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The Miracle of Christ Healing the Blind - El Greco, 1570
Ela encontrou-me à tardinha, debaixo das árvores que cresciam fora da aldeia.
Nunca lhe ligara importância e ter-me-ia escondido se a tivesse visto chegar.
Tenho a certeza de que era a culpada dos vícios do filho, se é que eram vícios.
Estou muito longe de admitir que eram. Afinal ele era generoso e nunca
mesquinho, como muitos outros da aldeia, que eu poderia mencionar, se quisesse.
Eu estava profundamente absorto a contemplar uma folha; doutro modo, ela nunca
me teria encontrado. Pendia da haste, quebrada pelo vento ou talvez por uma
pedra lançada por algum dos garotos da aldeia. Apenas a pele verde e resistente
da haste a mantinha em suspensão.
Estava a observá-la muito de perto, porque uma lagarta rastejava ao longo da sua
superfície, fazendo baloiçar a folha para cá e para lá.
A lagarta pretendia atingir a haste e eu perguntava a mim mesmo se ela
conseguiria alcançá-la, ou se a folha cairia antes disso, arrastando-a consigo
para a água. Sob as árvores havia um lago, onde a água parecia sempre vermelha,
devido à densa argila do solo.
Nunca soube se a lagarta chegou a alcançar a haste, porque, como disse, o diabo
da mulher deu comigo. Só me apercebi da sua chegada quando lhe ouvi a voz, mesmo
por detrás do meu ouvido.
- Procurei-o em todas as tabernas - falou ela no seu tom esganiçado de velha.
Aquele «todas as tabernas» era mesmo dela, quando afinal só havia duas no lugar.
Gostava muito que lhe atribuíssem trabalho que nunca tinha tido.
Fiquei aborrecido e não pude deixar de lhe falar num tom um pouco áspero.
- Podia ter-se poupado a maçada - observei-lhe eu. Tinha obrigação de saber que
eu não iria à taberna numa noite tão bonita como esta.
A velha víbora tornou-se logo humilde. Sabia ser mansa sempre que queria
qualquer coisa.
- É por causa do meu pobre filho - acrescentou ela.
Aquilo queria dizer que ele estava doente. Quando se encontrava de saúde, nunca
lhe ouvi coisa melhor que «aquele danado do rapaz». Obrigava-o a estar em casa à
meia-noite todos os dias da semana, como se um homem pudesse perder alguma coisa
numa aldeia tão pequena como a nossa. Claro que não tardámos muito a arranjar
maneira de a intrujar, mas o que eu não aceitava era o fundamento daquela ideia
- um homem adulto, com mais de trinta anos, a ser mandado pela mãe, lá porque
ela não tinha marido para dominar. Mas, bastava ele adoecer com uma pequenina
constipação, para passar logo a ser o «meu pobre filho».
- Está a morrer - lamentou-se ela. - Deus sabe o que farei sem ele.
- Não vejo em que possa ajudá-la - retorqui.
Estava irritado. Estivera já a morrer uma vez e ela tinha feito tudo, excepto
sepultá-lo mesmo. Supunha que era a mesma coisa desta vez, aquela espécie de
morte que um homem vence facilmente. Ainda uma semana antes me detivera a vê-lo
subir a colina para ir ter com a rapariga da herdade, que possuía uns grandes
seios. Observei-o até que ele não foi mais que uma manchazinha negra, que
estacionou repentinamente junto dum caixote quadrado cinzento, no meio dum
campo. Era o celeiro onde eles costumavam encontrar-se. Como tenho bons olhos,
divirto-me a experimentar o grau de nitidez e até que distância eles podem ver.
Encontrei-o novamente algum tempo depois da meia-noite e ajudei-o a entrar em
casa sem que a mãe o visse. Nessa altura, ele estava bastante bem; somente um
pouco sonolento e cansado. A velha víbora voltava ao mesmo:
- Tem perguntado por si - gritou a sua voz esganiçada.
- Se ele está tão doente como você o pinta - comentei eu - o melhor que tem a
fazer é chamar o doutor.
- O doutor está lá, mas não pode fazer nada.
Admito que aquilo me desorientou um pouco, até que pensei: «Lá está o manhoso a
fingir. Tem alguma na cabeça». Ele era suficientemente esperto para intrujar o
médico. Já o tinha visto a fingir um ataque que teria enganado Moisés.
- Pelo amor de Deus! Venha! - pediu ela. - Ele parece assustado.
A sua voz teve um sobressalto autêntico, porque, suponho que embora muito à sua
maneira, ela gostava dele. Por momentos não pude deixar de ter pena dela, pois
sabia bem que ele nunca lhe ligara nem um bocadinho e nem mesmo se dera ao
trabalho de o dissimular.
Deixei as árvores, o lago vermelho e a lagarta, que se debatia. Sabia bem que
ela não me largaria, agora que o seu «pobre filho» chamava por mim. E, no
entanto, uma semana atrás ela teria feito tudo para nos manter separados.
Considerava-me responsável pelos seus actos; como se houvesse algum mortal capaz
de o afastar duma mulher bonita, quando lhe chegavam os apetites...
Se não me engano, era a primeira vez, desde que chegara à aldeia, havia dez
anos, que eu entrava na casa pela porta da frente. Lancei um olhar divertido
para a janela dele. Pareceu-me ver ainda as marcas deixadas na parede pela
escada que tínhamos utilizado na semana anterior. Tivéramos grande dificuldade
em pô-la de pé, mas a mãe dormia a sono solto. Ele havia trazido a escada do
celeiro, e, quando o vi a salvo dentro de casa, transportei-a de novo para lá.
Mas ninguém se podia fiar na sua palavra. Mentiria ao melhor dos amigos. Quando
cheguei ao celeiro, a rapariga tinha desaparecido. Se não podia subornar-nos com
o dinheiro da mãe, subornava-nos com promessas das outras pessoas.
Comecei a sentir-me pouco à vontade mal entrei a porta. Era natural que a casa
estivesse tranquila, porque, tanto um como o outro nunca tinham visitas dos
amigos, embora a velha tivesse uma cunhada que vivia apenas a algumas milhas de
distância. Mas não gostei do som dos passos do médico, enquanto descia as
escadas ao nosso encontro. Para nos agradar, tinha retorcido a face numa
solenidade piedosa, como se a morte implicasse algo de sagrado, mesmo a morte do
meu amigo.
- Está consciente - disse ele - mas morre. Não posso fazer nada. Se quer que
ele morra em paz, deixe subir o amigo. Há qualquer coisa que o assusta.
O médico tinha razão. Quando me inclinei sob a verga da porta e entrei no quarto
do meu amigo percebi logo isso. Uma almofada sustinha-lhe o corpo e os seus
olhos estavam fixos na porta, aguardando a minha chegada. Eram uns olhos
brilhantes e assustados e o cabelo colava-se-lhe em cordas à fronte. Nunca, como
então, reparara como ele era um tipo feio. Tinha uns olhos matreiros, que nos
observavam demasiado pelo canto; porém, quando estava de perfeita saúde,
mantinham um pestanejar rápido que nos fazia esquecer essa astúcia. Havia algo
de prazenteiro e insolente nesse pestanejar que parecia dizer «Eu sei que sou
matreiro e feio. Mas que importa? Tenho fibra». Tenho a impressão de que era
esse tique que as mulheres achavam tão atraente e estimulante. Agora que
desaparecera, o aspecto dele era apenas o de um velhaco.
Pensei que era meu dever animá-lo, e, assim, fiz anedota do facto de ele se
encontrar sozinho na cama. Pareceu não gostar e comecei a recear que também ele
estivesse a considerar a morte do ponto de vista religioso, quando, em tom
desabrido, disse que me sentasse.
- Estou a morrer - sussurrou rapidamente - e quero perguntar-te uma coisa. Não
pude falar com o médico. Julgar-me-ia delirante. Tenho medo, meu velho. Quero
ser tranquilizado - e depois duma longa pausa - por alguém de bom senso.
Deslizou da almofada um pouco mais para dentro da cama.
- Esta é a segunda vez que me encontro gravemente doente - balbuciou ele. - A
primeira foi antes de vires para cá. Dizem que eu estava como morto. Foi quando
já me iam a sepultar, que o médico os impediu.
Tinha ouvido falar de muitos casos como aquele e não via razão para ele me
contar tal coisa. Depois pareceu-me perceber porquê.
Dessa vez a mãe não se manifestara muito interessada em verificar se ele estava
realmente morto, embora eu não duvide que se mostrou bastante desgostosa. «Meu
pobre filho! Não sei o que farei sem ele!» E tenho a certeza de que fazia a cena
com bastante convicção, como a fazia também neste momento. Não era nenhuma
criminosa. Tinha apenas propensão para ser prematura.
- Escuta, meu velho - disse eu, soerguendo-o um pouco na almofada -, escusas de
ter medo. Não estás para morrer e eu teria o cuidado de recomendar ao médico que
te cortasse uma veia antes de te virem buscar. Estás a falar em coisas mórbidas.
Aposto a minha camisa em como tens muitos anos à tua frente. E também muitas
raparigas - ajuntei para o fazer sorrir.
- Não podes deixar-te disso? - volveu, e eu tive a certeza de que ele se tornara
religioso.
- Fica sabendo - continuou - que, se vivesse, não voltaria a tocar noutra
rapariga; não, em nenhuma.
Tentei não sorrir a estas palavras, mas não foi fácil conter-me. A moralidade
dum homem doente dá-me sempre vontade de rir.
- Seja como for - afirmei -, não precisas de ter medo.
- Não é isso - retorquiu. - Meu velho, quando voltei a mim daquela vez, julguei
que tinha estado morto. Não fora como um sono ou um descanso tranquilo. Havia
alguém à minha volta que sabia tudo. De todas as mulheres que eu tinha tido.
Mesmo daquela novinha que não percebeu nada. Foi antes de te conhecer. Vivia a
uma milha daqui, lá em baixo ao lado da estrada, onde vive agora a Raquel, mas
ela e a família foram-se embora depois disso. Até sabia do dinheiro que eu
tirava à minha mãe. Não chamo a isso roubar. Fica tudo em família e eu nunca
tive ocasião de me explicar. Até dos meus pensamentos. Um homem não pode evitar
os seus pensamentos!
- Um pesadelo - aventei.
- Sim, deve ter sido um sonho, não achas? Aquela espécie de sonhos que a gente
tem quando está doente. E eu estava mesmo a ver o que me ia acontecer. Não
suporto que me magoem. Não era justo. Desejei desmaiar mas não pude, porque
estava morto.
- No sonho - observei-lhe eu.
O medo dele punha-me nervoso.
- No sonho - repeti.
- Sim, deve ter sido um sonho, não deve? Porque acordei. O mais curioso é que me
senti forte e bom. Levantei-me e pus-me de pé na estrada; um pouco mais abaixo e
fazendo grande barulho, afastava-se um pequeno grupo de gente que levava consigo
um homem - o médico que os impedira de me sepultarem.
- E então? - inquiri.
- Meu velho - explicou - supõe que foi verdade.
Supõe que morri. Nessa altura estava convencido disso, sabes, e a minha mãe
também. Mas nela é impossível a gente fiar-se. Durante alguns anos andei
direitinho. Pensava que podia ser uma espécie de segunda oportunidade que me
davam. Depois, tudo se foi desvanecendo, e de resto... não me parecia realmente
possível. Não é possível, claro que não é. Não te parece?
- Pois claro que não - respondi. - Milagres desses não acontecem hoje. E ainda
que assim fosse, não era provável que acontecessem contigo, pois não? E muito
mais nesta terra.
- Era horrível - redarguiu - se tivesse sido verdade e eu tivesse de passar
outra vez pelo mesmo. Tu nem imaginas as coisas que iam acontecer-me naquele
sonho. E agora seria pior.
Parou de falar, e, passado algum tempo, acrescentou, como se estivesse a relatar
um facto:
- Quando se está morto, a inconsciência desaparece para sempre.
- Podes ter a certeza de que foi um sonho - repeti, apertando-lhe a mão.
As histórias dele começavam a assustar-me. Desejei que morresse depressa, para
poder fugir aos seus aterrados olhos matreiros e injectados de sangue e ver
qualquer coisa alegre e divertida, como por exemplo a Raquel que ele mencionara,
aquela que vivia a uma milha dali, lá em baixo ao lado da estrada.
- Ora! - objectei. - Se existisse alguém disposto a fazer milagres desses, já
tínhamos ouvido falar doutros, podes ter a certeza. Mesmo desterrados neste
lugar esquecido de Deus.
- Já houve outros - tornou ele. - Mas são histórias que só aconteceram com gente
pobre e esses acreditam em qualquer coisa, não é? Dizem que ele curou imensos
doentes e aleijados. E que um homem que nascera cego recobrou a vista mal ele se
aproximou e lhe tocou nas pálpebras. Mas isso são histórias de mulheres, não
achas? - perguntou-me, gaguejando de medo e ficando de repente quieto a um lado
da cama.
Comecei a dizer:
- Pois claro que são tudo mentiras... - mas detive-me, pois não era preciso
dizer mais nada.
Limitei-me a descer as escadas e a dizer à mãe que subisse a fechar-lhe os
olhos. Não lhes teria tocado por dinheiro algum deste mundo. Havia muito tempo
que eu não pensava nesse dia de há muitos anos, muitos séculos, em que senti um
contacto frio como saliva sobre as pálpebras, e, abrindo os olhos, vi um homem
que se afastava, semelhante a uma árvore, rodeado de outras árvores.
FIM
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'A Segunda Morte'
Graham Greene
in «OS MELHORES CONTOS DE GRAHAM GREENE»
SELECÇÃO E PREFÁCIO DE JOSÉ PALLA E CARMO
TRADUÇÃO DE ANA DE FREITAS
2.ª EDIÇÃO
EDITORA ARCÁDIA LIMITADA
Travessa de S. Paulo, 7-3.º-Lisboa
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