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Os Cegos -
Albin Egger-Lienz, 1918
(...) e de um só golpe de espada degolou o velho almuadem,
em
cujos olhos
cegos uma luz relampejou no momento
de apagar-se-lhe a vida.
José Saramago
Um dos maiores atrativos da metáfora reside na sua capacidade de
dar às palavras uma
representação indireta e ao mesmo tempo amplamente aceita. Eis o
que faz com que as
metáforas relacionadas à cegueira, bem como a tantos outros
aspectos da realidade, sejam
fundamentalmente as mesmas entre as sociedades – tendo por
pré-requisito, claro está, o
conhecimento dos termos e das realidades por eles designadas. Só
se pode entender a
metáfora de
Descartes que diz serem as mãos os olhos do cego
1 a
partir da compreensão do
que sejam os olhos, a cegueira e ainda de que modo as mãos podem
atenuar a falta de
visão. É o que permite a Merleau-Ponty, recuperando a
perspectiva de Descartes e servindo-se
das mesmas analogias, formular que “das coisas aos olhos e dos
olhos à visão não passa
nada mais que das coisas às mãos do cego e, das suas mãos, ao
seu pensamento”. 2 Vê-se
que a metáfora caminha através de analogias, sendo elas o seu
próprio fundamento. Não
fossem as possibilidades de as coisas se remeterem umas às
outras através de analogias,
surgindo assim metáforas entre elas, estaríamos impedidos de
conhecê-las. Cabendo aqui
repetir com Aristóteles:
“Não é necessário pedir a definição de tudo, mas observar também
a analogia, isto é, ver
que o construir está para a habilidade de construir na mesma
relação em que o estado de
vigília está para o de dormir, o ver para o conservar os olhos
fechados, a elaboração do
material para o próprio material e a coisa formada para a
informe.” 3
Feito este preâmbulo, uma breve digressão faz-se ainda
necessária antes de tratarmos das
relações específicas entre a cegueira e a metáfora, tema
principal do artigo. Falemos um
pouco, duas palavras que sejam, da metáfora latu sensu e de
algumas de suas implicações. 4
Cedendo lugar ao sentido figurado, o sentido próprio das
palavras sofre uma mudança, uma
espécie de transporte semântico. Nisso consiste a essência do
processo metafórico,
constituindo aliás o mesmo termo grego metaphorá um exemplo de
metáfora. Recorramos
aos próprios gregos: se em Plutarco fala-se de metaphorá no
sentido literal da mudança das
fases da lua 5 , Aristóteles já emprega a palavra metaphorá
figurativamente, como
modificação semântica. 6 É justamente essa segunda possibilidade
que nos interessa aqui.
Nela, a mudança de sentido, como foi dito há pouco, dá-se em
prol da dimensão figurativa
dos conceitos. Isso graças à existência de analogias que eles,
já no sentido literal, podem
conter. Vemos, ainda em Aristóteles, que a velhice está para a
vida assim como o ocaso está
para o dia. Daí ser possível o transporte recíproco de um
sentido para o outro: torna-se, pois,
tão lícito explicar o ocaso como a velhice do dia como dizer que
a velhice é o ocaso da vida. 7
Comecei este artigo dizendo que a metáfora caracteriza-se pela
sua tendência à aceitação
universal, estando aí um dos seus maiores atrativos; trata-se de
uma maneira indireta de
relacionar as coisas e os conceitos que as representam.
Atente-se para este aspecto dos
nomes que designam as coisas: representá-las quer dizer
apresentá-las em forma de reprise,
o que por sua vez supõe uma apresentação prévia dessas mesmas
coisas. Não existe vínculo
de necessidade entre a palavra “leão” e o felino por ela
designado; cabe ao arbítrio cultural
estabelecer a relação entre uma e outro. Mas, uma vez
estabelecida e aceita essa relação, o
intelecto não precisa, a cada vez, reapreendê-la, ou seja,
partir da estaca zero no processo
de adaptação entre nomes e coisas. Deparando com a
reapresentação da coisa (que no caso
é a própria palavra “leão”), a inteligência tem o poder de
recriar para si a imagem daquele
animal, juntamente com as propriedades que o individualizam
entre os outros seres. Aceito o
parentesco entre o nome e a coisa, conhecidas as características
desta como tal, abre-se o
caminho para a dinâmica metafórica. E, acompanhando a metáfora,
conforme já se disse,
vem a tendência ao consenso. Por isso, quando dizemos “Pedro é
um leão”, entende-se que
ele possua qualidades que se evidenciam neste animal, a saber: a
força, a coragem e assim
por diante. E esse entendimento tende a ser o mesmo em qualquer
sociedade, bastando
para isso que os seus membros saibam o que seja um leão no
sentido literal da palavra.
Por motivos análogos, é natural que encontremos um vínculo
semântico praticamente
universal entre a cegueira e a escuridão, tomada aqui no sentido
metafórico – muito embora
o estar cego não coincida, necessariamente, com um enegrecimento
da visão. Na medida em
que impede que as coisas sejam vistas, a escuridão associa-se
metaforicamente a uma
ausência. Depreende-se dessas considerações que o laço
metafórico entre a cegueira e a
escuridão seja, ele também, uma relação negativa. E que, como
tal, decorre de uma
realidade afirmativa, por assim dizer: no caso, a metáfora que
une a visão à luminosidade.
Tomada como metáfora, a escuridão evoca elementos relacionados
com a luminosidade,
dado serem as trevas a ausência de luz – tanto que, fisicamente
falando, o negro é a falta de
cor; e o branco, a união de todas as cores do espectro luminoso.
No circuito metafórico, a
relação é simples: sem luz não vemos, sem ver não sabemos; a luz
leva ao saber; as trevas à
ignorância. Fala-se de uma inteligência brilhante para
exaltá-la, e de um entendimento
obscuro para depreciá-lo. Não admira que o conceito de cegueira
seja tantas vezes associado
à incapacidade no sentido cognitivo. Sendo numerosíssimos os
exemplos desse tipo em
tantas culturas, não é preciso que nos estendamos a respeito.
Restrinjo-me por isso à carga
semântica de uma única palavra entre muitas: a palavra grega
amáurosis, que Hipócrates
utiliza no sentido literal para designar o enfraquecimento da
visão, e que Aristóteles,
servindo-se de uma metáfora, faz significar o enfraquecimento da
inteligência. 8
Como todos os outros recursos da linguagem, cada um à sua
maneira, a metáfora leva-nos
ao conhecimento das coisas. Conhecê-las é poder diferenciá-las,
estabelecer com
propriedade os limites entre umas e outras. Sendo assim as
circunstâncias, é natural que,
quanto mais nítidos os limites semânticos, mais se ampliem as
possibilidades de conhecer o
que eles limitam. Em decorrência, graças à lei que rege os
contrastes, quanto mais as
diferenças entre duas coisas tendem ao extremo da oposição, mais
elas atestam a sua
individualidade respectiva: na mesma medida em que assumem o que
não são, as coisas
afirmam o que são. Eis por que o negro é tão mais negro quanto
mais se acha perto do seu
oposto, que é o branco. O mesmo vale para as coisas abstratas.
Com efeito, em analogia, vêse
que o bem é enfatizado quando posto lado a lado com o mau, a
beleza com a feiúra, a
alegria com a tristeza, a saúde com a doença e assim por diante.
Em obediência à mesma
regra, legitima-se o contato semântico entre a visão e a
cegueira, em prol do conhecimento
tanto de uma quanto de outra. Ver é a face positiva que marca o
nosso sistema visual, tendose
aí, em linguagem aristotélica, a atualização de uma potência. Da
mesma forma, ser cego
é não ver; impedindo que a potência visual se transforme em ato
de ver, a cegueira
representa a face negativa da visualidade. Daí a cegueira ser
comumente entendida a partir
de uma negação, no caso a ausência de uma capacidade, a privação
de algo que se deveria
ter: a pessoa vê ou não vê, eis o parâmetro. 9
Modalidade particular de representação do real, a metáfora,
conforme vimos, é marcada
pelo transporte de sentido de uma coisa para outra. E se, como
foi dito no parágrafo anterior,
a metáfora permite o entendimento das coisas, é principalmente
nestas que nos devemos
concentrar. Porque são as coisas, e não as palavras, que compõem
o mundo que habitamos.
No caso da cegueira, as palavras são úteis e adequadas na medida
em que servem para a
compreensão da realidade que forma o mundo do cego. E isso é tão
mais verdadeiro quanto
mais a linguagem se mantém isenta de fatores estigmatizantes,
como a propensão
praticamente universal a rejeitar a deficiência física. Ser cego
implica apenas e
fundamentalmente não ver. Toda e qualquer projeção semântica da
cegueira para outros
setores da potencialidade humana afora a visão (i. e.,
considerar o cego, além de cego,
surdo, deficiente mental etc.) torna-se incorreta por conferir
ao cego privações que não lhe
cabem.
Desde tempos muito remotos, a cegueira é alvo de preconceitos e
represálias nas mais
diversas culturas. O mesmo vale para as outras formas de
deficiência física. Diversas
civilizações brilhantes do passado (e. g. a China, Grécia e
Roma), em deter-minados
momentos de sua história, chegaram a legitimar a eliminação do
deficiente físico, sob o
pretexto de ser ele um membro inútil, que requer cuidados
incessantes e não produz. 10 O
argumento é falso, como se constata facilmente pelo grande
número de cegos e deficientes
em geral que, superando a deficiência, mostram-se úteis à sua
sociedade em particular e até
mesmo à própria humanidade como um todo. Exemplos como o de
Beethoven, Helen Keller,
Borges e Stephen Hawking dispensam maiores comentários.
Conscientes dessas circunstâncias, vários setores da sociedade
atual, de certo modo
unificada através do processo de globalização, têm procurado
solucionar – ou pelo menos
amenizar – as dificuldades que afligem os deficientes físicos.
Além de medidas teóricas
(dispostas e sugeridas sob a forma de leis pela UNESCO desde a
década de 1980) e práticas
(a popularização de rampas para o trânsito de cadeiras de rodas,
cardápios em braille para
cegos em restaurantes etc.), há também o tema da reformulação da
própria linguagem
empregada no âmbito semântico da deficiência física. Já há quem
evite dizer, por exemplo,
“deficiente físico”, preferindo “pessoa portadora de
deficiência”; em vez de “cego”, diz-se
“deficiente visual” ou “não-vidente” O perigo de tais atitudes
consiste na perda de
objetividade que o problema requer. Que passemos do extremo do
preconceito para o do
eufemismo; que deixemos de discutir as questões em si,
detendo-nos simplesmente no plano
das palavras.
O homem não pode abrir mão da fala para a representação do
mundo. Salvo, é claro, em
circunstâncias excepcionais. Tem-se uma, e das mais eloqüentes,
no jornalista francês Jean-Dominique Bauby, que, em decorrência de um acidente
cardiovascular, perde a fala e o
poder de mover os membros. Privado da fala – justamente ele, um
profissional da palavra! –,
Jean-Dominique Bauby serviu-se, como recurso extremo para a
comunicação, de uma das
poucas partes do corpo que ainda lhe obedeciam: os olhos. No
movimento das pálpebras
encontra um sistema de comunicação em que descreve as últimas
imagens que o prendem à
vida: o rosto de uma mulher, uma canção que lhe ficara na
memória, cenas de um filme de
Fritz Lang...11
A situação do jornalista francês é, de certo modo, inversa em
relação à do cego, a quem
falta a visão, permanecendo o restante das potencialidades
corpóreas. Em ambos os casos, a
humanidade do homem mantém-se em sua essência. Há muitas
maneiras de entendermos a
definição clássica do homem como um animal que fala.12 Porque a
incapacidade de falar não
o exclui necessariamente do gênero humano. Em contrapartida, a
linguagem, falada ou não,
metafórica ou literal, continua a ser nosso principal recurso
para a expressão do que
sentimos e pensamos. Em grande parte, é mediante as palavras
ditas por nós que nos
tornamos aquilo que somos.
NOTAS
-
1 Cf. “La
Dioptrique”, in Oeuvres et Lèttres, Paris, Gallimard,
1952, I.
-
-
3 Metaphysica, 1047b.
-
4 O assunto é denso e vastíssimo. Uma abordagem genérica
interessante, com riqueza de
dados bibliográficos, pode ser encontrada no ensaio Perspectivas
sobre la metáfora, de
Juan Rivano (Santiago de Chile, Ed. Universitaria, 1986).
-
5 Cf. Morales, 923c.
-
6 Cf. Poetica, 1457b.
-
7 Cf. Ibidem.
-
8 Cf. Anatole Bailly. Dictionnaire grec-français, Paris,
Hachette, 1990, p. 94. Assimilada
diretamente pelo léxico português, amaurose aponta para a
deficiência visual e a cegueira
propriamente dita (Caldas Aulete. Dicionário contemporâneo da
língua portuguesa, 3ª ed.,
Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1948, v. I, p. 166).
-
9 “Blindness is often perceived by the sighted as an either/or
condition: one sees or does not
see” (Stephan Kuusisto.
Planet of the Blind, London, Faber and
Faber, 1998, p. 5).
-
10 Até pelo menos o século XIX, a mesma atividade era ainda
bastante comum em muitas
partes da África subsaariana. Isso sem falar no fato de que as
câmaras de gás que
marcaram a Segunda Guerra Mundial, antes de se aplicarem a
judeus e demais grupos
discriminados pelo regime nazista, foram utilizadas para a
eliminação de deficientes
mentais (cf. Jean Clair. La barbarie ordinaire. Music à Dachau,
Paris, Gallimard, 2001, p. 85sq).
-
11 O resultado dessas descrições é o livro
'O escafandro e a
borboleta', publicado pela
primeira vez em 1998 e traduzido hoje em 23 idiomas. O autor,
Jean-Dominique Bauby,
morreu em 1997 com 44 anos.
-
12 Cf. Aristóteles. Top., 133a.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
-
ARISTÓTELES. Opera omnia graece et latine. Paris, Firmin-Didot,
S/D.
-
BAILLY, Anatole. Dictionnaire grec-français. Paris, Hachette,
1990.
-
CALDAS AULETE, J. F. Dicionário Con-temporâneo da Língua
Portuguesa. 3 ed., Lisboa,
Parceria António Maria Pereira, 1948.
-
CLAIR, Jean. La barbarie ordinaire. Music à Dachau. Paris,
Gallimard, 2001.
-
KUUSISTO, Stephan.
Planet of the Blind. London, Faber and Faber,
1998.
-
MERLEAU-PONTY, Maurice de.
L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard,
1963.
-
PLUTARCO. Morales. (trad. Victor Bétolaud), Paris, Hachette,
1870.
-
RENÉ DESCARTES.
“La
Dioptrique”, in Oeuvres et Lèttres. Paris,
Gallimard, 1952.
-
RIVANO, Juan. Perspectivas sobre la metáfora. Santiago de Chile,
Ed. Universitaria, 1986.
ϟ
João Vicente Ganzarolli de Oliveira é professor doutor do
Departamento de
História e Teoria da Arte da Escola de Belas-Artes da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ.
6.Jul.2019
Maria José Alegre
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