|
excerto

Visita à escola das raparigas cegas (gravura séc. XIX)
Nessa segunda-feira o passeio fora ao Instituto dos Cegos. Glória voltava com a alma cheia de espanto. Divisando no banco do jardim o padre Assunção, pontual na espera,
correu para ele com entusiasmo. Alice acompanhava-a à distância, com um sorriso plácido.
— Adivinhe onde eu fui, padre Assunção!
— A algum lugar muito bonito, porque os teus olhos refletem maravilhas!
— Acertou. Fui ao Instituto dos Cegos!...
— Ah! mas... pareceste-me tão alegre!
— Pois então! eu imaginava que todos os ceguinhos vivessem amargurados... zangados... que no escuro em que vivem não se entretivessem com coisa nenhuma, nem pudessem ler,
nem tocar, nem nada... Quando d. Alice me disse: vamos ao Instituto dos Cegos... eu não respondi nada, por vergonha, mas fiquei com medo...
— Os cegos nunca fizeram mal a ninguém...
— Não sei... mas eu tive medo de ficar com pena!
Alice chegava nesse momento; o padre cumprimentou-a e, recebendo a menina, despediu-se dela. Glória abraçou a moça com frenesi e partiu, em companhia do padre, para o
escritório do pai. No bonde, recomeçou a conversa:
— Então hoje gostaste do passeio...
— Muito! Quando chegamos eu estava aborrecida; mas logo que passei pela primeira sala fiquei interessada. D. Alice ia me mostrando todas as coisas com tanta paciência...
tudo muito limpo e as cegas tão risonhas! Havia lá uma menina chamada Rosinha, da minha idade... e mais adiantada do que eu!
— Porque é estudiosa.
— Mas eu vejo!
— É que não basta ver...
— D. Alice levou uns biscoitos para as crianças... se o senhor visse a algazarra que elas fizeram! São conhecidas de d. Alice... Uma tocou piano e um mocinho, violino...
Fiquei admirada... nunca imaginei que os cegos pudessem ser felizes.
— São, ali, porque não têm tempo de pensar na sua desgraça, tão ocupadas têm todas as horas. Assististe às aulas?
— Assisti... leram... deram geografia...
— Foste às oficinas?
— Fui. Vi empalhar cadeiras, fazer escovas...
— Aí está: lendo, tocando, enramando vassouras ou fazendo outro qualquer trabalho, eles estão sempre entretidos. É uma casa santa, aquela em que puseste hoje os teus pés.
Guarda na memória a lembrança desse passeio, que te servirá de conforto quando ouvires mais tarde falar mal dos homens... Se não houvesse bondade, ninguém iria ao
encontro da miséria, nem protegeria os fracos...
— Foram as palavras de d. Alice, quando saímos de lá...
— Ah, ela disse isto mesmo?
— Tal e qual...
— É extraordinário!... que mais te disse?
— Que todos nós devemos conhecer as casas em que se pratica o bem na nossa terra, para as bendizermos e conduzir até a sua porta os necessitados de seu socorro... Disse
que o Rio de Janeiro é uma cidade generosa e que nós todos devemos fortificá-la no empenho de agasalhar os infelizes.
— Ela tem razão! — Quando eu lhe disse que os cegos já não me pareciam desgraçados, ela mostrou-me o mar... o céu... os morros... os barquinhos de vela... e perguntou-me
depois se eu não teria pena de não ver tudo aquilo.
FIM
-
contista, romancista, cronista, teatróloga, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 24 de setembro de 1862. Foi, ainda na infância para Campinas aonde acabou
estreando na imprensa em 1881, quando as mulheres mal iniciavam carreira literária em jornais no Brasil, publicando no semanário A Gazeta de Campinas. Na sua volta para o
Rio de Janeiro fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A
Semana, O País, Tribunal Liberal. Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance ‘A Casa Verde’. Seus livros
retratam costumes da época e expõem idéias favoráveis à República e à abolição, se destaca sobretudo pela simplicidade, o que a tornou bem aceita pelo público e pela
crítica.
Com uma linguagem simples, Júlia Lopes Almeida revela em sua obra a atmosfera suave do ambiente tipicamente familiar. Em seu livro ‘A Árvore’ (1916), defende com rigor o
ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Brilhante e sensível,
contestava, ainda que de maneira delicada e sutil, a discriminação contra a mulher. A autora vem sendo considerada uma das maiores figuras entre os romancistas de sua
época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de 40 anos, como pelo êxito que conseguiu, com os críticos e com
o público. Faleceu no Rio de Janeiro em 30 de maio de 1934. [in
pt.shvoong]
-
Obras: A Casa Verde (1898-1899); A Intrusa (1905-1906); A Árvore (1916)
ϟ
excerto de:
A INTRUSA
Júlia Lopes de Almeida
(1905-1906)
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
Ministério da Cultura
texto integral da obra - aqui.
[30.Dez.2013]
Publicado por
MJA
|