|
- excerto -
As coisas vistas, diz Caeiro, são as coisas verdadeiras. A verdade não
depende do pensamento, mas de sentidos como a visão. E claro que isso exige uma
aprendizagem, que é em primeiro lugar desaprendizagem de um olhar maculado pelo
pensamento. Uma estória zen diz: o monge pensava que os rios eram rios e as
montanhas eram montanhas; depois estudou o zen sete anos e percebeu que afinal
os rios não eram rios e as montanhas não era montanhas; por fim estudou o zen
mais sete anos e compreendeu que afinal os rios eram mesmo rios e as montanhas
eram mesmo montanhas. Aprendizagem e desaprendizagem conduzem ao mesmo ponto de
que se partiu: no fim reaprende-se a simples visão das coisas.
A “aprendizagem de desaprender” diz que “as estrelas não são senão estrelas” e
que “as flores [não são] senão flores”. Acede-se assim à verdade: o sistema
heteronímico de Pessoa depende inteiramente de uma identificação entre a
existência de Caeiro, os olhos com que vê, a linguagem com que escreve O
Guardador de Rebanhos, a imagem das coisas vistas, e a existência das próprias
coisas como coisas verdadeiras. Não pode haver qualquer divergência entre
sujeito e objecto, nem entre sensação e linguagem. Como escreve José Gil sobre
Caeiro, “Ao estender-se ao comprido na relva, o seu corpo estabelece uma via de
comunicação directa entre os sentidos e as coisas. Mas não só: entre as
sensações e as ideias, entre as ideias e as palavras […] o estado final do
processo de devir que conduziu Caeiro a ser o que é não apagou o pensamento, a
linguagem, as ideias, mas transformou-os, tornou-os imanentes uns aos outros,
sendo todos imanentes à Natureza”.
Este é o projecto de Caeiro, a doutrina, a solução que fascina todos os
discípulos, cegos e depois curados da cegueira, dizem eles próprios (mas como
sabem? Estavam cegos e afinal não o sabiam; como podem ter a certeza, agora, de
que são capazes de ver?).
Mas esta identidade entre sujeito e objecto, sensação e linguagem, não será
apenas um projecto impossível, a suprema ilusão? Quando Caeiro diz um verso tão
límpido quanto “O que nós vemos das cousas são as cousas”, ignora que o que
vemos das coisas é apenas a nossa visão das coisas – uma lição que Pessoa
ortónimo bem conhece, atento à ilusão do mundo, ao diferimento da verdade, ao
engano de todo o conhecimento. Ao considerar que está em relação com a verdade
das coisas, Caeiro ignora Kant (a diferença entre númeno e fenómeno), Nietzsche
(o conflito entre factos e interpretações), Husserl (a epoché transcendental), a
física quântica, os jogos de linguagem segundo Wittgenstein, o relativismo de
Richard Rorty – para acreditar cegamente no poder heurístico da visão. Nenhum
discípulo, nem o solipsista Pessoa, nem o céptico Álvaro de Campos, cairia numa
forma de fé tão frágil.
“O que nós vemos das cousas são as cousas”, diz Caeiro, e dá o exemplo das
estrelas. Na verdade, muitas das estrelas que vemos no céu já deixaram de
existir há muitos milhares de anos.
FIM
ϟ

ALUMIAÇÃO – ENSAIO SOBRE POESIA, VISÃO E CEGUEIRA
Pedro Eiras | Susana Paiva
Editora: Huggly Books, 2016
12.Jan.2019
Maria José Alegre
|