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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


Anjo Negro

Nelson Rodrigues

 

Personagens:
Ismael
Virgínia
Elias
Ana Maria
Tia
4 Primas
4 Coveiros
Hortênsia
Coro das dez Senhoras  negras descalças
Cenário:
Casa de Ismael sem nenhum caráter realista. No andar térreo, um velório em torno de um pequeno caixão de seda branca com quatro círios finos e longos acesos. Presentes as senhoras negras cuja função é por vezes profética. Têm sempre tristes presságios. Rezam o tempo todo Avé Marias e Padre Nossos. De pé, rígido e velando, está Ismael, o grande negro. Veste terno branco de panamá engomado e sapatos pretos de verniz. Em cima, de pé e de costas para a platéia, Virgínia, a esposa branca. Veste luto fechado. No quarto em que está, duas camas: uma de casal e arrumada, a outra de solteira, mas com um pé quebrado e metade do lençol para fora, o travesseiro no chão. Longa e sinuosa escada une os dois andares. A casa não tem teto para que a noite possua seus moradores. Circulando-a, grandes muros de pedra e hera que crescem à medida em que cresce a solidão do casal.
A ação se passa em qualquer tempo e lugar.

 

PRIMEIRO ATO

CENA 1

Senhora 1 - (doce) - Um menino tão forte e lindo!

Senhora 2 - (patética) - De repente morreu!

Senhora 1 - (doce) - Moreninho, moreninho!

Senhora 3 - Moreno não, não era moreno!

Senhora 2 - Mulatinho disfarçado!

Senhora 3 - (polêmica) - Preto!

Senhora 1 - (polêmica) - Moreno!

Senhora 2 - (polêmica) - Mulato!

Senhora 4 - (em pânico) - Meu Deus do céu, tenho medo de preto, tenho medo!

Senhora 1 - (enamorada) - Menino tão meigo, educado, triste!

Senhora 4 - (encantada) - Sabia que ia morrer, chamou a morte!

Senhora 2 - (na sua dor) - É o terceiro que morre, aqui nenhum se cria!

Senhora 1 - (num lamento) - Nenhum se cria!

Senhora 3 - Três já morreram, com a mesma idade. Má vontade de Deus!

Senhora 4 - Dos anjos, má vontade dos anjos!

Senhora 3 - Ou é o ventre da mãe que não presta!

Senhora 1 - (acusadora) - Ou é o ventre da mãe que não presta!

Senhora 2 - (num lamento) - Deus gosta de criança, mata as criancinhas!

Todas - Ave Maria, cheia de graça... (perde-se a oração num murmúrio ininteligível) Padre nosso que estais no céu... (perde-se o resto da mesma forma)

Senhora 3 - (assustada) - Se afogou num tanque tão raso!

Senhora 4 - Ninguém viu!

Senhora 1 - Foi suicídio?

Senhora 3 - (gritando) - Criança não se mata, criança não se mata!

Senhora 2 - (doce) - Seria bonito um anjinho se matar!

Senhora 4 - O negro desejou a branca!

Senhora 1 - (gritando) - Oh, Deus mata todos os desejos!

Senhora 3 - (num lamento) - A branca também desejou o negro!

Todas - Maldita seja a vida, maldito seja o amor! (Cessam todas as vozes)


CENA 2

(Ismael vem olhar o rosto do filho. Em cima, no quarto, Virgínia ajoelha-se. Na parte de fora da casa surge um jovem homem maltrapilho de cabelos claros e anelados cujo rosto exprime uma doçura quase feminina. Caminha com um bordão porque é cego. Aparecem simultaneamente quatro negros descalços e nus da cintura para cima que se espantam com a presença do estranho)

Negro 1 - (com humor) - Pulou o muro, ceguinho?

Elias - O portão estava aberto.

Negro 2 - Está se arriscando, companheiro. O homem não gosta de branco aqui.

Negro 3 - Você pode-se dar mal.

Negro 1 - Está vendo esses muros? Ah, você é cego! Pois é, ele cercou tudo, muro por toda parte para ninguém entrar. Se a visita teima, passa fogo. Já meteu bala num, não foi?

Negro 2 - Ora!

Negro 1 - Só porque o sujeito era branco e veio espiar.

Negro 3 - Se estamos aqui é porque somos do cemitério. Conhece? Ele é pequeno, mas pra este lugar serve. Como ia dizendo, vamos levar o filho do homem pra lá.

Negro 2 - Morreu de repente.

Elias - Diga, ele se chama Ismael?

Negro 2 - O doutor? Sim. E que médico!

Elias - Preto, não?

Negro 3 - Mas de muita competência! (para os outros) Minto?

Negro 1 - Não tem como ele!

Negro 2 - Doutor de mão cheia!

Negro 3 - Mas tome um conselho: não fale em preto que ele se dana.

Elias - (para si mesmo) - Quer ser branco, não perde a mania. (mudando de tom) Morreu quando o guri?

Negro 3 - (sem ouvir) - Chamar quatro homens pra quê quando um sozinho podia carregar o caixão.

Negro 2 - Estou contigo.

Negro 3 - (para Elias) - Não acha, companheiro? Pra que quatro segurando nas alças se o defunto é desse tamainho? Pesa nada!

Elias - E a mulher?

Negro 1 - Ah, essa, meu filho, ninguém vê!

Elias - Estão bem?

Negro 2 - Se brigam ninguém sabe.

Elias - Pergunto se estão bem de dinheiro.

Negro 1 - Cheios! Têm tanto que ele nem trabalha mais.

Elias - Vai ver que a mulher é de cor, ou me engano?

Negro 1 - Branca e daquelas! Uma coisa por demais.

Elias - (para si mesmo) - Só podia ser branca. (mudando de tom) Queria falar com ele.

Negro 3 - (alarmado) - Com o doutor?

Negro 2 - Não aconselho.

Elias - Sou parente distante. (pausa) Bom, já vou indo.

Negro 1 - Por aqui, sempre em frente. Precisa que eu lhe acompanhe?

Elias - Vou sozinho, obrigado. (vai saindo)


CENA 3

(Ismael que ia indo para o quarto da esposa dá de cara com Elias entrando. Virgínia põe-se de pé. Em todas as pausas ouve-se a reza do Coro)

Ismael - (depois de contemplar Elias em silêncio) - Quem te chamou aqui?

Elias - Ismael! Me dá a mão. (impassível, o negro deixa que Elias venha ao seu encontro) Te procurei tanto, me perdi tantas vezes no caminho! (busca o corpo do irmão, apalpa-o, pega sua mão) Soube que teu filho morreu.

Ismael - Quem te mandou?

Elias - Eu mesmo. Não sou teu irmão caçula?

Ismael - Alguém te mandou!

Elias - Foi ela quem me mandou (abaixa a voz), tua mãe! (muda de tom) Eu não ia dizer isso, não já porque teu filho vai ser enterrado hoje, mas você continua duro, até sua mão parece de pedra.

Ismael - É dinheiro que você quer?

Elias - (numa súplica) - Me reconheces ao menos como o teu irmão? Diz: "Você é meu irmão Elias!"

Ismael - Quanto para partir imediatamente e não voltar nunca mais?

Elias - Deixa então eu beijar teu filho.

Ismael - Não!

Elias - (suplicante) - Não te custa! (pausa) Bom, se não quer, conta então como ele morreu.

Ismael - (caindo em abstração) - Deus marcou minha vida, sei que foi Ele. (pequena pausa) Ninguém sabe como foi. Virgínia se distraiu um momento e o menino desapareceu (excitado) Não estava em lugar nenhum (espanto) Então me lembrei do tanque! Fui correndo e o garoto estava pousado lá no fundo, muito quieto, morto...Mas a água era tão rasa, batia na cintura dele, não podia ter sido afogamento.

Elias - Devia ser uma criança linda!

Ismael - É o terceiro que morre. Todos morrem. (veemente) Eles não se criam, ouviu, não se criam. Nenhum! (outro tom) Você não verá meu filho, não quero que ninguém veja. A não ser eu e a mãe, só nós dois. Vai e não volta, nunca mais.

Elias - (veemente) - Se eu tivesse beijado o teu filho talvez calasse o que tua mãe mandou dizer.

Ismael - Pode falar.

Elias - Tua mãe está entrevada.

Ismael - Ouvi dizer.

Elias - Antes da minha partida me pediu por tudo...

Ismael - (simultaneamente) - Já sei.

Elias - ...e eu jurei que viria dizer apenas estas palavras: "Ismael, tua mãe manda sua maldição!"

Ismael - Está dado o recado, agora...

Elias - (corta) - Não é recado, é maldição.

Ismael - Que seja. Agora, a porta é ali, sai.

Elias - Vim para ficar, Ismael.

Ismael - Espera que eu deixe?

Elias - Não tenho para onde ir.

Ismael - Quer ser expulso? Arrastado? Ou já perdeu o medo?

Elias - Tive medo quando menino. Naquele tempo você me batia porque eu não era filho da sua mãe, porque era filho de uma mulher branca com um homem branco. Hoje não tenho mais medo, talvez ele volte amanhã... (Ismael não responde, está de costas para o irmão que lhe suplica) Eu fico aí em qualquer canto, como um bicho, quieto, calado, não incomodo ninguém, juro!

(Ismael continua mudo. Elias fala para si mesmo com tristeza e doçura). Não preciso conversar com ninguém, não preciso ver ninguém. Falo sozinho, rio, acho graça comigo mesmo. É tão bom quando não tem nenhuma pessoa por perto! (Nesta altura, Ismael está longe do irmão, que continua falando e gesticulando na direção errada. Ismael apanha um relho e bate com ele num móvel)

Ismael - Sabe o que é isso? (Elias volta-se instintivamente na direção certa. Seu rosto exprime terror)

Elias - Sei, aquele chicote curto e trançado que meu pai te deu.

Ismael - Quer que eu use ele na tua carne?

Elias - Num cego não se bate, você não teria essa coragem!

Ismael - Deixa a minha casa!

Elias - Vou, mas cedo ou tarde prestarás conta a Deus! (caminha penosamente para a porta)

Ismael - Elias.

Ismael - (volta-se deslumbrado) - Me chamou?

Elias - (ainda assim, duro) - Em intenção de meu filho que morreu te deixarei ficar aqui, mas só até amanhã, nem mais um dia. Nos fundos tem um quarto: fica lá e não saia!

Elias - Não sairei.

Ismael - Água, comida, tudo levarão para você. Outra coisa: tenho uma mulher. Nem sonhe em falar com ela. É como se ela fosse do céu e você da terra, da terra não, da lama.

Elias - Queres que eu jure?

Ismael - Não interessa.

Elias - (doce) - Também posso ajudar a carregar o caixão do teu filho. Seguro na alça.

Ismael - Não quero que toque no caixão de meu filho! (Ismael sobe a escada e entra no quarto. Em baixo no velório se faz mais nítido o rumor das preces)


CENA 4

Ismael - (parado bem atraz de Virgínia) - Desde ontem você está nessa posição.

Virgínia - Já me ajoelhei muitas vezes.

Ismael - Mas não se deitou nem dormiu.

Virgínia - Meus olhos estão queimando.

Ismael - Febre.

Virgínia - Esta noite em claro.

Ismael - Nosso filho está sozinho.

Virgínia - Senti que você não estava mais na sala. (volta-se para o marido) Desde ontem que eu esperava. Esperava o quê, meu Deus?

Ismael - Eu, Virgínia.

Virgínia - (epanto) - Você! Só posso esperar você, sempre. Só você chega, só você parte. O mundo está reduzido a nós dois, eu e você, agora que teu filho morreu.

Ismael - (veemente) - Mas não foi isso que você quis? Quando aconteceu aquilo nesta cama (indica a cama de solteira) que foi que você disse?

Virgínia - Não sei, não me lembro.

Ismael - Disse que queria fugir de tudo e de todos, queria que ninguém mais te visse, que ninguém mais olhasse para você. Não foi?

Virgínia - Depois do que aconteceu ali se alguém me olhasse ou me visse eu me sentiria nua...

Ismael - Então eu te falei nesses mausoléus de gente rica que parecem uma pequena casa. Que foi que você respondeu?

Virgínia - (mecânica) - Respondi: "Eu queria estar num lugar assim, mas viva. Um lugar onde ninguém entrasse, para esconder minha vergonha".

Ismael - Era isso que eu queria também. Quero esse lugar, essa vida. Por isso criei todos esses muros para que ninguém entrasse em nossa casa. Muros de pedra e altos.

Virgínia - (espanto) - O mundo reduzido a mim e você e um filho no meio, filho que morre sempre.

Ismael - Sempre.

Virgínia - Já me esqueci dos outros homens, sinto fugindo. Fugindo do desejo dos outros homens. Se mandei abrir janelas muito altas, muito, foi para isso, para que você esquecesse, para que a memória morresse em você para sempre. (com uma paixão absoluta) Virgínia, olha para mim, assim! Eu fiz tudo isso para que só existisse eu. Compreende agora? Não existe rosto nenhum, nenhum rosto branco, só o meu que é preto...

Virgínia - (dolorosa) - Se não fosse Hortênsia que às vezes fala comigo eu não saberia que existe alguém além de nós...Você traz o quadro?

Ismael - Não!

Virgínia - (crescentemente agressiva) - Você tem medo de que o Cristo do retrato olhe para mim? (Ismael está de costas) E se fosse um Cristo cego, tinha importância? Mas não há Cristo cego...

Ismael - Não deixo, não quero. (espantado) Esse Cristo não, claro, de traços finos...

Virgínia - (suplicante) - Deixa eu passear no jardim então, como antes. De noite. Preciso ver as estrelas. Posso ir com você!

Ismael - Não há mais estrelas.

Virgínia - (sem ouvi-lo) - Ainda agora me lembrei que elas existem, ou existiram. Há muito tempo que não pensava nelas. Eram lindas, não eram?

Ismael - Teu lugar é aqui. Por que fala em tudo menos no filho que está lá embaixo? Por que não pensa nele?

Virgínia - (com encanto) - Ele deve estar assim (faz o gesto) com as duas maõzinhas unidas como duas irmãs, duas gêmeas...

Ismael - Depois de morto você não quis ver ele, não viu nosso filho uma única vez!

Virgínia - (com medo) - Se eu visse ele agora não me esqueceria nunca!

Ismael - O caixão já vai sair. Você não chora? Não tem uma lágrima?

Virgínia - Não consigo. Quero, mas não consigo.

Ismael - Porque ele é preto. Preto. (encaminha-se para a porta. Virgínia senta-se na cama de casal. Ismael sai e fecha a porta pelo lado de fora. Ela grita assustada)

Virgínia - (correndo para a porta) - Você me fecha aqui?

Ismael - É preciso.

Virgínia - (suplicante) - Por que? Você sempre me deixou andar pela casa. (doce) Tão bom ver outras paredes, as paredes da sala, do corredor, ver mesas e cadeiras e não só estas duas camas e lençóis... (veemente) Minha única alegria era mudar de ambiente, passar de uma sala para outra, subir e descer a escada. (desesperada) Por que você me prende, Ismael, por que?

Ismael - Direi depois.

Virgínia - Espera. (rancor) Eu não quero ter mais filho, filho nenhum, ouviu?

Ismael - Quem pode querer sou eu. E eu quero outro filho, Virgínia!

Virgínia - (desesperada) - Não meu!

Ismael - Teu, sim! Um filho que não morra como os outros, porque o próximo não há de morrer, esse eu juro, Virgínia!

Virgínia - Mas não compreende que não pode ser. Que não posso ter filhos assim? Estou cansada de ver crianças morrendo! (muda de tom, voz surda) A morte me dá náuseas, já me enjoa o estômago! (num arranco) Ter filho para morrer!

Ismael - Eu virei.

Virgínia - Não, Ismael, não! Respeite este dia! (espantada) Não quero ficar grávida de um no dia em que enterram o outro! É como se o que morreu voltasse para o meu ventre e fosse apodrecer dentro de mim! (suplicante) Sim? Não hoje. (se olham) Por que me olha assim? (voz baixa) Leio nos teus olhos o desejo. Mas não conseguirás nada de mim, não hoje, nem que eu me mate. E me matarei na tua frente, Ismael! (cai de joelhos com o rosto entre as mãos)


CENA 5

Os quatro coveiros contornam a casa e aparecem na porta da sala enquanto Ismael desceu. Pegam o caixãozinho e começam a sair, Ismael à frente. Virgínia que erguera-se e acompanha sem ver todos os movimentos de baixo pega repentinamente um sininho agitando-o freneticamente. Subitamente pára, como se o cansaço a vencesse. Neste ponto o Coro recomeça a falar.

Senhora 1 - (lamento) - A mãe nem beijou o filho morto!

Senhora 2 - Só moças virgens deveriam segurar as alças.

Senhora 5 - Não beijou o filho porque ele é preto!

Senhora 4 - Tão bonito e virgem!

Senhora 3 - É louro o irmão branco do marido negro.

Senhora 6 - Tem quadris tão tenros!

Senhora 7 - Nunca a mulher devia deixar de ser virgem!

Senhora 8 - Mesmo casando, mesmo tendo filho. Oh Deus, malditas as brancas que desprezam preto! (ouve-se novamente o murmúrio de ladainha enquanto dedos práticos contam rosários. Virgínia volta a agitar o sininho com furor de louca.


CENA 6

(Hortênsia, uma preta gorda de meia idade surge nervosa. Chega à porta de Virgínia)

Virgínia - (subitamente serena) - Quase não vinha, custou tanto!

Hortênsia - Eu estava lá fora...

Virgínia - Já saiu?

Hortênsia - O enterro?

Virgínia - É.

Hortênsia - Já, D. Virgínia. Ainda agorinha.

Virgínia - (para si mesma) - Então Ismael só volta de noite. Graças a Deus, vou ter umas horas de descanso! É tão bom quando ele não está! (mudando de tom) Abre!

Hortênsia - Me desculpe, D. Virgínia, mas não posso, o doutor deu ordem de não abrir.

Virgínia - (num lamento) - Por que me trancam aqui dentro, por que?

Hortênsia - Não sei não, D. Virgínia, mas penso que por causa do irmão do doutor...

Virgínia - Quem?

Hortênsia - O que chegou de manhã.

Virgínia - Irmão? Mas que espécie de irmão?

Hortênsia - Branco...

Virgínia - (deslumbramento) - Branco?

Hortênsia - Cego, não enxerga...

Virgínia - (euforia) - Ele é cego, é? (para si mesma) Não vê... (veemente) Preciso falar com esse homem, Hortênsia!

Hortênsia - (em pânico) - Tenha juizo, D. Virgínia!

Virgínia - Abre isso já, anda!

Hortênsia - O doutro não quer, ele recomendou!

Virgínia - (possessa) - Negra ordinária, preta! (subitamente doce) Abre, Hortênsia, sim?

Hortênsia - Não posso, D. Virgínia!

Virgínia - (suplicante) - Hortênsia, você se lembra do que eu fiz aquela vez por sua filha? Você disse que ela tinha dado um mau passo, tinha-se perdido. Não foi?

Hortênsia - Foi, sim, nunca neguei. Lhe fiquei muito agradecida.

Virgínia - (persuasiva) - Te dei dinheiro para tirar tua filha da vida, você mandou o dinheiro, ela é que não quis voltar, preferiu ficar onde estava. Não é verdade?

Hortênsia - É.

Virgínia - Então, abre a porta. Não quero mais nada, só isso.

Hortênsia - Me perdoe, D. Virgínia...

Virgínia - (excitada) - Te dou dinheiro, muito dinheiro! Todo o dinheiro que eu tenho, que junto. Você poderá sair daqui, não voltar nunca mais! (como uma possessa vai até um canto e apanha um montão de dinheiro)

Hortênsia - A senhora está me perdendo, D. Virgínia!

Virgínia - Abre! (Hortênsia abre, depois apanha o dinheiro que caíra no chão) Graças a Deus! Agora vá dizer a esse homem que eu quero falar com ele, depressa!

(Hortênsia vai. Virgínia num gesto instintivo arruma os cabelos olhando-se um momento no espelho. reflete em voz alta, espantada) Eu falando num Cristo cego e o irmão já estava aí... (sai e começa a descer a escada, mas pára porque vê Elias chegando)


CENA 7

Elias - Se ele aparecer ou souber, me mata... (Virgínia desce lentamente a escada, deslumbrada. Quando chega embaixo, Elias instintivamente volta-se na direção dela. Inquieta-se com o silêncio prolongado)

Elias - É a senhora?

Virgínia - Sim, sou eu.

Elias - Mandou-me chamar?

Virgínia - Mandei. Sente-se!

Elias - (senta-se) - Desculpe que eu seja cego. Sabia?

Virgínia - Não, não sabia, Ismael não tinha me dito. Ele me falou só uma vez de você, por alto, sem entrar em detalhes... (esboça no ar uma carícia, mas depressa esconde a mão)

Elias - A senhora é bonita?

Virgínia - Me chame de você.

Elias - É?

Virgínia - Acha que sou?

Elias - Me disseram que sim.

Virgínia - Pois sou. (estende as duas mãos ao cego numa espécie de apelo. Logo, porém, interrompe o gesto)

Elias - Desde que você entrou eu soube que era linda.

Virgínia - (acariciando-se levemente a si mesma) - Poucas mulheres são tão bonitas como eu. Se você enxergasse veria que não minto.

Elias - (doce) - Sei.

Virgínia - É bom que você seja cego. Se não fosse eu teria vergonha, não poderia estar aqui com você. Mas assim, não. Ponho minhas mãos nas suas (faz o gesto) e não vejo nada demais nisso.

Elias - Tão macias!

Virgínia - (com sofrimento) - Se você soubesse a saudade que eu tinha de outro rosto que não fosse o dele! E branco...! Graças a Deus não sou cega, posso ficar assim, olhando, até me fartar, mas acho que não me fartaria nunca! (súplice) Deixa eu passar a mão pelo teu rosto, deixa, é um capricho meu. (faz isso) Estou tateando você como se eu é que fosse cega! Seus traços são tão finos!

Elias - (inquieto) - E se ele chegar?

Virgínia - Não há perigo, vai demorar, só vem de noite. Mas fale. Há oito anos que nenhum homem me fala, e muito menos claro assim. Só ele, negro. Vocês nunca se deram, não é?

Elias - Ele não gosta de mim.

Virgínia - Nem você dele?

Elias - Nem eu dele. E você?

Virgínia - Eu?

Elias - Gosta do seu marido? (silêncio) Responde: gosta? (silêncio) Ninguém pode gostar dele...Desde menino ele tem vergonha, vergonha não, ódio da própria cor. Um homem assim é maldito. A gente deve ser o que é. Acho que até o leproso não deve renegar a própria lepra.

Virgínia - (com as mãos nas dele) - Estou gostando tanto do que você diz! Você é irmão de Ismael como?

Elias - De criação.

Virgínia - Ah, logo vi!

Elias - (apaixonadamente) - Meu pai era italiano e depois que minha mãe morreu se juntou com a mãe dele. Quando ele era rapaz não bebia cachaça porque achava cachaça bebida de negro. Nunca se embriagou. E destruiu em si o desejo que sentia por mulatas e negras, ele que é tão sensual. A mim nunca perdoou que eu fosse filho de brancos e não de negros como ele. Quando fui morar na casa de Ismael ele já era moço e eu um menino. Ele me batia e maltratava. Eu tinha medo (virando a cabeça de um lado para o outro como se pudesse enxergar o meio- irmão) e ainda hoje tenho, um medo de animal, de bicho!

Virgínia - (apertando a cabeça de Elias de encontro ao peito) - Eu gosto que você tenha medo, que seja assim fino de cintura...

Elias - Gosta? Mesmo assim cego?

Virgínia - (mudando de tom) - Você ficou cego como?

Elias - (num lamento) - Foi uma fatalidade. Eu estava doente dos olhos e Ismael que me tratava trocou os remédios, em vez de um pôs outro... perdi as duas vistas... mas mesmo depois de cego ele me atormentava, estudava muito para ser um médico melhor do que os brancos. Só por orgulho, tudo por orgulho. Tirou da parede o quadro de São Jorge e atirou pela janela porque era santo de preto. Um dia sumiu de casa depois de ter dito à mãe dele: "sou negro por tua causa!" (doce e suplicante) Já ouviu o que eu disse, agora responde: gosta dele? (silêncio) Gosta?

Virgínia - (obsecada) - Ele trocou os remédios de propósito...para cegar você! (muda de tom) Se eu gosto dele? Não...não gosto...

Elias - Odeia?

Virgínia - (incerta) - Odeio...

Elias - Tem medo dele?

Virgínia - (incerta) - Medo? (muda de tom e anda enquanto o cego se desorienta sem saber em que direção virar-se) A transpiração dele está por toda parte, apodrecendo nas paredes e no ar, nos lençóis, na cama, nos travesseiros, até na minha pele ela está, nos meus seios (aperta a cabeça entre as mãos) e cabelos, meu Deus! (cheira as mãos em concha como se quisesse encontrar nelas o cheiro três vezes maldito)

Elias - Então porque é que se casou com ele? Me dissseram que você é branca, muito branca.

Virgínia - (num transporte) - Muito branca, alva (muda de tom) Quem ama mistura suor com suor. (ávida) Diga se o suor dele ficou em mim, se está na minha carne ou se é imaginação minha (sofredora dá primeiro as mãos, depois os braços, depois os ombros para que o cego possa cheirá-los)

Elias - (num transporte) - É imaginação! (Virgínia baixa a cabeça numa súbita vergonha e Elias fica agressivo) Mas se você tem esse horror...

Virgínia - (cortando brusca e afirmativa) - Tenho!

Elias - ...por que então se casou? (no seu desespero ele enterra as unhas nos braços de Virgínia)

Virgínia - Ai, está me machucando!

Elias - (baixo ao ouvido da moça) - Tenho medo que você seja linda mas ordinária! Diga que não é, que tem sentimento, diga!

Virgínia - (dolorosa) - Eu lhe conto...se você soubesse! Foi aqui mesmo, esta casa era da minha tia que me criava. Meus pais tinha morrido. Titia era viúva, mas tão fria e má que nem sei como pode existir mulher assim. Tinha cinco filhas, todas solteironas, menos uma , a caçula, que ia se casar. Era a única que um dia deixaria de ser virgem... (falando ela se afasta e Elias percebe)

Elias - (pedindo) - Fica perto de mim.

Virgínia - (doce) - Fico (retorna. muda de tom) Todos ali me odiavam. Porque eu tinha 15 anos e era linda, vivia cercada de olhos. Quando eu me vestia vinham me espiar. Foi aí que Ismael apareceu, primeiro como médico, depois como amigo também."Preto, mas muito distinto", diziam, e depois, doutor. Em lugar de interior isso é muito. Ele se apaixonou por mim...

Elias - (doce e inquieto) - E você por ele.

Virgínia - Juro que não, juro por tudo. Eu já tinha medo do desejo que havia nos seus olhos, já adivinhava que amor com um homem assim é o mesmo que ser violada todos os dias.

Elias - Sempre o sonho dele foi violar uma branca.

Virgínia - Eu amava o noivo da minha prima caçula, sem dizer nada a ninguém. Este sim... você tem alguma coisa dele, sobretudo a boca, os lábios finos e meigos, não a boca vingativa de meu marido! Uma noite esse noivo chegou mais cedo, eu estava sozinha. Foi tudo tão de repente! Não houve uma palavra, ele me pegou e me beijou, nada mais, a não ser a mão que percorreu o meu corpo...

Elias - Você não devia ter desejado homem nenhum, nunca...

Virgínia - (sua narração desenvolve-se num crescendo) -...neste momento minha tia e a noiva apareceram, em tempo de ver tudo. Elas não dissseram uma palavra, assistiram tudo até o fim. Quando o beijo acabou o noivo fugiu, para sempre. Minha tia veio e me trancou no quarto... (baixa a voz) enquanto minha prima noiva fechava-se no banheiro. Demorou lá e quando foram ver (espantada) ela tinha se enforcado, Elias, com uma corda tão fina que não sei como resistiu ao peso do corpo...

Elias - (num lamento) - Só os homens deviam se enforcar, as mulheres nunca...

Virgínia - (sem ouvi-lo) - ...De noite, Ismael veio fazer quarto, era o único de fora, ninguém mais tinha sido avisado. De madrugada senti passos, abriram a porta, era ele mandado por minha tia. Gritei e ele quis tapar a minha boca, gritei como uma mulher nas dores do parto... (muda de tom) se pudesses ver eu te mostraria... (cai em penumbra o resto do cenário, a luz só incide sobre a cama em que Virgínia foi violada. Vêem-se todos os sinais de uma luta selvagem. A extremidade inferior da cama está caída, metade do lençol para o chão e um travesseiro no assoalho. um pequeno abajur quebrado. ela indica a cama) Ninguém mais dormiu ali...a cama ficou como estava, não mudaram o lençol, não apanharam o travesseiro nem o crucifixo de cristal que se partiu naquela noite... Tudo como há oito anos...Ismael não quer que eu nem ninguém mexa em nada... Depois veio a outra cama, de casal. Mas a minha de solteira continua sempre, sempre...e continuará até depois da minha morte.

Elias - O noivo da que morreu devia ser bonito...

Virgínia - (com rancor) - Foi ela, minha tia, quem chamou Ismael, apontou a escada e disse: "Deixa que ela grite, deixa ela gritar"... Ismael comprou a casa e no dia seguinte ela e as quatro virgens partiram. Voltaram trinta dias depois para o casamento. E agora quando um filho meu nasce e morre a mãe e as filhas vêm assistir ao parto e ao enterro, querem ver se o filho que nasce e morre é preto... (espantada) Hoje ainda não vieram, mas virão, tenho certeza, virão sempre...

Elias - (espantado) - Por sua causa a noiva se matou...Por que você não morreu, a mulher que é possuída (baixa a voz) assim não devia viver...

Virgínia - (com medo) - Morrer não, não posso morrer (fanática), nunca! (desesperada) Se eu morresse, ele não me enterraria, tenho certeza. Deixaria meu corpo na Cama, esperando que eu apesar de morta continuasse tendo filhos (lenta), filhos pretos...

Elias - Morta não tem filhos...

Virgínia - Talvez... (desorientada) quem sabe? Não sei, não compreendo mais nada.

Elias - Se você quisesse eu poderia salvá-la!

Virgínia - Como?

Elias - (segurando-a) Fugindo!

Virgínia - Não posso. Se eu fugisse a transpiração dele não me largaria, está entranhada na minha carne, na minha alma. Nunca poderei me libertar, nem a morte seria uma fuga!

Elias - Maldito seja o negro!

Virgínia - (doce) - Você pode me salvar, mas não assim, de uma outra maneira. Se fizer o que eu espero agradecerei de joelhos, beijarei no chão a marca dos teus passos.

Elias - (transportado) - Faço o que você quiser, tudo!

Virgínia - Sei, sinto isso em você. (Acaricia-o no rosto e cabelos. Caem os dois de joelhos, um diante do outro)

Elias - Você está quase louca.

Virgínia - Se já não estou.

Elias - Quer o quê de mim?

Virgínia - Um beijo. (Beijam-se apaixonadamente após o quê Elias ergue-se trazendo consigo o corpo da amante. Ela então desprende-se e afasta-se dele, fica de costas. depois volta-se novamente. com rancor) Já tive três filhos, nenhum dos três brancos. É por isso que eles morrem, porque são pretos.

Elias - E se fossem brancos, viveriam?

Virgínia - Ah, se fossem brancos, sim! Juro que sim. Se não vier desta vez um filho branco é outro que darei à morte. (pausa) Vem... (Virgínia sobe a escada trazendo Elias pela mão. No quarto abraçam-se e beijam-se. A luz cai em resistência até blecaute.)


SEGUNDO ATO

CENA 8 a

(Quando voltam as luzes, estão entrando na sala a tia e as quatro primas de Virgínia. A Tia é um tipo de mulher em quem morreu toda doçura e suas filhas solteironas arrastando pela vida uma não-desejada virgindade. Uma delas é muda na sua obsessão sexual. No quarto, Virgínia arruma os cabelos com um certo cansaço amoroso. Elias, meigo como nunca. A cama de casal está revolvida como a de solteira, metade do lençol para fora. O Coro coloca-se em volta do tanque em que o menino foi afogado. Mexem nos rosários e fazem suas preces. É noite contra todos os relógios, porque lá fora ainda há sol)

Prima1 - (num tom de lamento) - Noutras casas ainda tem sol, mas aqui já é noite.

Tia - Ouviram?

Primas - Não.

Tia - Vozes.

Primas - Onde? Tia - Lá em cima

Primas - (entre si) - Vozes lá em cima.

Tia - Duas vozes.

Primas - Não tem ninguém em casa, mãe, estão no cemitério.

Tia - (incerta) - Pensei ter ouvido.

Prima2 - Chegamos atrazadas.

Prima3 - Depois do velório.

Prima1 - Esta casa é maldita.

Prima3 - Nenhuma flor no chão.

Primas - Num velório sobra sempre uma flor.

Prima2 - Sempre.

Prima1 - Uma flor fica boiando no assoalho.

Tia - Pensei ter escutado vozes, de homem e de mulher. (dúvida) São meus nervos...


CENA 8 b

(Elias quer abraçar Virgínia que se despreende com violência)

Virgínia - Agora vá.

Elias - É cedo.

Virgínia - Tarde.

Elias - Você não é mais a mesma, mudou, sinto que mudou.

Virgínia - Ele pode chegar, entrar aqui.

Elias - Então por que me chamou? Não devia ter-me chamado. Eu ia embora, nunca mais voltaria. (meigo) mostre as mãos... (maquinalmente ela oferece suas mãos. O cego beija uma e a outra, mas a moça continua fria)

Virgínia - (impaciente) - Você não pode ficar nesta casa. Nem mais um minuto.

Elias - Está fria, completamente fria.

Virgínia - Tenho medo.

Elias - Eu não.

Virgínia - (dolorosa) - Você também, sinto nas suas mãos, na sua boca o medo... (olha em torno)

Elias - Medo eu tinha antes de conhecê-la, mas agora tudo mudou. E se você quiser...

Virgínia - (corta) - Não quero!

Elias - Eu ficaria aqui mesmo, no quarto, de pé, de frente para a porta...

Virgínia - (corta) - Quanta loucura!

Elias -...ele então chega...

Virgínia - (corta) - E mata você.

Elias - E me mata.

Virgínia - E pra que, meu Deus, pra que?

Elias - (apaixonadamente) - Não posso mais viver sem você, não quero. Sem você que eu não vejo e nunca verei...

Virgínia - (corta) - Vá, pelo amor que me tem.

Elias - Não!

Virgínia - Você não conhece Ismael, ele é capaz de mandar você embora e matar a mim!

Elias - A você não!

Virgínia - E por que não? Nunca vi esse homem sorrir. É tão frio, tão duro. Tem as mãos de pedra. (ansiosa) E você, gostaria de me ver morta?

Elias - (caindo em abstração) - Seria tão bom que você morresse. Assim nem ele nem homem nenhum, ninguém mais tocaria em você...


CENA 8 c

Tia - Que enterro demorado!

Prima 3 - Demais!

Prima 2 - O cemitério é longe.

Tia - Nem tanto.

Prima 2 - É sim, mamãe.

Prima 1 - Antes Virgínia não ia ao cemitério.

Tia - Hoje cismou.

Prima 1 - Ou será que ela está?


CENA 8 d

Elias - (pleno sonho) - ...Você nunca se imaginou morta? (segura Virgínia pelos dois braços) Eu mesmo, e não ele, seria capaz de matar você. Sem ódio e sem maldade. Por amor.Para que ninguém mais acariciasse você, para que você não desejasse ninguém e ficasse para sempre com a boca em repouso, os seios em repouso, os quadris quietos, inocentes... (Elias põe-se de joelhos, na sua embriaguez acaricia Virgínia que se deixa adorar sem um gesto, petrificada) Morrer assim não te faria mal, juro! Seria um bem, não compreende que seria um bem?

Virgínia - (dolorosa) - Compreendo.

Elias - Você gostaria...seria uma coisa tão meiga como a morte de uma menina no dia da primeira comunhão...

Virgínia - Ismael sonha com uma morte assim... (despreende-se dele)

Elias - Eu é que deveria ser o teu assassino, não ele, eu...! (ergue-se e busca Virgínia com as mãos. Encostada na parede, ela não diz palavra, imóvel. O cego ao passar perto, roça a cunhada, mas não a sente. doce) Não fuja, eu não sou assassino, sinto que não sou, e isso não seria crime. Eu não mataria ninguém, a não ser você... (pouco a pouco a sua doçura transforma-se em excitação, por fim em cólera) Onde é que você está, Virgínia? Eu também não te enterraria, ficaria junto do teu corpo, fiel, o desejo tranquilo, sem fazer barulho...me deitaria a teu lado... (desorientado) Mas onde é que você está? Se esconde de mim por que? (rancor) Não quer? Prefere esse Negro? (novamente súplice) Perdoa. (pausa) Fala, Virgínia! Virgínia! (vira a cabeça para todos os lados perdido em suas trevas)

Virgínia - Vai!

Elias - Escuta!

Virgínia - Vai!

Elias - Você não pode me expulsar assim depois do que houve...

Virgínia - Não houve nada.

Elias - Ainda agora...

Virgínia - Sonho seu!

Elias - Você se entregou a mim, foi minha!

Virgínia - (outro tom) - Fui sua, mas estava fria, fria de gelo. Não percebeu que eu estava fria?

Elias - Parecia louca.

Virgínia - Simulação!

Elias - Mentira!

Virgínia - É tão fácil simular! Qualquer mulher finge (absolutamente cruel) Vai, não te quero ver nunca mais. Se aparecer aqui de novo, se voltar direi a ele, contarei tudo! (pausa. Elias vai até a porta. De lá volta-se e fala)

Elias - Te espero no quarto, não sairei de lá, nunca. Mas se não for, se não quiser ir, então adeus! (espera retribuição) Adeus. (nada) Ao menos diz "adeus", só isso, não te peço mais. (Virgínia de costas fica em silêncio. Está de rosto levantado e imersa numa tristeza absoluta)

Virgínia - Adeus.


CENA 9

(Elias desce a escada devagar e a Tia ao vê-lo fica estatelada. Depois que ele sai ela sobe e entra no quarto da sobrinha, no momento em que esta apanha o travesseiro, que larga instantaneamente. As duas se olham em silêncio)

Prima 1 - Vamos lá em cima?

Prima 3 - Mamãe não vai gostar.

Prima 2 - Quê que tem?

Prima 3 - Vamos esperar.

Prima 2 - Só espiar.

Prima 1 - Virgínia teve mais sorte do que a gente.

Prima 2 - Não acho.

Prima 3 - Eu não queria um marido preto!

Prima 2 - Nem eu!

Prima 1 - Eu também não.

Prima 4 - (olha assustada para as irmãs)

Prima 2 - De nós cinco a única que noivou se matou!

Prima 3 - O enxoval estava prontinho.

Prima 1 - Era lindo o enxoval da maninha!

Prima 2 - (fazendo menção de subir) - Vamos ?

Prima4 - (faz com veemência que não com a cabeça)

(as três irmãs vão ao encontro da mãe. sobem e entram no quarto no momento em que, sem dizer palavra, a tia apanha o lençol e o travesseiro começando a arrumar a cama. suas filhas comentam a cena com expressões e gestos cômicos)

Tia - Não diz nada?

Virgínia - (de costas para a tia, de frente para a platéia) - Não.

Tia - Vi um homem descendo a escada.

Virgínia - Meu cunhado.

Tia - Cego.

Virgínia - Cego...

Tia - Só teu cunhado?

Virgínia - Só.

Tia - Jura?

Virgínia - Juro.

Tia - Pelo teu filho enterrado hoje?

Virgínia - (hesita e vira-se para a tia, rosto com rosto) - Pelo meu filho...

Tia - (fúria controlada) - Por que mentes?

Virgínia - (dolorosa) - Não minto!

Tia - Por que dissimulas e esconde a verdade desde menina?

Virgínia - Jurei!

Tia - Que vale o teu juramente? Aquele homem entrou no teu quarto!

Virgínia - Não!

Tia - Eu vi!

Virgínia - Veio só falar comigo, ficou no corredor...

Tia - Cínica! Sei que ele entrou e ficou aqui muito tempo!

Virgínia - Se sabe, por que me atormenta com perguntas ? Queria tanto ficar sozinha para rezar...

Tia - Graças a Deus por ter chegado atrazada, se não fosse isso nunca saberia que tens um amante.

Virgínia - Mas eu não tenho um amante!

Tia - E esse homem?

Virgínia - (apaixonada) - Isso não é amante! Foi só uma vez, um momento, coisa rápida, quase não demorou. E nunca mais ele tocará em mim, isso eu dou minha palavra de honra, Deus é testemunha! (muda de tom, meiga e suplicante) Se a Senhora soubesse porque me entreguei, se soubesse o motivo que tenho! Deus que lê no meu coração, que lêm na minha carne sabe que não foi desejo.

Tia - Foi desejo, só desejo! Desde pequena que você é assim!

Virgínia - Se soubesse como me sinto feliz. Hoje minha cama está pura, uma virgem pode deitar-se nela sem medo nenhum...É um homem que só me teve uma vez e eu não considero isso amante. Não é amante, compreende? Fui eu quem chamei, eu, está ouvindo? Ele não me conhecia e nem eu a ele. Se não fosse uma coisa tão pura não ia chamá-lo nem trazê-lo pela mão como a um menino!

Tia - Então confessa?

Virgínia - Confesso!

Tia - A mim. Quero ver se a teu marido também.

Virgínia - Não, a meu marido, não!

Tia - Mas ele vai saber!

Virgínia - (pânico) - Ismael?

Tia - Ismael. Vai saber que você tem um amante.

Virgínia - Não é amante!

Tia - Um homem que você não conhecia e que não te conhecia. Homem que você mandou chamar e seduziu, que arrastou pela mão até teu quarto. Direi tudo a teu marido!

Virgínia - A meu marido, não!

Tia - Escuta, você entrou na minha casa para fazer a nossa desgraça. Minha filha se matou porque você lhe roubou o noivo. Foi ou não foi por tua causa que ela se matou?

Virgínia - (baixando a cabeça) - Não sei.

Tia - Há muito tempo que eu esperava por esse momento. Dizia: "Ela me paga, há de me pagar. Ou então Deus não existe". Quando teu primeiro filho morreu eu pensei que estava vingada, mas logo vi que você não sofria, que não gostava de teu filho, dos filhos de Ismael. Eu até disse a vocês, não disse?

Primas - Disse!

Tia - (aproximando-se de Virgínia que recua com medo) - Você odeia teus filhos. (quase doce como pedindo à sobrinha que odeie) Não odeia?

Virgínia - Não.

Tia - Não negue, Virgínia, sabe que odeia...

Virgínia - (perdida) - São de Ismael...

Tia - Eu continuei esperando, cedo ou tarde me vingaria...

Virgínia - (histérica) -A senhora se vingou, naquele dia que deixou Ismael me violentar.

Tia - Foi pouco, ainda falta...E nem sei se o que Ismael fez contigo foi vingança. Te juro que se um homem fizesse com minha filha lá de baixo o que Ismael fez ali (indica a cama de solteira) eu agradeceria, te juro! Se visse o que ela sofre, o que faz... (neste momento a filha muda assume uma série de atitudes eróticas, uma das quais é apanhar os seios com as duas mãos exprimindo profunda angústia sexual) Está quase maluca e eu não posso fazer nada. As irmãs (aponta e elas reagem) vão pelo mesmo caminho (feroz) Mas eu prefiro que enlouqueçam! Antes loucas do que mortas. Não quero que morram. Minha filhinha lá de baixo...

Primas - (lamento) - Nós também, mamãe...

Tia - ...e essas vão morrer virgens porque você é uma perdida. (violenta) Direi tudo a teu marido, direi o que ninguém me contou, mas o que vi!

Virgínia - Só roubei o noivo de uma filha...

Tia - Trouxe maldição para todas!

Virgínia - Mas ismael não pode saber, tia. É preciso que não saiba. Faço o que a Senhora quiser. O que é que a senhora quer que eu faça? Diga, farei tudo!

Tia - Não quero nada! Chegou a minha vez. (pausa) Vou esperar o teu marido, Virgínia! (saem a tia e suas filhas. Vão esperar Ismael na sala de baixo. Vão falando)

Prima 1 - Virgínia tem um amante!

Prima 2 - Amante.

Prima 3 - Quando o marido souber!

Prima 2 - Será que ele mata?

Prima 1 - Claro!

Primas - (para a mudinha) - Virgínia tem um amante! (a mudinha ri e tem medo)

Prima 1 - Eu disse primeiro!

Prima 2 - Fui eu!

Prima 3 - Eu.

Prima 1 - Não fui eu, mamãe? Tia - Tenham modos!

Prima 2 - Me lembro muito bem daquela noite. Como Virgínia gritou!

Prima 3 - Mamãe vai dizer, não vai, mamãe? Tia - Vou.

Prima 1 - (numa alegria de débil mental) - Que bom!

Tia - Só sairei daqui depois de ter dito.


CENA 10

(Ismael chega e vai direto ao quarto)

Ismael - Quem abriu a porta?

Virgínia - Titia. Ela chegou com as primas. Não falou com elas ?

Ismael - Não.

Virgínia - (doce) - Estava esperando você. Vamos lá fora um pouco, passear ?

Ismael - Hoje não.

Virgínia - Lhe peço.

Ismael - Não, meu irmão está aí.

Virgínia - Irmão? Ah, sei, aquele que é cego. Você não me disse nada.

Ismael - Chegou de manhã.

Virgínia - Então vamos ficar aqui, é melhor. A gente conversa.

Ismael - Estou achando você diferente.

Virgínia - Eu ?

Ismael - Quase amorosa.

Virgínia - (quase eufórica) - Estou ?

Ismael - Há oito anos que estamos casados e você nunca teve uma palavra de amor, um gesto ou carícia...

Virgínia - Você quase não fala comigo.

Ismael - (segurando-a pelos ombros) - Mas agora estou te sentindo diferente, como se fosse outra.

Virgínia - (dolorosa) - Sou outra, Ismael.

Ismael - (baixo) - Esqueceu que sou negro?

Virgínia - Quase nunca me lembro que você é negro. Às vezes te olho e não sei se você é negro ou não. Outras vezes acho que só há negros no mundo e que eu sou a única branca. Ou penso que também sou negra. Gostaria de mim se eu fosse preta?

Ismael - Eu nunca disse que te amava, já disse?

Virgínia - Nunca.

Ismael - (exasperado) - Virgínia, preciso pensar em ti, só em ti e não no meu filho. (outro tom) Mas você tem horror a mim.

Virgínia - (depois de um silêncio) - Não.

Ismael - Tem sim.

Virgínia - Não!

Ismael - Mentira. Há oito anos que acontece nesta cama, todas as noites, o que aconteceu na outra. Há oito anos que você grita como se fosse a primeira vez e eu tenho de tapar tua boca. Sou teu marido, mas quando me aproximo de ti é como se fosse te violar, você nunca se abandona e se entrega, sente o meu desejo como um crime.

Virgínia - Meu corpo é teu, já foi teu, será mil vezes teu. Mas, pelo amor de Deus, esquece o que houve, tudo, e não faça perguntas. Não sente que hoje eu estou amorosa ou quase? (pousa a cabeça no peito do marido) Meu medo acabou.

Ismael - Eu sei que não. (outro tom) Por que sempre odiou nossos filhos ?

Virgínia - (recuando) - Não odiei nossos filhos!

Ismael - Antes deles nascerem, quando ainda estavam no teu ventre, você já odiava eles. Porque eram meus filhos também. Levanta o rosto (ela levanta). Minto? Porque eram pretos e se pareciam comigo. Você mesma disse que tinham o meu rosto.

Virgínia - (olhando Ismael) - Tinham o teu rosto...

Ismael - Morreram porque eram pretos.

Virgínia - Foi o destino.

Ismael - Você, foi você. Pensa que não sei?

Virgínia - (recuando) - Não, Ismael, não!

Ismael - O que fez com nossos filhos ?

Virgínia - (medo) - Nada, não fiz nada! (se olham)

Ismael - Matou eles! (baixa a voz) Assassinou. Com tuas próprias mãos... (instintivamente Virgínia examina suas mãos), um a um. Este último você mesma levou pela mão, não lhe disse uma palavra dura nem o assustou, nunca foi tão doce. Junto ao tanque você ainda beijou ele. Depois olhou em torno, não me viu te espiando aqui de cima, e então, rápida e prática, já tinha matado dois, tapou a boca do menino para que ele não gritasse. Só fugiu quando ele não se mexia mais no fundo do tanque.

Virgínia - (feroz e acusadora) - Então por que não gritou e impediu ?

Ismael - É verdade, não é?

Virgínia - (espantada) - É.

Ismael - Aos outros dois você deu veneno.

Virgínia - (hirta) - Sim.

Ismael - Porque eram pretos.

Virgínia - (abandonando-se) - Porque eram pretos. (súbita veemência) Mas se você sabia por que não impediu?

Ismael - (voz grave e carregada) - Porque teus crimes nos uniam ainda mais, porque meu desejo é maior depois que te sei assassina, três vezes assassina. Ouviu ? (com uma dor maior) Assassina na carne de meus filhos...

Virgínia - (selvagem) - Eu queria livrar minha casa de meninos negros, destruir um por um até o último. Não queria acariciar um filho negro. (estranha) Ismael, é preciso destrui-los, todos...

Ismael - Escuta, você vai ter um novo filho.

Virgínia - Eu sei.

Ismael - Preto como os outros.

Virgínia - Sim.

Ismael - Mas este não morrerá.

Virgínia - (sonâmbula) - Este não.

Ismael - Não que te falte o desejo de matá-lo, mas porque eu não quero. Os outros deixei, mas este não. Nunca derramarás sobre ele o teu ódio.

Virgínia - Ismael, juro por Deus e pelos meninos que (baixa a voz) matei, juro que este viverá e terá o meu amor. Desejo o novo filho. Hoje você encontrará uma nova mulher, que deixou de ter medo, que não tem horror, que não será violada. Nem hoje nem nunca mais. (pausa) Me acaricia. (Ismael pega na esposa) Vê como não fujo? Mas talvez você não goste de amar assim, talvez precise que eu tenha medo, talvez queira sentir o gosto de sangue na boca...Te dou meu corpo para que o atormentes...Te amo. Nunca te disse, mas te amo. Só uma coisa te peço: não fale com minha tia, expulsa essa bruxa daqui! As palavras dela mordem!

Ismael - Você ainda não me ama, tenho certeza. Primeiro precisa amar um filho meu, um filho negro. Só depois amarás o marido negro.

Virgínia - Ama sim, Ismael!

Ismael - (violento) - Por que é que agora você deseja um novo filho se odiou tanto os outros? Por que ? (neste exato momento a Tia aparece na porta)

Tia - Porque não é teu filho, Ismael! (suspense geral) Ela tem um amante, tua mulher tem um amante!

Virgínia - (fora de si) - Mentira! Não tenho amante nenhum!

Tia - Tem sim. É teu irmão, Ismael, o cego. Ela se entregou a ele!

Virgínia - (histérica) - Acredita em tua mulher, Ismael, e não neste bruxa!

Ismael - (segurando-a pelos ombros) - Você tem um amante?

Virgínia - Não!

Ismael - Tem.

Virgínia - Te dou minha palavra de honra!

Ismael - Elias...

Tia - Mas ele não é culpado. Foi ela que foi buscá-lo, que o trouxe pela mão. Teu irmão é cego, tropeçaria nos degraus.

Ismael - Você foi buscá-lo...

Tia - Traiu você para ter um filho branco.

Ismael - (fazendo abstração de tudo e todos, falando a si mesmo) - É castigo...Sempre tive ódio de ser negro. Desprezei e não devia o meu suor de preto. Só desejei o ventre de mulheres brancas. Odiei minha mãe porque nasci de cor. Invejei Elias porque tem o peito claro. Agora estou pagando. Um Cristo negro marcou minha carne. Tudo porque desprezei a minha cor! (Virgínia, frenética, quer arrancar o marido de sua abstração)

Virgínia - Quis um filho que vivesse, que não precisasse morrer!

Ismael - (para a tia) - Pode ir, já! Não volta nunca mais, nem você nem tuas filhas! (muito digna e sem uma palavra a tia deixa o quarto e desce a escada)

Prima 1 - Tem marido e tem amante!

Tia - Hoje ela paga!

Prima 2 - Vai morrer?

Prima 3 - Direitinho!

Prima 1 - Tomara!

Prima 2 - Aposto!

Prima 3 - Muito cínica!

Tia - Sempre foi!

Prima 1 - Seguro na alça do caixão!

(Saem a tia e suas filhas. No quarto, Virgínia está aniquilada na cama. De pé, Ismael parece petrificado)


CENA 11

Senhora 1 - Água assassina!

Senhora 2 - Que parece inocente!

Senhora 3 - Matou uma criança!

Senhora 4 - Oh, Deus, fazei vir um filho branco!

Senhora 5 - Clarinho!

Senhora 6 - Que não morra como os outros!

Senhora 7 - Ninguém diz que este tanque já matou um.

Senhora 8 - Ou mais de um.

Senhora 9 - Ninguém diz.

Senhora 10 - Perdoai, meu Deus, esta água fria e assassina!

Todas - Fazei vir um filho branco! (perdem-se as vozes num sussuro de preces)


CENA 12

Ismael - Te fechei no quarto, mas enquanto enterrava nosso filho você abriu a porta e fez entrar aqui um homem que nunca tinha visto.

Virgínia - (sonâmbula) - Abri a porta.

Ismael - Ainda agora você disse que me amava.

Virgínia - Disse.

Ismael - Repete.

Virgínia - Acreditou?

Ismael - Me ama?

Virgínia - Devo responder?

Ismael - Sim ou não?

Virgínia - Não, bem sabe que não. Bem sabe que tenho horror de ti, que sempre tive, que não suporto nada que você toca!

Ismael - Só?

Virgínia - Só.

Ismael - E teu amante?

Virgínia - (vacila, mas logo reage) - Fugiu. Eu disse a ele: "Foge! Foge". A essa hora está longe, bem longe (apaixonadamente), graças a Deus!

Ismael - (num crescendo) - Teu amante está longe, mas o filho ficou, o filho não fugiu (ri brutalmente) Deixa que teu amante fuja. (corta o riso) O filho está aí, ao alcance da minha mão, quase posso acariciá-lo... (acaricia o ventre da esposa) Compreende?

Virgínia - Sim.

Ismael - Não tem medo?

Virgínia - (feroz com a mão no ventre) - Nesse filho você não toca, nunca! Eu não deixarei. Ele é branco e só meu, meu!

Ismael - Você não matou meus filhos?

Virgínia - Eu?

Ismael - Você. Um por um. Pois o teu, o dele, eu matarei também (numa alegria de louco), e no tanque, Virgínia, lá embaixo (aponta) . Esperarei os nove meses, ou um ano, pouco importa. (doce) Você não sofrerá nada. Nem Elias. Mas ele (aponta para o ventre da mulher)que ainda não tem forma e ainda não é carne já está condenado.

(Virgínia alucinada corre para a porta, mas Ismael impede e a arrasta pelo pulso ou cabelos) Tenho o direito de afogar essa criança. Se você foi assassina eu também posso ser, não posso?

Virgínia - (agarrando-se a ele) - Não, Ismael, não! Eu estava louca quando disse que tinha horror de ti! As palavras não me obedecem mais, não sei o que penso e digo. Estou doida, completamente doida. Eu precisava ter um filho que não fosse teu. Não é pecado isso. Juro, não pelos filhos que morreram, mas por este que está aqui. Se você soubesse, se pudesse imaginar minha inocência e a de Elias. Quer que eu te diga? Se ele me possuisse todos os dias eu continuaria pura, minha alma não seria tocada. Se ele me matasse - pediu para me matar - seria tão puro no crime como no amor. Seu crime não seria cruel, mas assim como um sonho...Eu não sabia nem podia imaginar que existisse amor inocente e que uma mulher pudesse entregar-se sem culpa. Compreende que eu me sinta sem culpa, nenhuma? (num êxtase e esquecida do marido) Acho que ele não conhecia o amor, que não conhecia mulher (rosto a rosto com Ismael) que fui eu a primeira... a única.

Ismael - (segurando-a) - Olha para mim: se tivesse sido um desejo...

Virgínia - (corta) - Não foi!

Ismael - ...apenas um desejo ou prazer eu perdoaria, esqueceria...

Virgínia - (corta) - Perdoa, esquece, Ismael!

Ismael - ...mas houve mais que um desejo...

Virgínia - (corta) - Muito mais!

Ismael - ...estou vendo em ti que nunca esquecerás este homem, ele trouxe um amor que nenhum outro te daria, nem eu.

Virgínia - Não!

Ismael - Já que Elias fugiu pagará o filho dele.

Virgínia - Não, meu filho não, ele não é culpado de nada. Eu não amo Elias. Se o trouxe aqui foi só por causa do filho, para ter este filho. Teu irmão não me importa! E nem é puro ou inocente. Te disse isso para te enganar, achando que assim sentirias menos. Mas ele só sabe amar como você, como qualquer outro, fazendo da mulher uma prostituta. Fiquei com ódio dele, com ódio da cama, de tudo! (mergulha o rosto entre as mãos numa crise de lágrimas)

Ismael - Acredito.

Virgínia - Perdoa então?

Ismael - Não.

Virgínia - E se eu te desse uma prova, se te provasse que esse homem não é nada para mim? (muda de tom, lenta) Menti quando disse que ele fugiu. Está lá embaixo no quarto, à minha espera...

Ismael - (alegria selvagem) - Lá embaixo? Não fugiu? (Virgínia o observa fascinada pegar o revólver)

Virgínia - É ele quem deve pagar, só ele!

Ismael - Não sofrerás se ele morrer?

Virgínia - Não! Pois se até quero, se fui eu quem disse que ela ainda estava aqui.

Ismael - (iluminado) - Então vai chamá-lo, vai. Diz que eu não cheguei, que passo a noite fora. Ele é puro, tem o coração meigo, não desconfiará de nada, virá contigo. Quero ver com meus próprios olhos que homem é esse que ama como um anjo e cujo desejo não é triste nem vil... Vai.

Virgínia - (com esforço) - Vou, Ismael.

Ismael - Depressa. Espero lá embaixo.

(Virgínia vai. Pára no alto da escada. Sua atitude exprime o sofrimento mais profundo. Desce lentamente como se lutasse atrozm,ente consigo mesma. Enquanto a tia e suas filhas se põem a falar)

Tia - Será que ele mata?

Prima 1 - Claro!

Prima 2 - Daqui não saio enquanto o caso não se decidir.

Tia - Aqui não podemos ficar. E se chegar alguém?

Prima 3 - Mas então aqui perto.

Prima 1 - Queria ouvir um tiro, um grito...

Prima 2 - Eu também.

Tia - Vamos ficar lá na fonte.

Prima 3 - Ótimo!

Tia - De lá se ouve tudo.


CENA 13

(Saem a Tia e suas filhas. Colocam-se compactamente num canto do palco, a fonte. Aguardam excitadas. Imediatamente aparecem Elias e Virgínia. Ele com uma expressão de idílio e sonho. Ela como se vivesse o seu calvário. Ismael que descera enquanto a tia e primas falavam os espera na sala)

Elias - Viu como foi bom eu ficar? Sabia, tinha certeza de que você viria. Nem deitei, fiquei sentado esperando. Mas ele vai passar toda a noite fora?

Virgínia - Mandou avisar.

Elias - Então posso ficar até amanhã, não posso?

Virgínia - (num breve transporte) - Pode sim, a noite toda, até de manhã.

Elias - Estou achando você meio triste.

Virgínia - (numa tristeza maior) - Felicidade!

Elias - Você deve ter o corpo muito claro.

Virgínia - (angústia) - Muito. (Ismael imóvel e de pé assiste a tudo. Ela senta-se na poltrona com Elias) Senta aqui comigo (com uma excitação que aumenta) Só penso no nosso filho (olhando e acariciando o rosto de Elias) Imagino como será quando crescer...vai ser como você, igual. Terá a sua voz e a mesma boca, a sua maneira de beijar, a paixão inocente...

Elias - Ama meu filho como a mim mesmo.

Virgínia - (agarrando-se a ele) - Como a ti mesmo! Você pode morrer, não pode? (olha para o marido) É tão fácil morrer! Mas guarda com você estas palavras: sinto que amarei teu filho não com amor de mãe mas de mulher. (muda de tom olhando apavorada o marido que permanece impassível) Não, Elias, não! Estou doida! Isso é um delírio (sempre olhando Ismael, baixa a voz), um calmo delírio que me faz dizer loucuras...

Elias - (agarrando-se também a Virgínia que agora parece fria) - Estou novamente com medo...sinto a morte chegando... (com mais energia) Virgínia, você prometeu que amaria nosso filho como se fosse eu!

Virgínia - (violenta) - Cala, não fala, cada palavra pode ser a morte!

Elias - (possuído pelo medo) - O que é que você está escondendo de mim? Por tudo que é sagrado, fala, não minta. Você está me traindo, desejando a minha morte...Mas eu não quero morrer agora que conheci você, que você é minha e não desse negro... (veemente) Eu não quero que ele ponha as mãos em ti, o desejo em ti...e se você for dele, se ele te possuir, uma vez que seja, eu te amaldiçoo por mim e pelo nosso filho... (numa desesperada ternura) Não, perdoa!...eu não te amaldiçoaria nunca...nem que você se entregue a ele e a outros homens...para mim você nunca seria uma prostituta. E mesmo que fosses eu te amaria ainda, eu te amaria mais...

Virgínia - (rápida) - Elias, quero que você me responda uma coisa, mas não minta, diga a verdade.

Elias - Direi.

Virgínia - Eu sou a primeira mulher que você conhece?

Elias - (deslumbrado) - Sim.

(A luz vai caindo em resistência. Virgínia se desgarra de Elias colando-se à parede. Elias a persegue e sem querer caminha para Ismael. Este com toda a calma ergue o revolver e atira no rosto do irmão. A luz irrompe num poderoso clarão e Elias cai instantaneamente morto. Virgínia vira o rosto devastado por onde escorre uma vagarosa lágrima. Na fonte, tia e primas gargalham sem som, tetricamente. Blecaute. Quando as luzes da platéia se acendem já não há mais ninguém em cena)


TERCEIRO ATO

CENA 1

(Passaram-se 16 anos e nunca mais fez sol para Ismael e sua família. Uma maldição. Em vez de a um homem, Virgínia deu à luz Ana Maria, hoje com quinze anos. Muito linda, parece viver num sereno deslumbramento. Virgínia é ainda uma linda mulher. Ismael está mais taciturno do que nunca. Transfigura-se, no entanto, ao falar com a enteada adolescente. As senhoras negras continuam em cena, comentando fatos, pessoas e sentimentos)

Senhora 1 - Graças a Deus todo-poderoso...

Senhora 2 - Há quinze anos nasceu uma filha...

Senhora 3 - Branca.

Senhora 4 - Não um menino, uma menina...

Senhora 5 - De peito claro.

Senhora 6 - Porque nasceu nua o pai disse logo: é menina!

Senhora 7 - Porque nasceu nua.

Senhora 8 - Há dezesseis anos que não faz sol nesta casa...

Senhora 9 - Mas as estrelas fugiram.

Senhora 10 - A menina viveu, hoje é mulher.

Todas - Oh, Deus, poupai Ana Maria do desejo dos homens e da obscenidade dos bêbados! Poupai Ana Maria dos homens solitários que por isso desejam mais!

(Perdem-se as vozes num murmúrio de prece)


CENA 2

Virgínia - Onde foi?

Ismael - Na fonte.

Virgínia - Essa mulher deve estar louca para andar sozinha de noite num lugar desses.

Ismael - (espanto) - De repente os gritos pararam...

Virgínia - Quem sabe se não foi morta?

Ismael - (angústia) - Não teria pena nenhuma.

Virgínia - Ela gritou como eu gritei ali (indica a cama). Exatamente. Lembrei de mim naquela noite, parecia que estava assistindo. (espanto) Ser possuída assim, meu Deus!

Ismael - Todos os gritos se parecem.

Virgínia - Por que não acudiu?

Ismael - Porque é uma estranha e desconhecida, como são todas as mulheres para mim. Menos uma.

Virgínia - Quem?

Ismael - Ana Maria.

Virgínia - Eu não? (silêncio) E se fosse eu?

Ismael - Se fosse você?

Virgínia - Se fosse eu e não uma desconhecida, mulher que você nunca viu? Deixaria que eu gritasse sem fim?

Ismael - (pausa) - Não sei...

Virgínia - Sabe sim, sabe! (suplicante) Responde, Ismael, preciso saber.

Ismael - Se fosse você eu deixaria. Você não foi de outro homem?

Virgínia - (crescendo) - Quer dizer, se eu estivesse num lugar deserto de noite e se um homem qualquer...

Ismael - (baixando a voz apaixonadamente) - Se você já foi de outro poderia ser de muitos mais (fúria), de todos! Deixaria você gritando e não faria nada. Ficaria do lado de minha filha, ouvindo. Eu e ela, ouvindo. Até que seus gritos cessassem e nada mais se ouvisse.

Virgínia - Sua filha é tudo para você e eu nada?

Ismael - Nada.

Virgínia - (violenta) - E por que sua filha se você sabe que não é o pai e que o pai é outro? Eu sim posso dizer minha filha, você não.

Ismael - Não sou o pai, mas ela pensa que sim, tem adoração, fanatismo por mim!

Virgínia - Ana Maria precisa saber muitas coisas, sobretudo que você é o estranho e desconhecido que matou o pai dela.

Ismael - Quem dirá?

Virgínia - Eu.

Ismael - Pode dizer, diz. Por que não diz?

Virgínia - Direi. E direi também que quando ela nasceu você vendo que ela era menina... (pára como se se lembrasse de uma coisa por demais hedionda) Lembra, Ismael, lembra do que fez?

Ismael - Não.

Virgínia - Sei que não se esqueceu nem se esquecerá! (rosto a rosto) Quando Ana Maria nasceu você se debruçou sobre a caminha e durante meses só havia vocês dois no quarto, você olhando para ela e ela para você. Você queria que ela fixasse tua cor e a cor de teu terno, queria que a menina guardasse bem o preto no branco. Nada dizia para que mais tarde ela não identificasse tua voz. Um dia você a levou e pensei que fosse para fogá-la no tanque, até para enterrá-la viva no jardim. Só não imaginei que fosse fazer o que fez com um ser tão inocente: você pingou ácido nos olhinhos dela, ácido! Você fez isso, Ismael, ou eu é que sou doida e tenho falsas lembranças? Fez ou não fez?

Ismael - Fiz. O pai não era cego?

Virgínia - (sem compreender) - Era.

Ismael - Por que a filha também não seria? Eu esperava que você tivesse um filho homem, nem eu nem você tínhamos pensado na hipótese tão simples de uma menina.

Virgínia - (caindo em abstração) - Eu esperava um filho, um menino.

Ismael - Durante os nove meses senti nos teus olhos e na tua boca o desejo, a esperança, a certeza de que seria um filho e não uma filha. Eu sei o que você pensava...

Virgínia - (corta) - Eu mesma te direi o que pensava. Pensava que quando ele crescesse...

Ismael - (corta possesso) - Você amaria ele não como mãe,mas como mulher e fêmea.

Virgínia - Sim, como mulher e fêmea! (lenta) Quando Elias me disse: "ama meu filho como a mim como a mim mesmo" comprendi tudo. Compreendi que o filho branco viria branco viria para me vingar (grave) de ti e de todos os negros! (eufórica) Depois de crescido ele pousaria a cabeça no meu travesseiro perfumando a fronha... (violenta) seria homem e branco!

Ismael - E cego!

Virgínia - (desafio) - Por que não? Seria até melhor se ele não enxergasse, seria mais meu, eu o tomaria para mim, só para mim, não deixaria que ninguém, nenhuma mulher surgisse entre nós dois. Eu e ele criaríamos um mundo tão pequeno, tão fechado, tão nosso, como uma sala, como um quarto... (eufórica) nada mais que este espaço e este horizonte, um quarto.

Ismael - (alegria selvagem) - Só isso, não, você mentiria também, não é?

Virgínia - (paixonada) - Mentiria, sempre!

Ismael - Para um cego que a gente cria desde que nasceu, que a gente esconde e guarda é melhor mentir, é preciso até mexer nos dez mandamentos.

Virgínia - (medo) - Nos dez mandamenrtos não. Eu tenho medo de Deus, Deus me castigaria!

Ismael - Você diria a teu filho que um dos dez mandamentos manda amar a mãe acima de todas as coisas, como se ela fosse a Virgem! Diria a esse filho cego que você, com as tuas mãos criou a água e o fogo e os peixes! Diria que todas as mulheres menos você estavam apodrecendo como frutos malditos, que só você era linda, a única sem moléstia de pele... Diria tudo isso, guardaria teu filho com essas e outras mentiras, se fecharia com ele! (feroz) Não? (rindo) Quem sabe se eu não fiz isso com a tua filha, hein?

Virgínia - (sem ouvir o final) - Eu convenceria meu filho, desde pequenino, que as outras mulheres eram perdidas, diria que em vez de olhos elas tinham buracos vazios no rosto (riso soluçante), e ele acreditaria em mim, acreditaria em tudo o que eu dissesse! Eu poderia me entregar a todos os homens, todos (riso histérico) e meu filho continuaria pensando que as outras é que eram perdidas e não eu!

Ismael - (exultante) - Mas em vez de menino nasceu Ana Maria!

Virgínia - Ana Maria...

Ismael - Quando você viu que era mulher seus olhos escureceram de ódio, você odiou tua filha, Virgínia, confessa!

Virgínia - (sofrimento) - Naquele momento, sim. (vergonha) Naquele momento odiei.

Ismael - Mas eu não. Quando vi que era uma menina gritei de alegria: "Oh, graças a Deus, graças!" Queimei os olhos de Ana Maria sem maldade, nenhuma! Você acha que eu fui cruel, mas Deus que é Deus sabe que não, sabe que fiz isso para que ela não soubesse nunca que sou negro (riso soluçante) Sabe o que eu disse a ela desde menina? Que os outros homens, todos os outros, é que são negros e que eu, compreende, sou o único branco da Terra (violento) eu e mais ninguém! (baixa a voz) Compreende esse milagre? É milagre, não é? Eu branco e todos os outros não! Ela é quase cega de nascença, mas odeia os negros como se tivesse noção de cor...

Virgínia - Ismael, ela é minha filha.

Ismael - Sei. Mas se tivesse nascido um filho, você não roubaria ele, não seria só teu?

Virgínia - Mas seria meu filho e Ana Maria não é tua filha.

Ismael - Nasceu uma menina, tomo-a para mim, é minha!

Virgínia - Eu não quero, não deixo! Ela saberá que você é preto, que matou o pai dela, que colocou ácido em seus olhos e que ali (aponta a cama de solteira) quando eu nem era moça, mas só uma menina, você fez aquilo. Ela saberá que eu gritei como a mulher de há pouco!

Ismael - Vai falar com Ana Maria.

Virgínia - Mas não contigo.

Ismael - Comigo.

Virgínia - Por que contigo? Até hoje eu não fiquei com a minha filha sozinha uma única vez. Sempre na tua presença, você olhando e escutando (acusadora) Você roubou o carinho da minha filha, você não deixou que ela gostasse de mim, fez com que ela me odiasse (medo) Você contou a ela que eu matei os teus filhos?

Ismael - Talvez...

Virgínia - (desesperada) - Contou sim, leio nos teus olhos que você contou. (dolorosa) Mas não explicou que eu fiz isso só porque eles eram pretos, que era preciso destruir um por um (mística), não deixar viva uma criança preta (suplicante). Você disse isso, explicou que eram de cor?

Ismael - Não.

Virgínia - Se não posso estar sozinha com ela, então vem, mas não fala. Não quero que note a tua presença, que és testemunha de nossas palavras.

Ismael - Uma coisa você não pode dizer.

Virgínia - O que?

Ismael - Que sou negro.

Virgínia - Não direi.

Ismael - (olha fixamente a esposa. pausa) - Não, mudei de idéia. Pode dizer. Diga que sou negro, pode dizer, é até melhor que diga.


CENA 3

(Neste momento ouve-se rumores fora de casa. Aparecem os coveiros carregando um cadáver pelas quatro pontas de um lençol. Um deles dá um grito melodioso chamando o doutor)

Coveiro 1 - Doutor Ismael! (silêncio) Doutor Ismael!

Coveiro 2 - Será que estão de pé?

Coveiro 3 - Chama de novo. (Ismael aparece)

Coveiro 1 - Boas, doutor.

Ismael - Boa. Que é isso?

Coveiro 1 - Defunta.

Ismael - (espanto) - Quem?

Coveiro 1 - O doutor não ouviu os gritos?

Ismael - Morta?

Coveiro 2 - Morta.

Coveiro 4 - O assassino é que não se sabe quem foi.

Coveiro 3 - Acho que sei.

Coveiro 2 - Quem?

Coveiro 3 - Aquele de seis dedos. Uma coisa me diz que é o cujo. Um crioulo, doutor, que tem numa mão seis dedos, um que não encara com a gente, olha de baixo pra cima.

Ismael - (medo) - A mulher é moça?

Coveiro 2 - Uma infeliz, doutor, já entrada, mais de quarenta. (mostra a morta)

Ismael - (alegria feroz) - E eu pensando que fosse moça e inocente!

Coveiro 1 - Ah, se fosse assim até tinha explicação.

Coveiro 3 - Claro.

Coveiro 1 - Mas esta...

Coveiro 4 - E o senvergonha depois de fazer o que fez ainda matou a coitada, uma falta de caridade.

Coveiro 2 - Estou contigo.

Ismael - (agressivo) - E vocês, querem o quê aqui?

Coveiro 4 - Quem sabe se o doutor concedia da gente pousar por aí até vir o carro.

Ismael - Aqui não tem lugar.

Coveiro 1 - A gente fazia a volta pelos fundos e pousava o defunto num canto da cocheira.

Ismael - Vão, mas depressa. E sem barulho! (saem os coveiros)


CENA 4

(Aparece a Tia. Vem se arrastando)

Tia - Ismael.

Ismael - Quem é?

Tia - Eu.

Ismael - Voltou? Por quê?

Tia - Reconheceu a morta?

Ismael - Não.

Tia - (amargura) - Minha última filha, a mudinha. Porque as outras três já tinham morrido. Virgens... Mas esta não, graças a mim! Eu sabia que o homem dormia perto da fonte. Todas as noites mandava ela passear por lá. Até que hoje...Ouviu os gritos? (espanto e dor) Só acho que ele não precisava matar. Para que? Com certeza teve medo dos gritos, foi por isso que matou, para que ela não gritasse mais.

Ismael - Basta!

Tia - Vou atraz de minha filha. Mas antes, Ismael, quero que tua mulher ouça a minha voz. (avança e grita como uma possessa) Tua filha morrerá, Virgínia! (com doçura sem transição) Mas não tenha medo, a morte assenta bem na tua filha. Meninos e mocinhas deveriam morrer sempre, todas as manhãs...

Ismael - (grito) - Ana Maria, não! Não quero que morra!

Tia - De cada vez que morressem ficariam mais bonitas, os cílios grandes...

Ismael - Não, não!

Tia - (num crescendo) - E tu, Virgínia, maldita sejas! Quero que só tenhas para o teu amor um leito de chamas e de dor, que o teu desejo seja uma febre e que ela incendeie os teus cabelos e os devore, que ao morrer ninguém junte e ninguém amarre os teus pés de defunta! (pausa. Voz cheia e grave) Maldita, assim na terra como no céu! (desaparece atraz dos coveiros num passo lento e incerto)


CENA 5

Ismael - Ouviu?

Virgínia - Tudo...Tens medo?

Ismael - Medo?

Virgínia - Por ela.

Ismael - Ana Maria?

Virgínia - Sim, por minha filha.

Ismael - (veemente) - Tua não, minha, só minha.

Virgínia - (medo) - A tia disse que ela vai morrer virgem, mas não se pode guardar uma mulher...

Ismael - Quer ainda falar com Ana Maria?

Virgínia - Quero.

Ismael - Sozinha?

Virgínia - Sozinha.

Ismael - Vai então. Eu não irei. Fala, e não meia hora, mas três dias e três noites, que é o que preciso para aranjar um lugar onde nenhum desejo possa alcançar minha filha! Quer dizer, tua filha e filha desse Elias (baixa a voz) que matei e enterrei no jardim de minha casa... (possesso) Diz à tua filha tudo o que quiser, sobretudo que sou negro!

Virgínia - (também em fúria) - Direi!

Ismael - Diz que sou o único negro do mundo, que todos os outros homens, inclusive o pai dela, são brancos! (rouco) Depois pode partir, eu mando que saia desta casa, te expulso, não te quero mais aqui! (blecaute)


CENA 6

(Quando as luzes se acendem, Ana Maria e Virgínia discutem apaixonadamente. Em baixo na sala, um caixão de vidro igual ao de Branca de Neve, de pé. Ismael está junto ao tanque rezando)

Virgínia - (concluindo) - ...foi o que aconteceu desde que ele entrou na minha vida.

Ana Maria - Ismael não é meu pai?

Virgínia - Não.

Ana Maria - Mentira!

Virgínia - (num transporte) - Se tivesse conhecido teu pai...Como ele era belo, nunca vi lábios tão meigos! (enamorada) Ele poderia possuir a mim ou qualquer outra mulher e não haveria pecado, nenhum! O corpo ficaria mais puro do que antes.

Ana Maria - (certa doçura) - Há três noites que você mente.

Virgínia - Três noites, já?

Ana Maria - Mas a culpa não é tua, você é louca, sinto loucura nas tuas palavras.

Virgínia - Foi ele quem te disse que eu sou doida?

Ana Maria - Não, não foi ele!

Virgínia - Confesse, foi?

Ana Maria - Foi, foi sim. Mas muito antes que meu pai falasse...

Virgínia - (corta) - Ele não é teu pai, já disse, teu pai está debaixo da terra!

Ana Maria - Não acredito nesse pai que morreu, não aceito. Pai é o que a gente quer, o que a gente escolhe, como um noivo.

Virgínia - (desespero) - Não, não!

Ana Maria - Não importa que um dia você tenha chamado um cego, levado ele pela escada e feito ele entrar no teu quarto. Escolhi outro pai. Ele é o meu noivo, claro e alvo. Sinto quando ele chega, sinto a presença dele como um coração batendo dentro de casa.

Virgínia - Não tem pena do teu pai verdadeiro? Se visse como ele morreu! No meu quarto, com um tiro, não no peito, não aqui (mostra o ventre), mas no rosto. (espanto) No rosto!

Ana Maria - Quer que eu chore o teu amante, mas por que hei de chorar o teu amante?

Virgínia - Teu pai, minha filha. Você é branca e Ismael é negro, ele não pode ser teu pai.

Ana Maria - Mentira!

Virgínia - Verdade.

Ana Maria - Não ele. Os outros sim. É por isso que ele me guarda aqui, porque todos os outros homens são pretos e só ele é branco.

Virgínia - E eu?

Ana Maria - Você?

Virgínia - (feroz) - Também sou preta?

Ana Maria - Não sei como você é nem quero saber.

Virgínia - Ana Maria, é preciso que me ouça, que acredite em mim.

Ana Maria - Não!

Virgínia - (medo) - Terminaram as três noites, daqui a pouco será tarde. (apaixonada) Sou tua mãe, queiras ou não sou tua mãe, você nasceu de mim. Toda mãe ama os filhos.

Ana Maria - Você não!

Virgínia - Eu sim. Sente ( faz o gesto) como passo minhas mãos pelos teus cabelos? Como aperto (faz o gesto) tua cabeça para que ouças meu coração?

Ana Maria - (desprendo-se com violência) - Há três noites que você me atormenta!

Virgínia - É impossível que você não sinta o carinho de minhas mãos. Este homem te perde como me perdeu a mim, ele fará a tua desgraça, juro. Deus sabe que não minto!

Ana Maria - Você nunca gostou de mim. Desde que eu nasci você me odeia. Não foi preciso que meu pai me dissesse isso, desde criança que eu sei, quando você aparece sinto frio no coração.

Virgínia - Não!

Ana Maria - Quando nasci você esperava um menino.

Virgínia - (serena) - Ana Maria, você é tudo para mim, tudo. Na minha vida não existe nada, só você. Sabe por que desde que você nasceu eu não te acariciei nunca, nem te sorri ou disse uma palavra de amor?

Ana Maria - Porque não me suporta.

Virgínia - Porque ele nunca deixou, nunca. Eu não podia acariciar teu rosto e cheirar, beijar teus cabelos, nem te beijar ou sorrir. Não podia estar contigo sem ele. Nenhuma intimidade houve entre nós duas, nenhum abandono ou confidência. Ele não deixava, dizia "não, não!". E nesta casa eu sempre obedeci!

Ana Maria - Menos quando teve um amante. (silêncio) Perdeu a voz?

Virgínia - (cabeça baixa) - Menos quando tive um amante.

Ana Maria - Ah!

Virgínia - Está vendo como é uma mãe? Você diz tantas coisas duras, me insulta, nega o teu amor e eu não me ofendo, sofro mas não desejo a tua infelicidade. (veemente) Estou aqui para te salvar. Ele mente...

Ana Maria - (corta, fanática) - Não importa!

Virgínia - ...quando diz que todos os homens são negros, que não prestam e são maus. Se você soubesse como há homens lindos e claros (transportada), homens cujas carícias fazem a gente gritar. Ele mente quando diz que este teu quarto é o mundo e que tudo o mais está podre. (agarrando-se na filha) Ana Maria, há tantas coisas fora do teu, do meu quarto, tanta coisa para além dos muros!

Ana Maria - Só o meu quarto existe!

Virgínia - Mentira! O mar, sabe o que é o mar? Ou ele nunca te falou do mar? E nos barcos? Mas isso não é tudo. O que importa são os homens (transfigurada), como são belos, mais doces do que uma mulher...Olha, enfiar os dedos assim pelos cabelos de um homem! (faz em si o gesto)

Ana Maria - Como você fez com o teu amante?

Virgínia - (sem ouvi-la) - Apertar nas mãos o rosto de um homem, sentir nas mãos um rosto vivo!

Ana Maria - Quem sabe se eu não fiz isso com o meu pai?

Virgínia - (sem ouvi-la) - Você precisa conhecer os homens, Ana Maria, para poder amá-los e depois escolher um, para sempre... (doce) Poderíamos ir, nós duas, a um lugar que conheço, foi uma empregada minha que falou. Ela teve uma filha que foi pra lá e essa filha escrevia contando maravilhas, tanto que nunca mais voltou. Para esse lugar vinham homens de todas as partes, até da Noruega! (encantada) Marinheiros de cabelos louros anelados...

Ana Maria - Muito preto?

Virgínia - Preto nenhum. (sedutora) E lá não é como aqui e em outros lugares onde a mulher só pode ter um homem.

Ana Maria - Muitos?

Virgínia - Muitos! (arrebatada) Vamos para esse lugar, Ana Maria. Vamos fugir só nós duas. Eu te guio e ficarei junto, sempre. Chamarei homens claros de cabelos louros e olhos zuis! Explicarei que você é cega. Depois, se você quiser, poderá voltar, mas duvido. A filha da minha empregada não voltou, você também não voltaria.

Ana Maria - E você?

Virgínia - Eu também não. Vamos, agora que Ismael está ocupado lá embaixo fazendo não sei o quê. Vamos! Depois será tarde.

Ana Maria - Não.

Virgínia - (contendo-se) Não quer? Desconfia de mim? (agressiva) Eu quero tirar você deste quarto apertado como um túmulo! Ficar aqui é morrer. Você está morta.

Ana Maria - Eu amo meu pai.

Virgínia - Mas não é desse amor que eu falo!

Ana Maria - É desse amor que eu falo!

Virgínia - (espantada, sopro de voz) - Não.

Ana Maria - (apaixonada) - Amor igual ao desse lugar dos marinheiros. Ele já me amou assim, como um marinheiro branco (baixando a voz, enamorada) e de braço tatuado, como um do livro, o único branco do livro, tatuado no braço ou no peito, não sei bem... (desafiando) passa a mão por mim, pelo meu rosto, vai sentir que eu já fui amada.

Virgínia - (espantada) - Quando?

Ana Maria - Que importância tem isso?

Virgínia - (agarrando a filha, enrouquecida) - Você não podia fazer isso! Ele é meu e não teu!

Ana Maria - (exultante) - Deixou de ser teu há muito tempo! Quer que eu te diga desde quando? Desde o dia em que você se deu a um homem que não era ele. Há dezesseis anos. Você morreu para ele como mulher, morreu!

Virgínia - Eu devia ter sentido que você já não era mais pura, que tinha deixado de ser pura. Foi inútil a maldição da minha tia, você é, não uma menina, mas mulher, como eu.

Ana Maria - Sou.

Virgínia - (veemente) - Mas quero que você saiba que eu menti quando disse que te amava, quando disse que você era tudo para mim e...

Ana Maria - (corta) - Eu sabia!

Virgínia - Você sempre foi minha inimiga!

Ana Maria - Sempre!

Virgínia - (para si mesma) - Oh, quando ele me disse que era uma menina e não menino! Eu vi que nunca teria nesta casa o amor de dois homens! Há quinze anos que não faço outra coisa senão ter ódio de ti. Ainda agora, quando eu falava num lugar cheio de marinheiros, sabe qual foi o meu sonho?

Ana Maria - Imagino.

Virgínia - O que eu queria era a tua perdição. Te levaria e deixaria lá, cega, entre aqueles homens. Depois diria a Ismael que tinhas fugido com um deles. Era isso o que eu desejava e não a tua felicidade.

Ana Maria - Sei.

Virgínia - Te digo isso para que nunca pense que eu desejei o teu bem.

Ana Maria - Acabou?

Virgínia - Acabei.

Ana Maria - Então sai do meu quarto!

(Virgínia abandona o quarto e corre desesperada ao encontro de Ismael)


CENA 7

Senhora 1 - Piedade para a moça branca!

Senhora 2 - Livrai-a dos desejos!

Senhora 3 - E dos soldados!

Senhora 4 - Livrai Ana Maria de todos os homens!

Senhora 5 - Para que ao morrer seja virgem!

Senhora 6 - Matai Ana Maria antes que seja tarde!

Senhora 7 - Antes que o desejo desperte em sua carne!

Senhora 8 - Talvez ela já não seja virgem...

Senhora 9 - Tenha deixado de ser virgem!

Senhora 10 - Salvai Ana Maria do homem de seis dedos!

Senhora 1 - E que um dia se enterre seu corpo não-possuído.

Todas - Não-possuído.


CENA 8

(Surge Virgínia que pára espantada diante do caixão de vidro)

Ismael - Acabaram-se as três noites. Já hoje não ficarás nesta casa. Não te quero mais, deixaste de ser minha mulher. Mas antes vem ver. Está vendo?

Virgínia - (sopro de voz) - Minha filha também me expulsou.

Ismael - (apontando o caixão de vidro) - Sabe para quem é?

Virgínia - Não.

Ismael - Para mim e Ana Maria.

Virgínia - Mortos?

Ismael - Vivos. (dor e espanto na expressão da mulher) Não te disse que precisava descobrir um lugar onde me esconder contigo? Lugar que ninguém entrasse e onde o desejo dos brancos não te alcançasse? É este o lugar, mas agora quem vai entrar aí comigo e para sempre não é você...

Virgínia - É minha filha.

Ismael - Tua filha! Filha tua e de Elias!

Virgínia - Não, Ismael, deixa eu ir contigo, sou eu tua mulher, eu e não ela!

Ismael - Você não. (eufórico) Ela. Minha mulher é ela! (violento) Você sempre me odiou!

Virgínia - Nunca te odiei!

Ismael - Sempre!

Virgínia - Mesmo quando fingia te odiar te amei. Nunca te amei tanto quanto naquele dia (subitamente cariciosa, enamorada), lembra, Ismael,...

Ismael - (rancor) - Não!

Virgínia - (sereno deslumbramento) - ...daquele dia em que minha prima se enforcou? Minha tia te mandou e antes que você abrisse a porta eu mesma apaguei a luz, eu, e esperei. Sabia o que ia acontecer. Quando você entrou o quarto estava escuro, mas vi teu rosto, li teu desejo nele. Imaginei que me matasse e quis morrer, não uma morte tranquila, mas entre gritos. Morrer gritando como uma mulher nas dores do parto. Quando você chegou perto de mim respirei o teu suor (enamorada), você negro e eu branca. Negro... (acaricia o rosto do marido, depois as mãos)...parecem mãos de pedra viva...

Ismael - Sempre odiou minha cor, matou meus filhos porque eram negros.

Virgínia - Odiei tua cor, matei teus filhos, tive ódio e loucura por ti. (fora de si) Ou foi agora quando falei com minha filha que senti que te amava? Quando foi, meu Deus?

Ismael - Sei que você mente, (violento) sempre mentiu!

Virgínia - Menti muito, menti outras vezes, mas agora não. Espia nos meus olhos, bem nos meus olhos. Eu não sabia que te amava, mas minha carne pedia por ti. Agora sei! Você me expulsou, mas eu não quero ser livre, não quero partir, nunca. Ficarei aqui até morrer, Ismael.

Ismael - Vai!

Virgínia - (fora do tempo) - Quando naquela noite você me tapou a boca, sabe do que me lembrei apesar do meu terror? (deslumbrada) Me lembrei de quatro pretos que eu vi no Norte quando tinha cinco anos, carregando um piano branco no meio da rua e cantando...Até hoje ainda os vejo e ouço, como se estivessem na minha frente...Eu não sabia porque essa imagem surgira tão viva em mim. Mas agora sei! (baixa a voz na confidência absoluta) Hoje creio que foi esse o meu primeir desejo, o primeiro.

Ismael- É só isso que te une a mim? Só essa imagem?

Virgínia - Mas isso é tudo, Ismael! Não sente que esses carregadores foram um aviso? (baixa a voz, mística) Aviso de Deus anunciando que eu seria tua? (transportada) A única coisa que me ficou da infância são esses homens. Não vejo mais nada. Nenhum rosto ou toalha, nenhum jarro ou bordado, só eles! E esses quatro negros que enterraram nossos filhos são também os carregadores que não me largam. (outro tom) Não minha filha, mas eu, eu é que sou tua mulher, tua única mulher!

Ismael - Ana Maria não te contou?

Virgínia - Contou, mas ela é inocente, pura como o pai. E não te ama! Nunca viu os carregadores de piano!

Ismael - Não? (exultante) Se ouvisse o que ela me disse, verdadeiras loucuras!

Virgínia - Pensa que você é branco e louro, não sabe que você é preto! Ela te ama porque acha que você é o único branco do mundo, ama um homem que não é você e que nunca existiu. Se ela visse você como eu vejo, se visse teus beiços assim como são te abandonaria! (agarra-se ao marido, envolve-o) Agora, eu não! Eu te quero preto, e se soubesses como te acho belo, assim como os carregadores de piano! De pés descalços e cantando!

Ismael - Meiga como uma prostituta.

Virgínia - Não sou?

Ismael - (apaixonado) - Ela não. Se dá como o pai possuía, com pureza. Não é como você, não tem o medo que sempre tiveste, não grita...ama sem sofrimento. E não sabe que sou negro, não sabe que sou "um negro hediondo" como uma vez me chamaram...Só me ama porque menti, tudo o que disse a ela foi mentira, tudo, nada é verdade! (possesso) Não é a mim que ela ama, mas a um branco que nunca existiu!

Virgínia - Vem comigo, vem!

Ismael - Mas, e ela? Não compreende que ela sempre estará entre nós dois?

Virgínia - Eu sei como fazer para que fique tranquila...Vai chamar Ana Maria, traz minha filha. Diz que é um passeio. E quando ela chegar aqui quero que você a beije como beijei o teu filho que morreu no tanque. (Ismael vai buscar a enteada. Muito digna e serena, Virgínia abre as duas bandas da porta do túmulo)


CENA 9

(Chegam Ismael e Ana Maria. Esta com um ar absolutamente idílico)

Ana Maria - É noite?

Ismael - (amoroso) - Sempre noite.

Ana Maria - Para onde me leva?

Ismael - Logo ali.

Ana Maria - Pai, ela me falou dos outros homens. Disse que são lindos. Que uns têm cabelos quase brancos de tão louros. Mas não podem ser mais lindos do que os seus. E não devem ser brancos. Só você é branco, não é, pai? E mesmo que eles sejam lindos, que importa? Você é o único homem que existe para mim! Por que você despedaçou o vestido de minha mãe e o meu nunca? Sou tão mulher quanto ela ou você me acha menina? Pai, não posso viver sabendo que minha mãe vive também. De noite ela não dorme, fica andando no quarto e pensando em ti, sei que é em ti que ela pensa. Deve andar desejando a minha morte. Pai, não deixa que ela me faça mal e perdoa se estou doida, perdoa!

Ismael - Vai...

(Virgínia aponta a porta aberta. Ismael beija Ana Maria que pressente a desgraça. Conduzida por Ismael ela entra no túmulo de vidro. Virgínia está fechando a metade da porta enquanto Ismael a outra)

Ana Maria - Pai?

(Agora a adolescente está trancada. Grita mas não se ouve. Virgínia atrai Ismael para longe)

Virgínia - Ela gritará, mas não ouviremos seus gritos. Vem! O nosso quarto também é apertado como um túmulo. Espero você!

(Virgínia sobe ao quarto e deita-se na cama. Ismael, atormentado pelo desejo, vai deslumbradamente atraz da esposa)


CENA 10

(O Coro que os aguarda no quarto coloca-se em volta da cama impedindo que a platéia veja o amor do casal. Começa a cair a luz em resistência)

Senhora 1 - Ó branca Virgínia!

Senhora 2 - Mãe de pouco amor!

Senhora 3 - Vossos quadris já descansam!

Senhora 4 - Em vosso ventre já existe um novo filho!

Senhora 5 - Ainda não é carne nem tem cor!

Senhora 6 - Futuro anjo negro que morrerá como os outros ?

Senhora 7 - Que matareis com vossas próprias mãos ?

Senhora 8 - Ó Virgínia e Ismael!

Senhora 9 - Vosso amor e vosso ódio não têm fim neste mundo ?

Todas - Branca Virgínia, negro Ismael!

(Tudo escuro menos a cama de solteira e o túmulo de vidro com Ana Maria ajoelhada de braços abertos num sofrido e intenso êxtase. A luz deixa lentamente a cama para ficar um longo instante só no túmulo. Repentinamente, blecaute geral)


PANO

 

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Anjo Negro
Nelson Rodrigues
peça teatral em 3 actos
Escrita em 1946 por Nelson Rodrigues, jornalista, cronista e dramaturgo, a peça de teatro ANJO NEGRO esteve durante dois anos proibida pela censura e só foi encenada em 1948. Estreou no Teatro Fénix, Rio de Janeiro em 2 de Abril de 1948.
fonte do texto: Masaryk University, Czech Republic.
 

 

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20.Mai.2020
Maria José Alegre