de Joaquín Rodrigo
Joaquín Rodrigo

 

ϟ


Alexandre Moschella, 'Uma visão interior' - 1999
Artigo escrito para a revista Violão Intercâmbio
por ocasião da morte do compositor espanhol
Joaquín Rodrigo, em 6 de Julho de 1999.


Δ

6.Abr.2008
Publicado por MJA