VÍDEO: 'O coveiro de Pínzio' em
Cantos de cego da Galiza e Portugal: Uma viagem pelo universo da transmissão
oral e musical de notícias antes da massificação dos meios de comunicação. Ou,
se se preferir, 'Como ainda ouvir os romances de assassinatos, traições e outras
coisas bizarras, importantes ou aterradoras ocorridas nos lados norte e sul da
Ibéria Ocidental'.
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Tenham sido muitas ceguinhas e ceguinhos desde os tempos de Homero que
transmitiram um saber popular feito de histórias fabulosas que alimentaram o
imaginário de gerações e gerações. Uma atividade profissional que se perdeu
deste lado do mundo, mas que continua viva noutros locais. Pessoas que nos
palcos onde estava o dinheiro souberam captar a atenção da audiência: o campo da
feira e da romaria, a rua da cidade, a casa de quem lhes dava pousada.
Performersaudazes do seu tempo ou jograis medievais, souberam adaptar-se ao seu
público. Um público generoso que ouvia e – desde que o povo sabe ler – comprava
folhetos, corpus escrito de uma literatura de cordel muito rica e extensa:
epopeias de heróis, vidas de santos, crimes horríveis de sangue, raptos e
incestos, coplas picarescas, arrufos de namorados, historietas antigas ou
relatos mais atuais.
Faltas de vista, mas com uma capacidade recordatória portentosa, levavam novas
aos lugares que visitavam, criando, assim, um sentido de comunidade e um
repertório geral de cantigas. Artistas populares para o povo. Ceguinhas e
ceguinhos são a memória colectiva, o fio da transmissão oral do nosso
imaginário.
Este é o nosso reconhecimento às pessoas que nos legaram as suas histórias. A
todas elas e em especial aos informantes com quem aprendemos as canções que
alimentam, neste disco, as nossas versões.
Homem cego, vendedor de livros de cordel,
guiado por um garoto | Séc. XVIII
“Cantos de cego da Galiza e Portugal”, disco de Ariel Ninas e César Prata,
editado em setembro de 2016 por aCentral Folque de Santiago de Compostela,
apresenta canções de cegos. Trata-se de um repertório de músicos cegos que
ganhavam a vida tocando e cantando em feiras e romarias. Por companhia tinham a
mulher, um cão ou uma criança. Habitualmente vendiam folhetos com as letras das
canções. De que falavam as canções? Traições, crimes, mortes, casos bizarros;
assuntos capazes de chamar a atenção e curiosidade dos que passavam. Assim… Uma
espécie de CMTV do tempo.
A primeira vez que tive contacto com este repertório foi em 2003. O meu amigo
Américo Rodrigues gravou canções destas junto de três informantes do concelho da
Guarda e entregou-me um MiniDisc (RIP!) para eu ouvir e fazer o que entendesse.
Fizemos um disco (“Canções do Ceguinho”, 2003). A partir daí, sempre que ia para
o terreno fazer recolhas pedia aos informantes para me cantarem canções destas.
Aprendi que o povo lhes chamava “quadras” e surpreendi-me com a forma como
estavam presentes nas memórias. Em 2010 havia mais canções e apareceu um novo
disco, “Canções de cordel”, editado pelo Teatro Municipal da Guarda e parte
integrante da coleção “A Ieltsar se vai ao longe” (Instituto de Estudos de
Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa).
E pronto! Às canções de cego, com raízes nos romances medievais, juntou-se a
sanfona do Ariel Ninas. A sanfona foi um dos instrumentos prediletos dos cegos.
E, assim, as canções de cego, realidade que existiu dos dois lados do rio Minho
ficaram registadas num disco, no século XXI, coadas pela nossa forma de as
cantar.
César Prata
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CANTOS DE CEGO DA GALIZA E PORTUGAL
Ariel Ninas e César Prata
Edição: aCentral Folque | Santiago de Compostela
Setembro de 2016