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Jorge Luís Borges
Jorge Luís Borges soube que tinha morrido quando, tendo
fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite
crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma
luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol
filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu
uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas
numa plantação de bananeiras. Aquilo deixou-o de mau humor.
Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme
biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e
outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos
eles com livros empilhados até ao teto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se
desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido
(quando morremos reencarnamos jovens e Borges já não se
recordava de como isso era). Caminhou devagar entre as
bananeiras. Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém
conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém
sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um pouco
menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as
coisas.
A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida
começou a atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso,
mas no inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas
folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica
paisagem um céu imensamente azul. Borges lamentava a ausência
de livros. Se ali ao menos existissem tigres – tigres metafóricos,
claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do dorso –, se
houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa
(bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras,
bananeiras, ainda bananeiras. Bananeiras a perder de vista.
Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita
plantação. Era como se andasse em círculos. Era como se não
andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais
cores do que aquilo – além do mistério, claro. Como é que um
homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre
bananeiras?
Borges não gostava da América Latina. A Argentina, como se
sabe, é um país europeu (ou quase) que por desgraça faz fronteira
com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges aquele quase
foi sempre um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a
vizinhança. Os índios ainda ele tolerava. Tinham fornecido bons
motivos para a literatura e além disso estavam mortos. O pior eram
os negros e os mestiços, gente capaz de transformar o grande
drama da vida – da vida, meu Deus! – numa festa ruidosa. Borges
sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de
os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas
catedrais.
Foi então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava, pálida e
nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado
para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas
isso para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele
foram sempre os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco.
Deus confundira-o com outro escritor latino-americano. Aquele
paraíso fora construído, só podia ter sido construído, a pensar em
Gabriel García Márquez.
Jorge Luís Borges sentou-se sobre a terra úmida. Levantou o
braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em
Gabriel García Márquez e voltou a experimentar o intolerável
tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechará os olhos,
para melhor escutar o rumor longínquo da noite, e quando os reabrir
estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma biblioteca.
Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros
corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos
eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto
infinito, forrado de estantes até ao teto, e nessas estantes todos os
livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de
palavras em todas as línguas dos homens.
Jorge Luís Borges descascou outra banana e nesse momento
um sorriso – ou algo como um sorriso – iluminou-lhe o rosto.
Começava a adivinhar naquele equívoco cruel um inesperado
sentido: sendo certo que o paraíso do outro era agora o inferno dele,
então o paraíso dele haveria de ser, certamente, o inferno do outro.
Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa.
Era um bom inferno, aquele.
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Manual prático de levitação : contos
Contos angolanos
Rio de Janeiro : Gryphus, 2. ed. 2021
José Eduardo Agualusa (2005)
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