|

O Cego - Werner Heuser, 1954
Os meus olhos fecham-se, envoltos num nevoeiro denso, salpicado de traços
negros. As letras que desenho, gigantes e esguias como os cavaleiros de Dom
Quixote, fogem a galope quando as vou procurar. Já não sou mais do que um cego
anunciado. O mundo vai-se sumindo ao meu redor. Às vezes, para antecipar as
trevas e o efeito que terão sobre mim, cerro voluntariamente as pálpebras.
Tateio, apalpo, seguro. Detenho-me sobre as capas dos meus queridos livros,
imaginando como será quando já não os puder ler.
Também os sons caprichosos chegam aos meus ouvidos atropelados ou
desgarrados. Na verdade, uns chegam aos meus ouvidos, outros já não.
O desejo inesperado visita-me a horas mortas. É um desejo sem provocação,
estímulo ou objeto. Não, não é um desejo. É o meu corpo a troçar de mim, a puxar
pelos meus dedos frouxos. Desejo é quando os meus velhos pensamentos me fazem
viajar pela juventude, pelos rostos de Mariana, de Natália, os seus olhos, os
seus sorrisos, as suas vozes.
As ideias estiolam, enovelam-se, desorientam-se, fenecem. Por vezes, em
contradita, borbulham como água fervente, atropelam-se, e então é difícil
segurá-las, sujeitá-las, conseguir escrevê-las, até.
Não há nada mais humilhante do que esta dissociação cruel entre a mente
ainda viva e um corpo moribundo. Sinto, de outra forma, o que sentiu o meu irmão
Armando. Ele tinha vinte e cinco anos quando morreu. Mas eu também tenho vinte e
cinco anos. Tenho, debaixo desta carapaça de velho, vinte e cinco anos. Morrer
não custa, o que custa é este sofrimento lúcido.
FIM
ϟ

excerto de
A Febre das Almas Sensíveis
Isabel Rio Novo
Editora
D. Quixote, 2018
romance finalista do Prémio LeYa
25.Out.2019
Maria José Alegre
|