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Jose Ignacio Vigil e
Maria Lopez Vigil
O Milagre de Jesus curando o cego - El Greco, c. 1570
Marcos 8:22-26
Então, chegaram a Betsaida; e lhe trouxeram um cego, rogando-lhe que o tocasse.
Jesus, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia e, aplicando-lhe saliva aos olhos e
impondo-lhe as mãos, perguntou: Vês alguma coisa?
Este, recobrando a vista, respondeu: Vejo os homens, vejo-os como árvores a andar.
Então, novamente lhe pôs as mãos nos olhos, e ele, passando a ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de modo perfeito.
E mandou-o Jesus embora para casa, recomendando-lhe: Não entres na aldeia.
A praça de Betsaida (1)
estava semeada de
amendoeiras. À sombra de
uma delas, a mais
frondosa de todas, se
recostava cada manhã
Barnabé, um pobre velho
que levava sempre sobre
os ombros um grosso
manto preto, cheio de
manchas e buracos...Barnabé: Sabe o que eu
acho, mulher, que eu
tenho gelo enfiado
dentro dos meus ossos. E
não sai de jeito nenhum.
Se não fosse este manto
que você costurou para
mim...!
Um homem: Ah, velho
louco, com quem você
está falando?
Barnabé: Eu lhe digo que
não sei mais o que
fazer. Se fosse por mim,
eu iria para longe,
muito longe... Mas, e se
depois as árvores
perguntam e lhe dizem
que fui embora...? As
pobres ficam sem
companhia... Mas eu acho
que vou ter de ir, sim,
vou acabar fazendo
isso...Barnabé falava sozinho
já fazia muitos anos.
Fazia muitos anos também
que seus olhos não
podiam ver a luz do sol (2).
Umas brasas que saltaram
do fogão onde sua mulher
preparava a comida o
deixaram cego. Um ano
depois, sua mulher
morreu, sem haver-lhe
dado nenhum filho. E
Barnabé ficou sozinho,
com a lembrança de sua
esposa morta e pedindo
esmola junto às árvores
da praça...Barnabé: Uma esmola e
Deus a devolverá em
saúde! Uma esmola, pelo
amor de Deus!
Um menino: Olhe só o
cego Barnabé! Vamos dar
uma “esmola” para ele,
rá, rá, rá!
Outro menino: Não ria,
idiota, senão ele vai
perceber...! Venha,
vamos...Barnabé: O que acontece
é que eu não posso ir
até lá, mulher. Há
muitas pedras pelo
caminho e nem com o
cajado posso me livrar
delas... Se você
estivesse comigo seria
diferente...Menino: Está vendo como
ele fala sozinho? Está
completamente gagá.
Vamos só ver a cara
dele...!
Barnabé: Uma esmolinha,
por amor ao céu!
Menino: Olhe aqui,
velho, tome... São umas
gorjetinhas... com elas
você terá com o que
passar uma semana...Os meninos, disfarçando
a voz, colocaram nas
mãos do cego Barnabé uma
bolsinha de pano que
pesava muito...Barnabé: Mas, senhora,
esta esmola é grande
demais!
Menino: Não se preocupe,
meu velho. Nós temos
olhos e você não... Tudo
isso é para você, para
que não tenha mais que
vir por aqui para
pedir... Você já sofreu
bastante...Barnabé: Obrigado,
senhora, obrigado... Eu
já não lhe disse,
mulher, que ainda tem
gente boa neste
mundo?...Menino: Adeus, velho,
que o Senhor o
abençoe...!Os meninos, sufocando o
riso, afastaram-se um
pouco da amendoeira onde
Barnabé estava
encostado, enquanto o
cego, todo contente,
desamarrava a bolsinha
que acabavam de lhe
dar...Barnabé: Mas... mas, o
que é isto? Ai,
desalmados! Desalmados!Da bolsa, cheia de
pequenas e polidas
pedras de rio, saiu um
bom punhado de baratas
que subiram em Barnabé
pelos braços e pregas do
manto. O cego tentava
espanta-las, enquanto os
rapazes retorciam-se de
tanto rir, vendo-o dar
pulos e proferir mil
maldições.Um menino: Rá, rá, rá...!
O velho Barnabé tem
olhos e não vê! O velho
Barnabé tem olhos e não
vê!
Uma mulher: Mas, o que
está acontecendo agora
com este velho louco?
Menino: Nada, ele está
ensinando as baratas a
dançar...!
Mulher: É o fim da
picada! O que mais ele
ainda vai inventar?...
Bem, pelo menos podemos
dar umas boas risadas.
Porque se não, para que
mais serve este infeliz!Quase todos os dias
acontecia algo parecido
na praça das amendoeiras
de Betsaida. O cego
Barnabé era a chacota do
povo. Todos mexiam com
ele.Um menino: Ei, velho,
adivinha quem foi agora!
Puah!
Outro menino: Você,
agora é a sua vez...
Agora! Puah!
Menino: Adivinha quem
foi, adivinha, Barnabé!
Barnabé: Desalmados!
Safados! Safados!!Quando naquela manhã
chegámos à praça de Betsaida, um grupo de
meninos havia amarrado
com cordas o cego
Barnabé a uma das
amendoeiras.
Revezavam-se para cuspir
nele, tentando
acertar-lhe os olhos com
a saliva, e depois
pedindo que adivinhasse
quem havia feito...
(3) Algumas pessoas haviam
se juntado ao redor... Jesus: Mas o que é isso,
o que está acontecendo
aqui?
Mulher: Não sei,
forasteiro. Este velho
cego anda meio louco...João: Mas estão cuspindo
nele... Por que fazem
isso?
Mulher: Brincadeira de
criança, você sabe como
é. Eles têm que se
divertir com alguma
coisa.
Jesus: Claro, e os
grandes também se
divertem, não é mesmo?
Homem: Olhe aqui,
forasteiro intrometido,
está falando o quê, heim?
Está falando o quê? Cada
um se diverte como
quer... ou não, hein? Ou
não...?
Um menino: É minha vez!
É minha vez! Agora é
minha vez!
Todos: O velho Barnabé,
tem olhos e não vê! O
velho Barnabé, tem olhos
e não vê.
Jesus: Escute, amigo, se
você fosse cego,
gostaria que lhe
fizessem isso?
Homem: Eu não sou cego,
e não estou nem aí! E se
você não gosta da
brincadeira, vá caindo
fora!Ao meio dia, quando
Jesus e eu voltamos à
praça, a brincadeira já
havia acabado. Mas o
velho Barnabé ainda
estava com os braços
amarrados à amendoeira.
Ofegava e falava
sozinho, com o rosto
cheio de cusparadas...Barnabé: ... E eu
subirei num barco,
mulher, num desses que
atravessam o lago... e
irei embora. Lá, na
outra margem, dizem que
as pessoas são
distintas, que os
meninos lhe dão a mão e
os homens o ajudam...Jesus: Nós viemos da
outra margem, velho...Barnabé: Hein...?
Quem... quem são vocês?
João: Chegamos esta
manhã. Vimos você na
praça.
Barnabé: Safados!... Vão
embora e deixem-me em
paz!!
Jesus: Viemos desamarrar
você, velho... Não tenha
medo. Não gostamos nada
dessa brincadeira que
fizeram com você...Barnabé: De onde são
vocês...?
Jesus: Viemos de
Cafarnaum.
Barnabé: Do outro lado
do lago?
João: Sim, de lá mesmo.
Você nunca esteve na
outra margem?
Barnabé: Quando eu ainda
enxergava, sim... Mas
isso faz muito tempo. Já
nem me lembro mais...Jesus: Venha, João,
vamos desamarra-lo...Barnabé: O que vocês vão
fazer comigo? Por favor,
tenham piedade de
mim!...Jesus: Não tenha medo,
velho. Não vamos
machuca-lo. Não tenha
medo...Barnabé: Filhos da
mãe!... Riem de mim o
dia todo... e eu... eu
não posso fazer nada...João: Alegre essa cara,
velho, já está solto...Barnabé: Solto?...
Amanhã ou depois
voltarão a me amarrar e
fazer a mesma coisa... É
sempre assim...Jesus: Já lhe fizeram
isso outras vezes?
Barnabé: Isso e muito
mais. Quando não cospem
em mim, me dão pauladas,
ou jogam baratas e eu
tenho que fugir... e me
lastimar... Bem, mas já
estou acostumado. Já não
me importa mais.
Jesus: Não lhe
importa?... Então, por
que está chorando?
Barnabé: Porque sempre
me dói... Não, não estou
acostumado... Sempre me
dói...Jesus: Vamos, Vovô,
vamos sair daqui.
Barnabé: Ir para onde?
João: Venha com a
gente...Barnabé: Mas vocês estão
loucos?... Aonde vocês
querem me levar?
Jesus: Para longe daqui,
vovô, onde não lhe façam
mal...Barnabé: Mas, mas é que
não posso fazer isso...
Como ir embora e deixar
vocês sozinhas?... Está
vendo o que eu lhe
dizia, mulher, que já
não sei o que fazer?...
Estes forasteiros me
dizem para ir com eles,
mas se eu for, quem fará
companhia às árvores,
heim? Bem, se você
quiser que eu vá com
eles, eu vou, mulher,
mas depois não diga que
eu...Jesus: Vamos, velho,
apoie-se em mim...
assim, cuidado para não
tropeçar... vamos...E fomos nos afastando da
praça por um caminho
estreito, ladeado de
palmeiras, que saía para
fora da cidade. Barnabé
se apoiava em seu bastão
e não mão larga e
calejada de Jesus.
Mancava um pouco...João: O que acontece com
seu pé, Vovô?
Barnabé: Ah, isso não é
nada, vai passar. É que
outro dia me queimaram o
pé com um tição aceso...
“Adivinha quem fez
isso?” ... Como se eu
pudesse adivinhar,
safados!
Jesus: Isso já passou.
Eles não voltarão a
fazer-lhe nada de mau...Barnabé: Sim, eles
voltarão, voltam sempre
e me amarram, e eu não
faço nada a eles...
então, por que se metem
comigo e fazem essas
coisas, diga-me?
Jesus: Esquece essa
gente, velho, deixe de
se preocupar sempre com
a mesma coisa...Barnabé: Para você é
fácil dizer isso, rapaz.
E minha mulher também
sempre diz para
esquece-los... Mas eu
não posso esquecer,
porque... porque eu os
odeio, sabe?... Antes,
quando enxergava, eu não
sabia o que era isso, o
ódio... Mas agora eu
sei. É como uma coisa
aqui dentro que não se
arranca com nada... Sim,
mulher, é feio dizer
essa palavra, mas o que
vou fazer se eu sinto
isso? Claro, é porque
você não passou o que eu
passei...!Continuamos caminhando,
afastando-nos cada vez
mais da cidade. O sol do
meio dia abrasava o
caminho e fazia brilhar
as folhas das árvores. O
cego Barnabé não podia
ver aquela luz que nos
deslumbrava...Barnabé: É o que lhe
digo, rapazes, os homens
são piores que os
animais. Porque os
animais matam para
comer, mas os homens
fazem maldades só pelo
gosto de fazê-las...e
ainda por cima, dão
risada!... Sabem o que
fazem comigo? Cospem em
mim... cospem na minha
cara... nos olhos...
percebem?
Jesus: Escute, velho,
espere um momento...
Puah!
Barnabé: O que... o que
você está fazendo...?
Não, não faça isso,
rapaz... você não...
você não...Jesus cuspiu em suas
mãos e com os dedos
molhados de saliva tocou
os olhos do cego... (4)
Jesus: Espere, velho...
fique quieto... Sabe de
uma coisa? Os homens às
vezes são maus... Mas
Deus sempre é bom...Barnabé: Escute...
escute, o que você está
esfregando em meus
olhos?
Jesus: Nada, não se
preocupe... Vamos, agora
abra-os...Jesus tirou os dedos dos
olhos de Barnabé...Jesus: Pode ver alguma
coisa, velho?
Barnabé: Eu... eu...
sim, sim!... Estou vendo
muitas árvores... E vejo
você e seu
companheiro... Parecem
árvores que caminham...Jesus se aproximou do
cego e lhe pôs outra vez
a mão sobre os olhos.
Barnabé estava
chorando...Jesus: O que foi, velho?
Por que está chorando?
Barnabé: Estou vendo as
árvores de novo, meu
rapaz... Lá na praça do
povoado, as amendoeiras
foram meus únicos
amigos, sabe?... Elas me
deram sombra e, quando
chegava seu tempo, me
davam seus frutos. Agora
voltarei a vê-las. Os
homens, não, esses não
quero ver...João: Mas você está
vendo a nós...Barnabé: Vocês... foram
meus amigos... como as
árvores...Através de suas
lágrimas, Barnabé
começou a distinguir o
caminho, as pedras, as
flores. E lá, ao longe,
as silhuetas das casas
de Betsaida...Barnabé: Não quero
voltar para lá.
Jesus: Não, não volte a
esse povoado. É melhor
ir por este caminho. Ao
cair da tarde, você
chegará a Corozaim.
Fique por lá. E não
conte a ninguém o que
aconteceu. E também
nunca faça a ninguém o
que você não gostou que
lhe fizessem (5).
Barnabé nos olhou com
seus olhos pequenos e
enrugados, agora cheios
de luz. E coxeando, com
seu longo bastão, se pôs
em marcha. Como sempre,
ia falando sozinho...Barnabé: Se você tivesse
visto, mulher... Era um
homem, mas parecia uma
árvore... Você podia se
apoiar nele e ele lhe
dava sombra... Se você
tivesse visto, mulher...E o velho Barnabé foi se
afastando até perder-se
no horizonte, iluminado
pelo grande e vermelho
sol da Galiléia...
FIM
notas
(1)
Betsaida, que significa
“casa da pesca”, era
uma pequena cidade
situada ao norte do lago
da Galileia, Nela
nasceram Felipe, Pedro e
seu irmão André. O
tetrarca Felipe a chamou
de Julia, em honra à
família imperial romana
que tinha esse
sobrenome. Hoje não há
restos desta cidade.
Supõe-se que os aluviões
depositados pelo rio
Jordão ao desembocar no
lago sepultaram a antiga
aldeia piscatória.(2) A cegueira era uma
enfermidade muito comum
em Israel no tempo de
Jesus. O clima seco e o
sol forte influíam
nisso. Em geral, a
cegueira abundou em todo
o mundo antigo, devido
também à falta de
condições higiénicas e
ao desconhecimento de
quais eram as causas que
originavam a
enfermidade. Era tida
sempre por incurável e
acreditava-se que era um
especial castigo de
Deus. O cego, por isso e
pela invalidez em que o
submergia seu mal, era
marginalizado.(3) Nem sempre o enfermo
desperta em seus
semelhantes compaixão e
misericórdia. Em muitas
ocasiões é motivo de
chacota e é tratado com
crueldade. Aquele que
não serve, o diferente,
o anormal, se transforma
muitas vezes em motivo
de riso para todos.
Acontece na escola onde
sempre há uma criança
mais débil, ou mais
gorda, ou mais feia para
que os demais façam
chacota dela. É uma
reação humana bastante
frequente. Quando Jesus
se aproxima de Barnabé e
lhe devolve a visão,
mostra com este sinal a
proximidade de Deus com
todos os desditosos e
ridicularizados. Deus
sente por eles um
carinho especial.(4) Ainda que aplicando
normas bem críticas ao
ler as histórias de
milagres do evangelho –
algumas duplicadas,
outras excessivamente
adornadas, outras com
base em relatos
similares de outros
povos – sempre resta um
núcleo absolutamente
histórico. Jesus
realizou curas que foram
assombrosas para seus
contemporâneos.
Tratou-se
fundamentalmente de
doenças reais, ainda que
relacionadas a situações
sociológicas especiais.
Entre elas estariam a
chamadas expulsões de
demónios, loucuras,
histerias, epilepsia e
as curas de leprosos (na
ampla gama de
enfermidades que esta
palavra abarcava), de
paralíticos, de cegos.
Essas curas estariam na
linha do que hoje com
linguagem moderna a
medicina chamaria de
“terapia de superação”.(5) Fazer aos demais o que
gostaríamos que nos
fizessem: esta é a
chamada “regra de ouro
do evangelho” (Mateus 6,12).
Com ela, Mateus resume
todas as palavras
pronunciadas por Jesus
no monte das
bem-aventuranças.
Certamente, é uma
conclusão muito prática,
pois toda a Lei pode ser
condensada no amor – de
obras, não de palavras –
que tenhamos para com
nossos semelhantes. (Marcos 8, 22-26)
ϟ
-
María López Vigil,
cubana, es periodista.
Fue religiosa teresiana.
Se ha pasado la vida
escribiendo y editando
lo que otros escriben.
Vive en Managua y
trabaja como jefa de
redacción de la revista
Envío. Mi machete es la
palabra, dice. No sé
hacer otra cosa que
hablar y escribir.
Converso también conmigo.
Por eso, y como pensaba
Machado, espero hablarle
a Dios un día.
-
Nacido en Cuba y vivido
en varios países de
América Latina,
José Ignacio López Vigil
ha pasado su vida
entre cabinas y
micrófonos. Fue
sacerdote jesuita,
estudió teología
bíblica. Con su hermana,
viajó en varias
ocasiones a Palestina.
Es un radialista
apasionado que hace y
enseña a hacer radio con
tanto profesionalismo
como buen humor.
Actualmente, radica en
Lima.
[2.Abr.2012]
Publicado por
MJA
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