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Era uma vez uma toupeira.
As toupeiras são míopes: só enxergam coisas que estão bem pertinho,
encostadas na ponta do focinho.
É que elas moram em túneis. Este é o seu mundo: debaixo da terra. Quem mora em
túneis não precisa ver. Lá dentro é tudo escuro. Não há quase nada para ser
visto.
Eu não sei por que é que elas resolveram viver assim, se aqui fora é tão bonito.
Acho que foi medo. Por medo dos bichos que eram mais fortes resolveram se
enterrar. A pena é que, lá no fundo, se não vão os bichos perigosos, também não
vão nem os pássaros e nem as borboletas, e não se vê nem o luar e nem o
arco-íris.
As toupeiras são muito ruins de ver, mas muito boas para cavar. Passam assim sua
vida inteira: cavando túneis e se escondendo dentro deles. Como certas
pessoas...
A toupeira de nossa estória tinha um apelido: Ceguinha.
Os outros bichos riam dela, porque ela nunca via nada.
No jogo de cabra-cega nem precisavam pôr venda nos seus olhos. Ela não via nada,
mesmo com seus olhos abertos.
E ficava sempre de fora das conversas, porque ela não sabia sobre o que falar.
Só falava sobre o seu túnel.Como certas pessoas...
Enquanto a bicharada falava de frutas que cresciam no alto das árvores, ou de
nuvens que ameaçavam chuva, ou da beleza do arco-íris, ou da brancura do luar,
ela perguntava:
– O que é isso? Eu nunca vi...
E piscava os olhinhos míopes.
Certo dia ela percebeu algo incomum. Um alvoroço entre os animais. Falavam de
uma coisa nova, sobre o que nunca haviam conversado antes.
– É – disse Dona Coruja, professora, que se especializara nas coisas que acontecem
durante a noite. – Dizem que o brilho dele é maior que o de muitas luas cheias.
Na última vez que apareceu, o rabo era tão grande que ia do horizonte até o
umbigo do céu, bem em cima de nossas cabeças.
Todo mundo olhou para cima, pra ver onde ficava o umbigo do céu. Ceguinha
também. Só que ela não viu nada.
Ele vem de muito longe, de muito longe mesmo. Só passa por aqui de 76 em 76
anos...
Mas vem de onde? – perguntou um esquilinho espantado.
– Das lonjuras do céu. Dizem que ele é um brinquedinho do sol. Uma espécie de iô
iô. Ás vezes está bem pertinho e depois vai para muito longe. Nós, aqui na
terra, somos brinquedos também. Só que diferentes. Não somos iô iôs. Somos um
grande carrossel, girando, girando, sem nunca chegar perto, sem nunca chegar
longe, sempre no mesmo caminho...
E os bichos paravam assombrados com Dona Coruja, que sabia tanto.
Ceguinha criou coragem. Ela não sabia o que era aquilo sobre o que falavam.
– Vocês estão falando sobre o que? – perguntou acanhada.
– Falamos do cometa que vai chegar – disse o castor, que sempre morria de dó da
toupeira.
– Cometa? Onde? – e Ceguinha começou a dar voltas, procurando, como se um cometa
fosse coisa que estivesse por ali. Assim era o mundinho dela. Nele não havia
coisas longes, nem coisas diferentes... Eram só aquelas, a que ela já estava
acostumada desde criança, coisas que se encontram próximas do seus olhinhos
míopes. Como acontece com certas pessoas também...
A bicharada riu. E explicaram que um cometa é coisa brilhante que aparece no
céu, parecia estrela, mas não era, porque as estrelas estavam sempre lá, no
mesmo lugar, mas um cometa fazia uma visita e desaparecia, por muito e muitos
anos. Imagina só: a última vez que este por aqui foi em 1910... Mas era tudo
inútil. As explicações não adiantavam nada, porque a toupeira nunca havia visto
coisa alguma nos céus, nem o azul, nem as nuvens, nem as estrelas. E se a coisa
estava tão longe assim, que diferença iria fazer em sua vida e em seu túnel? E
já se preparava para voltar para casa, pois a conversa não lhe interessava.
Mas aí Dona Coruja disse uma coisa que a fez parar.
– O cometa tem poderes mágicos. Ele tem o poder de realizar os desejos de quem o
vir. Se alguém, ao olhar para ele, de todo o coração desejar alguma coisa,
acontece mesmo...
E foi aquele reboliço. Cada qual dizendo daquilo que iria desejar quando visse o
cometa.
Ceguinha se virou, tristemente, e duas lágrimas caíram de seus olhos.
– Tudo o que eu desejo é ver, para poder brincar, para ser companheira, para
poder dizer das coisas que vi e os outros não. Quero ser igual aos outros... Ah!
Se isto acontecesse, se eu pudesse ver, então eles parariam para me ouvir e
gostariam das minhas estórias. E eu seria feliz. Mas o milagre só acontece para
aqueles que vêem o cometa. Meus olhinhos míopes nunca o verão. Por isto meu
desejo nunca se realizará.
O falatório era muito grande e ninguém notou Ceguinha, em silêncio, voltando
para sua toca escura. E foi pensando. A verdade é que ela nunca quisera ver,
pois estava sempre preocupada em fugir. Não fora para isto que ela construíra o
seu túnel, para se esconder? Quem vive no escuro não precisa ver. Ver é coisa
que se desaprende, se não se deseja. E foi assim que seus olhinhos foram ficando
míopes: não serviam para nada... Pois é, ela construíra o seu túnel como uma
proteção. Mas agora sentia que ele se transformara em prisão. É que agora ela
estava diferente por dentro: queria ver as coisas bonitas do mundo. Não havia
nada que ela desejasse mais do que isto. E com este desejo imenso ela adormeceu.
E sonhou. Sonhou com o que mais desejava.
É sempre assim: nos sonhos os nossos desejos se transformam em realidade.
Sonhou com o milagre: o cometa que ela nunca veria.
Ele aparecia no céu, cauda imensa, multicolorida como se fosse um arco-íris, e
era um grande olho que refletia, como se fosse um espelho, as coisas que ela
sempre desejava ver e outras que nunca imaginara. Ao seu redor tudo ficava
luminoso. Que bom se ela tivesse um olho assim...
Foi então que ela notou uma coisa curiosa: aquele olho que tinha tanta luz e
refletia tanto, lhe parecia por demais familiar, conhecido, como se ela já o
tivesse visto em algum lugar. Ah! Era o olho que ela vira vezes sem conta
refletido na água da fonte, quando ela ia beber água.
Era seu próprio olho que ela via agora como nunca vira, porque via dentro as
coisas que sempre estiveram lá, escondidas, guardadas, mas que ela nunca parara
para ver...
Primeiro ela viu, lá no fundo, uma gota de orvalho, que uma folha havia
recolhido durante a noite e guardado. Nunca prestara atenção, pois coisa tão
pequena não podia ter muita importância. Ela brilhava, e os raios de sol que
passavam por dentro dela se partiam em sete cores. Também as folhas gostam de
jóias... E ela se admirou que pudesse haver tanta beleza em uma gota de orvalho
e uma folhinha, tão escondidas. Seus companheiros nunca haviam notado esta coisa
mágica, tão próxima, tão bela. Se viram, não falaram. E se não falaram, é porque
não amaram. E, no entanto era mais mágica que o cometa. Porque o cometa vai e
volta . Mas esta gota de orvalho acontece uma única vez, para nunca mais...
Depois foi uma poça de água barrenta. Ceguinha não podia entender por que tal
coisa deveria estar lá dentro do cometa. Mas resolveu prestar atenção. Para se
ver bem é preciso ficar parado, namorando a coisa. É só então que ela mostra as
coisas bonitas que ela tem escondidas. E então percebeu. Não, não era uma poça
de água suja. A superfície da água se transformava num espelho e lá, dentro
dele, apareciam refletidos pinheiros verdes, o azul do céu, o brilho do sol.
Dentro de uma poça de água barrenta, um mundo de coisas bonitas. E Ceguinha se
perguntou, espantada:
– Como é possível isto, que coisas tão grandes e belas se mostrem em coisas tão
pequenas e feias?
E sorriu, percebendo que estava vendo coisas que nunca vira. Não, não é que
nunca tivesse visto. Seus olhos as haviam notado, mas o seu coração não as havia
acolhido. E ela compreendeu que o olho só vê aquilo que o coração deseja. Quando
o desejo é belo, o mundo fica cheio de luz, mas quando o desejo é ruim, o mundo
se entristece...
Seus olhinhos passaram então para a superfície da lagoa, sua velha conhecida que
ela via agora como nunca vira antes. Havia os reflexos das coisas de fora,
árvores invertidas, cabeça para baixo, como se morassem no fundo das águas.
Depois, coisas do lado de fora que brincavam com a lagoa, folhas que flutuavam
na superfície deslizavam leves, barquinhos. E peixes sonolentos, grandes olhos
abertos, habitantes das funduras.Três mundos: o das coisas de dentro, o das
coisas de fora, e o dos reflexos.
Não, a mágica não era de ver mais longe. O maravilhoso não estava escondido nas
funduras do céu. A mágica era ver diferente aquilo que os olhos haviam visto
sempre, sem ver. Ah! De que adiantavam olhos de ver longe se eles não tinham o
desejo de ver o maravilhoso que morava perto? E Ceguinha entendeu que o cometa
só faz milagres para quem deseja muito...
Ela acordou num sobressalto e saiu correndo do túnel, esquecida do medo, rindo à
toa, e enquanto andava via gotas de orvalho guardadas em folhas, mundos
coloridos refletidos em poças de lama, espelhos mágicos na superfície de
lagoas... Sim, ela estava vendo, como nunca antes, que este mundo é encantado,
lindo, bastante que, no fundo dos olhos, haja desejos de bondade e de beleza.
Para ela o milagre acontecera...
Com o coração a galope, ela chegou onde estavam reunidos os seus amigos, que
ainda falavam sobre o que iriam pedir ao cometa. O macaco queria uma floresta de
bananeiras só para ele. O tamanduá passava a língua comprida no focinho e falava
de apetitosos formigueiros. Os gambás e as raposas conversavam sobre ovos e
galinhas. Finalmente surgira a chance de acertar na quina.
Ceguinha tentou contar o seu sonho. Mas ninguém lhe deu atenção. O macaco
continuou a falar de bananas, o tamanduá continuou a falar de formigas, os
gambás e as raposas continuaram a falar de ovos e galinhas. E assim com todos os
outros... Todos sonhavam com as mesmas coisas de antes: só que maiores, em maior
número. Todos queriam ficar do mesmo jeito, como sempre haviam sido.
Ninguém sonhava em ficar diferente, em ver coisas nunca vistas.
E Ceguinha percebeu então que cada bicho vivia também dentro de um túnel, que os
seus olhos só podiam ver aquilo que estavam acostumados a ver, que eram cegos
para as coisas novas, diferentes, nunca vistas, mesmo que elas estivessem bem
debaixo de seus focinhos. É fácil sair de túneis que existem por fora. O difícil
é sair dos túneis que existem por dentro, porque ninguém os vê.
E ela se sentiu muito solitária.
Antes, a sua solidão era porque os outros viam o que ela não via. Agora ela
estava só porque via aquilo que os outros não viam. Isto era triste, mas ela
nada podia fazer. Seria preciso que a mágica acontecesse também com eles. Mas,
para isto, um cometa com a aparência de um olho deveria aparecer nos seus
sonhos, vindo das profundezas do desejo... E continuou o seu velho caminho,
agora novo e encantado, vendo as coisas que sempre nunca vira, brilhando
magicamente ao leve toque do seu desejo...
FIM

Rubem Azevedo Alves (1933-2014) |
Psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro. Foi
autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis.
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A TOUPEIRA QUE QUERIA VER O COMETA
autor: Rubem Alves
data da primeira publicação: 1991
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