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Cego
tocando o Sol
- George Mendoza
O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada
e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o
desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de
um no outro, siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho
tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O
sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:
― Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele
minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua
que papaeira. O cego enchia a boca de águas:
― Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava
como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos
dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo
o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:
― Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!
Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz.
Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não
tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos
mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raça humana, é menos
primitivo: o animal.
― Na noite aflige não haver luz?
― Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.
Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez
o céu para justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios,
subterfugindo:
― E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?
Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho
perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um
novo escuro nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava
sua mão na mão do guia. Só assim adormecia. A razão da concha é a timidez da
amêijoa? Na manhã seguinte, o cego lhe confessava: se você morrer, tenho que
morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o caminho para o céu?
Foi no mês de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pôr na
guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou: que o moço inatingia a
idade: E que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia
chamou Estrelinho à parte e lhe tranquilizou:
― Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu
lugar.
O cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já não
estava lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água ida nem vinda,
Estrelinho escutou o amigo se afastar, engolido, espongínquo, inevisível. Pela
primeira vez, Estrelinho se sentiu invalidado.
― Agora, só agora, sou cego que não vê.
No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a
presença de seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa
é pensar que os silêncios são todos iguais. Enquanto não: há distintas
qualidades de silêncio. É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos
tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende mano Gigito?
Mas a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse sim,
repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus
olhos no centro de manchas e ínvias lácteas. Aquela era uma desluada noite,
tinturosa de enorme. Pitosgando, o cego captava o escuro em vagas, despedaços. O
mundo lhe magoava a desemparelhada mão. A solidão lhe doía como torcicolo em
pescoço de girafa. E lembrou palavras do seu guia:
― Sozinha e triste é a remela em olho de cego.
Com medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais interpretavam
ser olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo caminho. Tropeçando,
empecilhando, acabou caído numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram
à procura da mão de Gigitinho.
Então ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera
Gigitinho: a ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o
corpo não ocupasse lugar nenhum.
De aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar
desgraças. Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde tombara. Como
diria Gigito: era ali que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem força
ele colectou para se afastar.
Ficou naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que
tombam nas despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe despertou os
ombros.
― Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.
Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e
silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a
miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da
paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se
desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou
de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele careceu que ela o amparasse já não
apenas de mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela puxava o cego de encontro a
si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já não procurava só
outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.
Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante,
regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava
eternidades. Sua cabeça andorinhava e ele guiava o coração como voo de morcego:
por eco da paixão. Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E
adormeceu enroscado nela, seu corpo imitando dedos solvidos em outra mão.
A meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobreassaltada. Tinha visto a
garça branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu
peito. Mas, fingiu sossego e serenou a moça. Infelizmina voltou ao leito,
sonoitada.
De manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve
um militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como devem as feridas da
guerra. Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele já
sabendo daquela perca. A moça, essa, deixou de falar, órfã de seu irmão. A
partir dessa morte ela só tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competência
para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da
casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos
poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho
miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais
paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava:
ele esteve em meus braços antes da minha actual vida. E quando já havia
desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:
― Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
― Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!
FIM
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― é o nome literário de um dos escritores moçambicanos mais conhecidos
no estrangeiro. Nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi director da Agência de
Informação de Moçambique, da revista Tempo e do jornal Notícias de Maputo.
Iniciou o curso de Medicina ao mesmo tempo que se iniciava no jornalismo e
abandonou aquele curso para se dedicar a tempo inteiro à segunda ocupação. Foi
director da Agência de Informação de Moçambique e mais tarde tirou o curso de
Biologia, profissão que exerce até hoje.
Tornou-se um dos ficcionistas mais conhecidos das literaturas de língua
portuguesa. O seu trabalho sobre a língua permite-lhe obter uma grande
expressividade, por meio da qual comunica aos leitores todo o drama da vida em
Moçambique após a independência.
'O cego Estrelinho'
Mia Couto
in «Estórias abensonhadas»
Editorial Caminho, 1.ª edição 1994
12.Abril.2008
Publicado por
MJA
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