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A Cega - Jean Messagier, 1945
Ouve-se um chiar que vem de longe. Levanto os olhos
dos milheirais do sul, onde vivem profetas,
vendedores de tubagem de plástico, meninos
selvagens. Varro com um olhar lento a plataforma. Há
raparigas de calças de cintura descaída que esperam,
em grupo, os comboios suburbanos. Voltam aos bairros
de papelão onde o bafio das casas se disfarça com
pauzinhos de incenso comprados nas lojas chinesas.
Dois homens conversam animadamente sobre o jogo de
futebol de ontem. Os pombos cor de chumbo trazem as
penas sujas da fuligem da cidade. Ao fundo, junto ao
terminal poente, um casal de cegos caminha.
Conheço-os de outros dias, de outras esperas. São
eles que trazem consigo o chiar.
O homem usa óculos escuros para esconder o negrume
dos olhos. Veste um pulôver velho, demasiado coçado
e sujo. Carrega aos ombros uma mochila que parece
rebentar. Não sei o que o cego leva dentro da
mochila. Alguma comida, pacotes de bolachas e
iogurtes líquidos, agasalhos para quando a noite
chegar. A mão livre segura a beata de um cigarro que
nunca leva à boca. Caminha com segurança,
desbravando o caminho da plataforma. A bengala é
manuseada com perícia e movimenta-se sempre na mesma
cadência. Vai de lá para cá. De cá para lá. Por
vezes, bate num objecto, quase sempre são os bancos
da estação, e o cego é obrigado a dar um passo
pequenino para a direita. Afasta-se apenas o
suficiente para se desviar do obstáculo. Passa rente
aos bancos, tão perto, que espero a qualquer momento
uma queda, um tropeção. A proximidade com que os
cegos passam incomoda os passageiros que aguardam
sentados. Encolhem os pés para baixo dos bancos a
fim de lhes dar passagem. Mal podem voltam a esticar
as pernas. Sentem-se aliviados com a eficácia dos
seus corpos: pernas que andam, bocas que falam,
ouvidos que ouvem, braços que mexem, olhos que
olham.
Atrás, apoiada no ombro do homem, segue a mulher. Deixa-se por ele
guiar. Como se também
ela fosse uma
passageira. Leva a
bengala pendurada no
braço e deixa-a arrastar
pelo chão. Foi o barulho
da sua bengala que me
fez levantar os olhos do
profeta que vive nos
milheirais do sul. A
mulher é feia. Usa o
cabelo branco num
alvoroço como se fosse
uma medusa medonha e tem
um buço escuro por cima
de uma boca desdentada.
Ao contrário do homem
não esconde os olhos.
Melhor seria se o
fizesse. Os olhos dela
assustam. São duas
covas. As pálpebras
parecem ter sido cozidas
com linha preta por
alguém demasiado
egoísta, que lhe quis
roubar o mundo,
sobretudo, a luz.
Percebe-se, por alguns
detalhes, que a mulher
cuida do que veste.
Busca uma certa
harmonia, um certo
atrevimento. Procura não
ser diferente das
mulheres com quem se
cruza. Usa uma saia de
veludo preto, justa e
curta. Pela racha, que é
grande, vê-se um pedaço
da combinação branca.
Calça uns botins de
salto, já descambados,
que acentuam o seu
mancar. Caminha com as
botinhas descambadas que
lhe apertam os pés.
É-lhe doloroso caminhar.
Tola, a cega que quer
ser igual às outras, é o
que penso. Tola e
ordinária. Tenho a
certeza de que se a
cega, de repente,
pudesse abrir os olhos
cozidos e olhar em volta
se deslumbraria, em
primeiro lugar, com o
estilo porno star de
algumas mulheres da
plataforma: unhas
quadrangulares de gel,
calças enfiadas em botas
de montar, extensões
capilares, maquilhagem
vistosa, a ondulação
bamboleante dos rabos e
mamas acentuada pela
roupa demasiado justa.
Só, depois, repararia no
azul do céu e no verde
das árvores da avenida.
A cega também segura com
a mão um cigarro que não
fuma.
Mais do que o homem, é
ela que prende o olhar
de quem espera na
plataforma. O doloroso
mancar, o chiar da
bengala, os olhos
cozidos a linha preta, a
combinação encardida
espreitando naquela
greta medonha, a
sujidade encoberta, o
cigarro ardendo nos
dedos, tudo a torna
repelente. Causa nojo e
não piedade. O que
incomoda e se estranha.
Estamos habituados a
dedicar aos cegos, como
aos desgraçadinhos em
geral, os pernetas, os
manetas, os tolinhos, os
imbecis, apenas a nossa
compaixão. Dizemos
“coitadinhos” e sentimos
alívio.
ϟ
3.Mar.2009
Publicado por
MJA
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