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Cega - quadro de Aleksej Cvelov, 2006
CAPÍTULO 1
— Ai que ma levam! ai que ma levam!
Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e
depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta,
névoa e granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e
esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a
noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão, O granito revê água. E sob
a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva
glacial, parece lavada em lágrimas...
— Ai que ma levam!
É o único grito que irrompe do escuro, lúgubre, aflitivo, raspado. Depois o
silêncio, a mudez concentrada da noite, a nuvem negra coalhada sobre as ruínas
da vila toda lavada em lágrimas. Só aquele grito ressoa na praça solitária. A
torre da Sé deformou-se: o granito aliado à névoa de mistura com a noite,
abriram arcarias, alongaram as portas e fizeram dos restos da muralha antiga um
tropel caótico. É uma amálgama de realidade e pesadelo, trapos de nuvens e
palácios desmedidos. A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e
começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em
lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um
Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro
arcos ogivais. Mas a luz treme à ventania, os arcos balouçam, a abóbada
estremece, e, ao repelão do vento, grandes sombras esvoaçam, afundando-se no
negrume. Há uma sufocação, um espanto, o terror de que a candeia se apague, e só
fique o nada, a escuridão imensa e compacta e o grito raspado Lá a levam! Lá a
levam!... É como a última claridade dum barco de náufragos, tragado sem remissão
no redemoinho dum indefinido oceano polar. Adivinha-se a porta da igreja, uma
golfada de tinta, e o telingue-telingue eterno duma fonte o choro baixinho
daquela escuridão cerrada. A luz estrebucha. Se o vento a sumisse levaria
consigo o último sinal de vida. Ficava apenas na noite infinita, impenetrável e
revolta, o grito de angústia:
— Ai que ma levam!
As palavras saem duma casa incrustada na Sé. Dentro, numa sala, expõem num
caixão o cadáver duma mulher magra, de cera, com flores baratas de papel na
cabeça e no seio ressequido.
Agarrado ao esquife alguém berra, sacudido de desespero, como um farrapo ao
vento. Em vão. A morta continua a sorrir, com os dentes arreganhados e um lenço
apertado no queixo, numa imobilidade pétrea. Fora a noite, a invernia brava,
dentro a morte e aquela dor suprema e inútil...
— Ai que ma levam! ai que ma levam!
Na sala pegada, de teto abaulado, um candeeiro de petróleo alumia outras
figuras. São as visitas de enterro: velhas, dois homens, um padre, todos de
negro, hirtos e solenes, em roda, nas cadeiras da sala e no canapé de palhinha.
De vez em quando uma boca mastiga no escuro. A luz bate-lhes de chapa,
ilumina-os como retratos: certos pedaços de fisionomia ressaltam, avançam,
outros recuam na sombra. As figuras cerimoniosas são disformes, lembram
caricaturas, e os traços exagerados exprimem egoísmo, avareza e secura. Ouve-se
o raspar das unhas na seda preta dos vestidos. Uma voz soturna afirma: Deus lá
sabe, na sua misericórdia infinita... E outra acode logo, num tom esganiçado e
importante: Resignemo-nos perante os seus decretos...
São palavras da regra, que soam falso, sempre as mesmas. As outras mulheres
ajeitam-se, suspiram e tomam a quedar-se num longo silêncio enfastiado. O homem
no quarto ao lado, seguro ao esquife como um náufrago a uma tábua, soluça, e
aquela dor que não cessa, indigna e exaspera as velhas. Não podem suportá-la.
Todas trazem vestidos de aparato, com vidrilhos, e mitenes enfiados nos dedos
ósseos.
A mobília da casa é uma embirrenta miscelânea de cacos doirados de casquinha, um
canapé, arcas, cadeiras puídas, mesas de mogno com ignomínias expostas: cães de
vidro e bordados de croché. No canapé as velhas empertigadas e os homens
esperam, sem terem mais que dizer. Tudo aquilo, seres e coisas, exprime
banalidade e secura e ao mesmo tempo certa grandeza. Pressente-se que as
existências se fizeram de mil pequenos nadas acumulados. À luz do petróleo os
olhos encovam-se-lhes, a dureza sobressai e aumenta. As mãos lívidas e secas,
cheias de engelhas, deformadas pelas exostoses, são
poemas de maldade e de astúcia. Parecem de mortos e tão afiadas como as da
crueldade.
O gordo, do lado da porta, todo sebo, que cabeceia e dormita, é o
Belisário escrivão, finura e crápula vestidas de negro. Resfolga. Enriqueceu à
custa de penhoras e desgraças. Há almas assim, sempre ocupadas por esta mira o
oiro. Todo ele por dentro é papelada e ronha. Está tão habituado a processos,
que, mesmo sem necessidade, cisma em tranquibérnias. Apertar alguém, esmagá-lo,
reduzi-lo pouco e pouco à última angústia, à pior extremidade, é para ele um
gozo estranho. Sente uma enorme satisfação em perder os que caem nas unhas, em
os levar por complicadas fórmulas até à máxima pobreza, metido na sombra,
rabiscando papel selado, e vendo, minuto a minuto, o seu sonho tornar-se
realidade.
A seu lado está a Felícia, presidente honorário das servas de Deus,
associação instituída para que ninguém possa morrer sem confissão. É uma velha
magra, austera e ríspida. Remexe de contínuo a boca enorme. Tem a maxila
inferior saliente e os seus gestos são decisivos. Quando fala ordena. Os passos
rangem-lhe ao atravessar as salas. Põe e dispõe. Nas sacristias temem-na: nomeia
e demite padres, e entra como uma rajada nas existências alheias, revolvendo
tudo, derrubando tudo. Conversa baixinho com a Patrícia, viúva gorda e banal,
que expõe no peito volumoso e mole, num medalhão do tamanho duma almofada, o
retrato do marido morto e um caracol do seu cabelo tingido. Cheira a banha.
Perto dela outra velha, inquieta e rancorosa, discute com o padre:
— Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma pessoa de família...
— Conforme... resmunga o sacerdote.
— Porque a dor é uma afronta a Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para nos
salvar.
E todas as velhas, ao santo nome de Deus, logo descolam à uma os traseiros do
canapé.
— É contrariar-lhe os seus desígnios! conclui a Patrícia com importância e
cólera.
— Mas, minha rica senhora observa o eclesiástico Deus é bom, Deus compreende que
as criaturas são de frágil barro. Todos neste mundo estamos sujeitos a
fraquezas.
— Pois, quanto a mim, é um escândalo! exclama, e volta-se para as outras bem
alumiada pela luz.
É a amiga mais íntima da Felícia. Juntas são temíveis. Nenhum doente lhes
escapa. Esperam, espiam, compram os criados, intrigam e caem-lhes em cima, à
hora da morte, pregando-lhes Deus, o inferno e as labaredas eternas. Alguns
protestam. Debalde: as servas de Deus não desanimam, nem os largam. Rezam
extensas ladainhas em livros encapados de negro, sentam-se dia e noite à
cabeceira dos leitos, pregam, choram, chamam em altos gritos pela
misericórdia infinita e subjugam-nos afinal, aterram-nos, matam-nos às vezes mas
sempre salvos.
A Felícia persegue até à última, com furioso rancor, os heréticos, seus inimigos
pessoais. Chegara a odiar o filho por ser ateu e a expulsá-lo de casa. Nunca lhe
perdoara, nem à hora da morte, a sua irreligião. Recusara-se a entrar no quarto
onde ele agonizava e nem o próprio confessor conseguira arrancar à dureza
daquele coração o perdão do desgraçado, que minutos antes da morte bradava em
altos gritos pela mãe. Arrastara-se depois descalça nas procissões, deixando
marcado a sangue nas lajes da vila o rasto de seus pés. Por orgulho não
confessava nem a si mesma o remorso que crescia com os anos e com a aproximação
da morte.
As velhas sabem tudo que se passa na vila. Farejam os escândalos clericais e
correm logo à diocese a denunciá-los ao arcebispo, que as teme como à praga. Na
casa da Adélia há uma contínua roda-viva: vão lá à tarde todas as criadas da
vila rezar o terço. E ela indaga, rebusca, espiolha o que se passa nas casas de
fora e nas consciências alheias. E suspira:
— Ai não morro sem ver outra vez a Santa Inquisição!
A um canto estão outras mulheres e alguns homens nulos, um empregado da Câmara
muito meticuloso, sempre vestido de negro. Seu crânio pontiagudo reluz como um
espelho.
Do céu barrado continua a desabar a fastidiosa chuva e a ventania abala as
vidraças. A vida é um inferno de banalidade e toda aquela secura pesa sobre o
pobre homem, que continua a gritar fincado no caixão:
— Lá a levam! lá a levam!...
— Então, então, meu amigo?... Vamos!
— Todos têm de passar por este transe!
— Está no Céu! Resigne-se! então!...
As velhas, imponentes nos seus vestidos de aparato, bocas somíticas e cuias de
retrós dizem, só dos lábios para fora, as mesmas palavras vás. A luz do
candeeiro quebra-se na careca reluzente do empregado camarário e a essa
claridade as figuras parecem deformadas e monstruosas.
— Tudo tem limites intervém com indignação a Adélia até a dor. Resigne-se, seja
cristão!
— Não há nada pior que não acatar os decretos do Altíssimo.
De vez em quando, uma velha ergue-se e vai em bicos de pés ver a morta. O caixão
está no meio do quarto, com duas tochas ao lado e o crucifixo à cabeceira.
Entram, espargem o cadáver de água benta e saem logo enojadas.
Ao lado do
esquife a Candidinha vela, sentada e embrulhada no xale coçado, figura de túmulo
de guarda ao cadáver. Não diz palavra. Às vezes do corredor escuro irrompe outra
criatura, toda em lágrimas: é a criada, a Joana. Traz uma
criança ao colo. Mas afastam-na logo, levam-na de rastos, e ela lá vai com a
pequena nos braços, aos gritos:
— Minha menina! minha menina que fica sem mãe!...
O cadáver apodrece, murcha entre as rosas de papel: lembra um passarinho num
esquife enorme. Os olhos são duas manchas na palidez da face ressequida; os
dentes arreganham-se por entre os lábios roxos... E as velhas fogem com o lenço
no nariz, exclamando sem convicção:
— Está no Céu!
Só a Candidinha, embrulhada no xale, sem bulir, espera.
— Está no Céu, senhor Anacleto e meu respeitável amigo consola o padre e
conclui: O que não tem remédio, remediado está...
E ele, sem querer ouvir, abraçado ao caixão:
— Deixem-me! deixem-me!...
Então o padre, ferido no seu orgulho, diz-lhe com severidade:
— Basta! Homem, isso até lhe fica mal! É um pecado. Lembre-se do que Cristo
sofreu para nos salvar! E aponta o céu. Arrancam-no enfim dali, numa explosão de
lágrimas.
Ao pé daquela dor sincera toma maior relevo a secura e a banalidade dessas
mulheres, que só temem a Religião e, sobretudo, o Inferno. Perto do cadáver
entre os móveis doirados que parecem mais reles com a ventania imensa lá fora
todas estas figuras banais avolumam como figuras de tragédia: os ventres
inchados parecem mais inchados ainda, as máscaras mais cansadas, e mais negras
as bocas sem dentes que remoem.
— Ai que ma levam!...
Tinha morrido na véspera. Nas últimas horas do dia nublado, ao sentir-se
trespassada pelo pior frio, o da morte, chamara para junto de si a irmã, a
Candidinha, uma mulher insignificante, envolta num xale gasto. Pelos vidros
côa-se a luz baça do crepúsculo. Fora choram. A velha traça o xale, e a boca
aumenta-lhe, avivam-se-lhe as rugas.
— A minha filha, peço-te... diz-lhe a outra.
E entrega-lhe um maço de cartas.
A velha não responde. Um silêncio glacial. Na luz, que atravessa, antes de
entrar no quarto, a espessura da água esverdeada, a Candidinha esboça um gesto
de garra que se contrai. E a moribunda repete:
— Olha por ela... Tu sabes tudo.
A velha hesita; depois vai de súbito à porta e fecha-a de repelão.
Transfigura-se: dum jato sai daquela mulher amachucada e insignificante, uma
figura de aço e ódio. Curva-se sobre a irmã e fala-lhe baixinho ao ouvido.
— Hã?...
Não se ouve, mas tais palavras lhe diz que um suor de aflição cobre-lhe o suor
da agonia. Senta-se e depois de a ter encarado cai para sempre, de chofre.
Aquilo dura um minuto e um século. Ao pé da morte abre-se-lhe um abismo de
desespero. A velha debruça-se sobre o cadáver, com o xale tombado aos lados como
asas disformes, e numa sofreguidão repete palavras sobre palavras precipitadas
para que a outra não vá sem as ouvir. Entra a sombra pelos vidros embaciados: um
último estertor e a moribunda queda-se, com espanto nos olhos e lágrimas
arrancadas a um coração já frio. A velha encarniça-se:
— Ouviste? ouviste? ouviste?...
Prega a um cadáver, como quem fala para dentro dum túmulo. Quer contar-lhe tudo
e não tira os olhos dos olhos vidrados da outra, que a escuta inteiriçada e
fria. Morre vendo nos últimos minutos, não a mulher banal, com quem se habituara
a lidar, mas outra desmedida e seca, atroz. Só descobre a verdade gélida quando
penetra, transida de desespero e sem boca para gritos, no mistério da morte. Os
olhos vítreos exprimem, porém, tal horror, que a Candidinha continua a falar,
como se ela escutasse ainda:
— Ouviste? ouviste? ouviste?...
Do túmulo não se protesta. A morte é muda não há horror que a transa. A
Candidinha pode enfim desabafar, e as palavras sucedem-se-lhe na boca encostada
ao ouvido daquele corpo, ressequido e murcho como o dum passarinho.
— Ouviste? ouviste? ouviste?... não cessa a velha de pregar.
Cerra-se de todo a noite e ainda o monólogo continua. Na escuridão as asas do
xale sacodem-se, imensas como as da Morte...
— Ai que ma levam! ai que ma levam!...
A essa hora o caixão afunda-se na treva, levado a trouxe-mouxe pelos galegos de
fumo negro no chapéu. Vão aos bordos e a névoa agiganta-os e deforma-os. Ao
clarão das tochas o caixão parece a tumba dum gigante. Nem o esquife de Heine,
nem a barca onde coubesse toda a desventura humana. Cheio de lágrimas levaria um
mar e no entanto os galegos só acarretam um corpo mirrado de passarinho. Mas,
como a névoa tudo aumenta, aquele enterro é caricato e lúgubre, e ao mesmo tempo
formidável. Dá uma impressão dolorosa e pícara, sob as cordas ininterruptas de
água, através da vila toda lavada em lágrimas. Lá a levam! lá a levam!...
Os anos passaram indiferentes e vãos, como o tempo que é um segundo, um século
ou uma eternidade. As mesmas estrelas na abóbada infinita, o rolar sem fito do
mundo, pedras que se esboroam, gritos, dores, lágrimas dores sem resultado,
lágrimas que se perdem na terra, gritos que se não ouvem a cem passos de
distância...
Passaram-se os anos inúteis, e as velhas continuam a reunir-se no mesmo
casinholo, tão triste que parece habitado pela desgraça, e o Sr. Anacleto,
estancada a dor, preso ao balcão, sentado e quieto como o piloto duma frota
macabra, a vender os caixões que lhe atravancam a loja.
— Caixões para mortos? Há-os de todos os preços...
— Mostre...
— Veja V. Exa este de mogno, marca acreditada... Dourado, rico, ótimo... É sua
filha a morta?
E fixa os olhos inexpressivos na cara do freguês, que pergunta:
— E mais barato?
E ele indiferente e monótono:
— Também temos... sortido... Preço razoável... E afaga outro esquife.
Casquinha... Não lho aconselho, porém. 'Tem inconvenientes... primeiro apodrece
logo, segundo...
E, como o freguês sufoque de pranto, interroga-o com a mesma cara empedrada:
— Sempre é sua filha a morta?
— É!
— Pois vai bem servido com este, palavra de cavalheiro. Mais caro, mas de dura.
Obra de primeira qualidade. A sua morada? Nada de incómodos, manda-se a casa do
freguês.
E fica a ruminar palavras sem nexo na loja de granito: V. Exa... grande
abatimento... minha filha... ex.mo freguês...
Há existências inúteis, para quem a vida se reduz ao estreito âmbito formado
pelas paredes que as cercam. Vivem por hábito. Sabem apenas exprimir-se com seis
palavras rançosas. São um misto de papelada, de números, de ideias estúpidas e
vãs, de frases gastas e falsas. Obra de primeira... a minha filha... ex.mo
freguês... Pode a dor revolver o mundo, que a máscara de pedra do Sr. Anacleto
nem diante da catástrofe se altera. Sucedem-se os dias e os anos; sucedam-se os
séculos, que o velho não bole de entre os caixões, na loja de granito solitária;
estoire embora o planeta com os seus risos e as suas lágrimas, que, se num caco
ficar de pé a vila perdida e submersa entre os vagalhões da serra ele continua
sem sobressalto nem pasmo a vender os mesmos esquifes, com a mesma cara de
estanho. À noite sobe e assiste à reunião das velhas; de madrugada, desce,
embrulhado no zézinho, para ouvir a missa das almas.
Há criaturas assim: todas banalidade e inesgotável emoção. Porque este velho
gasto e reles, amarfanhado, só pensa na filha. Não sabe o que lhe há de dizer. É
grotesco. Pára diante dela, com a cara inexpressiva e os cabelos já brancos e
pergunta:
— Hei de ser a tua mãezinha, queres?
— Quero.
E fica suspenso a olhá-la, sem saber dizer mais palavra. Depois acrescenta:
— Eras tão pequenina... O que lhe custou a deixar-te! Mas eu hei de ser a tua
mãezinha...
E lá vai para a necrópole, sentar-se entre rumas de esquifes, com a pena atrás
da orelha e os olhos espantados, o livro aberto diante de si: ex.mo freguês...
caixões de segunda qualidade... data tantos...
A Joana criou-a, e passa horas a olhá-la, embebida. É pobre, humílima, sem lar,
nunca teve filhos e pegou naturalmente a amá-la e a dar-lhe a sua vida.
— Minha menina! minha menina!...
De mãos postas, não se cansa de a olhar.
— Deixa-me, aborreces!
A vida no casinholo é sempre a mesma. Os dois velhos, a criança e à noite a
Felícia, a Adélia, a Candidinha.
No entanto há ali duas figuras que se entendem: uma o Anacleto; a outra a Joana,
feia e estúpida por fora carcaça reles, por dentro piedade a jorros. Unem-se no
mesmo amor. Compreendem-se, ambas grosseiras, ambas sem quase saberem
exprimir-se. Os dias são monótonos. Vêm os invernos e depois a montanha envolta
em cerração ressurge esplêndida, por entre os telhados. Só os hábitos, a casa,
as velhas não mudam. A Joana é estúpida e quase santa. Mãos calosas e sujas,
olhos pequenos enevoados de lágrimas, uma
pieira cómica na garganta e sobre isto tal emoção, que acodem, só de vê-la, as
lágrimas aos olhos.
— Minha menina!
— Vai-te embora! Aborreces-me!
Não passa, é certo, duma criada, duma pobre sem lar. Andou sempre de casa em
casa, vestida de grossa lã e com as pernas cascosas à mostra: de seus olhos
pequeninos transborda a piedade. Afeiçoa-se põem-na na rua. E ela lá vai para
outra casa, calada e humilde. Nunca teve filhos e por isso mesmo é sestro não
encontra uma criança que se não deite a amá-la. Há patrões que a maltratam,
vendo-a, velha e desleixada, apegar-se-lhes aos filhos e beijá-los. Ninguém faz
caso da Joana. Há quantos anos ela anda assim de lar em lar, de casa em casa, de
dor em dor! Sorri desdentada até para os pequeninos que encontra ao abandono na
rua.
Já não se queixa nem se atreve por fim a tocar nas crianças das casas onde
serve. Espreita-as. A vida ressequiu-a criou cabelos brancos a cuidar dos
outros, a amar os outros, a dedicar-se, a sofrer e a ser posta na rua. As
velhas, a Adélia, a Felícia, a Candidinha, metem-na, como a todos os pobres, na
categoria das pessoas ordinárias. Ela também não se importa. Olha extasiada para
a sua menina. E sorri, mostrando a boca sem dentes, os olhos pequeninos
alumiados de ternura postos em Sofia, de quem foi segunda mãe. Seu cabelo parece
estopa; tem as mãos enormes e a pele gretada; cheira mal
que tolhe. Não se atreve a beijá-la. Queria uni-la ao peito seco e raso como as
tábuas, mas a sua fealdade impede-a.
— E dizer que andei com esta menina ao colo!
— Deixa-me!
E Sofia cisma, olhando as andorinhas que tecem ninhos no beiral saliente.
Vêem-se à mostra os barrotes descarnados. É uma criaturinha insignificante e
feia, de boca enorme. Seus olhos são tristes, mas sua boca sorri e toda ela
exprime humildade e inocência. Criada entre a Joana e o Sr. Anacleto, nada sabe
da vida. As velhas de tempos a tempos dizem dela: Meu Deus, como esta rapariga
se tem posto feia! Cisma lá no alto, no quarto, donde se vê a montanha imensa
surgir de entre os muros ásperos da Sé e os telhados requeimados da vila: Meu
Deus, porque é que eu sou feia? pronta a cair nas mãos da primeira pessoa que
lhe fale com ternura.
E ao fundo na loja tanto caixão para mortos! Há-os de todos os tamanhos e
feitios, pequeninos e disformes. Há-os lúgubres, que só levam lágrimas para a
terra, e os que acarretam mentiras leves como penas, pesados como chumbo. Uns
que transportam a desgraça, a aflição, a dor e o ódio. Tudo que faz agitar o
homem sobre este solo que calcamos, exaspero, sonho a que não basta o planeta,
fé, lágrimas que tombaram às levadas, tudo cabe entre quatro tábuas de pinho. A
tragédia e a farsa, a ambição, infâmias e remorsos, a Vida enfim, lá vai ter sua
última morada. Tantos caixões! uns como barcos, outros
pequeninos como folhas, leves como penas, pesados como chumbo. Tanto caixão!
tantos gritos!...
CAPÍTULO 2
As velhas estão juntas na sala. Banalidade, hábitos, gestos indiferentes. São
criaturas egoístas e secas que se cumprimentam e odeiam: a Candidinha embrulhada
no trapo, calada e hirta, com o filho, o Antoninho, ao lado; o Anacleto sem
dizer palavra; a figura caricata da criada; e a rapariguinha inocente, feia e
triste. E quase as mesmas palavras, os mesmos ditos, a mesma bisca que a morte
um dia interrompeu jogada sobre o porão onde os caixões esperam como bocas
abertas na velha casa incrustada na Sé, batida da ventania, sob os frígidos
aguaceiros, que descem da serra, corda atrás de corda.
Mas há ocasiões na vida em que as figuras humanas adquirem uma expressão
extraordinária. Basta que outra luz as ilumine diferente daquela em que estamos
habituados a vê-las. Às vezes basta uma palavra e descobrimos um mundo novo que
nos surpreende. O hábito é uma grande coisa: sem o hábito a gente morria de
pavor...
Esta noite, à luz do candeeiro, a sala afigura-se-me um aquário com bichos
disformes pousados no fundo. Pelas paredes a sombra alastra e sobe pelo teto
como braços de algas monstruosas e encova-lhes os olhos sem expressão
tornando-os maiores e mais fixos; suas bocas enormes remoem como ventosas e a
cara empedrada do Anacleto torna-se mais dura e mais
impenetrável como a dum ídolo que presidisse àquela reunião de bichos temerosos.
A história destes seres, o hábito e a inveja que é toda a história da vila há
dois mil anos revela-a o claro-escuro melhor que nos quadros de Rembrandt,
deformando os tipos, exagerando-lhes as papeiras e os gadanhos, avolumando-lhes
as barrigas inchadas, os seios engelhados e todas as deformidades com ferocidade
e grotesco, até ao ponto de nos mostrar a nu almas trágicas de monotonia e
rancores até ao ponto de vermos remexer lá no fundo do poço animais gelatinosos,
que vivem na água esverdeada sonhando na presa e remoendo sempre o sumidouro das
bocas horríveis e frias como as dos cadáveres. A Sombra é um grande pintor.
Se a rajada levasse o que a cova leva e desfaz a matéria e ficasse de pé o que é
eterno, talvez recuássemos de espanto diante de tipos desconhecidos, de
sentimentos desconhecidos, de almas nuas na sua beleza ou na sua esplêndida
hediondez. Aquele casebre de granito enegrecido pelo tempo, há muitos anos que
abriga os mesmos dramas. Cada figura traz recalcado e escondido sob um aspeto
banal o seu sonho. Já a morta é pó, a criança cresceu, as velhas recurvaram e
azedaram: só a pedra não mudou nem o tempo eterno: o ódio acumulou-se. Soou a
hora: a catástrofe desaba e no entanto a Felícia, a Patrícia, as outras
continuam como sempre, escravas do hábito, a reunir-se todas as noites de
inverno. Os queixos agitam-se, estremecem as mãos, mais secas; o Anacleto a um
canto ressona, e a Candidinha imutável embrulha-se no xale e atende... Segreda a
Sofia, como se lhe repetisse uma frase de há
muito anos: Ouviste? ouviste? ouviste?... E o velho relógio de parede, rape que
rape, tosse de vez em quando as horas no escuro, marcando o estúpido tempo. E de
vez em quando, no silêncio sente-se passar a lufada e desabar o enxurro.
— Não se quer confessar dizia Adélia, a propósito de alguém que está na agonia.
— Manda-se lá o padre Júlio.
— Já lá foi e nada. Morre impenitente.
— Vou eu lá diz a Felícia.
Calam-se e olham-na surpreendidos. Ela explica:
— Alguma coisa tenho de fazer para que Deus me perdoe os meus pecados. Deus é
grato a quem salva uma alma.
— Deus perdoa tudo.
— Tudo não. Amanhã vou falar com ele. Talvez o convença e Deus me perdoe os meus
grande pecados.
Ainda Deus é o menos o pior é o Diabo. Com o frio da velhice vem o terror da
morte, levantam-se todos os fantasmas esquecidos e a figura do Diabo avulta e
enche todo o horizonte. Se elas pudessem matar o Diabo com o cabo duma vassoura!
Talvez em tempo esse senhor fosse apenas uma
palavra e mais nada talvez alguma o julgasse enganar e ele se deixasse
enganar... Mas agora o juiz severo carrega o sobrolho e o Diabo só espera que
elas morram... Todas têm de dar contas a Deus. Uma cometeu talvez um crime,
outra não fez o bem nem o mal, outra deixou morrer o filho sem lhe perdoar nem à
hora da morte... E a morte como uma ventania já levanta e sacode todo o pó
esquecido que deixaram pelo caminho da vida...
Há um instante de silêncio em que suspiram de angústia. Depois tornam a dizer as
mesmas banalidades. E no fundo da loja (nestes momentos todas elas os veem) os
caixões vazios esperam leves como penas, pesados como chumbo.
Às terças aziagas aparece desde tempos remotos no casinholo lúgubre essa velha
desmemoriada e ridícula, sempre com o Antoninho pela mão. Lembra uma ave molhada
e sem penas aos pulinhos na sala. Esvoaça-lhe o xale e traz o chapéu à banda.
Todos a acham sobremodo estúpida e cómica, com o filho agarrado às saias, o
olhar desorientado e vago e um aspeto reles.
— Lá vem a Candidinha!
— Oh que praga!...
E ela irrompe:
— Filhas, venho numa freima. Imaginem o que me havia de acontecer... Filhas!
Ao vê-la, desatam a rir-se dessa figura amolgada pela desgraça, com o chapéu
depenado e um riso postiço em que mostra os dentes todos cariados. É uma espécie
de bobo que toda a gente escarnece e a quem se atira uma côdea por ser pobre e,
sobretudo, por ser inofensiva e estúpida. Diante da velha podem-se contar as
aflições, as chagas, as misérias, os exasperos tudo. Ela não ouve. Dai a
minutos, troca as palavras, com um riso forçado, aos pulinhos pela casa, de xale
esfarpado a rasto.
Se estamos aborrecidos pelas contrariedades da vida, toca a insultar a
Candidinha, a descompô-la, a amesquinhá-la. A sua miséria, a sua abjeção, a sua
fome consolam-nos das nossas próprias desgraças. Tudo nela é efetivamente
grotesco, até a narração aflita com esgares e o chapéu ao lado que costuma fazer
da sua amarga existência para os outros se rirem.
— Conta alguma coisa para a gente passar um bocado da noite...
— Ontem, filhas, deitei-me sem comer. Tinha uma coisa na boca do estômago a
roer... Uma ferida... E eu sem saber o que era! Sou tão estúpida que nem me
lembrava o que tinha!...
E em volta todos à uma gargalham da velha pelintra, que arrasta a sua desgraça
pelas casas de fora, contando a este e àquele o que sofre, rasteira como os cães
e rebaixando-se ainda mais para lisonjear as vaidades alheias.
Se estão de mau humor, recebem-na com pedras na mão, despedem-na, batem-lhe com
as portas na cara, e ela lá se vai com o estômago vazio e o Antoninho atrás.
— É para aprender!
A velha leva, nas aflições, as pratas para o prego, paga os juros, faz os
recados melindrosos que se não confiam às criadas.
— Pode-se-lhe entregar tudo. Oiro em pó que seja!...
— É porque é uma estúpida!
E a Candidinha anda e torna, sempre com a mesma figura arrepiada de tragédia, o
velho xale esverdeado ao vento e um sorriso abjeto na boca. O Antoninho cresceu,
com as calças muito curtas, amarelo e esguio. Nunca chora nas casas de fora.
Recita versos, para que os outros, no fim do jantar, se riam dele e da mãe. As
vezes surpreendem na velha um olhar duma secura atroz, esguicho de ódio logo
reprimido. Todos emudecem transidos.
— Tu em que estás a pensar, ó Candidinha?
— Ó filhas!... Desculpai! esta cabeça!...
E dá uma explicação confusa.
Dizem-lhe, nas imensas noites de inverno:
— Ó Candidinha, conta p'ra aí misérias...
E logo a velha faz mais uma vez a narração da sua vida. Enchem-na de escárnio.
— Agora o Antoninho que recite, para a gente estar entretida.
E o choninhas, de pé numa cadeira, diz versos sem mexer os braços, hirto e
solene.
— Esta Candidinha sempre tem mais graça!
— É estúpida!
— Coitada! Coitada!
— Modos de levar a vida. Lá vai enchendo o papo!...
— Mas sempre rapa cada fome!
E durante anos e anos todos acharam aquela mulher esgalgada e seca, de chapéu ao
lado e xale verde esgarçado, insignificante, ridícula e sobretudo estúpida.
— Lá vem a Candidinha...
— Oh que praga!
Tem dias certos de aparecer. No dia da Candidinha quase sempre estão de mau
humor.
— Ela aí vem!
— Isso não falha. Tem sempre fome aquele diabo!
— Tenho notado diz com importância a Felícia que esta gente pobre nunca está
doente. Não se lhes pega nada, nem uma dor de barriga! A coisa ruim não acontece
desastre!... Só eu cá ando com os meus padecimentos há tantos anos!... Há muito
que conheço esta Candidinha e nunca a vi queixar-se senão de fome.
Um dia que Sofia bate no Antoninho, a velha ergue-se colérica;
— Bate-lhe! Bate-lhe tu nela, filho! Só sabes chorar! Bate-lhe!
Mas o Anacleto, que por acaso está de mau humor, grita:
— Bate o quê? quem é que bate? Cale-se! Para que é que se lhe mata a fome? Não
seja desagradecida. Olha a grande coisa!... Que é que a minha filha fez ao seu
pequeno? Uma graça! Minha rica, precisa de aprender... E se lhe não serve, rua,
que é a sala dos cães! Na minha casa não dá vossemecê leis. Vem-lhe agora a
soberba, a vossemecê que não tem onde cair morta? Saiba ocupar o seu lugar. A
senhora é pobre, não é? Pois então seja humilde que a humildade fica bem a quem
não tem um pataco de seu. Mata-se-lhe a fome está bem... Mas seja agradecida.
Sofre? Pois tem de sofrer, que mais sofreu Nosso Senhor Jesus Cristo para nos
salvar. Para que é que eu sou rico? É para a aturar à senhora?... E vá, de
pequenino, habituando seu filho a sofrer; crie-o para o que ele tem de vir a
ser... Ou o que é que a senhora imagina?...
E a velha trémula, aconchegando o xale ao peito raso, com um sorriso verde e o
Antoninho pela mão, acode logo:
— Não chores, filho... Nós somos muito agradecidos aos nossos benfeitores.
— Vossemecê não se faça atrevida, ouviu?...
— Às vezes é a fome que me transtorna o miolo...
Nesse dia, a Candidinha não quer jantar. Parte, com a boca fechada, o Antoninho
pela mão e o xale a esvoaçar na noite.
— Filho, não chores... diz-lhe. Pega lá uma côdea... É o nosso jantar.
E as velhas na sala murmuram:
— Esta Candidinha está a fazer-se soberba... E o pobre soberbo. Não há nada
pior. Até a gente perde a vontade de dar esmola aos necessitados.
Esta criatura insignificante fala pelos sete cotovelos com suspiros, ais,
banalidades, para esconder, uma mixórdia confusa e sem nexo. Para ocultar o quê?
Babuja, beija agradecida as mãos dos benfeitores e pronuncia palavras duvidosas,
que deixam a gente cismática. Os olhos fecham-se como à procura dum sonho, que
só ela, no meio da sala, entrevê. Acontece surpreenderem-na falando sozinha.
— Coitada, não diz coisa com coisa!...
A gente pobre precisa, na verdade, de se abaixar, mas ela exagera a sua abjeção:
parece que goza em se sentir mais reles, em se amesquinhar a seus próprios
olhos.
— Dêem-me a esmolinha! a esmolinha! intercede.
— Oh filha, tu não precisas de pedir com esses modos!
— Então que sou eu senão uma pobre? A vossa caridade é que me vaie.
E cerra os olhos para que não adivinhem o ódio. Outras vezes mete-se de
propósito na cozinha com as criadas.
Um dia uma velha maldosa, visita da Felícia, surpreende-a a comer restos com
sofreguidão.
— Esta Candidinha é que te vale... tens aqui uma boa criada.
E a Felícia acode:
— A Candidinha não é uma criada, é parente.
Mas ela áspera, de pé, com um olhar estranho:
— Então que sou eu senão uma criada? e muito agradecida...
A visita ao sair diz para a Felícia:
— Ai não a estragues, filha, não a estragues com mimos!... Os pobres querem-se
como o que são... E fechando a mão, conclui: Aperreados!...
A fome faz rir, a desgraça faz rir. Ponham uma máscara à dor, desengoncem-na
como um palhaço de feira, que a multidão cobre-a de chufas. A velha é um trapo
arrastado por todos os desesperos e as lágrimas, a miséria, a catástrofe, ainda
a tornam mais cómica. Não tem grandeza nenhuma. É inofensiva e, sobretudo,
estúpida. Confunde a pelintrice e a amargura. A narração das suas desgraças
começa no choro e acaba por gargalhadas.
É certo que esta mulher podia fazer muito mal. Sabe alguns segredos: diante dela
ninguém se retrai: mostram-se-lhe todas as chagas como se mostram aos cães. É
que ela é, sobretudo, desmemoriada e estúpida. Passa fome. Podemo-la matar à
fome. Ninguém faça caso da Candidinha, que não vale a pena!...
Sempre desgraças! sempre misérias! Ela com a eterna lamúria, um bucho sôfrego e
disforme e os outros ricos, felizes, repletos. Coitada! coitada! é uma estúpida!
Mal sabe ligar as palavras e já repararam para o riso idiota que traz afivelado
na boca?
Decerto às vezes a figura não sei porquê lembra logo desastres. Arrepia. Quando
mastiga, aquela bocarra negra faz aflição, e às terças aziagas um calafrio
irrompe com ela portas dentro... É certa. Nunca falha o diabo! Mas a gente
precisa de fazer algum bem neste mundo, que é com o que se encontra no outro!...
É parente, é velha, é um mau hábito: dê-se-lhe, portanto, de comer. Demais, é
humilde, faz recados. Às vezes chega até a ser utilíssima.
Ouve tudo o que se lhe quer dizer, palavras de cólera e de desprezo. Até as
criadas a tratam pior do que mal, tratam-na de resto. É uma estúpida,
coitada!...
Ora eu bem sei que todos nós somos mais ou menos atores para levarmos a vida a
termo. Tudo na natureza cumpre o seu destino com gravidade só o homem é
histrião. Apenas conheço duas maneiras de triunfar na existência: pela força,
num áspero combate, ou pela manha aproveitando os defeitos dos outros. O triunfo
para ela era uma côdea, e, para a obter, tinha de explorar a vaidade, o orgulho,
as más qualidades da outra gente. Desengonçava-se para comer, amesquinhava-se
para comer, fazia-se estúpida para comer.
A gente é humilhada na vida? Gosta também de calcar e lá estava a Candidinha a
propósito. Ter, de vez em quando, diante dos olhos aquela velha caricata e rota,
sentir piedade, rir da abjeção é mais que útil, é necessário. Conforta. A
infâmia dos outros consola das nossas próprias infâmias.
— Mal dos pobres! mal dos pobres!
Mãe e filho surgem à porta: as velhas, agarradas às cartas, nem sequer erguem os
olhos. Apenas a Patrícia murmura com desdém: É a Candidinha... e tudo torna ao
silêncio. O Antoninho, calvo e magro, senta-se no escuro, a mãe agacha-se ao pé
de Sofia e o relógio de parede tosse rape que rape as horas imutáveis... Durante
alguns anos mãe e filho tinham desaparecido da vila. Um dia voltaram, ela mais
consumida e gasta, mais magra, ele esverdeado
e calvo, falando sempre baixinho. Cobriam-nos de chascos. Vêm para comer. Foram
escorraçados... Mas a Candidinha pela abjeção, pela humildade, pelo ar pelintra,
desorientado e cómico, desarmou todas as más vontades, sofrendo todos os
sarcasmos para não morrer à fome. Já afinal se dizia, com piedade: Esta
Candidinha fazia falta... E a banalidade imensa cobrira, amortecera todas as
arestas. Correra o tempo, e o hábito desgastara até as cóleras mais resistentes.
Seca, esgalgada, com as mãos metidas debaixo do xale, a Candidinha fica horas e
horas ao pé de Sofia. Fala-lhe. Não se pode fixar a baba pegajosa com que a
velha a envolve, as pequeninas frases, as palavras murmuradas ao ouvido, o rodar
em torno dela, como uma aranha que constrói uma teia. A sua conversa amolece e
escorre. Edifica dia a dia, cautelosa, frase que avança, palavra que recua...
Para se preparar uma infâmia é necessário quase tanta grandeza como para ganhar
uma vitória. Os anos tinham passado e ela calada; podia vir a morte e
surpreendê-la na sua mudez. Andar mascarado uma hora é fácil, mas a vida
inteira, entre a espionagem de criaturas desconfiadas e maldosas, é quase um
heroísmo. Enganar as velhas exige uma tenacidade, uma energia, um carácter de
ferro. Às vezes emprega-se mais esforço num pequeno nada que numa desmedida
empresa; gasta-se tanta tenacidade num caso fútil como numa obra imensa...
Quanto mais nessa comédia que dura há anos desconhecida, apagada, perdida numa
terra de província, entre quatro estúpidos tabiques! Quanto mais nesse sonho que só se satisfaz com gritos! A velha fizera um cálculo
feroz: casar Sofia com o filho. E não desperdiça um minuto, uma ocasião, um
pormenor.
Ri baixinho e depois repete:
— Mal dos pobres, filha! mal dos pobres...
— Oh tia!...
— Tu sim que estás uma flor! Quem te há de gozar!...
A Patrícia fala baixinho às outras e as suas mãos brancas remexendo no escuro
lembram aranhas pacientes.
— Você corta!
A velha, ao pé de Sofia, mastiga palavras e depois põe-se a falar num jato: a
bocarra remói, seus olhos parados de cobra não se despegam dos olhos de Sofia.
Em baixo está a loja atulhada de caixões, bocas e bocas à espera de desgraça, de
gritos, de catástrofes... Corte!... ouve-se. E aquilo perturba-a, entontece-a,
derranca-a.
— Quem há de gozar esse corpinho de fada?... torna a velha. Se tu ouvisses,
filha, como ele fala de ti... Não pensa noutra coisa mas é pobre... Ouviste?
Ouviste? E a estas palavras os restos dum cadáver ainda estremecem no sepulcro.
Aquilo dura noites e noites dura anos, até que Sofia se perde. A velha atira-a
para os braços do filho. Mas ninguém suspeita. Ela sofre, as outras continuam a
jogar a bisca sórdida e mal dos pobres! exclama a Candidinha, nessa noite, ao
entrar na sala com o filho ao lado. Cada fio dessa teia cautelosa representa um
esforço, um cálculo, uma vitória. Ninguém deu por isso. O tempo passou sem
vestígios: hoje, como dez anos atrás, a sala é a mesma, as velhas as mesmas,
idênticos os ódios e o tédio idêntico. Parece que há séculos se conservam
curvadas sobre as cartas sebentas, ao clarão imobilizado do candeeiro. As coisas
não se transformaram nem gastaram. O pó cobre os móveis intactos e os cães de
vidro sobre os crochés das mesas. Entre o dia de hoje e outro longínquo a
diferença não existe. Tudo se fez com uma lentidão pasmosa. A Candidinha cismou
dias antes de pronunciar uma palavra, preparou-se meses para dar aquele passo.
Mas as figuras, inalteráveis como as pedras, dir-se-ia que não têm uma ruga a
mais e que o hábito as conserva na sala escura, vestidas de negro, como se
fossem retratos. Vê-se como sempre o grupo das velhas, o perfil seco da Felícia,
a sua boca rancorosa, de lábios finos, as mãos batidas da claridade, agarrada às
cartas; o olhar vazio da Patrícia; repetem-se os mesmos trechos de conversa
banal:
— Chove, hã?
— Lembra-me sempre o dilúvio universal.
— Logo temos de aproveitar uma aberta...
De que valem gritos? Ao fundo, no porão, a traça rói indiferentemente os
esquifes de 1ª classe, dourados, ricos, com galões e forros de seda branca, ou
os de pinho barato, quatro tábuas sem plaina, cobertas à pressa de paninho
preto, e na casa lúgubre, sob a enxurrada imensa, continua-se a jogar a bisca.
Só ela sofre. Quatro paredes, os mesmos hábitos, as mesmas frases rançosas.
Sofia olha sem ver, quase cega pelas lágrimas, atónita, aquela figura que lhe
surge agora pela primeira vez na vida de entre esse mundo apagado.
— Trinta! É uma rolha!...
— Olhem como ela canta nas vidraças!
O Sr. Anacleto cabeceia, embrulhado no zézinho, a Joana aparece à porta com a
candeia na mão, magra, rota e desleixada como um esfregão de cozinha; e a
Candidinha curva-se sobre Sofia para lhe perguntar baixinho: Ouviste? ouviste?
ouviste?...
Sofia está grávida.
E agora? agora?...
Aos dezoito anos começa a amargar a vida. Não a conhece ainda e já se alimenta
de lágrimas.
— E agora? agora?
Descalça, com os pés nus no lajedo, para que lhe não sintam os passos, espera-o
à porta numa brusca madrugada de inverno. A claridade mal rompe a
cortina espessa da chuva: a essa luz esverdeada de subterrâneo, as bátegas
fustigam o granito em ondas sucessivas. Precisa de alguém a quem se ater. O frio
traspassa-a. Fora a enxurrada estrupe, e o vento passa enovelando a água. Oh o
que lhe queria dizer! Nem sabe. Vêm-lhe gritos à boca, golfadas de dor mas só
lhe saem as mesmas palavras repetidas: E agora? agora?
E rapidamente, enquanto o Anacleto e a Joana ouvem a primeira missa, a das
almas, trocam no portal um curto e desesperado diálogo:
— Mas então? então? Fala!
O Antoninho fita-a, e ela, embrulhada no xale, treme de frio e dor. Ele hesita:
— Então... não sei...
— Mas então agora?...
E encosta-se à parede, sacudida de choro. Fora a água corre: o vento abala a
porta. Ele faz um gesto, encolhe os ombros:
— Pões-te a chorar? Fazes bem! Com lágrimas é que estamos servidos!
— Deixa-me!
— Chora. Se isso te alivia...
E ela numa explosão de choro:
— A minha desgraça! que desgraçada sorte a minha!... Enganaste-me! mentiste-me!
— Sabes tu que mais!... - exclama ele aborrecido, sem palavras para lhe dizer.
— Vou-lhe contar tudo.
— A quem?
— A meu pai...
— Vai, diz logo decidido. Queres-lhe dizer? Mata-o!
— Oh meu Deus!...
Sofia sobe a escada. Deita-se com o cobertor sobre a cabeça e chora, chora, num
estertor, com as mãos fincadas na boca para que a não ouçam, até que fica
esvaída de lágrimas, esquecida de si mesmo e inerte.
A desgraça é negra. É uma queda sem mão que nos ampare. Fartam-se as bocas de
gritos, cegam-se os olhos de chorar e o buraco trágico e estúpido sempre à
espera de mais lágrimas. A desgraça pesa e esmaga. Pior: absorve-nos; impele-nos
para desgraças maiores. A mão férrea que um dia nos toca, deixa para sempre
vestígios impressos e um calafrio que não passa mais. O sabor a infortúnio
guarda-se para toda a vida, não na boca, mas na alma; a negrura álgida
traspassa-nos dum frio pior que o da morte. Olhar pela primeira vez a desgraça
apavora. É um estonteamento, um caos, mas até na desgraça se restabelece o
equilíbrio. Chama-se a isso o hábito da desgraça.
Sofia tem sempre a seu lado aquela voz: Ouviste? ouviste? ouviste? E depois o
jato de infâmia:
— Sabes lá, não te aflijas, menina! No melhor pano cai a nódoa! A mim em nova,
sucedeu-me o mesmo fracasso...
E ri, a velha ri: sacode-a um riso que vem de dentro e que tem raízes no sonho
que lhe transtorna por momentos a fisionomia. É ainda um riso baixo, que mal se
atreve, prenúncio de outro maior, cheio de fel e triunfo. A Candidinha ri...
Muito longe, num mundo que já a não interessa, perdem-se as outras figuras:
velhas em volta duma mesa, o senhor Anacleto, a sala abaulada, o vento a sacudir
as vidraças. Perto a velha sórdida, embrulhada no xale, esfrega as mãos como
duas tábuas uma contra a outra.
— São coisas que sucedem e quando a gente mal se precata... Leve o diabo
paixões! Não chores, filha, que escusa ninguém de o saber...
— Que sorte!
— Não te aflijas, que estragas esse palminho de cara. E não confesses o teu
erro, que escusa ninguém de o saber. Vais comigo para a quinta e aquilo é um
descampado... Ouviste? ouviste? ouviste?...
Palavras! De que serve falar à desgraça, discutir com a dor? Dez horas no
relógio rouco e lá no fundo a loja atulhada de caixões, de 1ª classe, ricos,
ótimos: de 2ª classe, reles esquifes de madeira barata pequeninos e enormes,
leves como penas, pesados como chumbo... A desgraça deita-lhe as mãos, sacode-a
e transforma-a: aquele mundo já a não impressiona. Arredou-se, perdeu-se, não a
interessa, nem a prende, é uma fantasmagoria. Resta-lhe a dor e a Candidinha,
que com o eterno xale esfarpado, a mão afiada no ar e o riso amargo na boca, se
transmuda numa figura que enche o quadro sem relevo. Conta-lhe as rugas,
nota-lhe particularidades que se salientam com uma precisão enorme. O xale
parece que tem vida, o chapéu sem penas não é ridículo apavora. E as velhas
querem espiá-la... Hirtas, secas, maldosas, aí vão sentar-se à roda da sala, à
espera que desate aos gritos. A Candidinha a seu lado não cessa: Ouviste?
ouviste? ouviste? Sofia olha transida: nunca vira a desgraça e sente-se palpada
por suas mãos de ferro. Da banalidade, dos hábitos, das palavras sobre palavras
inúteis, do casinholo de pedra, irrompe o quer que é de desconhecido e grande,
que ela própria não compreende. A dor bate-lhe à porta, descarnada e imensa.
Seus peitos são secos, seus olhos de aço. Até ai não passara duma criaturinha
insignificante, de vida inútil: vai agora alguém acompanhá-la até o túmulo.
Estava em riscos de ter aquela mesma existência estúpida: horas monótonas, a
casa de granito, o Sr. Anacleto, a criada, frases repetidas, a felicidade e o
asco. A dor salva-a. Gritar é viver: despedaçam-se e revolvem-se dentro em nós
todas as raízes; enche-nos a boca todo o fel do mundo; os olhos todo o amargor
do mar salgado mas o que há
em nosso ser de inútil some-se e a alma engrandece. Só pela dor se vive.
Ouviste? ouviste? ouviste?...
Sob qualquer fútil pretexto a Candidinha e o filho a levaram daí a dias para a
serra. Levaram-na e desde essa hora aziaga nunca mais se fartou de chorar. Tanto
caixão para mortos e nenhum a quis. Uns pequeninos como berços, outros pesados
como naus e onde caberia toda a desgraça humana. E todos à uma enjeitaram a sua
desventura!...
CAPÍTULO 3
Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua: uma mixórdia de grotesco e de
caligens, de lama e gritos, de gestos confusos e de novelos pastosos que se
acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas
sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que amolece o granito
Das ruas irrompem sucessivos magotes, num clamor de inferno. Na noite ressoam
gritos, urros, e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e
profunda: fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem
no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços que se agitam, de doida
ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam sem interrupção dir-se-ia que o
planeta estoira farto de sonho inútil e do nada, iluminados a vermelho, brotam
bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade, o arco medievo e a mole
rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a
abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras
que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. Uma
derrocada em tropel, um jato vivo de escuridão, um burgo de sonho entrevisto que
o vento leva consigo.
A turba avança, a praça trasborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo
tempo. Aquele mar humano oscila, cresce, clama e dispersa-se.
Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e
voltam a entrever-se as faces, as bocarras abertas pelos risos estúpidos,
rasgados de orelha a orelha.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas
famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns
castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore. Forma-se o cortejo. Já
estrondeiam os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos
marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados,
uivos, maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e
se espraia até à muralha da igreja. Em cima a abobada negra do céu goteja lama e
as névoas arrastam-se lentas e esponjosas, bambinela atrás de bambinela,
pegam-se às paredes e deformam-nas, desagregam-se, suspendendo-se nas arestas do
granito como grandes farrapos de luto. Os uivos redobram. O mesmo pé de vento
parece que fez redemoinhar a canalha e galopar no céu os grossos novelos de
fumo.
— A câmara! aí vem a câmara!...
Pendões balouçam-se, inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal, a que se
agarram meia dúzia de náufragos. Logo mais alto, se ouvem os clamores e a
charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra. Abre o cortejo o
presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido;
seguem-no, solenes, o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos, de
sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém: a mó de gente
empurra-se e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens e
protestos; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças; e o céu todo lama
desce, desaba, imenso, gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre, lá
consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir a marcha com o pendão
erguido ao vento.
O Careca pega com sofreguidão a uma borla, a charanga segue a passo cadenciado,
e por último os magotes anónimos e confusos.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
E tudo aquilo, mar de uivos, treva, archotes, homens e fêmeas, urros e clarões,
jorro desordenado e imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa interminável e
ensurdecedora bicha. Aqui e além o fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do
outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões
monstruosas.
A Candidinha atravessa a praça sem ver nem ouvir. Repelem-na, e ela segue
absorta o seu caminho. Fala sozinha, ri, as mãos contraem-se-lhe. Vai para o
gozo, vai para o ódio. Tantos anos calada e calcada, de boca espremida, atrás da
côdea!... E agora vê o seu sonho de pé, também eu o vejo na atmosfera que a
envolve... Se não fosse aquele sonho tinha cortado a língua com os dentes, se
não fosse aquele sonho quase realizado que se lhe acumula sobre a cabeça,
esvoaçando em farrapos como os farrapos das nuvens. É uma coisa disforme que na
noite negra se entranha na caligem e a persegue projetada nos ares. Pode enfim
desabafar! Ri, corta a multidão, hirta, de negro, a saia esgarçada e o xale ao
vento. Não vê, não ouve. Arranca pela primeira vez a máscara, mostra-se, grita
cara a cara o seu ódio. E ri, corta a multidão e ri.
Na sala estão os dois, o Sr. Anacleto e a velha frente a frente; ele dormita,
ela de pé, do outro lado da mesa, espera e goza. Vai falar! vai falar! diz lá
por dentro. E seu coração bate como um tambor à carga.
Sobre as duas figuras, a velha hirsuta, formidável, impiedosa, o velho gasto e
empedrado, incide de chapa a luz do candeeiro. E a mesma sala embirrenta de
sempre, os mesmos móveis puídos; sobre o pano da mesa o cão de vidro olha
esgazeado; a um lado o canapé e à roda as cadeiras doiradas de casquinha...
Um minuto e só se ouve o coração da velha aos baques.
— Hã? diz ele.
— Hã?... range a velha.
— A minha filha, há? a minha filha quando torna?
Ainda a Candidinha com esforço se contém.
— No melhor pano cai uma nódoa...
— Hã?
— Não se aflija. Tudo se repara com o casamento, e você é rico.
Ele não compreende.
— Eu estou pobre.
— Pobre!
— Estou pobre. Tudo me tem corrido torto. Estou talvez em vésperas de falência.
A minha filha que volte. Vamos mudar desta casa.
— Mas então você está pobre?! Você está pobre?!
— Traga-me a minha filha.
São tantas as palavras que lhe acodem à boca que a velha não sabe por onde
principiar. Resfolga. E o cenário banal, onde as velhas há anos jogam a bisca,
assiste àquela farsa. Nas paredes impregnadas de tédio enfileiram-se as cadeiras
doiradas por cima, reles por baixo. A luz ilumina as figuras o Anacleto
estúpido, a Candidinha enorme e trémula. Foi tudo inútil? Torna a bater o
coração da velha, que já se não contém:
— Hã?... E respira sôfrega como se todo o ar da terra lhe não bastasse. A sua
filha... a sua filha... E de súbito num ímpeto: Estou até aqui, sabes? Estou
farta de pedir côdeas!
E tira o xale dos ombros, como quem arranca a pele. Fica enorme, seca como a
própria secura.
— Hã?...
Ele não compreende: está afeito a ver uma Candidinha de comédia, pedinchona e
ridícula, que se descompõe e despede, e a quem por caridade se mata a fome.
— Hã? torna.
E ela baixo, sôfrega, desesperada, endireitando-se, com outra voz, rouca,
raspada, furiosa:
— Tu que imaginas? tu que imaginas?... Isto era só ter regalos, mandar, atirar a
côdea aos cães?... Isto era só calcar a estúpida, desprezar a estúpida?... Estou
farta, meu rico, de ser uma escrava de pedir esmola... E prega: Estou farta!
estou farta!
Mas não sabe, não pode exprimir tudo. É um montão de coisas imensas, desconexas,
acumuladas, um jato de cólera e de infâmias que não pode romper para a luz. E
ele olha sem compreender ainda aquela figura imensa. Então ela mais baixo
exclama:
— A tua filha não é tua filha! Precisavas de o saber... A tua mulher enganou-te!
A tua filha enganou-te! Era isto que eu te queria dizer. Vim aqui
de propósito para to dizer. Podes ir buscá-la quando quiseres... Queria-to dizer
pelo que tenho sofrido toda a minha vida e sem poder abrir bico... Eu a fazer
recados como um cão e tu a dares-me esmola, hein? O meu filho desprezado e com
fome e a tua filha no quente, hein? A tua mulher enganou-te, tenho aqui as
cartas... Há anos que as trago aqui no peito a escaldar-me, a remoer dia e noite
sempre...
Em redor assiste àquele drama o cenário de sempre: as mesmas paredes, a mesa
onde as velhas jogam há muitos anos. O Anacleto não percebe ainda, mas ergue-se
num espanto. Nem a dor no entanto é capaz de lhe transformar a fisionomia
empedrada.
— A minha filha?! a minha filha?!
— Está grávida, sabes? Está grávida! Agora se queres vai buscá-la. Estou farta
de comédia. Um ano, outro ano e a besta a sofrer... Desabafo! Pega as cartas,
trago-as aqui!
Torna a bater o coração da velha, que repete numa sofreguidão:
— Estou farta! estou farta!
Atira com os papéis amarrotados para cima da mesa e sai, trágica e solene como o
destino, com o xale a rasto. Vai-se e a porta em baixo bate com estrondo fazendo
estremecer todos os caixões da loja. Traga-a a escuridão, some-a a lufada...
Para o fundo um uivo mais alto e um clarão de incêndio.
O velho tomba esvaído, e tal é a dor que chega a sentir-se o embate do desespero
sob a capa inteiriça de pedra. Há uma sufocação naquela alma: a princípio é o
nada como uma árvore a que cortassem de golpe todas as suas raízes. Um negrume
pior que a aflição, pior que a dor. A morte. Não fala porque se lhe estrangulam
na garganta todas as palavras; não grita porque não se lembra de gritar. Aquilo
passa como uma impetuosa rajada revolvendo tudo, desordenando tudo, e há tal
contraste entre as feições paradas e os olhos onde se lhe concentra o espanto,
que a sua figura surrada atormenta e transe. O Sr. Anacleto, que passou a vida a
vender caixões para mortos, dá de súbito de cara com a realidade: a mulher
atraiçoou-o, a filha está desonrada e perdida! Cai-lhe o queixo, agita os braços
e rompe pela porta fora sem destino, com a cabeça descoberta, a gesticular. Não
vê, não ouve, não sente. Fora a noite, na sua alma a voragem. Molha-o a chuva, o
frio traspassa-o. Como é que se grita? Vêm-lhe à ideia palavras sem nexo, a loja
e o negócio, e no entanto o coração estala-lhe. Para que é que se grita? E ainda
não entende. Veja este caixão, obra asseada... isto não é fancaria... ora
repare... é o último preço... E a dor revolve-o. O Sr. Anacleto nunca reparou
nas lágrimas alheias: a morte fizera-se para vender caixões de 1ª qualidade, de
cedro e mogno; 2ª qualidade, de pinho e casquinha, e últimos preços, caixotes
vendidos por atacado, para os mendigos e pobres do hospital, grande
abatimento... A minha filha! E lá segue aos encontrões pelas ruas. Atasca-se na
lama sórdida, perde o zézinho em que se embrulhou durante tantos anos. A má
mulher! a má mulher!... A canalha
toma-o de repelão, traga-o entre as muralhas estreitas, esmagado naquele oceano
de cabeças. A chuva despega-se do céu, enlameia-o, pegajosa e fétida. A turba
ulula aos arrancos. Noite, lama, um inferno que apanha e leva também outro
fantasma imenso, a velha que atravessa a vila sem ver nem ouvir, perseguida por
um cortejo de ideias, de sonho, de exaspero que a envolve e a funde na caligem.
O burgo medievo com o castelo no alto e as muralhas desdentadas abrangendo as
ruelas fétidas. De vez em quando um buraco, um postigo, um pano intacto, que na
sombra redobra de espessura, alumiado pelos clarões dos archotes. Granito,
granito sólido, boeiros de treva, mais treva acastelada e a multidão que corre
para um saque, desvairada, aos gritos, com os archotes em punho e as bocas
escancaradas... Escuridões longínquas remexem. A névoa envolve e traspassa, a
chuva cai sobre a pedra e as ruas envolvendo tudo de fumaceira e mistério. E à
medida que vão passando aos urros, o quadro desfila a negro e vermelho, os
prédios, os becos, uma praça esganada entre muralhas que se perdem no céu,
boeiros que esguicham mais gente e que se afundam na treva, coisas disformes que
pertencem à noite e farrapos engrandecidos e misturados de névoa que transformam
a vila num burgo de pesadelo, quase alucinatório: são escadinhas que sobem até
ao céu; é a quina duma torre toda ensanguentada à luz dos fogaréus, que
bamboleia e recua para a treva; é um novelo de casaria que estremece e avança,
avivando-se pormenores que logo se perdem; é outra fiada de casebres que surgem
como palácios monstruosos e lá no fundo uma
calçada a rever água que vai acabar num poço subterrâneo; são nuvens esgarçadas
que flutuam sobre o clarão dos archotes, tomadas duma vida estranha. O burgo
parece enorme, o milhar de pessoas que se agita uma enorme multidão desorientada
e as nuvens crepes a rasto para o luto duma catástrofe universal.
Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores
e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre
novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem
fito.
O pendão camarário oscila, há um baque, e, grave como quem cumpre um rito, o
Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes
solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chama:
— Cucusio! cucusio! cucusio!...
Nada. Ninguém responde, e um frémito percorre a turba que espera sempre,
milhares de cabeças erguidas no ar, as bocas abertas como peixes diante da casa
negra e cerrada. Para o fundo no negrume outros, e mais outros envoltos na
escuridão, atendem também como quem espera um milagre. E ouve-se no silêncio a
chuva cair, miúda, pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim
uma ténue claridade e ao fundo estremece, silenciosa
e compacta, a canalha comovida e atenta, até que, avançando com imponência mais
dois passos, o Testa, como quem invoca, implora e ordena, torna:
— Cucusio!...
Sente-se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:
— Pronto, meus senhores, cá está o Cucusio!...
E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da
vela, um monstruoso traseiro como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela
família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos,
mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo rufam, os
urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o Sr.
Anacleto corre sem ver nem ouvir, desorientado. Anda e por fim, lá longe, a uma
esquina, topa na escuridão com uma figura que mal se destaca da treva, como um
farrapo arrancado à própria noite. Come a ferrugem o aço, corrói a desgraça as
criaturas. Olha-o surpreso, como se pela primeira vez na vida se lhe deparasse
um ser humano. E pára atónito. Sem saber porquê, sem razão plausível, o velho
estaca... É uma rapariga, envelhecida pelos tratos: adivinha-se-lhe a palidez, a
fome e as lágrimas. É na verdade um farrapo de sonho todo transido de dor. O Sr.
Anacleto detém-se atordoado diante da mão que rompe do escuro e implora.
— Que é? que queres?
— A desgraça.
— A desgraça, hã?... Que desgraça!?...
Remexe nos bolsos, fixa um momento a pobre que nem sequer responde. Cala-se. Já,
de atascada na dor, não tem forças para gritar. Parece posta ali de propósito
para ele compreender a vida, parece que a criou a noite e lha mete pelos olhos
dentro. E um farrapo que se põe a gemer baixinho, um farrapo criado pela dor e
que já não pode com a dor, e que anda de mão em mão, como se a vida fosse para
ser desprezada e calcada. O Sr. Anacleto, que passou seus dias a vender caixões
para mortos, pela primeira vez tem a compreensão da desgraça. Quer dizer não sei
o quê e não pode. Não sabe. A outra espera molhada até aos ossos.
Nem talvez esta figura exista. Criou-a ele na imaginação e nela vê refletido o
futuro da filha. A desgraça? que é a desgraça que reduz os seres a esta
expressão atormentada, que os reduz a gritos e a sonho, dando-lhes ao olhar não
sei o quê que nos enche de remorsos? Talvez nem esta figura exista...
— Que desgraça? de que desgraça é que me vens falar nesta noite de lama e uivos,
que eu não compreendo bem, com figuras que me parecem fantasmas?...
— Pior que a fome...
— Mas fala! fala! diz-me tudo... Eu agora posso ouvir tudo... As piores coisas.
Mas a outra só geme baixinho, como se o gemido viesse de muito longe ou de
dentro do coração do Sr. Anacleto, que passou a vida a vender caixões para
mortos...
— Dinheiro, hã?
Dá-lhe à pressa todo o dinheiro que traz consigo mas a outra não diz nada... Não
é dinheiro que ela quer. Agora entende tudo... Volta atrás, aperta-a com
desespero nos braços, beija-a na testa e foge a chorar como um doido. Só agora
compreende, porque sofre, e toda a extensão da desgraça... Lá vai no escuro, com
os braços erguidos, a clamar:
— Filha! minha filha!...
Entra assim na escuridão cerrada, sob o aguaceiro que desaba do céu. Tropeça,
cai de borco com os braços para diante e estatela-se na lama, que lhe bebe as
últimas lágrimas.
CAPÍTULO 4
A Candidinha fora criada ao bafo da desgraça. O ódio mirra-a. Morar toda a vida
com a desgraça, seca: por isso a velha é de pedra e ódio. Com cinquenta anos de
fome e de catástrofe tem os cabelos negros e o coração de ferro. Para dar
têmpera ao aço mergulha-se na água: a sua alma endurece-a com inveja e lágrimas.
Já em pequena a irmã era o miminho e ela o tresogo. Nunca a pudera ver. Mais
tarde escarnecia-a:
— O teu pão dão-to os mortos!
Sonhara em ser rica como a outra e perdera-se: tinham-na abandonado com um filho
e era ela que lhe dava as sopas, às escondidas do Anacleto. E assim, vira todos
os seus sonhos convertidos um a um em amargura e farrapos. Começou a andar pelas
casas de fora com o eterno xale esverdeado e o Antoninho pela mão, atrás de
esmolas, vivendo uma prodigiosa vida interior, assistindo na sua alma a um
espetáculo sem par. As palavras de sarcasmo que lhe vinham do coração,
transformava-as logo em baba. A irmã era feliz, e a Candidinha não tinha pão que
desse ao filho eis a realidade quando à filha da outra não faltavam mimos.
— Tudo se transforme em veneno no teu corpo!
Sente ódio pelo mundo; ódio por ser pobre, pelas côdeas que outros comem, pelos
risos, pelas felicidades alheias mais somenos! Curva-se de rastos, aduladora e
má como as cobras, e de tanto odiar dói-lhe às vezes o coração: acocora-se a um
canto, com os joelhos à boca, sonhando em minas e desastres.
— Vive de mortos! vive de mortos!... exaspera-se.
Um dia, tanto espia a desgraça que a desgraça desaba. A irmã, depois duma
paixão, tomba no sepulcro, que o remorso abrira para a adúltera. O Sr. Anacleto
ignora o drama e com a filha unida de encontro ao peito, arranca-se-lhe dos
braços, lavado em lágrimas. A Candidinha, inteiriça, não a larga até o último
estertor. Regala-se de remorsos! sustenta-se de dor! E de si para si repete:
— O estúpido! Se eu me pusesse a falar! se eu quisesse falar!...
E ri-se sozinha. Falem-lhe de ilusões que logo a velha, com a mão afiada
surgindo de entre o xale rebate:
— Poesias! Neste mundo de enganos só há ser rico ou ser pobre! E mal dos
pobres!...
Redobram os maus tratos, atiram-lhe as esmolas, e ela curva-se e anda com o xale
rapado, a saia esgarçada e o filho pela mão, de porta em porta. Despedem-na e lá
torna, sonhando catástrofes e infâmias.
— Oh a desgraça não me servir! não estar a desgraça na minha mão!..
Se fosse sozinha, sem o filho, morreria de fome, atirada para um canto, com a
boca bem cerrada para não pedir, depois de dizer bem alto o ódio que a mina. Há
quantos anos contém aquela torrente esbraseada, que lhe sobe aos ímpetos até a
boca, incha, trasborda e que logo reprime!... Ah, se fosse sozinha preferia
engolir a língua a pedir esmola!
— Pudesse eu! pudesse eu!
E lisonjeia-os, aflita e abjeta. Em dias certos vêem-na aparecer, de negro,
dizendo a todos os que odeia, a todos os que quer ver bem atascados na dor:
— Vivam! vivam!...
O seu riso soa a ódio, os seus beijos deixam baba, os seus modos são refalsados
e hipócritas. Quem lhe dera morder as mãos que se lhe estendem!... E diz a
Sofia:
— O que nos vale são os benfeitores. Tu, sim, filhinha, que estás uma flor!
E de si para si:
— Ainda sejas mais desgraçada que as mulheres da vida!
Aquele salafrário, de orelhas despegadas do crânio, teve sempre junto de si a
velha a pregar-lhe:
— Neste mundo só o dinheiro pode tudo, ouviste?
Já em pequenino no colégio o desprezavam e batiam-lhe por ser pobre. As calças
que trazia davam-lhas por caridade; os mestres ensinavam-no por caridade; a
velha que o ia buscar vivia de esmolas. Fizera-se mau e hipócrita. Beijava
agradecido as mãos dos ricos que o escarneciam e tinha vergonha da mãe.
— Ó mãe...
— Hã, filho?
— Não me venha buscar ao colégio.
— Porquê, filho?
— Porque aqueles meninos riem-se de vossemecê.
A velha quer-lhe como à vida, como ao ódio. Talvez o seu filho pudesse um dia
vingá-la, calcar aos pés todos os benfeitores. Para isso o cria. Esse ser
gelatinoso, alimentado de côdeas, e representando desde que se conhece a comédia
da esmola agradecida, é mais que um filho, é a alma da Candidinha. Encharcou-o
de rancores. Insuflou-lhe o ódio. Podem calcá-la à vontade: serve-lhe de
pedestal. Está pronta a dar por ele o corpo à terra e a alma ao Diabo.
Construiu-o de restos e dum amor extraordinário, dum amor que gerou nas noites
de mudez e de sonho.
— Se eu pudesse esganava um! Não faças caso... Deixa estar que inda hás de ser
rico e rires-te deles. Hão de ter o pago!...
Contar o quê? Esta vida de exasperos e contrariedades mesquinhas, que desgasta
lento e lento como a água às fragas? A raiva de estorcegar, quando tinha de
babujar, desprezada e escarnecida, e o sonho inútil, que a deixa tonta e de
olhar esgazeado?... Quem tivesse génio para narrar o drama entre a mãe e o
filho! Ela conta-lhe as aflições, a fome, os maus tratos a comédia e a tragédia;
as horas amargas atrás da côdea, a humilhação, a máscara da estupidez encobrindo
a infâmia. Seca-o; dentro desse pequeno, de orelhas despegadas do crânio,
amarelo e hirto, há já uma velha, de xale rapado, a pregar catástrofes, farta de
hipocrisia e de esmolas.
Ao deitá-lo, a Candidinha senta-se ao seu lado no catre. Às vezes tem-lhe dado o
único pedaço de pão que há em casa; pega-lhe nas mãos para lhas aquecer e
conversam. O pequeno interroga-a, a Candidinha responde, traçando gestos no
escuro. Diálogo amargo entre o filho já crescidinho e a mãe gasta e desesperada:
— Olha o padrinho... É um canalha. Matou a mulher.
— E não foi preso?
— Se ele é rico! Os ricos podem tudo, filho. Neste mundo tudo é mentira, só o
dinheiro é que é verdade.
— E a gente é pobre, não é?
— É, filho, é... O que eu passo para te sustentar! Estou farta. Dão-nos os
restos, os sobejos... Deus os faça desgraçados.
— Mas, ó mãe, eles que são mais do que nós?
— São ricos.
— Mas são nossos parentes, não são?
— Isso são.
— E como o ganharam?
— Sei lá! Roubaram-no! E tratam-nos pior que cães. Que ganas eu tenho, quando me
dão a côdea, de os ver por baixo como a gente!... Se eu pudesse dar esmolas, não
dava esmolas a ninguém. Havia de me rir das aflições dos outros.
— Os meninos ricos do colégio também me batem.
— Morde-lhes, filho.
— E os ricos não repartem?
— Os ricos dão esmola, mas é para rebaixar a gente.
— Os ricos são maus?
— Como as pedras. Ninguém neste mundo se importa com as desgraças dos outros,
senão para se consolar. Cada um por si. E quem tem dinheiro tem
tudo. Este mundo é de quem mais apanha e o céu é de todos. Às vezes também diz:
Este mundo é uma bola, partido ao meio dá duas gamelas. Às vezes também ri e o
seu riso mete medo.
Ele cisma encolhido e transido. E a mãe ao lado clama horas e horas: esvazia a
cólera todo o dia represa. Sozinha à noite com o filho conta-lhe o que
surpreendeu em casa dos parentes, amargura e lágrimas. Eles também choram, que é
o que vale! Eles têm dinheiro e o dinheiro consola de tudo. E não cessa de lhe
lembrar:
— Sustentei-te dos restos, criei-te com aflições e esmolas. Recorda-te disso
toda a vida.
— Mas os outros são mais do que nós, mãe?
— Agora! Tu és melhor que os filhos dos outros. Tu és muito inteligente. Mas és
pobre e mal dos pobres! Chorei noites e noites a fio, por não te poder dar o que
tinham os outros... O Anacleto, sabes?... é rico.
— Como o ganhou?
— Como o ganham todos, tirando-o à boca dos pobres.
— E o Belisário?
— Esse casou com uma velha rica e matou-a com desgostos. Foi bem feito. P'ra ela
aprender, a estúpida! Não fosse tola! Nunca te cases pobre, ouviste? É tudo o
que há de pior. Mulheres não faltam. Arranja uma muito rica.
— E o pai não era rico?
— O teu paizinho morreu sem te perfilhar e os parentes deitaram logo a mão ao
dinheiro. Roubaram-nos.
— Mas então rouba-se assim?
— Quem tem dinheiro pode tudo. As justiças estão sempre do lado de quem tem
dinheiro, e contra os desgraçados. E ainda por cima fazem escárnio da gente.
Deixaram-nos a pedir. Mas hão de amargá-las, hão de ser mais desgraçados do que
nós! O filho da tua tia morreu no hospital. Tem chorado lágrimas de sangue.
Finge que és amigo dela mas não perdoes, ouviste? Se a gente se mostra como é,
põem-nos logo na rua. Cabeça baixa e andar p'ra diante, senão não se apanha
nada. Faz-lhe muitas festas, mas se um dia lhe puderes fazer mal, não lhe
perdoes...
— Mas eles dão-nos de comer, pois dão?
— Dão, mas é côdeas; dão por vaidade, por esmola, filho. Matam-nos à fome, para
sermos agradecidos, para nos poderem dizer tudo, para que a gente seja humilde.
— E a gente não lhes pode fazer mal?
— Por ora não. Mas quem sabe? A roda da fortuna ás vezes desanda e talvez um dia
tu lhes possas matar a fome aos filhos. Tem-se visto muito. Tu hás de vir a ser
rico.
— Como, mãe?
— Em sendo grande. Dorme... Neste mundo o que vale é o dinheiro. Com dinheiro a
gente ri-se de tudo, faz tudo quanto quer... Dorme.
— A gente hoje não jantou...
— Janta amanhã, cala-te. Dorme, que são horas.
— Não posso.
— Tens fome?
— Tenho, mãe.
— Esta fome que a gente passa, este frio que a gente rapa, hás de fazê-lo um dia
amargar aos filhos dos outros, quando fores rico. A esta hora estão os meninos
no quente, com a barriga cheia, e tu, meu filho, tens fome e frio!...
— E a gente torna amanhã a casa deles, pois torna? e finge que lhes quer bem?...
— Para um dia os poder morder.
E a velha tira dos ombros o xale rapado e embrulha-lhe os pés. Toda a noite fica
a seu lado, inteiriçada pelo frio e sonhando catástrofes... As vezes destrói a
vila inteira.
E foi assim sempre desgraçada e calcada a inveja e o ódio nunca lhe deixaram uma
hora de paz. Deu-se a um homem para ser rica como as outras
e ele ludibriou-a, deixando-a mais escarnecida e com um filho para criar. Morreu
sem o reconhecer e a irmã, a Felícia, que herdou, atira de vez em quando, uma
esmola ao filho bastardo. Os outros parentes nem o querem ver. Durante anos e
anos anda pelos tribunais a disputar a herança de seu filho, cheia de
requerimentos e papéis, desesperada e incansável. Lembra um palhaço com o chapéu
sem penas e a saia emendada, em perpétuas correrias, do tribunal para casa,
contando a quem a quer ouvir a eterna história da herança e o eterno sonho de
riqueza. Os ratos do tribunal já a veem surgir com pavor. Conhecem-na pela
Velha.
— Aí vem a Velha!
A este grito de alarme os cartórios tremem, as portas cerram-se de pavor, os
escrivães abalam, fecha-se a sete chaves o juiz. Porque ela é implacável e duma
energia que nem diante dos sarcasmos recua. Sonha com a herança, só pensa na
herança, no oiro do seu filho. Toda a gente na vila ouviu a habitual lamúria que
ela narra a propósito de tudo, sem tom nem som, nas lojas e nas ruas,
agarrando-se a quem passa, procurando interessar os indiferentes, com o filho
pela mão e a pena esfarpada ao vento.
E não desanima. Espera horas, dias, semanas; esperaria séculos com a mesma fé
heroica. Mete empenhos, cansa os procuradores, promete-lhes metade da fortuna.
— Porque eu tenho por mim a justiça! eu tenho do meu lado a lei!... brada.
— Aí vem a praga!
E como ela não tem dinheiro pregam-lhe partidas. O seu xale verde é célebre, a
sua figura exótica conhecida de todos os juízes: até os contínuos sabem a sua
história desconexa.
— Tenho por mim a justiça!
Enquanto possui algum dinheiro, tirado á boca, pedinchado, arrancado a uns e a
outros Deus sabe à custa de que humilhações, atendem-na, fingem servi-la,
dão-lhe conselhos inúteis. Pedem-lho adiantado: «sem preparos não se consegue
nada». A irmã e o Sr. Anacleto amparam-na, mas como aquilo é um saco sem fundo,
um vasto sumidouro, um dia ele, depois de se informar, opõe-se com energia:
— Nem mais um pataco! Isto da herança é uma santa história!
A Candidinha imagina logo uma perseguição. É para a perderem. Querem-na pobre e
ao filho, por inveja, para a terem ali presa, miserável e calcada, sempre
dependente. E repelem-na no momento tinha-lho dito um contínuo do tribunal em
que o processo estava ganho e a questão vencida. Via já o oiro ali presente, a
fortuna nas mãos. Era de propósito para a esmagarem. Nem assim desanima. Rompe
pelos cartórios, esgalgada, persistente, feroz ora com risos aduladores, ora
numa lamúria sórdida, ora desorientada pelas insónias. Corre todos os advogados,
todos os juízes, todos os homens de lei. O seu ódio transfigura tudo: as coisas
afinal para ela já não existem dúvidas
sucederam como as imagina. Confunde a realidade e o sonho. A irmã quere-a pobre,
desgraçada, sujeita às sopas alheias que sabem a vinavre. Certifica-se de que a
roubaram, de que lhe tiraram o dinheiro do filho e o pão da boca.
Durante anos e anos persiste, espera, anda pelos tribunais, com o filho pela
mão; passa dias nos pátios húmidos. Quebra as relações com a irmã e a Felícia:
Roubaram-me! Não dorme. Gasta os últimos patacos, passa pela pior das misérias.
Um dia afinal convence-se de que a luta é impossível estão todos contra ela! e
abraçada ao filho pequeno, exclama vencida:
— Roubaram-te, filho! roubaram-te!...
Sucumbe e fica dias e dias sem sair da trapeira, a cismar; depois, abaixa-se,
curva-se, finge-se idiota; seu riso soa mais falso e volta a casa da irmã e das
velhas, pedinchando a côdea. Esconde o ódio; vive fechada com o seu sonho
enorme, por fora uma velha pelintra, por dentro um horror sem limites.
— Vamos, filho, não há remédio, estás pobre! Os teus parentes roubaram-te!
Está pobre e os outros ricos. Tem de se sustentar, a si e ao filho, da caridade.
Aquela alma de ferro encontra-se diante dum mundo atroz e suporta-o; diante da
injustiça e aguenta-se. Pior: a Candidinha tem de ser submissa, senão matam-na à
fome. Há de obedecer às velhas ricas que lhe dão os penantes fora de uso e a
côdea de obedecer e de sorrir senão matam-na à fome a ela e ao filho. É forçada
a ver os outros meninos vestidos de macacos
e o dela esfarrapado, e a fazer-lhes festas ainda por cima quando a sua vontade
é estorcegá-los. Peça já obediência! intimam-na e ela sorri e curva a cabeça
como um cão espancado a quem se faz uma festa.
— Estou até aqui... E aponta a garganta. Até aqui, ouviste? Tu, tu que estás a
olhar p'ra mim? Nunca me viste? Eu sou a Candidinha! Quem manda agora sou eu.
Ah! a Candidinha é uma escrava, a negra? Diante da Candidinha pode dizer-se
tudo, tudo! É uma estúpida... A Candidinha é pobre, pior que uma criada, pior
que um cão, não é, Candidinha!...
Ri, com a saia enfunada, o xale caído, e o seu riso faz medo.
— Enche-se-lhe às vezes a barriga, mata-se-lhe a fome e ao filho, porque é uma
estúpida. A Candidinha faz rir a gente... E eu eu! e pára, endireita-se, seus
olhos chispam ia e vinha com frio e fome, a fingir-me esquecida e parva, para
que todos se rissem de mim e nos atirassem a côdea. Tu tinhas pena? não tinhas
flor! da Candidinha, que te beijava as mãos por não tas poder morder?
Pára diante de Sofia, com um riso que é a babugem de tudo o que cismou, de tudo
o que sonhou...
E logo torna:
— Ah, minha rica, acabou-se! acabou-se tudo. Sufoco! Posso berrar, posso gritar
tudo isto, tudo o que trago ca dentro há tantos anos a remoer... Só tinha pena
de ir para a cova com este segredo atravessado aqui. Não! eu não podia
morrer sem desabafar. Nem a Morte se atrevia comigo! Não posso dizer de repente
tudo isto, tudo o que trago cá dentro. Mas temos tempo, sossega... Eu dizia
baixinho comigo: Um dia virá! a desgraça há de chegar! Fartei-me de chamar a
desgraça um ano, outro ano e a desgraça a fazer ouvidos de mercador. Todos
felizes! só eu andava com este xale, a rir-me pelas casas de fora, com a barriga
a dar horas. Ó estúpida! Que é! Ó Candidinha! Que é? O estafermo! Que é? Eu era
tudo porque precisava de matar a fome e de a matar a meu filho!... Quant'é! Se
fosse sozinha no mundo envenenava-me. Mas tinha o meu filho!... Até que a
desgraça chegou!... Tanto esperei, tanto berrei que a desgraça ouviu-me, a
desgraça está nas minhas mãos. Posso berrar! posso falar! A Candidinha aqui
está! Sou eu!...
Toda de negro, com uma crosta de lama no vestido, cresce, batendo no peito com a
mão óssea. E outra é imensa como o ódio.
— Todos se regalaram de fazer bem à Candidinha. Até tua mãe, até teu pai, que
vivia de mortos, me matou a fome... Ah! esquecia-me de te dizer que o velho te
deu ao desprezo. Tu não és filha dele! De mais a mais não tens vintém. Até esse
me enganou!
Também estás pobre e o seu riso soa mais alto. Pobre, ouviste? ouviste?... Eu a
comer-te por rica e tu sem vintém!...
Despe-se enfim da comédia que representava há tantos anos e fica ódio estreme.
Descera às últimas humilhações, embrulhada naquele trapo
esverdeado, e agora clama injúrias e pragas. Vinga-se. Era desmemoriada e
estúpida e não há pormenor da sua vida abjeta que tenha esquecido. Sai da
humilhação e rompe do desprezo, encardida de ódio, amarga como o fel, rota,
pobre, com o filho querido ao lado, o eterno xale aos ombros, mas podendo gritar
e fazer chorar os outros. Secou: as mãos parecem lâminas, a voz soa-lhe como um
glácido que se choca. Domina. E prega, cospe, clama o dia inteiro; mistura de
gritos, de sarcasmos, de infâmias, de trapos e pormenores que só ela recorda;
arrancos que despertam risos e medo e palavras que são pedaços da própria alma.
— A tua mãe!... Há, flor, a tua mãe? São todas o mesmo, minha rica!... Eu tive
uma falta, o meu filho, mas a tua mãe foi culpada! Sentia-a ao pé de mim morrer
de dor. Nunca a pude ver! desde pequenina que a não podia ver! A morte levou-a
esvaziada de gritos... Foi dar de esmola seu corpo aos bichos.
A velha é ódio alimentado hora a hora durante anos. Nunca a desgraça a dobrou;
inteiriçou-se. Nenhuma desventura, nem a fome nem o escárnio lhe embotaram o fio
ao rancor; pelo contrário, afiaram-lho.
— O meu S. Miguel há de chegar!
Às vezes voltava para casa sem um pedaço de pão. Tinham-lhe dado com as portas
na cara. Ela vingava-se sonhando.
— A minha vez há de chegar! Tens fome, velha? tens frio? Hás de regalar-te de
gritos e de lágrimas. Deus deve-mo pelo que tenho sofrido.
Mas o pior é que a Candidinha, o trapo, não podia fazer mal a ninguém. Bem
arquitetava catástrofes: a realidade varria-lhas dum sopro. Todas as infâmias
que sonhava se desmoronavam logo. Tinha de representar a eterna comédia, cheia
de fome e de sonho.
— A esmola! Se eu um dia estiver nos casos de fazer bem aos outros, não lhes
faço senão mal.
Ódio inútil gasta. Sonhar uma hora e outra, sem o mínimo clarão, esgota, afunda,
amolece. A velha não. E de pedra e ódio. Ajunta minúcias ao seu sonho de ruínas,
completa-o, e caída de pobreza em pobreza, de abjeção em abjeção, repete, cheia
de fé:
— O meu S. Miguel há de chegar!
É inteiriça. Não larga o xale nem o quico, para cair como uma nódoa na
felicidade dos ricos. Quer ir para a cova com o chapéu desasado e a saia
esgarçada com aquele vestido, com que sofreu tantos anos, dizendo aos outros
Vivam! vivam! quando tinha a boca cheia de pragas.
— Deus deve-mo! Deus deve-mo!
Mas os anos passaram e o seu ódio era inútil. A desgraça ensurdecera: os outros
continuavam felizes, ricos, repletos. Apelara para o sonho, encharcara-se do
sonho. Oh! essas esplêndidas noites de pavor e de gritos quem as pudesse fixar!
As horas de ódio em que todos nós, em imaginação,
mergulhamos, sentindo os nossos inimigos, calcados aos pés, gemer enfim esta
palavra: Perdão!... A Candidinha enchera-se. Quem na via passar, de xale a rasto
e olhos perdidos, seca e enorme, talvez pensasse:
— Pobre velha!...
E com ela seguia no entanto um sonho de pavores em um brasido. A Candidinha via
os que lhe davam esmola morrer na infâmia: eram farrapos, gritos, monólogos toda
a noite, toda a vida... Toca a rir da velha e a velha sonhava as piores
catástrofes.
Sustentava-se de miséria, alimentava-se de dor. Era o seu pão férreo e amargo,
mas dum sabor estranho. E seca, desconforme, a boca trémula, as mãos afiadas, o
xale achegado ao peito, viam-na entrar, cheia de desgraça e de ódio, dizendo num
sorriso estampado:
— Viva! viva quem é uma flor!...
Quando do alto daquele sonho de gritos régio dom que a natureza, Deus ou o
Diabo, repartem pelos desgraçados para os sustentar na vida a Candidinha topava
de súbito na realidade e lhe notavam nas mãos frialdade, e apesar do chapéu
depenado e do vestido roto, alguém lhe lia tragédia no desvario do olhar, logo a
velha acudia com risos:
— Filhas! filhas!...
E todos concordavam entre gargalhadas que a Candidinha era na verdade uma
estúpida. E ela lá partia de novo para o sonho, com o filho pela mão, revolvendo
a mesma chaga.
Aí a têm agora patente. E fora essa a sua verdadeira existência, porque o sonho
é tudo é todo o indivíduo muito melhor que a matéria, os gestos, as palavras. O
sonho é a única realidade. Essa construção que vive oculta, obscura ou
grandiosa, esse perpétuo desfilar de exasperos, de raivas, de meditações, esse
teatro só para nós mesmos, onde não há máscaras, e que criamos à custa de
sangue, de nervos, dum perpétuo e obscuro labor deslumbrante ou cómico é na
verdade a nossa alma. És tu. Ali vive, ali está, disforme ou harmónico,
admirável ou vil, bem patente, o teu verdadeiro ser. Espicaça-te a vida por
fora, crias logo por dentro. Assim essa arquitetura feita de invejas, de ódios,
de pequeninos nadas, era a Candidinha; a outra não passava duma máscara...
Viera a velhice, podia seguir-se a morte embora que lhe restava o filho, a quem
dera o ódio em vez de leite. Criara-o mais do que com amor, com frenesi, para a
vingança. E com os anos, mais alto, mais rijo clamava pela desgraça... O seu S.
Miguel havia de chegar.
Toda a gente se tinha rido dela, e se ela num ímpeto desvendasse a alma, todos
gargalhariam ainda. Diante do ódio da velha haveria risota; aquele oceano
tumultuário só despertaria troça, porque era pobre e não se podia
vingar. Parecia muitas vezes tonta quando caía de súbito de tão alto. Riam-se em
volta, quando exclamava sem tom nem som:
— Ai, filhinha, que estás uma flor!
Agora cruza os braços, e é ela que ri, o xale sem pêlo tombado no chão. Ri,
resfolga. Parece que se lhe vê, que irrompe e a circunda, o sonho represado. Não
pode mais; e aquilo ressalta em babugem, em espuma, em palavras, em fel, em
chufas até que num grito supremo, livre enfim, num grito de ampla satisfação,
repete e conclui:
— A Candidinha sou eu! eu é que sou a Candidinha!
E com a bocarra aberta, chega a cara junto à de Sofia, que se ergue num pavor.
— Ouviste? ouviste? ouviste?
Outro grito e Sofia, por entre lágrimas, vê de súbito erguer-se dum canto uma
criatura amachucada, em quem não fizera reparo e que, de braços estendidos e com
o olhar extático, intercede num arranco:
— Jesus! Jesus! Jesus!
CAPÍTULO 5
Meia dúzia de casebres, a Misericórdia, a Igreja, a Cadeia, o Hospital, e alguns
preconceitos mais inabaláveis que os edifícios denegridos de granito. Isto à
primeira vista é vulgar, mas o mundo interior que produziu esta floração de
pedra infunde medo e respeito. Para a Candidinha o suportar e não morrer à fome
passou transes, como se tivesse diante de si uma camada de aço a furar. Não sabe
nada e tem de comer; não pode atirar fora o quico e ir servir, porque desce da
sua dignidade e o seu orgulho é feroz. Há regras indispensáveis a que a
Candidinha se adapta: não pode ser criada porque enquanto mantém certa aparência
embora viva de esmolas, embora se sustente de sobejos a Candidinha pertence à
sociedade como as outras: não é uma pessoa ordinária. Adapta-se para que o filho
seja como os mais e esconde lá para o fundo o seu sonho. Vive pela abjeção e
pela humildade, faz o milagre de viver pela astúcia, submetendo-se e sorrindo.
Ela sabe que os ricos a podem matar à fome se quiserem e que a vida pesa
toneladas. Não esgana os meninos felizes e sorri-lhes; entra numa casa e
descobre logo pela atitude e pelo olhar duro que a vontade do dono é pô-la na
rua e pouco e pouco com a alma em sangue, consegue atenuar aquela camada de
desprezo e ganhar a côdea. Mas ser palhaço com uma alma de ferro é difícil. O
destino das almas de ferro se são pobres é acabar na cadeia e o das outras
morrer no asilo. Pois a Candidinha, apesar de tudo, come, educa o filho e
alimenta o sonho do ódio,
cada vez maior, o sonho que lhe enche a vida inteira. Anda de casa em casa; tem
dias certos de representar numa a submissão, noutra a fé, noutra a humildade.
Nesta passa noites à cabeceira da velha caquética a limpar-lhe a baba; naquela
não diz mal de ninguém é um poço sem fundo; e noutra diz mal de toda a gente;
conforme as personalidades, os caracteres e as ocasiões. Estudou tudo e sabe
tudo. Conhece a vila por dentro e por fora, e até lisonjeia as criadas para não
morrer a fome. Chega a ser agradável. Só as crianças a não toleram. Por mais
festas que lhes faça, desatam a chorar logo que a veem. Talvez ela as belisque
às escondidas ou talvez adivinhem a figura trágica sob a figura pelintra.
A Candidinha é útil. Quando a gente sabe que a velha tem fome, faz melhor a
digestão; quando passa ao vento, com o filho a rasto, sentimos mais quente o
agasalho dos nossos filhos; e a sua humildade, o seu ridículo dão certa grandeza
à nossa vida. Quem tem muito come muito, quem tem pouco remedeia diz-lhe às
vezes a Patrícia com a barriga repleta. Não só a Candidinha chega a ser útil e
necessária como todos os pobres mas chega a ser indispensável. Se não houvesse
pobres que havia de ser do mundo? A vida não era um gozo e perdia pelo menos
metade do valor. Que satisfação, quando chove, a gente a coberto saber que a
água só cai no pobre... Chove chove mas é no pobre. E é bem que chova, primeiro
pela satisfação que a gente sente em não a apanhar; segundo para que haja
diferença entre as classes da sociedade. Há pobres que não dão por isto, mas a
Candidinha, que
converte tudo em sonho, quando atravessa a praça sob o aguaceiro até fumega...
Chega o dia em que o Antoninho se faz homem e a vila repele-os. Toda a gente os
conhece, toda a gente lhes deu farrapos, toda a gente lhes matou a fome e os
despreza. Anos antes a velha e o filho tinham partido para a cidade à busca de
fortuna. Na terra diziam dele: É o filho da Candidinha. Falavam-lhe com ares
protetores e todos sabiam como fora criado. Não andara em vão, em pequeno, de
casa em casa a recitar versos para os outros se rirem...
Imaginem a vida da mãe e do filho perdidos num grande centro: a energia
despendida em insignificâncias, e o vácuo à roda destas ambições contrariadas
entre a teia de mil tragédias e rancores. Cada um faz por afastar de si os
outros. Cada qual cala o seu sonho, a sua quimera, o seu exaspero. Recalca-o e
cisma: esconde-o para que o não despedacem. E necessário também não perder
tempo; o triunfo depende duma luta sem tréguas, dum pensamento obstinado e de
futilidades que contêm infinitos desesperos.
Durante esse tempo, a Candidinha vira o filho casar pobre por esta coisa
estúpida — o amor! Uma mulher prendera-lho, apesar dos seus protestos e dos seus
conselhos. Levara-lho!... E a velha calou-se metendo para dentro o rancor,
passou a ser escrava da outra, voltando a sujeitar-se a uma vida atormentada por
mil nadas ridículos e ferozes o frio, a fome, as roupas que se usam, a desgraça
surrada, o abraço impalpável dessa figura magra e enorme,
sem aspeto trágico, e no entanto horrível, que começa por infiltrar um frio
mortal nos que lhe caem nas mãos.
A Candidinha quase não comia, para que nada faltasse a seu filho e à nora. Ele
lutava, aos ímpetos, com quedas de desânimo. Intrigava, mentia, sorria e as suas
humilhações eram quase sempre desnecessárias, os seus sorrisos de aquiescência
inúteis. Tudo no Antoninho vinha fora de tempo até a hipocrisia. Diante daquela
figura triste, de mãos sempre frias e húmidas, todos se fechavam como se por
detrás dela irrompesse outra maior, de xale esgarçado ao vento e sorriso fixo na
boca: Filhas! ó filhas!... Havia nele um remoto mundo de fome e de inveja que se
pressentia logo. Soava falso. Nunca se fartara. Os dentes tinham-se-lhe aguçado.
No íntimo a mãe pesava-lhe; a Candidinha aguava-lhe a existência. Na cidade
proibira-lhe aparecer, com o velho xale e a saia negra desbotada, a quem o
procurasse. E ela compreendera-o, e sumia-se. Dava tudo, dava a vida, a velha,
para o ver subir como os outros. Era a criada. Servia-os sem palavras de
desalento ou de cólera, só para não se separar do filho. Fazia os serviços
repugnantes, humilhava-se diante da nora, sorria-lhe para ser agradável!...
Ele fizera a asneira de se casar! E tantas vezes a mãe lhe dissera:
— Não te cases... Mulheres não faltam, são todas o mesmo... Olha que te
arrependes... Arranja uma rica. Com dinheiro, filho, tens depois todas as que
quiseres todas!...
Em vão! a outra arrancara-lho, e ela sem uma palavra de exprobração lutava pelos
dois. Só ela se mantinha de pé ante todas as catástrofes..-Sustentei-te de
côdeas!... costumava pregar. E ele dizia-lhe logo: Cale-se p'ra aí!...
E a Candidinha calada! E a Candidinha a esfregar a esfregar e a sonhar! para que
a outra não estrague as mãos e a Candidinha a sorrir-lhe mostrando-lhe os dentes
descarnados e a Candidinha a encostar-se às paredes para que ela passe e se não
suje ao seu contacto de esfregão e a Candidinha à espera!... Porque espera
enquanto o filho gosta da lambisgoia. Atrás de tempo, tempo vem... E leva-lhe de
manhã o leite á cama, dizendo lá por dentro: Repoltreia-te! repoltreia-te nos
meus lençóis!
O Antoninho mete-se na política. De botas rotas, calvo, sem preconceitos, capaz
de tudo, deita-se a adular o conselheiro, a fazer recados ao conselheiro, a
rir-se com baixeza diante do conselheiro. Mas o Antoninho é reles de mais: chega
a meter nojo ao próprio conselheiro, com quem travara relações num teatro de
terceira ordem, onde fazia às noites a escrituração comercial. O conselheiro ia
por lá ver as coristas... Representava-se ao tempo uma grande revista do ano o
Pistautira com música, versos, piadas chulas, fogos de bengala e rabos ao vento.
No corredor, que fedia a urina, passavam mulheres correndo; a orquestra atacava
com gana uma música de batuque e o coro de fêmeas caiadas de branco avançava,
com trejeitos canalhas e os ventres içados:
— «Ó ricocó, ó ricocó, vamos todos à procura do badalo!» A multidão aplaudia. O
suor escorria da calva do maestro, um velho alheado, que tinha a filha tísica á
morte. Subia um pano: era o quadro final, quando a grande atriz na apoteose
mostrava tudo, entre aplausos frenéticos do público.
O conselheiro entrara no escritório mascando um grosso charuto e uma chalaça.
Com as pálpebras cerradas, chupava na folha de couve retorcida, perguntando: E o
pequename? como vamos de pequename?
Ia justamente fazer-se uma remonta de coristas a que o Antoninho presidia.
Datara dessa época a proteção do grande homem, que o fez entrar como
escriturário para um jornal. A Candidinha agarrou-se ao filho: Adula-o! E em
casa só se falava nele baixinho como num deus. A velha não o conhecia, mas tinha
pelo conselheiro uma adoração sem limites.
O conselheiro começa a empregá-lo em diversos serviços, e o Antoninho espera a
ocasião decisiva. Cambado e gasto vê passar na sua frente uma singular caravana
de figuras abjetas; uma galeria de ambiciosos célebres, à sombra da qual
triunfam os medíocres. Alguns deles conhecem todas as linhas com que se maneja o
homem e todos são corretos, gelados e céticos. O conselheiro, gasto por todos os
gozos, lembra um cadáver, dentro da magnífica sobrecasaca debruada de seda.
Restam-lhe poucos pêlos na cabeça; a fisionomia parada não tem expressão, nem
brilho o olhar indiferente. É um homem que se sente desprezado. O bigode caído,
a pálpebra cerrada, a cor
esverdeada, o charuto enorme nos lábios grossos dizem a sua sensualidade, as
suas infâmias secretas. Não recua nunca; um dia descobre a mulher do Antoninho e
cobiça-a... Começa a protegê-lo mais eficazmente, poisando-lhe a mão protetora
sobre o lombo... O Antoninho aproveita. Depois vem um negócio político, uns
papéis de que ele precisa absolutamente, da companhia africana onde empregou o
Antoninho. Ei-la enfim! a ocasião, a sorte grande esperada com ânsia. O
Antoninho tem medo e hesita. A Candidinha diz-lhe:
— Agora ou nunca! Faz-lhe tudo o que ele te pedir, mas joga pela certa, filho!
Estamos ricos!...
E a velha trágica esboça um passo de dança.
Num terceiro andar da Baixa. O Antoninho escreve. Ao lado, na mesa, está poisada
uma ponta de charuto apagada. A mulher cisma ou chora, com a cara escondida
entre as mãos. Ele, remexendo uns papéis, diz:
— Nem um pataco! Enchem a gente de ilusões p'ra quê! Deviam pregar-nos desde
pequenos: Só há o dinheiro! O dinheiro dá tudo consideração, poder e honra. Eu
nasci para ser rico, para dominar, para mandar, e afinal... Tu que dizes?
— Nada.
— Ah! nada? Bem... O mais que pode acontecer é despedirem-me da companhia. E
agora?... Não dizem uma palavra e há dois dias que lá não vou.
Naturalmente não deram pela falta. Imaginam que estou doente... Um inferno! um
verdadeiro inferno!...
— Que desgraça! que desgraça!
— Lamúrias! palavras! De que serve isso agora?
Ela explui em lágrimas; ele ergue-se e contempla-a:
— Ah temos lágrimas... Fazes bem!...
Vai para a janela e assobia. Ela, passado um momento:
— Deixa-me chorar.
— Pois chora para aí à tua vontade. Se isso te alivia, chora...
— Roubar!...
— Roubar, não! Foi um desvio... Não sou um ladrão. Toda a gente faz o mesmo.
Mas quando era preciso dinheiro em casa, quando tu querias dinheiro para trapos,
para futilidades, para gastar, não me perguntavas, não me perguntaste nunca,
donde ele vinha.
— Eu... mas eu podia lá supor!...
— Está claro que não podias supor nada. Querias dinheiro. Já agora que nos pomos
a falar em coisas tristes, escuta... Então tu, que gastavas cem mil
réis por mês, quando eu não ganhava trinta, donde diabo imaginavas que me vinha
o dinheiro, hã? Que ingenuidade a tua!
— Mas eu podia lá pensar!
— Pedias-mo, não era?
— Mas vivêssemos pobres...
— Isso! Vivêssemos pobres... Eu estou farto... Um idílio numa água-furtada, O
Trabalho e a Honra?... Na desgraça deu-te para seres romântica! Não te faltava
mais nada. E tudo isto são palavras. De que servem, não me dirás? O pior é que
por causa duma miséria de duzentos mil réis, que tencionava repor, estou
perdido...
— Como há de ser?
— E dizer que estava próximo do triunfo... Um punhado de oiro e era a salvação.
Pudesse eu impor-me ao conselheiro... Arranjem-me uma mão-cheia de oiro, que eu
faço a maior infâmia deste mundo, até um crime, se se não souber.
— Cala-te! Ao menos finge.
— Tenho lá tempo para isso!
A Candidinha entra sorrateira com uma carta. Ele rasga-a, lê-a apressadamente,
enquanto a velha sai.
— Sabes o que é?
— Eu não. E no seu olhar há ansiedade.
— Descansa, não é ainda a policia. Ameaça duma penhora. Parece que pressentem
quando a gente cai. A desgraça clama em altos gritos pela desgraça!
— Que importa! Já não me importa!
— Os brutos! Que penhorem. Tudo isto é falso. Que levem as mesas de pinho. Só a
minha ambição é que é verdadeira. Se não triunfo é por causa do dinheiro... E tu
és tão culpada como eu.
— Mas eu nunca te pedi...
— Nunca me pediste?... Mas tu que querias?... Andar com um vestido roto, coser
toda a vida os teus trapos, ter no fim do mês trinta mil réis e a fome? Já te
não lembra o que passámos durante dois anos? Era isso?
— Antes isso.
— Palavreado. Se nos não fingíssemos ricos desprezavam-nos. Tudo são aparências:
a honestidade, a virtude e a honra. Tudo aparências. O que é real e feroz é a
pobreza. O pobre pode ser um santo é calcado; pode ter génio é logo posto de
parte... Lembra-te! lembra-te!...
— Apoiado! apoiado! exclama a Candidinha.
— Antes um pedaço de pão...
— E uma cabana, não?... Se tu soubesses as aflições que tenho sofrido, os
desesperos, os cálculos por terra, as noites sem sono a arquitetar sobre o bico
duma agulha... O quê? Projetos para enriquecer, para mandar... Tem-me caldo tudo
por terra, por falta de base sólida, de oiro, filha do oiro omnipotente.
— E valia a pena ter todas essas aflições?
— Sei lá se valia!... Há um tempo para cá, passamos por ter dinheiro. Pelo menos
vivemos como quem o tem, que é o que o mundo quer. Em casa não há um pataco, mas
eu rio-me, tu ris-te. Eu falo despreocupado e trago o inferno aqui dentro.
Letras a pagar, dividas, o diabo... Caminho sobre o fio duma navalha. Se dou um
passo em falso é uma queda mortal. Palavra, não sei como não tenho uma lesão no
coração. Ainda se tu me ajudasses!...
— Mas como? Bem sabes que te amo, amei-te sempre. Somente não posso com esta
vida. Eu era mais feliz se tu quisesses...
— Ser pobre? Obrigado. Não, antes quero morrer... Se tu quisesses, se tu
pudesses... A mulher moderna precisa de ajudar o homem na conquista da vida,
saber dissimular, saber sorrir. Tem de ser falsa, de fingir, de rir até quando
tem vontade de desatar aos gritos.
— Não posso...
Ele mais baixo, com uma voz diferente:
— Vem aí logo o Meio... Se tu quisesses...
— O quê?
— Arranjavas-mo...
— Mas aonde, aonde?
— Oh filha, é preciso que compreendas bem isto. Eu estou perdido se se sabe.
Bati a todas as portas. Ou entro até amanhã com o dinheiro no cofre da companhia
ou dão pela falta. Sou preso, agora que ia ter diante de mim a vida assegurada.
É a desgraça, a humilhação, a fome.
— Meu Deus!
— Nada de frases, não temos tempo para frases... Digamos as coisas como elas
são, impiedosas e secas, nítidas. Os minutos são preciosos. Eu amo-te. Provei-to
sempre.
Ela soluça. Ele cala-se um instante.
— Bem, tu exasperas-me. Como se tivéssemos tempo para chorar!
Passeia dum lado para o outro. Depois, chegando-se a ela, baixinho:
— Eu posso ser deputado amanhã se tu quiseres...
Silencio embaraçado. Ela fita-o nos olhos e pergunta com receio:
— O quê? o quê, diz?
— Agradar ao Meio.
— Oh!
— É só agradar-lhe, sorrir-lhe! Que diabo te custa? Choras? Deixemo-nos de
frases e de lágrimas. Não há tempo a perder. E preciso ajudares-me, filha... A
mulher hoje é um grande auxiliar do marido. Um sorriso, e temos tudo na mão! Ele
gosta de ti... Que diabo te custa? Todas fazem o mesmo... Mais lágrimas? Com
lágrimas não pagamos nada a ninguém... Ele tem-me nas mãos ouves? tem-me nas
mãos... Vá, não chores... Tu bem sabes que gosto muito de ti... Então?...
— Não, não posso...
A Candidinha que escuta sempre às portas entra. Ela enxuga as lágrimas.
— O Sr. Melo procura-te, filho! É o Sr. Melo!
A Candidinha fica à porta, encostada à porta, à escuta e à espera. Espera
sempre. Essa figura trágica tem-se sujeitado a tudo à espera...
Já pode outra vez alimentar o sonho nas noites de solidão e de frio, arder e
reentrar no seu esplêndido domínio. Mete a boca para dentro. Ninguém lhe ouve
mais uma palavra e sonha. Espera e sonha... Está pronta para tudo: para ir aos
pregos, para se levantar de noite, para passar fome, contando que a deixem
sonhar. Inventara até uma maneira de ganhar a vida. Não dormia! À noite aquela
figura impiedosa fazia caixas de papelão para as lojas de modas,
com um oceano na alma, cismando no futuro do filho, a soprar de vez em quando as
mãos geladas. Três tesouradas no papelão uma morte... Dois pontos para fechar a
caixa uma desgraça... E na noite imensa, na noite gelada, sozinha na
água-furtada do prédio, toda ela era um brasido uma pincelada de cola e cisma...
E o olhar perdia-se-lhe no vácuo com a caixa terminada nos gadanhos hirtos de
frio.
Durante meses, seus olhos irradiam felicidade contida e a sua voz tem tremuras.
Baixinho diz constantemente de si para si Enfim! enfim!... É que, ao mesmo tempo
que vê a sua ambição prestes a realizar-se, a Candidinha assiste à degradação da
outra, que nunca deixou de odiar. A outra que lhe roubara o amor do filho, de
quem foi criada, e que se lhe refastelou nos lençóis. Não a pode ver não a pode
ver porque se meteu de permeio entre os dois. O seu filho foi ela que o
sustentou e o criou, não só de pão e de bafo, mas das noites em que repartiram
febre e sonho. O filho é dela. Agora exulta: Não recuses nada ao Sr.
conselheiro, filho, mulheres há muitas... Agarra a sorte pelos cabelos...
Deixe-me! Mas ambos vivem extáticos, à espera. Passaram tantas horas a ruminar
no triunfo e vêem-no agora ali ao alcance!... A vida fora uma luta cruel, um
exaspero contínuo. Para arranjar dinheiro para o dia seguinte gastavam tanto
cérebro como para arquitetar um poema. Isto não se conta. São coisas sórdidas e
miúdas: uma batalha travada todos os dias com a realidade, os credores, a
miséria, a vergonha... E tudo mudara logo. Durante meses enchem-se; a Candidinha
compra um xale novo e rico mas não o quer
usar. Tem-lhe medo. Mais tarde! mais tarde! que a desgraça pode tomar...
Fecha-se no quarto, abre a arca e fica horas. a contemplá-lo deslumbrada. O
Antoninho pede dinheiro ao conselheiro. Mudam de casa... Mas o pior é que aquele
enlevo dura apenas meses; de repente o conselheiro aborrece-se: Homem, você não
se farta! Agora não tenho dinheiro... E um dia, inesperadamente, diz-lhe, quando
ele menos o espera, quando se sonha inabalável, deputado em breve, em breve
rico: O meu amigo não me torne a procurar... O Antoninho ri-se. Você ri-se?... O
Antoninho faz-se branco: O senhor bem sabe o que me deve. Bem sei, mas já lhe
paguei. Paguei-lhe de mais, despeço-o declara-lhe o outro friamente. O senhor
tem-se enchido à minha custa. Pode-se ir embora. O Antoninho lívido, com
tremuras de cólera na voz, avança: Tenha cuidado, eu tenho provas, tenho
cartas... O outro ergue-se e torna-lhe sereno: O senhor é muito pior canalha do
que eu imaginava. Provas? que provas? Sirva-se das provas da sua infâmia, se
quiser. Se o meu amigo não fosse um imbecil mandava-o meter na cadeia! E ri-se.
Precisei de si, deitei-lhe a mão: É-me inútil, boto-o fora. Creia, nunca há de
fazer nada na vida, digo-lhe eu. Nem ao menos soube aproveitar-se da sua
situação senão para me arrancar dinheiro. E com desprezo termina: Pode
retirar-se...
Vingar-se? Sobre ele pesa uma espessa camada impossível de furar. E inútil o seu
desespero. O outro está muito alto, inabalável como a Força, omnipotente como o
Oiro. O Antoninho tem medo. A verdade irrecusável e
nítida é que o desprezara e escarnecera. Sonha as piores infâmias, as mais
amargas vinganças mas fica-se só com o sonho e o amargor das coisas
irrealizadas. Anda desvairado pelas ruas, intriga, fala, escreve-lhe cartas com
ameaças e com súplicas por fim. Tudo inútil. O silêncio é uma abobada espessa
entre ele e o seu inimigo. Depois caem-lhe todos em cima. Desprezam-no. Do
passado resta-lhe a Candidinha, a mulher e a sua abjeção, as dívidas, o escárnio
e as piores humilhações. Arredam-se dele. O Antoninho fizera inimigos só por
estar quase a vencer. Paga caro o seu insucesso. Fingem que o não veem. E por
último vem a doença. Afundam-se então todos três na pior das misérias, na
miséria amalgamada em exaspero. Corre tudo, experimenta tudo. Só a velha o
alenta ainda: mas agora o seu ódio contra a outra não tem limites e não
necessita contê-lo. Diante dela exclama: Casasses rico! Eu bem to preguei! E
como ela envelhecera, ele abandona-lha. É enfim a nora. Pode à vontade
maltratá-la. Se não fosse ela, o meu filho tinha casado rico. Não estava agora
na penúria... Contra ela voltam-se todos os rancores. A
Candidinha vinga-se de tudo o que lhe sofrera, dos dias em que se calara muda
como as pedras e das horas em que trabalhara como uma escrava. Pior: atribui-lhe
todas as desgraças sucedidas ao filho. Ela é que fora o tropeço. Ai a tens
agora!... Até te enganou!... A outra ouve mergulhada numa dor donde não saem nem
palavras nem gritos. Tanto chora que pouco a pouco perde a luz dos olhos.
Primeiro são os ditos, os chascos, as palavras más, os repelões. Depois
exasperando-se um ao outro, num crescendo, acusam-na pela sua
queda, pela sua infâmia, pelo dinheiro do amante. A Candidinha transtornada
ameaça-a e ela, com cabelos brancos e trémula, encolhe-se. Não sai da cozinha.
Sente um frio interior que não lhe passa e acocora-se a um canto, com os olhos
extáticos, banhados de lágrimas... É para o que servem as mulheres pobres... Eu
bem to preguei. Agora atura-a, até cheira mal!... A outra geme. Geme... chora
p'ra aí o destes!... E dia a dia a velha vai lançando veneno naquela ferida.
— Uma mulher que te enganou... Já se não recordam que foram eles que a impeliram
para a infâmia. Ambos exasperados, ambos trémulos, ambos mergulhados na miséria,
só a têm a ela para se vingarem. E vendo-a chorar ele grita-lhe: Estou farto de
lágrimas!... E a Candidinha, a passear de cá para lá, barafusta, monologa,
invetiva: O amor! Ora ai está o que é o amor! Ó anjo! ó querida! ó sonho!...
Poesias! Toma! que eu bem o preguei, bem to disse: Casa rico! casa rico! casa
rico!... E tu acreditaste nela, tu deixaste-te embair por essa lambisgoia que te
falava de amor... Olha para ela, olha agora para o amor! Amor com uma velha rica
que te desse o futuro e a consideração. E a velha conclui numa risada: O amor
sabes o que é? O amor é uma pombinha; voa a pombinha, foge o amor...
Por fim, quando o Antoninho começa a tossir, os médicos mandam-no para a terra.
Ele também já perdera todas as energias. Só na velha a fé resta imutável; só ela
não vacila nem mesmo diante do destino. Quando o vê doente, limita-se a dizer.
Vamos para a aldeia... e lá veremos! Nunca de lá
tivéssemos saído!... Ainda hás de ser rico ou não há Deus! E enorme, hirta,
embrulhada no xale esfarrapado bem não quisera pôr o outro! sacode a poeira dos
sapatos ao deixar para sempre a cidade.
CAPÍTULO 6
— O céu é de todos e este mundo de quem mais apanha!
Gostava imenso de tomar rapé, mas habituara-se a fungar às escondidas, depois
que a Felícia lhe dissera com severidade:
— Os pobres não podem ter vícios!
— Quem me dera ter uma criada... suspirava.
— P'ra quê, Candidinha?
— P'ra quê? P'ra isto: para mandar à minha vontade. E não tinha contemplações!
Oh quem me dera poder dizer: Faça! vá! ande! rua!...
Era muito gulosa. Essa velha cheia de tragédia passava horas e horas a cismar em
ninharias grotescas, em lambarices, no café que gostaria de tomar muito forte e
muito doce... E com a ponta da língua humedecia os cantos da boca encortiçada.
Tinha uma habilidade singular para remendar farrapos. Apontando a saia dizia
desvanecida — As coisas no meu corpo duram anos.
Conversa surpreendida entre a Candidinha e uma amiga íntima:
— ...Já não tenho forças. A desgraça pode mais que a gente.
— Goza a vida, filha, enquanto é tempo, e nada de aflições... Quantos te hão de
por aí dizer que és bonita?
— Oh isso não! Morrerei. As forças vão-se-me nesta luta de todos os dias. Ele
nem se importa...
— O teu homem?..
— Despreza-me. Mas não posso mais! Sinto que não posso mais...
— O que tu sofres já eu sofri, ou pior. Os homens são todos o mesmo. Neste mundo
de enganos, só há dor e vaidade, filha. E ainda tu e aponta-lhe a cara tens isto
que nada paga...
— Isto quê?
— Esta frescura da mocidade. Mas deixa-te ir para velha e verás. É pior do que
trazer uma pedra no coração sem se poder arrancar. Toda a gente se ri de nós...
Mas não chores, filhinha, que as lágrimas põem a gente feia. É para o que
servem. A mim já não há desgraça que me arranque uma lágrima — O meu comer são
lágrimas. Choro noites a fio quando me deixam chorar. Por isso, às vezes, cuido
em me deitar ao rio...
— Também eu na tua idade pensava o mesmo e olha que tenho muita pena de não ter
tido coragem. Acabava-se tudo, tinha sido melhor. Sabes lá o que eu passei!...
Pior do que tu. Fui como tu espancada, batida, servida. Na tua idade, flor, o
meu homem pôs-me na rua como quem escorraça um cão. (Era
mentira, mas a Candidinha começava a fazer drama, a misturá-lo à realidade, para
se engrandecer.) E sem uma côdea p'ra boca. Depois habituei-me, mas olha que
tenho pena de não ter morrido. A água fez-me sempre um medo!...
— Então a gente só nasce para ser desgraçada?
— Só. Quem é pobre é para o que nasce. Depois vem a velhice e inda é pior. A
gente pede pão dão-nos escárnio. Eu ainda tenho experiência da vida, que é o que
me vale. Olha, vou-to dizer porque sou tua amiga... Eu tenho-lhes ódio, ouviste?
Odeio toda essa gente rica que me faz bem e que me dá de comer. Eles dão-me de
jantar, mas é por vaidade, para dizerem lá consigo: «É por caridade, é por
esmola. Cá temos a Candidinha por esmola.» Eu abaixo a cabeça e humilho-me: quem
quer bolota trepa... Mas se tu soubesses a inveja e o ódio que lhes tenho! A
Candidinha vai, a Candidinha vem, de rastos como a cobra. Um vestido de seda, um
chapéu, os regalos que elas têm, as suas felicidades as maiores e mais somenos,
tudo lhes invejo, tudo!... Às vezes, de tanto invejar, fico com uma dor aqui...
Até me vem a palpitação. E como eu me alegro, quando há desgraça numa casa...
— Não diga isso!
— Digo, digo!... Pois quant'é!... Então tu pensas que posso ver alguém feliz,
eu, que nunca tive senão desgraças? Eu, que nunca comi à minha vontade e que
ando assim vestida de trapos, quando nasci para trazer vestidos de seda como as
outras? Eu cá, ainda que possa, não faço bem a ninguém. Com que
cara triste entro numa casa onde aconteceu desgraça! Se tu visses!... Mas cá por
dentro vou a dizer: É bem feito! é bem feito!... E a minha vontade era dizê-lo
cara a cara aos berros... Mas não posso: a Candidinha vai, a Candidinha vem, de
rastos como a cobra. Até fico doente quando as coisas lhes correm bem. Ai, minha
rica, mas que se há de fazer? A gente precisa da côdea, senão rebenta p'ra aí
como um cão. Nós que nascemos para a desgraça, temos de nos sujeitar...
— Mais vale afinal morrer...
— Pois mais vale, filha, mais vale. Os homens!... os homens o que querem é
fazer-nos mal. Engana o teu, mente-lhe e ri-te. O meu homem!... Também eu dizia
o mesmo no meu tempo. Hás de ter o pago que eu tive. Qualquer dia põe-te na rua
como o outro me fez.
— Acabou-se! acabou-se!... Quando não tiver mais forças, morrerei...
— Fazes bem. E com esta, adeus. Tenho de ir ainda a casa da Patrícia, das Teles,
das Fonsecas. Que sejam todas tão desgraçadas como eu fui. Adeus, filha, este
mundo é um mundo de enganos. Adeus. E segue os meus conselhos: quando ele te
ameaçar, bate-lhe o pé. Não te deixes calcar, que é pior...
A esmola não ta agradeço. Se pudesse mordia a mão que ma dá. Dás-me os teus
restos, o que te não serve, o que tu desprezas, o pão duro que não comes, o
cobre que consideras inútil para o teu gozo. A esmola dás-ma porque te
alimenta a vaidade. O teu orgulho aumenta. Engrandeces-te. Dás-me metade do teu
pão e metade da tua alma ao menos? Não sobejos. Em paga, odeio-te. Humilho-me,
mas odeio-te. Se eu pudesse dava-te esmola a ti, para me vingar. Sentas-me à tua
mesa, expões as tuas pratas, a tua abundância, o teu ventre repleto. Matas-me a
fome e inchas o teu orgulho. Fartas-me e fartas-te. Ao mesmo tempo humilhas-me
outro gozo.
Era isto que a Candidinha sentia.
Ao começar a falar, saía-lhe da garganta um som raspado rr... rr...
Antes do filho, a Candidinha só tivera uma ambição: ser rica, ter vestidos de
seda, lambarices, consideração, deslumbrar as outras mulheres da vila
provinciana. A sua vaidade era desprezível e imensa e fora a vaidade que a
perdera. Abandonara-se ao primeiro homem rico que lhe aparecera para ser mais
que as outras. Entregara-se não por desvario, mas por vaidade.
— Ninguém se há de rir de mim!
E toda a gente se ria da Candidinha.
Um dia, ao ver um saco de dinheiro nas mãos da Felícia, a Candidinha não se
conteve que não exclamasse:
— O que aqui está dentro! E pesa!... Não sei que impressão faz ter a gente tanto
dinheiro ao pé de si!... O que aqui está dentro! Vestidos de seda, riquezas,
lambarices, coisas boas... Aí, deve ser um regalo ter dinheiro! Até
parece que dá calor! Ter dinheiro para mandar os outros... E dizer que está aqui
dentro eu sei lá!... tudo!... Regalos, considerações, o mundo todo...
E pousando o saco, tornou a suspirar:
— Ai, deve ser muito bom ter dinheiro!...
A Candidinha não dava pela sua abjeção. Vivia em tal atmosfera de ódio e de
sonho, que a realidade não existia para ela senão como um motivo para se
exasperar. Escarneciam-na e maltratavam-na. Disso se sustentava era o seu
amparo.
Tinha uma doença a que ela chamava a palpitação. Quando lhe vinha quedava-se
horas e horas com os joelhos à boca, com esta única ideia fixa:
— Que Deus não me leve sem os ver a todos desgraçados!
Notem: a Candidinha não dava pela sua grandeza. Mataria toda a gente para ver o
filho rico. Mas o seu ódio era ao mesmo tempo disforme e mesquinho, a sua
felicidade suprema seria parecer-se com a Felícia; ter a corte das outras
velhas, andar com um vestido de seda lustrosa. Havia sobretudo uma saia de
vidrilhos e franjas, que rugia ao arrastar no chão, que lhe dera noites e noites
inteiras de cobiça. A Candidinha era, afinal, uma mulher ávida de consideração.
Além da vida material, há uma outra que todos nós construímos, maior e mais
verdadeira, apesar da sua irrealidade. É a que nos custa deixar. Por ela
tudo sacrificamos. É um mundo ilusório, ao qual todos nós subordinamos a
existência prática. Essa vida era enorme na Candidinha.
Não imaginem, porém, que a Candidinha calçava sempre o coturno trágico... Sentia
uma grande consideração e respeito pelos imbecis. Os homens gordos e palavrosos
impunham-se-lhe. Essa velha que alimentava um oceano de ódio, perdia-se, por
exemplo, de admiração por um criado importante e estúpido que enriquecera a
emprestar dinheiro a juros. Nas casas de fora, onde o Sr. Caetano ia servir
conversava muito com ele.
Os dois estão sozinhos no bufete. Fora ouve-se o piano e o sapatear da dança.
Eles dispõem a ceia na mesa.
— Vamos lá nós ao nosso trabalhinho, Sr. Caetano. Os ricos gozam, é isto que se
vê... Música e deleites... Os pobres são escravos...
— A chacun... a sua obrigação, como se diz no estrangeiro.
— O que me vale é ter ficado com uma pessoa com quem gosto muito de conversar.
— Favores!...
Ela, oferecendo-lhe doces numa bandeja:
— Vai um docinho?
— Por ora não. O meu estômago não comporta especiarias antes das duas da
madrugada.
— Ao que isto chegou! Quem vê estes lagalhés e quem os viu como eu... Ele está
rico como um porco... acho que se tem governado...
— Rico, não; mas remediado. Lá chegará. Um rapaz de cabeça e meteu-se na
política...
Ela rancorosa:
— Ó Sr. Caetano, aqui para nós, a mulher é que o tem ajudado muito... Quem os
conheceu como eu... O sogro até quebrou há três anos.
E com um risinho de satisfação e maldade:
— Ela é que o tem ajudado muito...
— E então?
— Uma imoralidade!...
O Sr. Caetano, severo:
— A senhora não sabe nada do mundo. Olhe que eu aqui onde me vê, antes de chegar
a esta posição, corri muita casa. Passei-as amargas. Isto hoje é uma luta e a
mulher tem obrigação de ajudar o marido a trepar. Está tudo muito mudado depois
que veio a liberdade. Então a senhora que imagina? Há outros princípios. É o que
nós chamamos o positivismo.
— O quê?
— O... Depois dum momento de hesitação, pensando que a Candidinha é muito
obtusa, explica: Veio a liberdade, e as falcatruas com que engrolavam a gente
foram todas a terra. Então a senhora que pensa? Agora já não há Deus nem há
nada.
— Chi!...
— Agora é cada um por si. São outras bases. O mundo marcha, senhora Candidinha.
Essas coisas antigas eram endróminas que os frades metiam na cabeça da gente,
para só eles gozarem a vida. Até tinham túneis por baixo da terra para irem ter
com as freiras.
— Chi!... Mas como é que o Sr. Caetano sabe tudo isso?
— Tenho estudado muito... Está tudo mudado. Porque não sei se a senhora sabe que
o princípio note bem o princípio da felicidade dos povos é a imoralidade.
— Sempre este homem fala muito bem!
— Entende? Imagine que a senhora era nova e bonita... Andava com esse vestido?
— Isso não, não andava!
— Então aí tem. Se não houvesse imoralidade era uma desgraça para as lojas de
comércio e o comércio Sra. Candidinha é o sangue duma nação.
— Muito catita! Olhe que não é por estar presente, mas o senhor fala melhor que
muitos ministros de Estado.
— Falo o meu bocado, falo o meu bocado. Gosto de conversar com pessoas de
reconhecida inteligência.
A Candidinha, deslumbrada, faz-lhe uma mesura.
Este homem teve uma larga e nefasta influência na vida da Candidinha.
Tudo quanto nela se prendia a este sentimento, o ódio, era na verdade enorme; no
resto daquela alma só havia banalidade, estupidez e velhacaria.
Relembrava e logo dos arcanos mais recônditos da alma saía-lhe uma baforada que
a transtornava, pondo-lhe chispas de ódio nos olhos. Endireitava-se, formidável,
como o seu sonho de desastres. O ridículo desaparecia.
E ela não procurava esquecer. Pelo contrário, revolvia a chaga. Repetia
incessantemente: Fizeram-me isto! Mataram-me a fome! Deram-me esmola! para ter o
gozo de se sentir traspassada de ódio e para que o seu sonho lhe surgisse
inteiriço. Imaginava torturas para os outros: levava dias a escolher pormenores,
com uma regalada minúcia. Eram essas as melhores horas da sua vida. Inventava as
piores catástrofes, as maiores ruínas. E via os outros,
sacudida de riso e com os braços cruzados, gritar num clamor: Perdão! perdão!...
E no entanto a Candidinha gostava que lhe dessem. Andava dias de olhos espetados
num trapo, numa renda, numa banalidade. Não podia dormir até alcançar o que
desejava. A Candidinha tinha já entranhado o hábito da esmola. Só depois se
enfurecia, só mais tarde se enraivava...
NOTAS DUM AMBICIOSO
Este homem vê o mundo em verde. É ambicioso e capaz de tudo para conseguir os
seus fins mas só em imaginação. Todo ele é labareda, mas não queima. Arde sem
alumiar. Não tem nem a grandeza, nem a energia da mãe. Procede por ímpetos: num
momento de exaspero é capaz de tudo, depois tomba num aniquilamento.
Tudo nele se faz por saltos bruscos e como passara pela pior pobreza e pela
humilhação sempre ávido, sempre friorento, sempre mesquinho fica com uma timidez
enorme, que lhe provém dum insensato orgulho. Os dentes afiam-se à espera do
gozo; as mãos contraem-se-lhe quando passa uma soberba mulher, ou entrevendo de
relance uma mesa triunfal e branca como um altar... Tem o mesmo sonho da mãe
mais escasso mas o sonho não lhe basta: o seu apetite é devorador. Perante as
humilhações exalta-se em raiva inútil mas não é por comédia, por se exasperar,
que se rebaixa, é por necessidade e por adulação. Tem na verdade uma alma de
escravo. A mãe, se deitasse as mãos ao oiro, se
triunfasse, passaria como uma devastação: era capaz de tudo: possui grandeza no
sonho e no mal. Ele não é insignificante: treme diante dos ricos, respeita-os,
bajula-os e admira-os com servilismo.
Numa, na mulher, a capa de matéria cobre uma quimera desmedida; no outro
infâmias, exasperos, restos... Para o arrancar às quedas, aos desfalecimentos de
todos os dias é necessário a energia inquebrantável da velha, que lhe insufla
alma e vida. Dentro desse homem esguio, calvo e verde, a quem a roupa cai mal
sempre com joelheiras e um eterno sorriso na boca, existe outra Candidinha mais
reles: uma imitação apoucada: figura que dá vontade de a correr a pontapés.
«Falo pouco, é certo, mas dentro em mim referve o desespero. Esta capa de
frialdade encobre uma figura estranha, de histrião, uma ambição desmedida, uma
sede insaciável de mando. Isto não é pautado nem medido: não é um método, é um
desespero.
Vencer! à custa seja do que for de hipocrisia e de infâmias!
Talvez eu antes quisesse ser uma figura que impressionasse e afligisse os
outros, uma grande figura. De pé gritaria ao mundo a minha ânsia, o meu
desespero, estatelaria diante dos homens atónitos todo este sonho. Ei-lo na sua
aspereza, na sua hediondez, em toda a sua grandeza. É meu, gerei-o! Talvez eu
preferisse dizer isto e morrer à fome... Mas não posso. Curvo-me, sou
desajeitado, submisso, incapaz dum arranco. É talvez a diferença que
existe entre o meu ser exterior de pulha, e a minha alma onde o desespero se
agita, que faz de mim um tímido. Sorrio, com a mãos enormes pousadas sobre as
joelheiras das calças: sinto-me frio, tolhe-me o frio desde pequeno. Nunca me
passou. Tive sempre as mãos geladas. O frio entranhou-se-me decerto com a
pobreza.
E os olhares intimidam-me: desvio logo os olhos. Ouço toda a gente dizer lá
consigo: É o filho da Candidinha. Os desgraçados deviam ser sozinhos no mundo.
Para mãe basta-lhes Desgraça.
O quê? A Vida?... A Vida reduz-se a isto: ser rico ou pobre. Mais nada. A ter
oiro para todas as saciedades.
O que custa romper, sair da pobreza! Toda a gente nos empurra. É uma luta sem
tréguas. E no entanto há homens que logo triunfam. A beleza, por exemplo, possui
o quer que é de misterioso rodeia-se duma atmosfera de simpatia, que ajuda a
vencer. Certos homens estão sempre à vontade. Aparecem e dominam. Mas há uma
classe de pobres que trazem frio consigo. Gelam os outros. Esses é que são
verdadeiramente filhos da Desgraça. Podem ter génio embora, nunca triunfam. Toda
a gente os desdenha, toda a gente os acotovela, toda a gente lhes foge. São
marcados para a pior das indiferenças, para a pobreza perpétua. Podem lutar com
ânsia, usar embora da hipocrisia, da infâmia, do talento ficam sempre
acorrentados à Desgraça.
E é tão fácil triunfar pela lisonja! Toda a gente tem vaidade, toda a gente se
leva pelo orgulho. Pois a mim até essa arma simples se me quebra nas mãos
inábeis. Digo uma frase e sai-me gelada, tortuosa e parecida comigo.
Oh e que noites! que espetáculo o da minha alma. Pudesse eu narrá-lo!... Um
orgulho exagerado e imenso, ruínas, a raiva do triunfo e tudo por terra! Ímpetos
de desespero e tudo por terra! Tenho envelhecido à espera...
Parto desaustinado, cheio de cólera, mas hasta que alguém me fale de alto, com
superioridade, para que eu sinta um medo ignóbil, um medo de escravo. Tive
sempre medo. Medo dos outros e medo da vida. E toda a cólera se volta então
contra mim como uma espada nas mãos duma criança.
Metesse eu os braços até os cotovelos no oiro, pudesse eu mandar até ao domínio,
que talvez me transformasse. Passava-me a gaguez, a fealdade, o ridículo. Seria
outro. O ser curvo, mole e trôpego que eu sou deixaria de existir, como um
vestido velho que se deita fora.
Ensinam-nos tanta coisa inútil, enchem-nos de ilusões, para quê? Pois não era
melhor dizer-nos logo em pequenos: Só o oiro dá a felicidade, o resto são
tropeços? Não era melhor secarem-nos o coração, torcê-lo, deixá-lo como uma
pedra e encherem-nos a alma de coisas práticas? Dizer ao pobre: Adula, não
percas um minuto, triunfa, apesar de tudo. Só o oiro omnipotente existe.
Apressa-te a gozar, senão arriscas-te a topares com a cova, desesperado e
iludido. Quando acordares do teu sonho, é tarde: foste ludibriado!
Tenho rido tanto sem vontade de me rir, que já me surpreendo a sorrir sozinho,
por aquiescência comigo mesmo.
Deus é uma mentira que muitas vezes nos faz recuar; o amor e outra; a outra é a
honra. Estas coisas nos grandes homens são as máscaras e disfarces para enganar
os medíocres, ou palavras para que a turba lhes não roube aquilo de que se
apoderaram pela manha ou pelo combate.
A lisonja, que arma! Ninguém lhe resiste, lembra-te bem. Os mais endurecidos
gostam de ser lisonjeados.
Há criaturas das quais emana um eflúvio que não está ainda estudado. Conquistam
homens, dobram-se perante elas as coisas, não lhes resistem as dificuldades. É
talvez a esse eflúvio magnético que se chama Sorte.
Há homens, como disse, que triunfam à primeira vista. Os outros sentem logo ao
vê-los que estão diante duma força.
Não se deve lisonjear sempre, nem sorrir sempre como eu sorrio. Os outros,
diante de mim, retraem-se. O meu riso soa falso. Nenhuma roupa me cai bem e
naturalmente sobre o corpo. Tudo em mim parece emprestado.
E, no entanto, do que eu seria capaz! De tudo! Que força eu sou para ser
empregada por um homem de génio, para completar outro homem. Sinto em mim o
génio da intriga. Nunca recuo, não tenho preconceitos... Quem me quer comprar?»
CAPÍTULO 7
Morto o Anacleto a Joana andou de casa em casa chorosa, falando sempre da sua
menina. Por fim lá deu com ela, mas expulsaram-na. Queixou-se. Ninguém fez caso
e voltou para a serra. O mundo indiferente continuou a mourejar: a mesma
banalidade, as mesmas dores, risos, hábitos e o eterno burburinho sem fito sobre
a cabeça dos que dormem para sempre no seio da terra.
Em frente da vila cresce em degraus a serra, grande, severa, descarnada e pobre.
São montes sobre montes erguidos com majestade até o céu, em sucessivos
recortes: primeiro atropelados e ásperos, com fragas acasteladas nos picos,
cariadas e negras; depois violetas e diáfanos. É um prodigioso cenário, uma
convulsão momentaneamente petrificada que nos aproxima de Deus: gargantas
aspérrimas e vales pacíficos: o caos e a mansidão: o infinito, o silêncio e uma
humildade que penetra e comove. Por cima da pedra o côncavo imutável do céu. Os
montes vêm do alto esfarrapados e nus, com calhaus incrustados na pele rugosa.
Mas a certa altura a água borbulha e tudo se transmuda: é a vida: é a emoção que
brota fio a fio dos peitos rígidos da montanha. E logo a doçura se alia à
grandeza. Nos fundos enxergam-se retalhos de milho, cabanas colmadas e escuras,
póvoas isoladas no ermo.
Ali em qualquer dessas casinhas do monte se criou a Joana: tem a pele gretada e
áspera como a crosta da terra e a alma divina. Participa da serra pela bruteza e
pelo sentimento.
É resignada, humilde, e faz-se sempre pequenina. Aquela gente habitua-se a
aceitar tudo, até a desgraça, das mãos de Deus, com uma fé enorme: acodem-lhe à
boca sempre as mesmas palavras: O Senhor lá sabe! Sobretudo as mulheres são
heroicas. Seguem pela vida fora, sem desesperos nem gritos. Vem a maternidade,
as aflições; falta-lhes o pão é necessário arrancá-lo à terra ingrata,
disputá-lo aos invernos bravios. Em volta a serrania convulsa, os vagalhões de
pedra; no alto o céu infinito e recurvo. Tudo ali comunica com o eterno: os
seres, a pedra e a árvore que pelas raízes toca o coração da terra, pelos ramos
o céu, pela alma o infinito só as criaturas parecem submersas e perdidas num mar
bravo de fráguas. Ninguém lhes conhece a história e elas próprias ignoram a sua
grandeza. Sofrem, sacrificam-se, anulam-se, desaparecem. Ninguém dá pela
existência dos que choram e cumprem o seu destino sem frases. Não importa. Não é
coisa que se conte a vida duma árvore e uma árvore frutifica, dá sombra e lume,
sustento e amparo: é o nosso teto: é nossa amiga. O que é grande, simples e
profundo passa despercebido. E essas mulheres são como as árvores esplêndidas,
que, vivas ou mortas, nos acompanham até o túmulo. Melhor que as grandes figuras
sabem realizar na terra a missão que a natureza lhes impõe. Lá se amparam umas
às outras. Ai dos pobres se não fosse o coração dos pobres!...
Toda a sua vida é simples emoção e a emoção não se narra: pega-se. Esta frase
diz tudo: a Joana nasceu para os outros. Aos dez anos era uma mulherzinha, de
olhos límpidos e muito tristes! E tão feia!... Magra e sobre a pele curtida um
cascão de terra, da terra nossa mãe. Deu-se como a água, a água nascida no
coração dos montes , que todos aproveitam e desdenham: a Joana criou os irmãos
mais pequenos, repartiu a sua afeição pela família no casebre meio aberto na
fraga, onde havia um cavador e seus filhos. Foi mãe desde pequena; e era do
tamanho do irmão que trazia ao colo. Donde lhe veio aquela tristeza e o olhar
sério e profundos já com raízes na dor, estranho nessa rapariguinha de dez anos?
Fealdade? fealdade e alma, como certas plantas desprezíveis e hirsutas, que se
cobrem de milhares de florinhas miúdas e tantas! talvez para que lhes perdoem a
sua fealdade e secura. Lidou, cavou: a pele enrugou-se-lhe, as mãos
puseram-se-lhe nodosas; e sempre os mesmos olhos límpidos e tristes numa carinha
inocente. Cresceu, chegou aos dezoito anos e amou. Casaram-na... Olhou extasiada
o homem e fez-se ainda mais pequenina. Toda a sua imensa fealdade nesse momento
sorri: lembra uma fraga que, à força de mistério, se desentranha em flor. Negra
e encardida como a terra pedregosa, revolvendo-a continuou seus dias. Do
empalidecer das estrelas até à noite fechada, remexia na terra numa labuta
eterna. O homem batia-lhe, bebia, tratava-a com desprezo. E a Joana, mesquinha,
sem uma queixa, mais denegrida, e, se é possível, mais feia. Quando via uma
criança, sorria num enlevo: todo o seu ser se revolvia: bulia-lhe no seio a
maternidade. Nascera para ser mãe e não tinha filhos' As vezes pensava: Quem me
dera ter um filho! ainda que andasse tudo sujo, farrapo para aqui, farrapo para
acolá, não me importava limpava tudo. Um dia o homem desapareceu para sempre; e
a Joana ficou outra vez sozinha no casebre, com os irmãos já crescidos e a serra
formidável e austera, murada entre aquelas paredes impenetráveis, onde crescem
os calhaus e o piorno. A existência ali é tão dura como a própria serra. Essa
gente é pobre entre os pobres. Às vezes, no inverno, falta o pão, e a tempestade
desaba num perpétuo clamor.
Num inverno assim um pastor, rotinho e magro, desses pequenos sem ninguém que
guardam as ovelhas na solidão da serra e que a serra bruta cria, desceu até o
povoado e parou à porta do casebre a olhá-la. Não disse nada, que a sua figura e
os seus olhos estarrecidos tudo exprimiam.
— Pão também não tenho respondeu a Joana depois de se contemplarem em silêncio.
E assim se quedaram, ele encostado à porta, ela dentro, no escuro, com os olhos
cheios de lágrimas. Foi ao forno juntar umas migalhas, deitou-lhes um fio de
azeite da almotolia. O pequeno esperava. Era ao crepúsculo. Deu-lhe as migas e
ele comeu-as com sofreguidão; depois juntando as mãos magrinhas, olhou para ela
que pensava:
— Se fosse meu filho!...
Só isto. Não se tornaram a ver.
De outra vez recolheu na cabana uma rapariga, que o pai, ao vê-la grávida,
expulsara de casa. Dormia no monte, dada ao desprezo, encostada às ovelhas, para
se resguardar do frio, e chegou a andar tão rota que a sua figura fazia aflição.
Recolheu-a, agasalhou-a, e como estivesse gelada como as pedras, dormiu com ela
para a aquecer sob a mesma manta no fio. A Joana nunca amamentara filhos mas a
piedade é leite que não seca. Naquela alma espessa de trevas a humildade e a
ternura nasciam como a água nasce nas rochas. Por isso a comparo com a serra e
nem dela posso separar esta imagem: a mesma aspereza, a mesma emoção que bole no
coração dos fraguedos escuros. Grandeza e fealdade: monótona, esfarrapada e
denegrida como os montes, humilde e imensa. Como aquelas linhas negras e
sucessivas ela inspirava comoção, assim feia, calada e rústica, vestida de
estamenha escura, os braços cascosos, as mãos grosseiras de cavar e os olhos
duma tristeza quase desumana! Dentro dessa fealdade havia uma ternura
inesgotável. Mas a bondade 'era nela tão natural como os frutos nas árvores.
Imaginava a existência assim de sacrifício e piedade. Peito raso, olhos
pequeninos na pele rugosa, e dentro, uma perpétua primavera, que é a primeira a
vir à superfície nas plantas bravas tal era a Joana. Mesmo diante da desgraça
habituara-se a dizer com admiração estas palavras resignadas e simples:
— Sempre o Senhor é muito nosso amigo!
Era feliz. Bastava-lhe a sua fealdade e a serra, a choupana de pedras toscas e
colmo e os irmãos. Enche-se à noite o céu de estrelas, que brilham no alto
como vidro moído entre as compactas muralhas de granito, tão formidáveis e
espessas que amedrontam. Ela olhava-as e reviam-lhe lágrimas os olhos
pequeninos. Naquela solidão as estrelas têm outro brilho: são diferentes destas
que vemos: parecem espreitar-nos também na ânsia de comunicar connosco. E
falavam-lhe, sem que as compreendesse, à piedade que trasbordava da sua alma. Só
elas sentiam talvez a sua história de tristeza e sacrifícios.
E a serra também. O colosso de terra, de penedia descarnada e abrupta, não dá só
piorno bravio mas imensa e prodigiosa vida. De inverno rasgam-na as águas,
desaba a tempestade e o tumulto, dilacera-a o raio, mas depois desse diálogo
travado entre a montanha e o inverno, a vida ressurge, a serra acorda. Anda
ternura no ar, desponta a primeira flor na raiz duma fraga. Cheira a neve
perfumada e ao hálito inocente dos montes.
Foi com lágrimas que se arrancou à serra para ir servir na vila: o pão no
casebre não chegava para todos. Ia ganhá-lo para os irmãos mais pequenos. Até a
serra a enjeitava!
Anos depois a Joana volta, bem apalpada pela desgraça. Está mais velha, seca e
feia. Tem os cabelos todos brancos e o mesmo coração. Caminha todo o dia e só ao
crepúsculo chega diante da cabana de seus pais. À volta as lombas escuras
parecem mais crescidas; imensas as solitárias montanhas de granito...
A casa é da cor do monte plúmbeo e quase se confunde com ele. Foram à pedra viva
e escavaram-na: roeram-lhe as entranhas. No alto uma trave e colmo, à volta
paredes toscas. O casebre tem dois compartimentos: a cozinha térrea e a barra,
para onde se sobe por dois degraus. Basta um tronco de castanho arrumado à fraga
polida e escura e meia dúzia de pedras soltas para abrigar aqueles seres. Dentro
arde o lume: a lenha chia, os canhotos estilam água, choram. Um velho, uma
figura óssea e enorme, curva-se sobre o lar tendo a seu lado uma criança, um
pastorinho. Há horas que assim estão imóveis, sem trocarem palavra, o velho e o
pequeno. É noite de Inverno noite de tanta tristeza...
— És tu, irmã?
Abraçam-se os velhos, olham-se num espanto mudo ao clarão da fogueira. A vida
amolgou-os, a desgraça ressequiu-os. Têm rugas, cabelos brancos, pele áspera,
mãos toscas: são dois trapos. Há muitos anos que se não veem e nada dizem um ao
outro. Mal se reconhecem. A criança ergue-se, olha. A noite cerra-se de todo.
Ei-los perdidos no vasto universo, entre os vagalhões de pedra, na serra
submersa pela noite. Ninguém sabe que choram naquele buraco escavado na frágua.
Na realidade só a noite imensa, que os traga, existe.
A Joana vai direita ao escabelo onde se sentava em pequena. Pesa um silêncio
enorme. Fora começa a cair o nevão...
Os pobres têm muito que dizer mas não o exprimem com palavras. Têm a alma cheia
e não sabem falar. Nem precisam. Não é com palavras que comunicamos o que em nós
há de melhor. Sentam-se um junto de outro.
Tudo aquilo é esfumado, escuro, sem relevo, o homem, a pedra, a velha, o casebre
mas uma grande ternura liga os seres e as coisas. Parece que desaba sem ruído
sobre a fraga compacta que dum lado fecha o casebre um dilúvio de lágrimas. O
pastorinho de pé, magro e triste, escuta... E entretanto os dois olham-se e
calam-se. Ele põe as mãos nos joelhos e curva-se derreado, como se sentisse o
peso de toda a sua vida de cavador; ela limpa as lágrimas ao canhão do casaco; e
a criança olha-os sem mostrar surpresa.
— A minha menina! a minha menina, para que sorte foi criada! exclama por fim a
velha.
Migado o pão repartem a ceia. A tempestade abala o teto, mas a rocha firme
sustenta-o. Serve-lhe de raiz e amparo e livra-os dos desabrigos do inverno. E
repartida a ceia, começam a partir a piedade pelas desgraças alheias não se
lembrando da própria desventura.
— A minha menina, que desgraçada sorte a sua!
É ridícula com os cabelos brancos e a boca entreaberta. Conserva intacto o pão
que lhe coube e as lágrimas em fio caem dentro da tigela que segura nas mãos
trémulas.
— Todos no mundo têm a sua cruz diz o Fortunato.
— Aquela menina que eu criei! O que ela tem chorado!... Um 'ror de lágrimas! Os
soberbos!... Oh lembro-me quando ela era pequenina e se deitava no meu colo e
não posso! não posso!...
Sufoca. O Fortunato ergue-se, deita um fio de azeite nas migas.
— É a nossa ceia.
Mas a Joana não atende:
— Já não tem ninguém no mundo!...
O vento lá fora embate sobre a fraga u-u-u temeroso como um oceano revolto. Os
canhotos ardem; o velho volta e senta-se mais curvo e minguado. É uma figura
óssea e tisnada: a terra entranhou-se-lhe nas mãos, o sol gretou-lhe a pele: sem
dizer palavra, espera que a Joana narre a história. O pastorinho abre os olhos,
sumido no escuro. Passos ecoam no lajedo lá fora, o rafeiro ladra. Aquela hora
não anda ninguém pelo mundo senão os desamparados. O nevão arrastado pela
tempestade engolfa-se nas gargantas aspérrimas, vai levado pelos ares, some-se
nos abismos álgidos de treva. Batem.
— Entre quem é...
A porta abre-se e uma figura de mendigo surge barbas brancas, em farrapos,
órbitas cavadas e olhos tão fartos de chorar, que já não têm expressão.
— Santas noites diz.
— Deus lhas dê, irmão. Chegue-se para o lume.
Poisa a sacola e o pau, arranja os farrapos e espera. Ninguém se lembra de ter
visto aquele pobre tão velhinho. Dão-lhe caldo e pão.
— Sempre há gente muito má por esse mundo continuou a Joana.
— Neste dia, tudo se deve esquecer.
— Tudo afirma o pobre.
— Entre palhinhas nasceu o Menino numa estrebaria...
— Jesus! meu rico Menino!
— ...para nos salvar!
As lágrimas cobrem-na e ela diz a sua dor em palavras desconexas, aos
arrancos...
— Levaram-na e eu fartei-me de chorar!
A tosse cavernosa do pobre interrompe-a, as lágrimas sufocam-na.
— Um dia teve as dores e a velha levou-lhe o filho debaixo do xale. O meu
menino! o meu menino! gritou a pobrezinha.
— Nasceu morto respondeu o soberbo.
— Tinham-no matado? pergunta o Fortunato.
A Joana nem sequer responde. Diante de seus olhos embaciados surge uma figura
ressequida pela dor, com o vestido roto e colado ao corpo, e exprimindo tal
desgraça, olhos de tanto espanto — que parece arrancada a um rio de brados, toda
encharcada de lágrimas.
— Levaram-na! levaram-na!... Vi-a sofrer... e não se me partiu o coração. Vi-a
chorar horas e horas a fio, naquele desamparo e tive coração para tanto!...
Porque fui eu que a criei...
Um silêncio profundo: fora uma calma na tempestade, no tropel de rolos negros
que a ventania amalgama e dispersa no ar. A lenha chia e o fumo sobe direitinho
para o telhado: parece que sabe o caminho. As barbas do pobre em farrapos, suas
órbitas fundas uma cabeça de santo as mãos de Joana, a figura tisnada do homem,
a criança adormecida ao pé da lapa disforme e fora a noite quieta e concentrada.
Depois a ventania desaba u-u-u e abala a pedra até à raiz. O pobre ergue-se.
Deram-lhe pão comeu-o, e agora fita-os com uns olhos onde há luz através de
lágrimas, claridade coada por amargura. Estão ali à volta dum tronco em brasa,
bem palpados pelo infortúnio, três velhos um cavador, uma mulher, um pedinte das
estradas: está ali também junto ao coração da serra, abrigada pela pedra e o
colmo inesgotável piedade. Todos em volta do lume comem o pão negro. Chegam-se
mais uns para os outros: é que vão chorar. E o pobre diz:
— Todos no mundo têm a sua cruz...
Tem os olhos cheios de lágrimas e talvez se lembre duma filha morta. Chegam-se
mais para o lume. A reunião dos seres á volta do lar, quando tudo se esquece e
sentimos Deus presente, era quase impossível sem o fogo: um pedaço de raiz basta
para que as almas se entendam.
A brasa apaga-se, a escuridão come as figuras, e um grilo pardo como um
flocozinho de cinza põe-se a cantar num buraco da parede. Na realidade só a
noite imensa existe... Um momento único e mais perto se sentem umas das outras
almas, que melhor comunicam no negrume. As nuvens rolam em desalinho pelo céu, o
vento ulula, as árvores bracejam no escuro, o aguaceiro desaba e o enxurro rasga
a pele áspera e pedregosa dos montes. A noite de tempestade pesa, esmaga e
afunda na treva compacta casebre perdido no mundo, onde três velhos choram...
Quando, horas depois, a Joana ergueu a cabeça, O mendigo sumiu-se. Ainda ecoam
seus últimos passos no lajedo da eira. E ela diz baixinho e a medo para o irmão:
— Assim andava o Senhor pelo mundo!...
CAPÍTULO 8
Naquele inverno juntam-se a piedade, o ódio e a aflição dentro dos quatro muros
da casa perdida na serra. Fora é o caos: a tormenta, baforadas de nuvens, o raio
a estalar na fraga acastelada e a corda ininterrupta dos montes uma desolação
colossos sobre colossos que, ao descerrarem-se os crepes de névoa, se avistam
até o fundo do horizonte, sob o côncavo severo do céu. Dentro um inferno
exasperos, risos, a dor. A velha não cessa de pregar:
— Ódio! tenho-te ódio!
Depois, durante muitos dias, que parecem uma eternidade, a Candidinha cala-se e
elas estão sempre caladas. É pior. A velha anda de cá para lá, muda e enorme. De
vez em quando estaca de repente em frente de Sofia e diz-lhe: Olha para mim! E
lá parte outra vez do corredor para a cozinha a rir-se. Silêncio e uma
gargalhada. Silêncio e as duas mulheres transidas e quietas, presas àquela
avantesma que roda sempre no mesmo espaço, numa absorção que mete medo, só
interrompida de vez em quando por um riso baixinho de gula ou por uma risada de
escárnio.
A noite pesa, o silêncio esmaga. As duas mulheres são como títeres amachucados
nas mãos da velha. De que valem gritos? Tomara ela gritos! Aquele sonho, que
levou anos a gerar, só se alimenta de lágrimas. A velha escancara-se de riso, ao
vê-las trémulas como figuras nascidas da aflição.
A Cega nem se queixa. Passa os dias com as mãos estendidas sobre a mesa e o
olhar estoirado e quieto, indiferente como se tivesse atravessado o inferno ou a
houvesse petrificado a dor. Mas Sofia não. Oh, as primeiras noites em que ela
olhou cara a cara a desventura! Nem um rumor. Fartou-se de chorar, cansou-se de
chorar e pôde depois olhar de frente essa figura duma impassibilidade de pedra
que nem os gritos comovem e com quem tem de viver para sempre comendo juntas o
mesmo pão. Ali está a seu lado. Sente-se tocada pelas manápulas de chumbo. E o
silêncio redobra: nem uma palavra, a escuridão, as horas eternas e a frialdade
do desamparo...
Emagreceu. Pôs-se uma rapariga só olhos e boca enorme só olhos espantados para a
desgraça. Não sabia nada da vida, aprendeu num momento tudo da vida.
Uma noite, em que tomba esvaída, exausta, já sem gritos na boca, sente
poisar-lhe na cabeça uma mão leve como penas.
— Quem é? pergunta baixinho, num pavor. E baixinho ouve no escuro a voz toldada
da Cega:
— Sou eu. Não chore, minha desgraçada.
— E a senhora que lhe é?
— Sou sua mulher.
A Cega emudecera. Fora tanta a desgraça que a transira. Agarra-lhe nas mãos e
põe-se a dizer frases descosidas:
— Tenho um poço de gritos aqui... As lágrimas só aumentam a sede... Parece que
bebi o mar salgado... Duma vez deram-me terra a comer...
E pára suspensa, a reconstruir todas as suas dores. Depois conta-lhe a sua vida:
— A minha história é uma história de lágrimas. Pouco mais tenho feito do que
sofrer e chorar. Primeiro chorei baixinho para mim só... Sou uma criminosa!
Parece um farrapo. Alta, trôpega e curva, com os buracos dos olhos erguidos, à
procura da luz. Vive num túmulo emoção emparedada na treva: a dor cega, a
aflição sem olhos para fugir, o remorso enclausurado. Não grita, não pede
cala-se. E o mundo exterior entra-lhe pelos ouvidos num jato de luz.
— O que eu sofri! o que eu sofri!...
Aos tropeços, sequiosa de dor, a Joana resolve-se a ir de novo procurar Sofia.
Não pode passar sem ela.
— Porque não fui eu sua mãe?
E parte. Grandes montes desolados e nus entaipam a casa solitária, toda
construída de pedra em osso. O céu pardo e baixo parece abobadado de granito e
os dias aflitivos e monótonos sucedem-se lá dentro. Fora é um mar
bravio dentro a desgraça que gela e afasta, porque a pobreza e a desgraça
pegam-se.
Entra e da porta diz a chorar, com os cabelos todos brancos:
— Aqui me tem outra vez, minha menina!...
Aperta-a nos braços, de encontro ao peito, mistura as suas lágrimas com as de
Sofia. Não se farta de sofrer. Tem assim andado pelo mundo, de aflição em
aflição.
— Aqui me tem para chorar consigo!
Beija-lhe as mãos e diz:
— Tanto frio e com este vestidinho tão roto!...
Sofia une-se-lhe com desespero ao peito e chora. É um arrimo — tosco, bruto,
áspero, mas um arrimo. E a Joana balbucia:
— Eu não tenho mais ninguém... Nunca tive mais ninguém... A menina lembra-se
quando fazia escárnio de mim por eu ser feia? Mas eu não me importo... Aqui me
tem a seu lado, sou tão sua amiga!...
— Oh Joana, sempre fui mais desgraçada!
— Desgraçado é o diabo! Olha os soberbas!...
Tanto faz: a Candidinha maltrata-a, berra, injuria-a, mas ela não se tira dali.
Cala-se e sofre, rota e descalça, com um ar desorientado e uns olhos rasos de
lágrimas. Escuta às portas, e a pieira aumenta-lhe na garganta num ralo de
aflição.
— Que anda a velha a espiar?
— Manda-a embora.
— Não vai. Temos de sustentar a besta à argola. É capaz de ir dizer mal de nós.
E cheira mal que tomba!... E como a Joana entre: Vossemecê que quer? Olhem p'ra
aquilo, que propósito! Parece uma rodilha e sempre a tossir como um cão!... Vá
tossir lá para dentro.
E ela vai sem palavra, curva, cheia de lágrimas represadas, com os cabelos em
desalinho. Só se farta de chorar.
— Senhor, leva-me e leva-a para ti! exclama de rastos na escuridão do cubículo.
É em vão que brada: Senhor, escuta-me!...
As horas são eternas. As duas mulheres uma em frente da outra, esvaídas,
enregeladas ambas pelo mesmo frio, já se parecem. A desgraça iguala: a água come
as pedras, as lágrimas molham e desgastam as criaturas. Se dialogam é por
monossílabos. Sofia tinha-se feito desleixada. Treme de medo e de frio.
— Nunca foi feliz? pergunta duma vez à Cega.
— Nunca fui feliz... É a minha sina.
— E como cegou?
— Chorei tanto que ceguei.
E com as mãos unidas, extática, absorta no passado, que decerto lhe ressurge de
entre a escuridão compacta conclui com serenidade:
— Comecei a ver tudo turvo e depois ceguei. Os dias parecem-me séculos e sempre
escuridão, sempre lágrimas... Vivo, espero...
— O quê?
— A morte...
Fazer mal enraivece e a maldade redobra: o exaspero nasce muitas vezes do
próprio exaspero. A Candidinha e o filho veem diante de si todos os sonhos por
terra, e pior, a condenação perpétua à pobreza. Fazem sofrer às duas mulheres,
não só o que sofreram, mas a inutilidade de tanto esforço vão. A Candidinha é
outra: estão prestes a sair-lhe cá para fora os gritos sufocados, a fúria
represa trasborda tudo o que trouxe durante anos e anos escondido na alma,
amargor e quimeras uma a uma derrubadas e escarnecidas a feroz realidade enfim.
O sonho interior explui e ela surge encardida de exaspero e a escorrer grandeza.
Dia a dia se transforma e cresce. Como a cobra, acabou a muda no silêncio: vai
largar a pele. E isto aumentado pela poeira de tanto sonho vão, por ter caído,
dum mundo caótico mas esplêndido de ódio na fria realidade, com o filho doente,
o filho que ela queria engrandecer, embora tivesse de se sumir para sempre. O
Anacleto não deixara pataco. Em vez de
oiro Sofia herdara uma loja atulhada de caixões. Por isso a velha rebrame e
depois fartam-se nas duas mulheres.
Numa noite põem-nas fora à chuva. A ventania clama, e a treva é tão espessa como
a própria morte. Agarram-se uma à outra na escuridão, sob o dilúvio, chapinhadas
pela lama, cuspidas pela lufada, como náufragos. A água sufoca-as, o nordeste
apupa-as e, quando as tiram da noite, é como se as arrancassem das profundas da
desgraça. Fazem rir, com o olhar espantado, os farrapos pegados ao corpo, o
cabelo em pastas. E a velha prega:
— Por tua causa fui escarnecida... Tua mãe desprezou-me. Tenho-te ódio, ouviste?
E como outrora, há muitos anos, numa certa tarde, curva-se e repete:
— Ouviste? ouviste? ouviste?
Por que é que não fogem aos gritos por esse mundo fora? Sei lá! Talvez a
desgraça tenha um certo sabor...
É inútil fazê-las sofrer, bem o sabem os dois, mas esse mesma inutilidade os
enfurece. Ele tosse, doente, quando o contradizem babuja e fica vesgo e trémulo.
Ela, se o encara, dá logo com outra figura temerosa ao pé do filho...
É preciso não esquecer que esta mulher arquitetou, embora sobre uma base falsa,
o ódio uma catedral em que as pedras são vivas, palácio tenebroso e confuso,
amálgama de sentimentos contraditórios, de infâmias, de comédia e de inveja, mas
de dor no fundo e também de desmedido amor. Sofreu tudo,
abaixou-se a tudo para criar o filho. Aceitara, ela que era de ferro, a esmola,
o escárnio, com a boca bem espremida para criar o filho. Enganara, mentira,
adulara, fingira-se estúpida para sustentar o filho. Pelo filho dera a carne, a
vida, a própria alma: quisera servir-lhe de pedestal. Durante anos apagara-se:
fora submissa como os escravos, sorrira para a nora que odiava: até diante dela,
essa figura de aço se dobrara para que o filho trepasse. Nos dias de desânimo e
de fome, reanimava-o, ia buscar dinheiro ao inferno. Sofreu tudo e nunca se
queixou. Viu as amigas de vestidos de seda, falarem-lhe com piedade, a irmã
feliz, as velhas aduladas e ela, gasta e calada, estúpida, com o eterno
estribilho na boca: Filhas! Filhas!... Durante esse tempo só a tinham deixado à
vontade sonhar. Só de sonho se fartara. Enchera-se. Quando não comia sonhava,
quando a escarneciam sonhava: sonhava sempre. E tanto maiores eram as angústias,
as desgraças, a miséria, tanto mais ela se atascava em sonho. Amanhã! amanhã!...
Caiam sobre ela, escarneçam-na, calquem-na embora! Digam-lhe tudo o que quiserem
que tudo são materiais para ela construir um estranho edifício de revolta e de
assombro.
E tudo lhe desaba. Pior, um dia tudo isto ameaça aluir de vez, quando o filho
lhe cai doente. A velha de súbito bate de encontro à realidade. Suspeita-a,
arreda-a, foge-lhe. Não pode ser! não pode ser! E ri; diante duma catástrofe
iminente, aquela alma de ferro ri desafia-a. É lá possível!...
Talvez só nesse momento contemple inteiramente a vastidão do seu sonho;
aviva-lho a dúvida, alumia-lho a Morte. Só então calcula o que lhe custou de
sangue, de vida, de aspirações e de ódio.
Ambos juntos, mãe e filho exacerbam-se. É necessário ainda, e mais que nunca,
triunfar depressa. Ambos o sentem. A morte pode vir: ambos eles, sem nunca
falarem nisso, a temem. Dinheiro! oiro para subir, para calcar! E dos seus
infindáveis diálogos descem do sótão para maltratar aquelas mulheres. Deixem
passar a Candidinha! Ao pé dessa figura desmedida, as outras são mesquinhas como
a terra... Olhem-lhe para o vestido: é o mesmo, nunca quis mudar: aquela saia é
eterna, aquele xale tomou parte em todas as suas angústias. Não o tira do corpo:
recorda-lhe o passado, dá-lhe fé e nervos. Está destingido e gasto, vê-se-lhe o
fio e as costuras: não é um vestido é uma pele.
De borco sobre a arca a Joana assiste à farsa, obrigada a sufocar os gritos:
grita de si para si, grita para dentro, olhos de pasmo, revolvida e tonta. Noite
e há que eternidade a Candidinha prega, livre enfim, transfigurada:
— Eu sou a Candidinha, eu sou a Candidinha...
E bate no peito raso como as tábuas.
— É preciso que se saiba que a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha.
Ninguém se importou nunca comigo... Tinham pena: davam-me desprezo, davam-me
esmolas... Gostavas de me dar esmola também a mim, à Candidinha, hã? Lembras-te?
lembras-te quando eu entrava em tua casa, a
fingir-me parva e tu me davas um bocado de pão, de propósito para me rebaixares?
— Mas eu...
— Não admito réplicas! Eu não nasci ontem! Pudesse eu e tornava a meter-vos as
esmolas em chumbo derretido pela boca abaixo!
Só uma Candidinha resta e essa verdadeira, real e feroz. A outra surge por vezes
no meio do monólogo, recordada por uma palavra, por um pormenor esquecido. A
Candidinha irrita-se e de entre as suas palavras de cólera transparece então uma
figura cómica, que já não existe, de que ninguém se lembra, murmurando ó filhas!
ó filhas!... E a outra Candidinha assim evocada por esta faz recuar de espanto.
São vómitos. Faz esgares, dizendo coisas ao mesmo tempo estúpidas e trágicas.
Pára, recua, avança, traça o xale com um riso de gozo. Não se cansa. Tem-na nas
mãos fá-la sofrer por todas as outras.
— Ri-te, ri-te de mim. Ah, agora choras? Choras por um olho azeite e por o outro
vinagre!...
Às vezes cala-se e rumina. Põe-se a rir baixinho ou fica minutos concentrada e
rígida...
— Pudesse eu e fazia ressurgir da cova a tua mãe para te ver nas minhas mãos.
A Joana sufoca e, sem tirar os olhos dela, hipnotizada, desaperta com a mão
trémula a camisa de estopa para poder respirar. E a voz da desgraça continua:
— Cem anos que eu viva não me esqueço. É pior, é até pior!... Tinham pena de
mim, por trazer este xale rapado e esta saia no corpo, por me terem roubado...
Eu não preciso da vossa piedade para nada!
Avança. Chega as mãos à cara de Sofia:
— Ninguém te arranca das minhas mãos!
A Joana não pode. Ergue-se, é outra. Mergulharam-na em dor e tiram-na para fora
a tressuar de agonia.
— Acudam! acudam!
A velha dirige-se-lhe, deita-lhe as mãos ao pescoço e larga-a desamparada sobre
a arca. Depois abre de estacão a janela:
— Grita aos montes que te acudam! grita às pedras que te acudam!
E no outro dia põe-na na rua.
— Pegue na trouxa e andar. Estou farta de espiões.
Já as três mulheres têm o quer que é de desumano. Parecem deslavadas pelas
lágrimas.
Nessa noite, altas horas, Sofia acorda, sentindo no silêncio um resfolegar
ansioso. Alguém deita-se devagarinho a seu lado, pega-lhe nas mãos e molha-lhas de lágrimas. E toda a noite as duas mulheres soluçam baixinho, nos braços
uma da outra.
— Minha menina! minha menina! para sempre!...
Na antemanhã a Joana parte, depois de a Candidinha lhe remexer nos trapos, com
os olhos enevoados de lágrimas e a trouxinha encostada ao peito. Pára, olha, sem
ver, a corda infinita da serrania, colossos sobre colossos, donde apenas irrompe
a secura das fragas.
Tinta espessa e negra como o pez. As duas mulheres estão sentadas uma ao lado da
outra e na noite da lufada, trágica e deserta, ouve-se uma voz pregar na
escuridão:
— Quem se importa com a desgraça? Empurram a gente, magoam... A gente só serve
para ser enganada.
E aquilo irrompe aos uivos do negrume.
— A vida é uma mentira, a vida é um escárnio, Senhor! Por quem há de a gente
gritar se todos nos atiram para a desgraça? Quem se importa com o mal que
acontece aos outros? quem se lhe importa? Tiraram-me tudo! despiram-me de tudo!
Foi pior que a morte. E quem se importa? quem?
É aos gritos de aflição que as palavras surgem da noite aziaga.
— Enganaram-me e ficaram-se a rir. Parece-me que os vejo rir. Tiraram-me tudo!
levaram-me tudo!
Não se vê a figura de tragédia. É da ventania, do escuro e do frio que sai
aquela voz? É da noite ou da desgraça? Os gritos enregelam e o redemoinho
leva-os pelos ares.
— Trouxe-me consigo, fez-me amargar os meus dias, comer sal de ressalga, até
este desespero, até me pôr mais rasa que a terra. Não há sítio no meu corpo que
não tenha sido espancado e ainda tenho vivas nos olhos as lágrimas que chorei.
Passo todas as fomes e não nas sinto, sou pior que um trapo e não grito. Eu já
não choro!...
As palavras vêm às golfadas, arrancadas, raspadas como gritos de alguém a quem
sucedeu desgraça. Traga-as a escuridão, arrasta-as a lufada e assim se
distanciam como os últimos roucos dum afogado.
— Quem se importa com a desgraça dos outros?
E depois duma pausa, baixinho, a outra voz resignada conclui:
— Deus a ampare! Deus a ampare!...
Há a desgraça e a dor. A dor, às vezes, salva: passa como um cataclismo e
redime; a desgraça não, a desgraça pega-se e transe.
A desgraça é uma treva condenada, onde a mão que busca amparar-se só encontra o
vácuo. Grita-se? Só a desgraça nos ouve. Dá um frio característico, interior, de
morte o frio da desgraça. Usa e gasta. Quem mora com a desgraça, dia a dia perde
certa afeição individual: e daí vem que todos os desgraçados se
parecem. A catástrofe, às vezes, enrija, ao contrário da desgraça, que amolece.
É talvez um hábito; mas, quando se diz de alguém que tem o hábito da desgraça,
esse está afundado e perdido. A desgraça dá a resignação. Pode derrocar-se o
planeta embora que o desgraçado não protesta: por fim é capaz de aceitar com
humildade a esmola do que já foi o seu melhor amigo e acha até certo gosto ao
amargor das lágrimas...
De súbito largam-nas: a Candidinha e o filho fecham-se a sete chaves. Quedam-se
as duas sem gritos na boca, suspensas de espanto. Nem um rumor, nem uma palavra,
um silêncio enorme o Silêncio maior, mais absoluto, e as duas mulheres
esfarrapadas e atónitas. Escutam, esperam... Antes a desgraça, a catástrofe que
cai e prostra, que esse desconhecido oceano que sobe sem rumor e as sufoca.
Aquilo assume proporções de pesadelo. Falta a respiração e vai-se bradar. Para
quê? É inútil. O silêncio é irmão da treva. Mesmo de dia empareda e isola.
Começam a falar baixinho, para o não despertarem. Os seus ouvidos afinados
procuram e só se lhes depara na casa enorme de traves descamadas o absoluto
silêncio. Pelos vidros amarelados coa-se uma claridade escassa e fria, e lá fora
avista-se uma lomba solitária entaipando o céu. Perderam a noção da realidade e
da vida. Alta noite, acordam de chofre ansiosas e ficam à espera atentas, com as
mãos enclavinhadas no peito.
Um dia Sofia desata a chorar.
— Chiu... diz a Cega.
O tempo inalterável e o coração estala-lhes. De repente uma noite os passos da
velha ecoam lá em cima e nunca mais cessam regulares e eternos. Até o riso
acaba. A Candidinha maquina e elas sentem sobre o coração ir e vir, noite e dia,
aqueles passos pendulares e monótonos.
CAPÍTULO 9
A CANDIDINHA NO SÓTÃO MONOLOGA:
«Desde pequena que sinto isto aqui a remorder-me, sem descanso, dia e noite,
sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência: é um veneno
amargo e sem o qual eu não posso passar. A inveja derranca-me e excita-me,
revolve todo o meu ser e faz subir à tona de alma a lama esquecida: exaspera-me
todas as feridas: põe-mas em carne viva. Faz-me bem. Desde pequena que toda a
gente tem pena de mim e me despreza. Sou assim velha desde pequena: aos onze
anos, já era refletida e má como as cobras. 'É tão feia, coitadinha!' E esta
estúpida piedade acompanhou-me, cresceu comigo, pegou-se-me e queima-me com um
vestido de fogo.
Toda a gente tem tido pena da Candidinha!
Já em pequena trazia este mesmo xale, este mesmo trapo, que foi crescendo
comigo. E não creio, nunca cri em Deus, no Deus dos pobres, no Deus que recomenda
a desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome.
No Deus a quem as velhas ricas fazem lausperenes e rezam ladainhas; no Deus que
as protege e que elas têm em casa em ricos oratórios, entre lamparinas e velas
de cera, pregado na cruz, com resplendores de brilhantes.
Elas mandam nos padres, confessam-se, vão às missas com vestidos de seda a
rugir, dispõem do Crucificado, ao qual desde pequena me obrigam a rezar, com os
joelhos de rasto nas lajes, doridos e inchados de frio... É desse tempo que data
o frio que se me coou até os ossos e nunca mais me deixou.
O meu filho?... O meu filho alimentei-o com ódio, criei-o à custa de desgraça.
Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo quanto sofri.
Mostrei-lhe a minha alma e a alma dos outros. Fartei-o de Verdade. Disse-lhe, é
certo, que neste mundo só o dinheiro vale, e que os pobres são sempre
desprezados e calcados. Os pobres nunca têm razão: quebra-se sempre pelo mais
fraco. O meu filho qui-lo à minha imagem e semelhança; desejei insuflar-lhe isto
que sinto; livrá-lo de ser escarnecido e pobre; de viver de esmolas. Quis que o
meu filho fosse eu. Muitas vezes vi surgir na minha frente a sombra austera da
Morte e olhei-a tolhida de medo. O túmulo fecharia para sempre esta boca, o
negrume abafaria o meu sonho para toda a eternidade inútil. E já as ouvia à roda
do meu cadáver dizer: Coitada da Candidinha, foi toda a sua vida uma
estúpida!...
Mas não! Ficava vivo o meu filho para me vingar. Transmitira-lhe desde pequenino
o rancor deixava-o herdeiro do meu sonho. Apagada a minha boca, restava outra
para falar. A Candidinha não desapareceria de todo da face do mundo. Cá ficava
alguém! cá ficava alguém!...
Rico! o meu filho pode ser rico... Agora eu, nunca!... Se eu quiser... se ele
quiser... E hei de por causa dela, por causa dum trapo inútil, recuar?»
E mastiga, e hesita, e para se convencer, revolve na alma tudo o que passou,
tudo o que sofreu, tudo o que sonhou:
«O ódio é pão duro, mas sustenta. Sabe a ferro. Valeu-me nas imensas e frígidas
noites de fome; nas horas de desespero e de desânimo. Quando não podia mais,
punha-me a odiar e o ódio dava-me forças.
Vinha-me a atroz amargura à boca, quando olhava a esmola que trazia apertada na
mão. Mas punha-me a odiar e tudo esquecia. Construía fechada no meu quarto. Às
vezes com o bafo aquecia os pés do meu filho, que adormecera depois de tragar
uma côdea amarga, e, sobre a sua cabeça, tecia um palácio de esplêndidos
horrores. O ódio é pão duro, mas sustenta...
Pior que o desprezo, pior que os maus tratos é a piedade. Ouvir dizer, com a
barriga a dar horas e um inferno na alma: Coitada! transtorna-me. A cólera
ergue-se dentro em mim e por pouco que não berro: Coitada de quê! Cuspo na vossa
piedade! Mas todo esse jato que me subia à boca, tinha de recalcá-lo logo
escondendo-o.
Mas nem piedade nem esmolas caíam em saco roto: transformava-as imediatamente em
ódio... o ódio é o pão duro mas sustenta. Amarga como o ferro, mas seu sabor
estranho engrandece e conforta.»
E no silêncio, de cá para lá, a velha cresce como um fantasma a Candidinha
parece o próprio sonho embrulhado num farrapo a cismar, a rondar...
CAPÍTULO 10
Mas o tempo passa e o filho piora. Um temor que se insinua, um inexplicável frio
transe a Candidinha, dá-lhe à voz tremura, hesitação e dúvida ao olhar, que
nunca se desviou nem diante das piores catástrofes. Surpreende-se, de mão no
queixo, a cismar, fixando com espanto uma Sombra temerosa. O frio que anda
espalhado na casa apodera-se de todo o seu ser e ela, que pisou aquele chão como
dominadora, anda em bicos de pés...
Depressa! a Candidinha não perde um minuto, vai à vila para realizar o seu plano
e toma em aflitivas correrias, a pé, através da serra. Mastiga palavras,
monologa e cisma. Pela primeira vez a Candidinha desvia o olhar duma figura que
avulta a seus olhos. Pela primeira vez na vida, a Candidinha duvida: precisa da
realidade imediata: o sonho já não basta. Quere-lhe dar corpo antes que lho
tolham. Depressa! depressa! porque tudo se lhe pode converter nas mãos em pó
inútil.
— Depressa, filho, depressa! Tudo menos pobre, não queiras que se riam de ti!...
— Mas que quer vossemecê que eu faça? Eu estou porventura assim tão mal?
Os olhos esgazeiam-se-lhe, fita-a como se quisesse arrancar-lhe a verdade do
fundo da alma. O silêncio é atroz. Há nos seus olhos terror.
— Mãe!
— Que é, filho?
— Mãe... e hesita. Eu não morro, hã?
A velha encontra por fim palavras. A velha, que sentira tremer-lhe o solo sob os
pés, exclama com risos:
— Agora morres, filho! Que tolice! Pois tu havias de morrer assim!
E a Candidinha ri-se. Onde vai ela buscar forças para se rir? A que recanto
inexplorado, a que âmago daquela alma, tira a velha esse riso sem tom nem
som?... E já ele fala apressado como se quisesse dar razões à Morte, que ambos
sabem ali à espera:
— Pobre eu nunca vivi, tu bem sabes! Temos andado a lutar, à procura de subir,
de vencer e eu nunca vivi, tu bem sabes... E foi por tua culpa, ouviste, mãe? Tu
é que me tens dito, tens-me pregado sempre, desde pequeno que precisamos de os
calcar e de fingir. Devagar se vai ao longe... Foste tu!
Seus olhos! Oh seus olhos acusam-na, seguem-na, espreitam-na, não a largam,
cheios de desespero e de dúvida. Investigam, procuram ler-lhe terror na face.
— Cala-te, filho! cala-te! Tu verás! Tu verás!
E aí começa ela a pregar para o iludir e para se iludir; ai começa a velha de
trás para diante no quarto, na tinta do crepúsculo, a esbrasear-se e a tolhê-lo,
encharcando-o de sonho: a enganar-se e a enganá-lo.
— Tu verás! tu verás! A Adélia está parva, a Teles estica qualquer dia com a
lesão. E a Felícia tenho-a aqui, está nas minhas mãos!... Há de casar contigo.
O Antoninho ri no escuro: arreganha os dentes já de cadáver — na boca
descarnada.
— Tenho-as aqui a todas, descansa! A Felícia faz tudo o que eu quero, é uma
criada. Havemos de a mandar como uma escrava depois de casares!...
— Tem muito?
— Muito. E mandas, ordenas, é teu. O dinheiro roubado, o dinheiro que te
pertencia de direito e que te roubaram, filho!
— E a outra?
— A outra... Tudo se arranja, verás...
Cala-se, já cheia de cisma, arredada enfim a ideia da morte. E no silêncio ele
torna daí a minutos:
— Mãe!
— Filho?
— Se eu me vejo rico e cheio de saúde!... Porque eu nunca gozei e agora tenho um
medo de não gozar...
E a Candidinha rindo-se de novo com esforço:
— Não sejas tolo!
— Tu verás... Rico, tu verás, mãe, como toda a gente me liga consideração. Não
há nada neste mundo pior do que ser pobre.
— Isso não há!
E respirando fundo, ele repete:
— Eu quero viver!...
Não, ele nunca realmente se atrevera a viver a vida esplêndida por timidez e por
medo; nunca se atrevera a pôr em prática o que criava na alma pelo terror
estúpido da existência. Diante do pélago azul, vivo, cheio de prodígios, o
Antoninho deixara-se ficar com joelheiras nas calças, as mãos húmidas, frio,
encolhido de espanto. E agora de golpe, ao pé da morte, vê de chofre o que
perdera. Antes tivesse praticado um crime; antes tivesse mergulhado as mãos no
sangue mas vivido! É agora que adivinha a existência; é agora com a morte a seu
lado, que compreende que não cumpriu o seu destino: que só há uma única vida e
nem um minuto a perder para cada qual ser o que é, sem máscara, e com
ferocidade. E nas poucas horas que lhe restam de vida não há existência possível
a desenrolar-se. Então a Velha interpõe-se; a velha,
desviando com uma das mãos a Morte, apontando-lhe com a outra um mundo
imaginário. Mas ele, farto de sonho estúpido, quer realidades, gozar nalguns
dias naquele casebre perdido na serra, transido pelo frio da pobreza, comido
pela doença, as mulheres sumptuosas, todas as carnes soberbas, todos os tesouros
que a vida oferece aos que a sabem domar.
— Mas eu não vivi! eu nunca vivi! E não quero acabar assim. Os outros enchem-se,
os outros riem-se, os outros passam e matam sem olhar para trás, e eu obedeci
sempre e nunca me fartei. Desde pequeno que tu me dizes: Hás de ser rico! E eu
vou morrer neste degredo! Tu compreendes isto? Eu posso morrer e nunca vivi! Eu
posso ir para a terra, daqui a minutos, para sempre tolhido, sem mais sentir,
olhos tapados com terra, boca tapada com terra, e nunca vivi! Tu é que tiveste a
culpa! Espera! amanhã! Sempre amanhã! sempre a esperar! sempre sonho! sempre
sonho!... Tu és minha mãe! Tu tens obrigação!...
— Filho!
A Candidinha atiça-o, açula-o; a velha vai às entranhas do Sonho buscar forças e
tudo no casebre se transfigura. A velha desorienta-se, fala nos tesouros
ocultos, no Poder, na Saúde, na Força, no Ódio a velha reanima-o. E ambos
esquecem a figura que os não larga dia e noite; ambos ficam a olhar absortos o
mundo que descobriram e criaram, um maravilhoso mundo de gritos.
— Mas então torna ele baixinho, com a voz de quando era pequeno que é preciso
fazer?
— Eu me encarrego de tudo. Sê rico e nem faças mais caso de mim, se quiseres. Eu
não preciso de nada, qualquer buraco me serve para acabar. O que te quero é
rico!
E ele, com o peito despedaçado pela tosse:
— Aí torna vossemecê com as suas coisas...
Então a velha, de chofre, chegando-se mais para o filho:
— Podemo-nos encher! E agita as asas do xale no ar A Felícia tem arcas de oiro,
oiro como terra! A Felícia tem numa sala fechada, barricas de oiro... Não gastou
nunca pataco, tem-no ali a esmo. E pode ser tudo nosso! tudo, se quiseres! E ela
está pronta a casar contigo! Tenho-a aqui!... E fecha o punho, trémula de sonho.
Quando lá estou, vejo na sala, de que só ela tem a chave, as arcas do pão
recheadas de oiro. Sinto-o através das paredes. Cheiro-o. Tremo quando me
encosto aos muros. Podemo-nos encher!...
E o Antoninho, baixo:
— E esta? pergunta receoso.
E logo a Candidinha avança sôfrega, e com espalhafato:
— Tens pena da Cega, não é? Tens pena de quem te enganou, para se rir de ti com
o conselheiro de borra? Enganou-te!... Mas tu gostas! tu queres ser pobre por
causa dela, tu queres ter toda a tua vida fome e necessidades... E queres que te
escarneçam! e queres ser o filho da Candidinha, e viver de esmolas!...
— Cale-se!
E a velha mais baixo:
— Se esta desaparecesse estava tudo arranjado... Apanhávamos o dinheiro à outra,
que é velha como a serpe. Era nosso o arame! E com um riso de gula: Casamento só
assim: cem anos e cem contos. Eu bem to preguei toda a vida! Quem apanha mulher
assim, campeia... O que eu tenho pena é do que sofri, das aflições que rapei...
Queres ficar toda a tua vida com o pé na lama, por causa da Cega, que só estoira
quando já não for preciso? A tola sou eu!... Mas eu queria-te rico, eu queria
que ninguém fizesse escárnio de ti... Mais tarde torcerás a orelha...
— Mas é um crime... diz ele mais baixo.
— Um crime é isto... Tu quantos anos tens? Trinta, filho, trinta! E ainda não
sabes o que é a vida! Nem o que sofreste te serviu de nada!... O céu é de todos
e este mundo de quem mais apanha! Aqui em baixo só há uma felicidade, o
dinheiro. O resto são poesias... Tu já viste algum canalha rico que não tivesse
razão? A pobreza é a pior das desgraças. Os pobres, de sete em
sete, devia-se mandar matar um para que o pão não faltasse na terra... E mudando
de tom, agachada ao pé dele, no escuro: De mais a mais está cega, é um
tropeço... E ninguém sabe que existe. O caso é não se saber...
— A morte!...
— A morte? Que é a morte? e que importa? Um sopro e ela desaparece para
sempre... Que nos faz isso a nós? A minha vida e a tua vida é que nos importa.
Eu nunca pude ser eu. Porquê? Por ser pobre! A ti, toda a gente te despreza.
Porquê? Por seres pobre. É um momento vou lá baixo, pondo-lhe a mão na boca e
ela sufoca...
— Cale-se! cale-se!...
E a velha segue transtornada:
— E temos logo o dinheiro da Felícia, podes casar com a Felícia!... És logo
rico!... Não é por mim que to peço, é por ti. Eu não preciso de nada, não te
peço nada, não quero nada... Basta-me saber-te rico, para ser feliz.. Nunca mais
me ouves, nunca mais me vês. Desapareço num buraco. Nem preciso de comer. Não é
por mim, é por ti. O que eu quero é a tua felicidade. E diante disto, que vale a
vida desse tropeço?...
Ele cala-se. Ela avança, depois dum momento de silêncio, sentindo-o já
convencido:
— Tu verás, ninguém sabe. E chegando-se mais para ele, A gente...
— Não me conte! não me conte! brada o Antoninho frenético.
Não quero saber. Faça lá o que quiser, contando que eu não saiba nada. Isso é
consigo. Não quero ouvir.
Então a velha sorriu-se, compreendendo-o, e depois diz:
— Não tenhas medo, filho, eu cá arranjo tudo... Sufoco-a! Ninguém o vem a saber,
ninguém sabe que ela existe. E se se souber, tu negas no tribunal e eu confesso
tudo para te ver rico e feliz.
E durante dias passeia no quarto calada e soturna. Esquece as mulheres. Depois,
um dia separa-as, fecha Sofia à chave e toma a passear diante do filho absorto,
sem dizer mais palavra. Fora vêem-se os eternos montes, o céu baço. Eles
olham-se nos olhos.
Mas aquela exaltação não dura muito. Vem outra vez o frio, a dúvida:
— Mas, mãe, eu tenho frio nesta casa maldita, por onde a ventania entra por
todos os buracos... Se a gente lhes pedisse...
— O quê? Não, filho, não! Estou farta! Quem muito se abaixa seu rabo se lhe vê.
Espera... A gente não pede mais nada a ninguém. Tenho-as aqui...
E aperta a garra.
— Mas eu quero gozar! Eu morro sem gozar. Vivi de enganos e de sonhos e
esqueci-me de gozar. Não me fartei... E foste tu! foste tu, ouviste?
— Espera...
— Eu morro sem gozar! Eu não quero morrer sem gozar!
E a cara sua ansiosa, de desespero e de medo, contrai-se-lhe, os olhos abertos
num espanto.
É ela quem o sacode, quem lhe dá vida e alma. A sua alma sobra para repartir com
ele, para o instigar; o seu sonho chega ainda para o encher de sonho, o seu ódio
para galvanizar aquele cadáver, traspassando-o de ódio. Comunica-lhe a labareda
que a queima. Filho! E reanima-o. Filho! Vê-o morrer-lhe, pálido e exausto, nos
braços, e dá-lhe vida da sua vida, nervos dos seus nervos, ódio do seu ódio.
Filho!
— Eu morro! eu sufoco, mãe!...
— Filho!
— Sufoco!... Não quero morrer!
Ela ampara-o, limpa-lhe o suor. Nos seus olhos há uma ânsia: vê a Morte.
— Sossega, espera, filho... Mas quem pensa agora em morrer!
E vai buscar, não se sabe aonde, forças para rir; tira do seu coração de ferro
forças para gargalhar!
— Não me enganes, cala-te. Enganaste-me sempre... Tenho vivido toda a minha vida
à espera... À espera de quê?... Hás de ser rico! hás de ser rico! E morro aqui,
como um cão! Tenho frio... Ouviste? Tenho frio!...
Vem-lhe outro ataque de tosse: o seu olhar procura o dela para ver se está pior,
para ler no seu se a morte que o amedronta está mais perto... E toda ela
estremece. Logo se desorienta. Começa a pregar:
— Há os bancos cheios de oiro, abarrotando de oiro! Fazem-se abóbadas
subterrâneas de propósito para se guardar o oiro aos montões!... E seus olhos
reluzem, chega-se mais para ele.
— Eu era inteligente, como os mais.
— Tu vales mais que os filhos dos outros...
— Se eu lhe tivesse deitado a mão, tu verias... Mas se eu morro sem ter vivido,
sem ter executado o que pensei, o que cismei... Fizemos todos os sacrifícios...
Pensávamos: amanhã! amanhã! E por amanhã deixámos tudo!
CAPÍTULO 11
A Cega habituou-se. Habituou-se à escuridão, a sofrer, a estar sozinha e calada.
Apurou-se-lhe o ouvido e o tato. Com os olhos fixos no alto, percebe que correm
os dias pelo sol que lhe passa nas mãos estendidas; sente no silêncio a vida dos
montes, e distingue todos os ruídos, e até a luz mais forte da luz mais fraca o
crepúsculo da madrugada. Às vezes confunde a claridade com o som, o canto da ave
que ao anoitecer no salgueiro se despede da última gota de luz com o fio de água
que o vento balouça e se cala, para logo tornar a cair com o mesmo gorgolejo na
pedra como se lhe corresse dentro do peito.
A Candidinha desce com os pés de lã até ao quarto da Cega. Mas não a surpreende.
Qualquer ruído a alvoroça. O coração bate-lhe e os nervos vibram-lhe até à
extrema dor. Ergue-se logo do leito, com a mão no peito, que lhe estala e
fixam-se, a Candidinha de olhos espantados, e a Cega sem a ver. Às vezes a
Candidinha espera, de mão fincada no queixo, encostada à parede. E assim ficam
horas. Sente-se no silêncio latejar o terror.
— Ai!... suspira a Cega.
Entre o projeto e a execução há um mundo a transpor... Quando a Candidinha sai
enfim da imobilidade e sobe até o quarto do filho, ele interroga-a com o olhar
esgazeado, com quem pergunta:
— Já? E ela, sem responder, perde-se num fluxo de palavras inúteis.
À roda o silêncio o silêncio em que se ouve a respiração dos montes o silêncio
em que ela sente o sol correr nas folhas um silêncio cada vez maior e que lhe
pesa como chumbo. Os próprios montes parece que suspendem a respiração e
esperam... Um ruído. É o rato que passa no sobrado para ir à arca do pão ou a
velha que avança na ponta dos pés?... Uma tábua estala com o fragor dum
terramoto... Outra vez o silêncio, e de ouvido à escuta, os nervos todos à
escuta, a Cega espera...
Tem medo de adormecer. Só há na sua vida um momento de alivio, a manhã, quando
todos dormem em casa. Toda a noite espera pela primeira luz. Sente o sol muito
longe, sente a claridade no ar que rareia. E toda a noite aspira pela luz. Logo
que o primeiro fio entra pelo postigo e lhe corre nas mãos estendidas cai num
torpor, com os olhos cerrados e tão pálida que parece morta.
Os dias passam. Outra vez a velha torna e não ousa. A Cega sente-a, a Cega vê-a!
Seus ouvidos apurados percebem o mais leve ruído: sobressalta-se, senta-se de
estacão no catre, e logo a outra recua. Ninguém no descampado ouviria os gritos,
que à velha se afiguram ir despertar todos os ecos adormecidos. A Cega adivinha.
No negrume ouve cicios, palavras, rumores. Acorda de repente, surpresa, com os
glóbulos brancos ansiosos.
— Ai...
E aquilo cresce, torna-se palpável, pesa-lhe sobre o peito, oprime-a sufoca-a.
Olha e só vê treva. Nem um vislumbre. Suas órbitas rebuscam debalde na escuridão
impenetrável.
Um ruído baixinho um ruído que aumenta, um ruído que redobra. Devagarinho
soergue meio corpo, espera, com a mão no coração e o ouvido à escuta, para ver.
Com a mão no coração e o ouvido à escuta, a Velha pára também no meio do
quarto... E as duas ficam assim horas, uma em frente da outra, sem mexer.
Um momento parece que tudo pára no mundo, e o silêncio fecha-se à volta como uma
abóbada e ela sente um contacto que desliza sobre o lençol. Tão devagar! tão
devagar!... Passa uma hora ou um século? A mão é a da Velha? estaca e depois
continua a marcha como uma aranha monstruosa, de patas moles, que caminha,
hesita, que volta atrás e que ai torna direita a ela. Passou uma hora ou um
século?
Nessas ocasiões um sopro podia-lhe dar a morte bastava um sopro. O coração
reduzia-se-lhe a cinzas. Era uma mulher? Era um ser sem nome, uma alma torturada
pela angústia... Depois uma pausa um silêncio em que não ouvia nada. Tinha medo
de respirar um langor mortal um frio de gelo transia-a toda. E de novo o coração
lhe começava a bater, a bater desordenadamente até que se sentia morrer pouco a
pouco e os olhos brancos e frios como pedras saíam-lhe fora das órbitas.
O ruído é mais que um som para ela o ruído toma forma e corpo. Se adormece cai
num abismo sem fundo, Esganam-na. Num transe acorda em suores frios, num grito
que reprime logo:
— Jesus!
E seus ouvidos distinguem, decifram todos os ruídos da casa: os passos, o
estalar da trave, o tecer da aranha, o trabalho inalterável do caruncho.
O ouvido afina-se-lhe até à dor. Sabe tudo o que se passa, até a vida obscura do
sótão onde só moram os ratos e a doninha. Sente a aflição da fonte que diminui
no verão até chegar a uma gota. Lá anda o vento nos montes!... E ninguém ainda o
ouviu. Distingue todas as notas musicais da chuva e as do sapo voz prodigiosa de
tristeza, voz quase humana que se queixa da fealdade na solidão da noite. Ouve o
caminhar das raízes à volta dos muros e a própria luz chega a ser um som para a
sua sensibilidade exasperada.
O curioso é que a Candidinha não se atreve. Encosta-se à parede, estende a garra
e quando aqueles olhos, que não veem, se fixam nos seus, cegos mas cheios de
espanto brancos mas passados de dor encolhe-se, recua e de novo, pé ante pé,
volta-se e some-se pelo corredor fora. Depois, no alto da escada, respira.
A outra que fica imóvel como se fosse de pedra tomba esvaída e muito baixinho
suspira:
— Ai!...
Sozinha, a velha enfurece-se. Porquê? Ninguém ouve, ninguém sabe, ninguém
suspeita. Põe-lhe a mão à boca, o joelho ao peito e é com gozo e raiva que sente
estalar-lhe os ossos. Aquilo dura um momento e o tropeço deixa de existir para
sempre... Em pensamento já a matou assim muitas vezes; conhece todos os
pormenores do crime. Nenhum lhe escapa e dir-se-ia que na palma da mão retém a
humidade dos seus dentes e o hálito da sua boca. Mas na realidade não se atreve.
Sozinha, a cega luta braço a braço na escuridão com o pavor. Quer fugir não
pode. Palpam-na, tateiam-na mãos leves como penas, e sente alguém sempre
presente no escuro ali a seu lado. Seus olhos estalam para ver e ansiosa, boca
entreaberta, ouve naquela eterna escuridão um pequeno estalido que lhe põe de
súbito os cabelos em pé. Rompe-se-lhe o coração.
E escuta um ciciar de palavras, como se alguém a quisesse prevenir, junto aos
ouvidos...
A Candidinha conversa consigo:
— Fui sua criada, sujeitei-me a tudo. Não comi. Noites e noites deitei-me com
uma dor aqui. Era fome... Estragou o futuro do meu filho. E tu agora vens... Tu
que dizes?
E o seu braço aponta para o negrume, gesticula na escuridão.
— Mas então não havia justiça... Era elas a mandarem, elas a gozarem, e eu
calada, eu de rastos, eu a fazer-lhes as vontades.
— E ria-se para o escuro. Tudo sofri, sofri de mais... Fosse preciso que eu
morresse, que me matava logo... E tu vens agora, tu!... Que queres?
Com quem discute a velha? Com a noite ou com a morte?
Debate-se na treva. É uma alma que se dilacera a si própria, que embate contra
muralhas inabaláveis e espessas sem ruído e numa agonia. Um raio de luz! um só
raio de luz que fosse para que ela pudesse ver o fantasma que a atormenta! A
Cega vê, adivinha a morte, a Cega sente-a caminhar pé ante pé para ela,
suspender-se-lhe sobre a cabeça... A respiração corta-se-lhe, o coração
estala-lhe no peito magro e num torvelinho, com os olhos estoirados e suor frio
na raiz dos cabelos, debate-se contra o negrume compacto. Um raio de luz que
fosse!... Gritar? gritar para quê? emparedada naquele túmulo eterno? E suspira
baixinho Ai!...
Mas nesse cicio vai tanta amargura tanto pavor, que a Velha recua, pé ante pé,
até a parede. E como se a própria alma lhe escapasse naquele ai de angústia. E a
Candidinha fica minutos suspensa a olhar essa estranha figura, toda branca,
coberta de suor, de boca entreaberta e olhos atónitos de espanto... Ai!...
Donde vem a Morte? Em que momento preciso vai desabar sobre ela? Não tem um
segundo de calma e não pode fugir nem desatar aos berros. Apenas suspira
baixinho:
— Ai!...
E os olhos os olhos brancos que procuram e se fixam na direção do ruído, os
olhos que querem ver e que num desespero procuram ver, brancos e salientes,
líquidos e inquietos, tornam-se expressivos à força de terror.
Passa assim um mês tem os cabelos todos brancos...
CAPÍTULO 12
Lá vem uma luzinha no monte! Tudo negro como pez e só aquela faúlha luta contra
a ventania e a escuridão cerrada...
E a Joana que não sossegou não pode. Mal chega à porta da cabana cai exausta
sobre o pedregulho donde escorre um fio de água. Lá para o fundo fica o largo
panorama azulado que a Joana não vê: só há na sua alma um pensamento obstinado, a
menina que ajudou a criar...
Está no fim. Feia, rugosa, inútil ela parece-se com aquela fraga que sustenta e
ampara a cabana. É um penedo a que nem uma raiz se apega. Sobre ele desabaram em
vão os invernos, as levadas, os clamores. Fraga hirta, sólida e estéril. Mas um
dia veio em que a pedra sentiu bulir-lhe no seio a vida. O que fora inerte
durante eternidades, estremeceu de assombro. Do fundo do granito partiu um
alvoroço que se comunicou a toda a penedia. A Fraga extasiada concentrou-se,
dorida e feliz: a Fraga sentiu-se mãe. Passaram-se mais anos dobaram-se os
séculos. O tempo não importa o sonho das pedras é infinito e uma mealha de sonho
alimenta-as uma eternidade. O tempo passou mas a pedra. apesar da sua
imobilidade, existia: por baixo daquela casca rugosa e dura latejava a vida. No
ventre do granito o que quer que era remexia, bulia, pacientemente minava, ia
subindo polegada a polegada século a século para a
clara luz. Era a água que escavava a rocha. Até que um dia, depois de séculos de
obstinação e esforço, chegou à superfície para regar as pedras.
Muitos anos se passaram ainda, quando a Joana exausta topou no calhau que serve
de amparo à cabana deixando-se enfim cair prostrada, vencida, face a face com a
libertação e a morte. Para ela não há lugar na terra a própria terra a repele. E
ao tombar, a sua boca sequiosa, onde se concentra todo o amargor do mundo,
depara com esse fio que brota duma fenda e borbulha, escorre à luz vivíssima.
Aquele fio de lágrimas, frígido e límpido, levou séculos a minar, a romper a
rocha unida e compacta, e vem do coração do globo com este único destino mitigar
a sede das criaturas de qualquer criatura de qualquer desgraçado que passe.
Também a Joana veio ao mundo com este destino ser mãe, e ficou estéril. Mas a
sua ternura como aquela água corre baixinho e rasa para toda a gente, sem a
mínima reserva. Dá-se até aos bichos.
Entra na cabana, tenta mastigar uma côdea e não pode. Tira o lampião do forno e
deita-lhe o último pingo de azeite da almotolia. Fez-se noite. Mas na sua alma
não há uma indecisão. São léguas de caminho e sabe que a esperam sofrimento e
lágrimas. Está no fim. É o último fôlego que lhe vai dar. Quer defendê-la até à
última e morrer a seu lado.
— Não posso deixar a minha menina sozinha no mundo. Volto para lá ainda que me
matem. Criei-a. Eu é que sou sua mãe.
Acende o lampião e volta para trás, através da serra e da noite povoada de
gritos. A tempestade aproximou-se. Não há estrelas na solidão opaca. Caminha
tateada pela treva, ouvindo o fragor que desaba; caminha na escuridão, calcando
o chão bravio pedra convulsa, sobre pedra caótica. A sua figura parece mais
pequena, olhos abertos, boca aberta espanto e dor perdida na treva. Os pés
negros e descalços escorrem sangue. Tão bravo é o tumulto que lhe escachoa lá
dentro que não sente: o fogo interior que a devora e ilumina, espanca para longe
as sombras desmedidas. Fora da sua alma só existem trevas sobre trevas
condensadas. Mas seus olhos não veem o céu, quanto mais a penedia inerte!
Agarrada à trouxa caminha sempre, a fisionomia devastada pelo sofrimento,
sulcada por todas as angústias, os cabelos brancos enrodilhados, os olhos
abertos de pasmo: lembra uma dessas cabeças toscas que os artistas da Idade
Média abriam num madeiro bruto. É quase dura a imagem, mas sacodem-na rajadas de
dor. Um nada a menos e vai-nos rebentar o riso na boca quando de súbito a gente
se prostra sufocada em pranto.
Quem olha a Joana só lhe distingue amargura na boca e nos olhos cheios de
lágrimas amargura e espanto mas quem a fita descortina logo uma alma radiosa,
como num cantinho de céu negro às vezes se descobre uma constelação magnífica.
Tudo nessa figura é revolvido e dilacerado e tudo no entanto exprime uma
ilimitada ternura. Os cabelos estacam-se-lhe; a pieira aumenta-lhe. As trevas
afogam-na e diminuem-na...
A Joana resume-se nesta palavra ternura. Oferecera-se; vivera para os outros,
repartira-se por todos indiferentemente. Andara de casa em casa, à procura de
afeição, deitando raízes em todas as terras como se vivesse de dor, como se se
nutrisse de angústias. E uma pobre diziam com desdém e passavam. Dera-se aos
outros, despira-se. Para quê? Em vão procurara para si o maior quinhão de dor;
fora em vão que se aniquilara e se sumira, que se tornara humílima. Quanto mais
se consumia mais sofria.
— É uma pessoa ordinária...
E ela obstinou-se em amar. Em amar sem compreender. Em amar para sofrer. Em amar
sem tom nem som. Como as mães-d'água dão água ela dá ternura. Talvez inútil.
Talvez sem saber. E gastou-se assim a comer o pão alheio e a amar. A servir e a
amar.
Sua existência foi de constante dedicação. Já em pequenina lhe batiam, e seus
olhos encaravam a vida com uma tristeza tamanha, que havia no fundo dessa
claridade ingénua o que quer que era de desumano: Cresceu. Cavou, lavrou,
arrancou da terra ingrata o pão para repartir com os irmãos e os pobres. Foi
depois servir: passou tratos; riram-se daquele ser estúpido, cujo coração
estremecia ao encontrar crianças. Punham-na na rua. E ela quedava-se sorrindo,
com ternura nos olhinhos tristes, o peito raso, as pernas à mostra e uma pieira
na garganta. Um dia pegou raízes: deixaram-na enfim criar afeição
àquela menina, como se fosse sua mãe. Punha-se diante dela extática, sem saber
exprimir-lhe o seu amor. Via-a crescer e só dizia:
— Minha menina! minha menina!
Essa mulher ignorante formou a alma daquela criança. Viu-a balbuciar, chorar,
crescer, e uma emoção inexplicável começou a bulir-lhe no peito e nunca mais
secou: eram talvez lágrimas represadas. Nesse momento o coração da pobre velha,
que desde pequena ouvia dizer: Uma mulher, para entrar no Céu, precisa de criar,
ainda que seja um bicho! batia em união com o cosmos. Toda a gente acha bem que
se sacrifique. Ninguém estranha que dê a sua vida a outras vidas. Ninguém lho
agradece. A própria menina arreda-a: Deixa-me! Aborreces!... Era sua amiga, mas
fugia-lhe aos beijos, que deixavam cuspo, às mãos toscas como pedras, aos
vestidos grosseiros e sujos. A Joana compreende-a e receia tocar-lhe.
Caminha e sente um golfão amargo, como se uma barra de chumbo derretido lhe
viesse à boca: o travor da desgraça, e uma sede inextinguível, capaz de tragar
toda a frescura da terra; uma secura atroz, feita de todas as securas, de
injustiça, de dor, de fel, de amargura. A sede das sedes.
Caminha, caminha sempre, com os cabelos enrodilhados, revolvida, dilacerada e
trôpega. O negrume aumenta, o vento apupa-a. Já não pode com aquela jornada de
léguas. Mas teima e ergue a luzinha vacilante na mão.
Passa ao pé dos grandes penedos tão pequena ao pé daquelas formas denegridas que
povoam a solidão e que metem medo pela imobilidade e porque as sentimos dotadas
duma vida misteriosa. Tão pequena e calada como um fiapo levado pelos
redemoinhos que se formam nas alturas e vão correndo e dançando sem destino. Não
sabe nada, não pode nada, vê tudo através dos olhos turvos de chorar. Mas teima.
A luzinha lá vem através do golfão...
— Porque não fui eu sua mãe.
A chuva molha-lhe a cara, a tempestade sufoca-a. É um cangalho: as lágrimas
esvaziaram-na, já não tem senão ossos tanta emoção deitou que, como as fontes,
extinguiu-se... Mas caminha sem desânimo. Os ramos acutilam-na, o vento apupa-a.
Não hesita nem duvida. Alumia-se com o lampião fio de lá de ovelha, gota de
azeite da almotolia. E uma luzinha tão pequenina e tão perdida na serra e no
mundo que um sopro a vai apagar. Oscila, perde-se na escuridão cerrada... Mas
teima! Vê-se de longe entre aquele caos subir como quem se arrasta à corcova dos
montes e levar um tempo enorme a descer. Às vezes parece imóvel. Lá vem, lá
anda... A gente chega a ter medo que se apague e segue-a numa ânsia, como se
dela dependesse a vida do mundo. E uma luz de candeia, sem ela a terra seria um
deserto. Morreu! morreu agora! Tanto tempo passou que decerto morreu. Lá
reaparece tremendo à ventania, lá teima trôpega e sempre a brilhar, apesar das
trevas que se condensam. O mundo em roda é negro, mas aquela luz pode mais que
uma
estrela... É a Joana que caminha com o lampião seguro na mão encortiçada. É uma
velha carcaça, só ossos e piedade, e no entanto toda a serra bruta se alvoroça.
Em vão a tempestade se engolfa nas gargantas aspérrimas e como uma asa
desconforme a açouta; em vão a tempestade redobra. A Joana anda sempre, lá vai,
lá vai!... Aquilo não é luz é ternura. E a serra é ferida no próprio coração.
Está quase cega; seus olhos são duas lágrimas. Não admira: a Joana chora desde
pequenina. Veio à terra para sofrer. Está afeita. A sua fealdade separou-a para
sempre da ventura. A Joana é dos outros. E ao fim da vida forçam-na a ver a sua
menina desgraçada, naquele casebre aferrado às lapas, seis pedras onde a dor e
as risadas se misturam.
A tempestade no auge desaba sobre o casebre. Dentro, os gritos eternizam-se, a
dor pesa como uma cruz. A Joana, nas sombras que vão estampar-se na parede
fronteira, distingue a velha atroz, fazendo gestos, o vulto da cega petrificada,
o de Sofia e logo estremece. Não há redenção a esperar. A dor dura a vida
inteira daqueles seres. Ódio e lágrimas hão de desgastá-las, levando-as de
escantilhão até à cova, reduzidas a pó. Chora, resvés com a porta: ainda
encontra lágrimas que arrancar ao coração; ainda existe piedade dentro dessa
ridícula armação de pele e ossos. A tempestade rebrame, o choro encharca-a, a
ventania cuspinha-a. Põe-se baixinho a chamar por Deus, como se Deus a ouvisse!
E não é por ela, recalcada e rasa, que pede é ainda pela outra. Dentro responde
o mesmo sarcasmo, os gritos, as bocas escancaradas
de escárnio fora o sorvedouro trágico da noite. Um esguicho de ventania
apaga-lhe o lampião. Se a suspeitassem ali presente, expulsá-la-iam decerto, e
por isso deixa-se ficar, unida à porta, achegando os trapos ao corpo mirrado,
por causa do frio: cinge bem a si a minguada trouxinha, com que anda há tantos
anos, de casa em casa, de lar em lar, de dor em dor. É sua roupa tudo o que lhe
resta da existência. Estúpido ser! acaso alguém porventura teve um dia piedade
de tua nudez? alguém consentiu em misturar as suas às tuas lágrimas? Sê egoísta.
Há lume por essas choupanas aquece-te; deixa a desgraça seguir seu inevitável
trilho. Arreda-te, foge!
— Meu Deus, um milagre, que eu já não posso! Fui sempre tua amiga, bem no
sabes!... Por mim não, mas por ela.
E o vento uiva desgrenhando as nuvens, as árvores estorcegam-se nos fundos de
treva. Depois uma prostração... e no silêncio lágrimas... Mesmo cuspida com uma
crosta de lama, com uma crosta de dor, procura na porta uma fenda para espreitar
e torna a esbagoar lágrimas que o frio lhe congela na cara. Põe-se a rezar, a
falar baixinho, a dizer palavras sem nexo, e assim fica com a trouxa nos braços,
toda molhada de lágrimas.
Chorou e morreu. Viu-a infeliz e chorou: só lhe podia dar lágrimas. Viu-a
desgraçada e quis sofrer com ela. Se pudesse tomaria para si o quinhão amargo
que lhe coube em sorte. E como já lhe dera o leite, o amor, o bafo deu-lhe
também a vida... Não tinha mais que lhe dar. E assim, enrodilhada à
porta, com as últimas lágrimas geladas na cara e a trouxinha encostada ao peito
donde nunca se esgotou a piedade acaba como um cão fiel.
Alta noite há uma prostração na tempestade, um silêncio estranho que mete medo.
E nesse silêncio ouve-se um ruído de lágrimas. Meu Deus, quem anda lá fora a
esta hora tardia?! a chuva que cai dos beirais. Não chove. Mas vão ver! vão
ver!...
— Não se vê ninguém. Será chuva... Jesus, quem geme lá fora com este tempo
maldito?! É o vento que passa e a neve que clareia a noite opaca; é a neve que
enche a noite de mágoa e amortalha a escuridão... Ainda se nevasse!... Mas não,
não é tempo de nevar; há nesta noite não sei que prostração dorida, fora da
compreensão humana... Ouviram? Ouvi distintamente um ai de alma penada!...
É a alma da Joana que não quer partir dali. É a sua alma que se debate na
desolação dos montes. No outro mundo também se chora.
CAPÍTULO 13
A Morte! A Morte durante um longo espaço parece que esquece uma geração, mas de
repente intervém e faz um largo serviço: deita tudo abaixo. Nesse momento a
morte passa a ser o grande negócio da vida...
Morto o Anacleto os caixões dispersaram-se. Um credor fez uma penhora um lote de
esquifes coube ao Belisário, que os vendeu ao desbarato em praça. Reuniu o
conselho de família, que se desfez logo da órfã com a maior sem-cerimónia deste
mundo, nomeando tutora a Candidinha, parente mais próxima. Encargos que os leve
o diabo!
Meses depois, também o diabo levou a Patrícia, inchada como uma pipa, sendo
necessário fazer-lhe de propósito uma urna de mogno, para apodrecer com certa
comodidade no seu jazigo de família. A porta da velha casa incrustada na Sé
fechou-se para sempre; os cães de vidro continuaram na sala a olhar esgazeados o
pó que se ia acumulando, camada sobre camada; o pequeno caixão, amarelo, com
galões doirados, que servia de reclamo, preso à soleira da porta por dois
ganchos de ferro, foi apeado pelos garotos que uma tarde de bruma representaram
um saimento fúnebre, com gáudio de certas múmias que deitavam as cabeças de fora
das gelosias. Choveu veio Sol os lojistas em chinelos sentaram-se às portas nos
bancos de pinho negro e puído; em torno os montes recortavam-se com imponência
no céu baço... Os
mesmos hábitos que datavam de tempos imemoriais, a mesma vida estúpida e inútil.
Enterrada a Patrícia contemplam-se as velhas múmias e respiram com certa
satisfação por terem escapado. Mas quase logo depois estoira a Teles do
aneurisma e elas olham umas para as outras com terror. De quem será a vez
agora?... Com o medo da morte, avoluma-se o medo ao Diabo. Começaram a
distribuir muitas esmolas inúteis. Acordadas alta noite no silêncio da noite que
se parece já com o do túmulo o mesmo drama se repete em cada consciência. Mas eu
nunca fiz mal a ninguém... Nem bem responde outra voz desconhecida com um riso
sarcástico. Sempre! para todo o sempre na eternidade... E alguma coisa está
presente, presente e inabalável, que as enche de pavor. Só o Belisário, porque
tem tudo selado e autenticado, olha para a morte e para o Diabo com indiferença:
sente-se seguro neste mundo e no outro.
— Ai! ai! ai!... suspira esta baixinho. Morrer! morrer! E o que era uma palavra
passa de repente a ser temerosa realidade, um negrume formidável e presente,
outra vida temerosa e presente onde tudo o que se fez e o que se não fez é
pesado e repesado: Enganei toda a gente só a Ele o não enganei... Só a minha
alma foi enganada só a mim própria me enganei!... Sinto já o chumbo derretido
pela boca abaixo... Ai!...
— A vida, a vida que passou como uma ninharia, a vida que deixei passar como se
fosse uma inutilidade, só agora vejo o que ela vale. Que fiz eu da vida? É outra
que fala na escuridão com o Diabo. Sim, diz-me agora exclama Ele diz-me agora
aqui sós a sós comigo o que fizeste tu da vida? Só te pergunto isto e não te
pergunto mais nada. E um riso começa, um riso que nunca mais acaba e que soa
cada vez mais alto. Oh! se eu pudesse viver outra vez!... Mas não podes viver
outra vez e tens de me responder a esta pergunta: O que fizeste tu da vida?...
E a Felícia interroga-se, debate, esfarrapa-se:
— Aqui estou eu ao fim da vida diante da morte e do inferno. Aqui estou eu e
peso tudo, aqui estou e só tenho um minuto para me arrepender do que fiz e do
que não fiz. Era meu filho e eu não lhe perdoei. Mas se lhe não perdoei foi por
tua causa, meu Deus!... É por tua causa que vou para o inferno. Perdoa para que
te perdoem, disseste. E eu não lhe perdoei!... Não lhe perdoei por tua causa ou
foi por orgulho que lhe não perdoei?... Por este orgulho que foi a culpa máxima
da minha vida, por esta secura atroz de que nunca me pude livrar e que foi
talvez a causa que o levou a afastar-se de mim, e negar-me e a negar-te. Fiz o
bem, dei aos asilos, dei aos pobres, mas sempre mirrada como as pedras. Dei por
orgulho. Até para os meus, até para aqueles a quem devo a vida, mantive sempre
esta aridez. Sou capaz de dar tudo o que tenho mas tu a meu lado ris-te, tu que
já me tens nas tuas mãos pela
eternidade das eternidades. Ris, porque eu, por mais que faça, não consigo
quebrar este orgulho do inferno que me pertence e que te pertence...
Transfigura-se. Ela, que possui arcas cheias de oiro, vive de pão e água. A toda
a hora ronda nas salas sepulcrais, onde dia e noite ardem lumes como nas
igrejas. Nem todos os lustres acesos conseguem expulsar a sombra que se agacha
nos recantos. Aquilo é fúnebre como um enterro perpétuo a Morte não acaba de
sair daquela casa nem os galegos de arrancar dali não sei que tumba enorme. O
seu orgulho mantém-se. Alta noite as criadas acordam ao ouvirem-lhe os gritos e
quando entram de rodilhão na sala, apavoradas, encontram-na toda de negro,
rígida como uma estátua, entre os candelabros acesos. E, imperiosa, brada-lhes:
— Saiam! saiam!...
Duma vez deram com ela estatelada no chão, com a boca cheia de espuma e os
dentes cerrados. Ali estava a Morte! Batia, subia a ampla escadaria, dominadora
e impiedosa e entrava pela porta dentro...
Começara sentindo uma vaga tristeza, negrume e uma dor persistente na nuca.
Deixou de falar, por penitência lambeu o pó das igrejas, e uma noite viu na
realidade viu o filho a arder nas labaredas eternas. A culpa é sua! a culpa é
sua! Por sua causa se fez ele ateu. E acusa-se de imaginar os pecados.
Procura-os na consciência. Investiga, como um inquisidor feroz, com desespero e
minúcia, toda a sua vida. Esquadrinha com gozo, e forma tenção de sair
descalça, de ir de porta em porta pela vila, bradar misericórdia. Seus crimes
redobram e exigem extraordinários castigos. São imperdoáveis. Por sua culpa,
fora Nosso Senhor afrontado e perante as velhas, que se reúnem agora na grande
sala onde os lustres ardem dia e noite, prostra-se, bate com o peito no chão.
— Perdão! perdão! fui eu!...
Arrasta-se no sobrado, humilha-se desgrenhada, juntando as mãos trémulas:
— Não me salvo! não me salvo!...
E o círculo de seus crimes duplica sem cessar: ela é a autora de todo o mal que
se pratica neste vale de lágrimas; ela, como o Judeu Errante, há séculos que
pena, há séculos que se sente devorada pelas chamas do inferno. Cresce. O mundo
a seus pés reduz-se a uma insignificância. Ela é o Pecado, a Culpa, a Traição. E
a imagem do filho ateu obsidia-a, patente, real, de carne e osso, mais
verdadeira que as das velhas e das criadas que a rodeiam. Vai a tombar no
esquecimento e no sono, e logo a sua mão a desperta chamando-a do inferno.
Arrasta-se com os joelhos no lajedo, que de propósito mandou colocar aos pés do
Cristo imenso, e implora frenética:
— Senhor, perdão! perdão! perdão! Era meu filho, mas foi por tua causa! Era um
pecador, Meu Deus! Era o meu coração e arranquei-o! Era ateu, Senhor, e eu não
tive nem uma lágrima, nem remorso, porque te tinha
ofendido. E agora é ele que me chama para junto de si. Arranca-me ao inferno,
Senhor!
E mais alto:
— Perdão! perdão! perdão!
Incham-lhe os joelhos feridos e ela não nos sente. Tomara ela sofrer! Deus lhe
desse as piores angústias mas que lhe perdoasse os seus pecados, a soberba, a
riqueza, a gula, a abominação!
— Sinto o inferno! vejo o Diabo!
A estas palavras, a Adélia e as outras, o próprio Belisário, deitam a fugir
pelas salas fora. Perdem os chapéus, esquecem os xales. Há um redemoinho. As
luzes apagam-se. Ouvem-se gritos, clamores, ais. Fecham-se as portas com terror
ao Diabo e ela sozinha cai de rojo aos pés da Cruz, batendo no peito com um
calhau.
— Perdão! perdão! perdão! Não me posso arrepender de o ter abandonado. Sinto
toda a secura do inferno... Dai-me o arrependimento, Senhor! Dai-me a vossa
graça! não me leveis sem a vossa divina misericórdia!
E ainda mais alto:
— Perdão! perdão! perdão!...
Sente uma aridez atroz como se fosse de pedra. Não lhe vem uma lágrima aos olhos
secos. O orgulho até no pecado lhe dá grandeza.
— Senhor! Senhor! Senhor!... Não me salvo!
Os padres não têm mãos a medir. A vila está nas mãos do Diabo, que a domina e
avassala. Muita gente, com o exemplo, se converte. Regurgitam os confessionários
e na vila afundada entre os vagalhões pétreos da serra o alvoroço redobra. Uns
chamam-lhe santa, outros afirmam que arde viva nas penas do inferno. Devia
perdoar ao filho ateu? ou não lhe devia perdoar? Do púlpito abaixo pregam-se
penitências e cóleras e a igreja sacode-se de terror ou explui em lágrimas. Nos
altares ardem dia e noite com esplendor centenas de lumes, o Senhor Exposto
parece uma prodigiosa constelação. A Adélia não prega olho. Outra acorda alta
noite esganada pelo Príncipe das Trevas e alarma a vila com gritos. Em casa do
Belisário as portas começam a bater e passos altas horas ecoam nas ruas
estreitas e desertas. O arcipreste é obrigado a exorcismar uma rapariga, que
desata sem mais nem menos a falar latim, e o terror alastra na populaça como uma
vasta epidemia. Velhas nas reuniões reviram de súbito os olhos e principiam aos
gritos, com espuma na boca: as outras abalam logo ganindo. Começa, apenas vem a
noite, a falar-se baixinho, as conversas caem, e no silêncio surpreendem-se a
olhar uns para os outros com pavor. O comércio põe os taipais à noitinha.
Alguns, mais ousados, atravessam a praça solitária, olhando de soslaio o palácio
onde a Felícia, aos pés da Cruz, em vão clama:
— A vossa graça! a vossa piedade! Jesus! Jesus! Jesus, redentor do mundo!...
Julga-se indigna de penetrar nos templos. Nem os padres a dominam. Com o
orgulho, um único sentimento resta intacto naquela alma a avareza. Entre os
lustres, no casarão onde os passos retumbam, vai e vem de mãos juntas.
Acompanham-na sempre seis criadas, de velas em punho e os candelabros continuam
a arder com o fulgor de sóis. De fora espreitam aquela claridade constante.
Tremem. Às seis da tarde, já não há quem se atreva a abrir as portas...
É então que a Candidinha, que nem do Diabo tem medo, desce ao povoado e domina-a
como se fosse uma criança, amarfanha-a nas mãos como um trapo. Quando a deixa, a
Felícia pede-lhe de mãos postas que não a abandone. É ela quem lhe aconselha,
com um supremo regalo, que coma horrores, ervas, restos dos hospitais, migalhas
sórdidas. Fá-la andar descalça, impõe-lhe o suplício duma áspera clina chegada
ao corpo, e todos os dias o pátio vasto se enche de mendigos ascorosos como numa
romaria: são lepras inéditas, cancros, feridas, abominações que a Felícia lava e
trata, sem humildade. A Candidinha da janela comanda, e goza. Em vão! em vão! A
Felícia não sente resquício de piedade: vai de mendigo para mendigo, de asco,
para asco, por entre o rumor dos monstros, que se arrastam no chão como vermes,
num clamor infernal!E expõem os braços, mostram-lhe as chagas, os males, as podridões. Ela baixa-se
e beija-as.
E a Candidinha, que a tem nas mãos, avança:
— Tu o que deves, filha, é casar com um rapaz pobre, com o meu filho... Sempre
tinhas uma companhia. Restitui! restitui, senão não te salvas! Todos os teus
parentes são ricos. Lembra-te que o dinheiro era do meu filho. Casa com ele... é
uma restituição...
E a outra a fingir que não entende:
— Tu que dizes? Deus perdoar-me-á os meus pecados?
E logo a Candidinha desabrida:
— E mais fácil um camelo entrar pelo fundo duma agulha, que um rico no reino do
Céu! Despe-te das tuas riquezas!... E noutro tom murmura: Com o meu filho... E
mais baixo: que gostou sempre de ti! Mesmo porque eu não posso estar a fazer-te
companhia e vou-me embora...
— Não, pelo amor de Deus, não me deixes só! Até as criadas me abandonaram!
— Passa fome, sofre... E restitui.
— Mas se eu não posso! não posso arrepender-me!
— A Deus ninguém engana. Ele vê no fundo da nossa alma. Nada lhe escapa.
E logo a Felícia, caindo de joelhos, amolgada aos pés de Cristo, batendo com o
pedregulho no peito:
— Perdão! perdão! perdão!
CAPÍTULO 14
Giraram outros meses da mesma solidão e desventura. A serra surge despida,
maior, numa triste desolação: a serra lembra a Dor. Sofia e a Cega, rotas e
esquálidas, já não podem chorar. A desgraça e o frio empederniram-nas. E se
choram, tão monótonas são as suas lágrimas como o desabar do inverno naquelas
terras bravias.
Separadas as duas mulheres, a Cega sente-se mais isolada naquela treva pastosa:
à sua roda aumenta a camada de solidão e negrume e um bafo envolve-a. Mas já
ninguém se debruça sobre ela, só o frio álgido a toma. Bate-lhe o coração com
pavor.
Porque é que a velha hesita e não se atreve? Talvez porque se habituou a sonhar
e o sonho torna-nos incapazes de ação. Talvez porque não consegue enganar a
Cega: por mais devagarinho que avance encontra-a sempre alerta e olhando para
ela com os olhos brancos estacados de terror. É um trapo, é um nada molhado de
lágrimas é fôlego vivo que lhe mete medo. E recua. E talvez porque tem medo que
entrando-lhe a morte em casa nunca mais de lá saia. E a sua ideia fixa. Fala,
age, discute, mas no fundo quando ri, quando escarnece, quando sonha, sente
sempre aquele espinho cada vez mais enterrado e mais vivo. A Morte!... Se
pudesse trancar todas as janelas e todas as portas!... E de
noite, uma em baixo, outra no sótão, ambas sentem rodar o mesmo fantasma, e, com
o ouvido à escuta estremecem ao mais leve ruído...
Mas a velha ainda tem um refúgio sonha e tanto esbraseia o seu sonho, que
consegue por vezes esquecer as outras figuras ali presentes. A realidade não
existe, nem Sofia, nem o filho tísico, nem a morte. O ódio emerge inteiriço
dessa mescla de sentimentos contraditórios, e a Candidinha toda se desfaz em
sonho. Há momentos na vida em que o poder do sonho abafa, arreda, some a atroz
realidade. Sentimo-la presente? Agarramo-nos com desespero ao sonho, e, à força
de o atear, ainda que fique um espinho cravado amortece-se a dor, finge-se,
pode-se mesmo rir... No fundo de seus olhos plenos de êxtase há, sem dúvida, uma
perturbação e na alma fel que ameaça trasbordar mas a teia fúlgida tudo recobre
e esconde. Que importa se depois a dor renasce maior, mais forte e implacável?
No sonho não há asperezas, nem contrariedades o sonho é como um rio imenso que
corre e trasborda. Não se lhe opõem diques: não há força que lhe resista. A
realidade é cheia de intransigências mesquinhas, de ásperos ângulos, de mínimos
e resistentes pormenores.
Cada ser tem a sua atmosfera própria, cada criatura vive rodeada duma auréola de
sonho. Todas as almas segregam sonho, como todas as flores exalam perfume. É uma
irradiação.
Morre um sonho outro nasce. Para o construir basta um simples nada mas sem essa
atmosfera é que ninguém pode viver. É muitas vezes feita de penas, de gritos mas
tão indispensável como o pão de cada dia. Há homens que arrastam mantos
impalpáveis, esplêndidos noutros o sonho reduz-se, apaga-se, mas existe sempre,
até nas almas rudimentares. Constitui, apesar de não entrarmos com ele em linha
de conta, quase toda a nossa vida. Há atmosferas dessas que se ligam nasce a
simpatia; outras que se repelem vem o ódio. A verdadeira existência, a que mais
nos custa a deixar, é essa que nos parece quimérica. E até, se me não engano, a
única que existe. As vezes morre, dilui-se: a alma já não exala sonho e o corpo
continua a viver mas em verdade vos digo que o homem a quem isto suceda não
passa dum cadáver.
O herói não se esconde nem o poeta. Sentimos logo que está presente um inimigo
ou um amigo; até sem o conhecermos. É o fluido estranho que toca o nosso fluido:
é a auréola que rodeia um corpo e que é constituída de embriões de sonhos alma
que se exterioriza que comunica com a nossa alma. Essa irradiação em certas
pessoas, já o dissemos, é tumultuária e enorme. Tem um poder singular. Derruba
montanhas, como disse Cristo. É a maior, a mais esplêndida força que na Natureza
existe. Renova-se constantemente: é feita de resíduos, de aspirações, de
harmonia ou de desespero. Mas necessita de alimento. Um nada lhe basta mas
precisa dele: pode construir um palácio sobre o bico duma agulha, é certo, mas
é-lhe necessária a agulha. Requer um ponto de apoio por frágil que seja senão
desaparece.
Além disso, o ser que se habitua a sonhar, precisa constantemente de sonho: é
como uma fornalha acesa: não há carvão que lhe chegue: a mina, ao fim de tempo,
passa inteira pelo metro quadrado duma fornalha...
E a velha toda a vida sonhou: foi esse o seu alimento. Quanto mais desgraça mais
sonho. Sonhou primeiro em dominar e vencer; passou depois, com os anos, o
triunfo para o filho e sobre a sua vida construiu todos os castelos do sonho.
Sucumbisse ela, ela que fora alimentada de esmolas e de côdeas, mas visse
realizado o seu sonho no filho. E agora que o seu plano está quase executado a
Morte vem pé ante pé, a Morte intromete-se entre ela e o Sonho.
A morte! Nunca a Candidinha pensara a sério na morte. A morte levar-lhe o
filho?... Que se atrevesse! Mas ouve-lhe os passos... Sente um frio envolvê-la:
penetra-a, gela-a, enche-lhe a alma de pavor. Em vão desvia o olhar; em vão se
atiça de propósito para esquecer: o frio aumenta e trespassa-a. Uma ideia
obstinada não a larga, preside a toda a sua vida, pesa sobre todos os seus atos,
queira ou não queira, cresce, domina-a, remexe no fundo de todos os seus
pensamentos. A velha já não pode olhar para o filho sem terror, embora nem a si
mesma o confesse. Surpreende-se a dizer: E lá possível! é lá possível!...
Arreda-a e ela volta; foge-lhe e ela persegue-a. Pouco a pouco, toda a
existência se lhe subordina. A Candidinha sente que já não pode estar a sós
com o filho: entre os dois alguém se intromete, sempre presente, silenciosa, e
de coração mais duro que o seu próprio coração. Finge que não crê: sorri para se
dar ânimo. Vê-a ali a dois passos e simula que não dá por ela; toca-a e é como
se não existisse; adivinha-a sem átomo de piedade e no entanto ri capaz de lutar
peito a peito com a própria Morte. Para lhe arrancar o filho o seu sonho será
necessário passar-lhe primeiro sobre o corpo. Nem o inferno, nem Deus! Tem a
alma de aço e aquele sonho em brasa levou-lhe anos a gerar. Não, não pode ser;
bem veem que não pode ser! Seria arrancar-lhe tudo, inutilizar-lhe tudo o que
construiu à força de sofrer. Já veem que não pode ser!...
Mas cheira-lhe a morte!... Passa num sopro pela beira dela ouve-lhe os passos
leves está ali presente. De noite quando acorda e fica horas a cismar, fica
horas de ouvido à escuta como a Cega... Não! não! a Candidinha não se submete.
Sente-se capaz de disputar o filho à morte numa luta desesperada, capaz de lho
arrancar às mãos de ferro. O seu filho é o seu sonho. Não a teme. Pode-lhe
passar tudo pela cabeça menos que a morte lho leve. Tantas vezes a desejei e
nunca a Morte me ouviu! Tantas catástrofes sonhei e a Morte passou de lado!... E
vens agora agora!... E a Candidinha arreganha-lhe os dentes.
Há momentos em que tudo se confunde naquela alma, terror, ambição, sonho
desmedido. Tece e retece ao pé da Morte. Depressa! A velha anda, vai da Felícia
para o filho, do filho para a vila, do pavor para o sonho, do sonho
para a morte. Emagrece. Sente que o tempo passa e pela primeira vez que a vida
não é eterna.
É necessário quanto antes arrastar o filho até à vila para o mostrar à Felícia.
Ele está pior depressa! depressa!... A tarde é fúnebre, com pastas algodoadas de
nuvens sobrepostas no céu fosco. A luz esguicha aos feixes do alto, e no
horizonte uma nódoa baça mistura-se com claridade e cúmulos esparsos. Da
profundidade dos vales sobe pelos grandes montes recurvos sob a abóbada de ferro
a escuridão transida de frio. Na terra, só cresce, de entre a lava, o piorno e
por momentos, nos redemoinhos que o vento cria na solidão estéril da serra,
parece que remexe o próprio terror.
O ar glacial traspassa-os de frio. Na volta, a meio caminho, o filho dobra-se
sobre ela, desfalecido, e queda-se logo inerte.
— Filho!
Palpa-o: limpa-lhe o sangue da boca. Repara numa ânsia: o sítio é deserto e
pedregoso. Só pedras e céu. A sombra chegou ao alto e toca-os. O silêncio
transe. No fundo, muito longe, enxerga-se uma póvoa cor de granito que mal se
diferencia da terra. Solidão e bruteza. Ninguém acode: só pedras.
A velha corre numa angústia suprema. Mas não pode assim abandoná-lo ao frio!
Tira dos ombros o xale e embrulha-o.
— Filho! Morre-me! morre-me!
Apalpa-lhe as mãos gelaram. Quer arrastá-lo e não tem forças. Num grito é
impelida do alto do sonho que construíra. A sombra já redemoinha nos píncaros e
cerra-se de todo. A neve começa a cair com pés de lã. Com o vestido roto e os
braços erguidos, a velha corre a clamar. Só pedras, o silêncio, e a noite
infinita que desaba. Torna:
— Filho, ouves-me? Filho, escuta... Vai cair o nevão!...
Muito longe, no céu, resta uma claridade aflitiva, que consegue traspassar as
pastas de algodão e as próprias fragas se sentem passadas daquele frio mortal.
— Filho! filho!... E não haver quem nos acuda!...
Corre, grita, despenha-se pelo fraguedo hostil. As suas mãos descarnadas e secas
palpam a treva; volta e topa com o cadáver já rígido. Expede gritos:
— Não! não!
E depois, num acesso, três vezes suplica:
— Acudam! acudam! acudam!...
Só trevas e pedras: tudo em roda é silêncio. Aquilo passa-se noutra vida num
túmulo. As fragas imensas não têm coração. E das trevas sobre trevas
aglomeradas, da escuridade sobre a escuridade, da solidão sobre solidão, sai
toda a noite aquela voz amarga súplicas e gritos:
— Filho, tu não estás morto! Pois eu tanto sofri e tu morres-me! Passei com
côdeas para te criar e tu morres-me! Eu sofri, eu calei-me, eu fingi... Filho!
filho!... Lembra-te! lembra-te! O que eu passei para seres rico, para os
calcares e tu agora morres-me! Agora que ias ser rico!... Como as tuas mãos
estão frias! Acudam! acudam!... Por tua causa, a minha boca não se abriu para
lhes cuspir, por tua causa, ouves? andei de rastos e foi de fel o leite com que
te criei!...
Toda a noite ruge na serra. Despe-se para o cobrir. Defende-o do frio com o
próprio corpo; deita-se a seu lado, aquece-o com o bafo toda a infinita noite de
Inverno. Quer comunicar-lhe não vida mas ódio. E chega bem para dois...
— Então tu pagas-me assim o que sofri? Por quem me rebaixei? Para que te criei
de esmolas, ouviste? Filho, agora que ias ser rico! Acudam! Maldita serra! Tens
frio? Filho, responde-me! A nossa vez há de chegar!...
Encontra de novo o tom de voz com que lhe falava quando era pequenino, nas
arredadas noites de fome. A neve revoluteia, e engolfa-se no boqueirão infinito
da treva. Só a serra escuta aquele infindável monólogo. Desvairada, ali lhe
conta outra vez por miúdo a história da sua vida. Acha pormenores. Nada lhe
escapa. Só a serra escuta. E de vez em quando a própria neve hesita e pára como
se quisesse ouvir aquela estranha confissão. A serra concentra-se e atende.
Depois redobra a folheca na noite tão espessa que dá impressão de nunca mais ter
fim, na noite esbranquiçada e imóvel.
De manhã encontram-na e levam-na, muda e impenetrável como as fragas. Diante dos
outros a Candidinha não chora. Caminha silenciosa e enorme, toda em farrapos, ao
lado do filho, que os cavadores transportam numa padiola. Ainda espera que tenha
vida.
Chegam. E enquanto fixa absorta o cadáver, a seu lado a Cega espera. Os gritos
não a abalam. A Candidinha sacode o filho, prostra-se, a Cega fica inabalável.
Não perde as imprecações da velha. Vem a noite, o nevão; desaba de novo a treva
imensa sobre a casa: tudo a noite some a figura hirta da Cega, a Candidinha, o
cadáver. Do nada continuam no entanto a sair palavras, gritos, rugidos sem nexo:
é a velha que prega ainda, que ainda tem que dizer. As duas mulheres, o cadáver
inteiriçado pela morte, a Cega incrustada na parede, a velha toda ela dor e fora
o silêncio e a serra.
Ninguém a vem assistir, mas a velha sozinha faz o clamor. Duas velas, um caixão
e a Candidinha que passeia de cá para lá, que fala alto, que cai sobre as quatro
tábuas do esquife, para depois se erguer e recomeçar aquele passeio, num
monólogo que dura a noite toda:
— Não há Deus! não há Deus! não há nada! Porque se houvesse Deus tinha de ser
justo porque se houvesse Deus não me levava o meu filho porque se houvesse Deus
não me tirava o meu sonho! o sonho da minha vida! o sonho que teve fome! o sonho
que teve frio! Não há Deus... Sufoco! Há terra com que nos enchem os olhos, há
terra com que nos entupem a boca... E
perdido, perdido tudo o que sonhei, tudo o que levei tanto tempo a criar tudo
para sempre perdido! Levam-me tudo para a terra, tanta fome que passei, o
trabalho das minhas noites, a humilhação e o ódio, tudo a que dei vida e a minha
própria vida. Levam-me tudo p'ra a terra!... Como pode o sol alumiar e os outros
viverem se ele está morto?... Ai o meu filho que mo levam! Não levem o meu
filho! o meu filho está vivo! o meu filho está vivo!...
Tudo na vida tem um termo, até a desgraça: tudo cansa, até os gritos. A velha
por fim fecha-se sozinha com o filho e fala-lhe baixinho durante horas e horas.
Depois põe-nas fora, corroídas pela desgraça e gastas pelas lágrimas. São dois
trapos embebidos em dor. Quedam-se marasmadas. O ser a quem depois de anos de
escuridade escancaram as portas do cárcere, pára estonteado diante da luz.
CAPÍTULO 15
Olhem bem... Além do cadáver do filho, está ali e ela vê-o na noite álgida um
mundo de ódio aluído: o que há de pior na vida o ódio que se fez sonho, o sonho
que se reduziu a pó. A si mesmo se pergunta de que valeram tantas humilhações e
tantos chascos e para que representou essa estúpida farsa, donde saiu esfarpada
e grotesca. Onde foi buscar forças para aguentar a piedade que lhe ofereciam
junto com a côdea? Ao ódio e para o exacerbar, para tecer porque esperava um dia
estar nos casos de pagar capital e juros. Tudo edificara sobre a cabeça do filho
tudo num sopro a morte tinha varrido. Nele esperava o triunfo, nele a sua
amargura transformada em força havia de dominar e calcar... E de tanto sonho que
lhe resta agora? Um cadáver. O palácio sem-par da sua alma reduz-se a esse corpo
gelado; a arquitetura de génio a matéria inerte. A velha vê seu ódio inútil. E
mais que nunca os risos das outras continuam a ecoar-lhe aos ouvidos... De tudo
se lembra e repassa como um rosário as humilhações antigas. Estão bem vivas as
palavras com que a feriram e sente na boca o fel que amargou quando lhe atiraram
com a primeira esmola... O filho era muito mais que um cadáver o filho era o
Sonho. De tanto que teceu ficou-lhe desespero e as velhas inabaláveis, ricas e
egoístas. Tem de lhes pedir outra vez esmola... Sente-se sozinha: nada a que se
ater: nem uma ilusão e todos os caminhos da vida cortados. Ela mesma se julga
estúpida: começa a rir de si própria, riso atroz que vem de dentro, do fundo
dos fundos. Não passa, em verdade, dum ser inofensivo; ninguém mais a pode tomar
a sério. É o desespero dos desesperos. Não quis viver à espera de viver; não
quis gozar à espera de gozar. Tudo sacrificou para chegar a semelhante
resultado. Mais que a morte do filho sente a morte do ódio, mais que a dor do
seu traspasse sente a angústia de lhe arrancarem o único pão de que se
alimentara toda a vida o Sonho, que lhe deu horas de alegria feroz e que a
confortara reanimando-a na maior das desgraças. Construiu sem peias, teceu sem
limites, e bastou a Morte para aluir toda essa massa confusa, que à força de
paixão tinha chegado ao auge da grandeza. Era viva. Assustava e prendia: sem
harmonia, construída nas noites de febre nas suas melhores noites de aflição, de
exaspero, do desprezo alheio, para assim de golpe se reduzir a pó... Contara com
tudo menos com a Morte.
E a velha formidável contempla os destroços; não desvia o olhar da derrocada.
Todos os dias um esforço, todos os dias um fio de alma e um pedaço de sonho e a
estúpida. AvMorte tudo deitara por terra!...
Ergue-se por fim, traça o xale e caminha direito à vila, que depois de internada
a Felícia reentrara no hábito e na regra. Toma uma resolução. Entra pela casa
duma das velhas dentro e, cruzando os braços, contempla-as.
— Olhem a Candidinha! festejam-na logo em risos.
— Já cá fazia falta!
— Então voltaste? Vens ver a Felícia, que endoideceu?
— Não. Voltei...
— E o teu filho, sempre é certo que morreu?... Coitado!
— Está morto... Voltei... Voltei para vos dizer a todas uma coisa que trago
aqui... E pára sufocada, sem poder continuar, com a mão convulsa no peito .
..que tenho aqui, desde pequena, atravessada. Não quero morrer sem a dizer...
Voltei...
As velhas olham-na. Parece maior, mais desorientada: o chapéu é uma pena
lambida, o xale um resto, o vestido um farrapo fantástico. Olham umas para as
outras. Sentem-na nos melhores dias, quando a Candidinha as faz estoirar de
riso.
— Conta lá alguma coisa para a gente se rir um bocado. Sempre temos passado uns
dias mais tristes!...
— Voltei, voltei para isso para me rir... É a minha vez agora. Voltei, voltei
para vos dizer que vos detesto... que não passais dumas estúpidas... O meu filho
morreu!... Voltei para me rir, antes de morrer também. É ódio que vos tenho em
paga das esmolas que me destes. Sou tanto como vocês... Voltei e meu filho
morreu!... Morreu-me!...
E desata a soluçar. Viraram-na do avesso; lembra uma chaga: toda ela sangra. É
já loucura e é ódio ainda.
E sem tom nem som repete o mesmo grito:
— O meu filho morreu! o meu filho morreu!
Anda assim enorme, aos tombos, de casa em casa, de riso em riso, de chasco em
chasco. Ninguém a toma a sério. Dão-lhe piedade ainda por cima! riem-se-lhe na
cara! É pior. E dizem-lhe:
— Tu não queres comer, Candidinha?
— Não aceito esmolas de ninguém! Não quero esmolas! O que vos tenho, o que vos
tive sempre, é ódio!
E o mesmo grito desabrido sai-lhe da boca sem dentes:
— O meu filho morreu!
A pena do quico arrepia-se; o farrapo que traz no corpo estremece. Vai bater à
porta da Teles; segue incansável para casa da Adélia, numa interminável
roda-viva, sem pausa nem descanso, Judeu Errante de saias.
— Eu não quero esmolas! o meu filho morreu!
Às vezes, sucede que as velhas se enfurecem e dizem para os criados:
— Ponham-na lá fora! ponham-na lá fora!...
Em vão espera vê-las atónitas. Ao contrário, escarnecem-na ou dor suprema
continuam tendo pena dela. Em vão julgara transi-las de espanto com a sua
confissão lastimam-na.
— Está doida, coitada! Foi o filho... Pancada na bola!...
— Morreu-me! morreu-me!...
Descrevam esta figura se podem. É mais trágica e mais ridícula: o desespero
feito histrião, misto que se não define de banalidade, de angústia e de sonho.
Desperta o riso e impressiona. O xale é um trapo sem nome; o chapéu o chapéu da
Farsa a uivar de fome. Vai e torna com aquela ideia fixa à procura ninguém sabe
de quê. Perante seus olhos só se desdobra o sonho por terra e que nenhum esforço
humano conseguirá reconstruir. Expulsam-na e escarnecem-na. É curioso: a ninguém
incomoda o seu ódio. Pode arquitetar à vontade! pode odiar à vontade! As suas
noites são um abismo de cisma e lágrimas. Queira ou não queiram, atiram-lhe a
esmola. Tudo se lhe esvai nas mãos com aparência e fumo.
— O meu filho morreu! o meu filho morreu!...
Tenham agora pena dela se querem. Fartem-se. Chamem-na e dêem-lhe esmola à
vontade, atirem-lhe piedade e restos de côdeas. A Candidinha é inofensiva; a
Candidinha é, enfim e todo o seu ser estremece até as mais recônditas entranhas
a Candidinha que durante tantos anos representou: uma velha estúpida. Pode
rebramir à vontade: não tem dentes e a gente ri-se-lhe na cara, dos trapos, da
figura, do ódio, da ignomínia. Nunca mais pode sair da pele que um dia para si
mesma talhou. Vai e vem, de rastos como a cobra, e a máscara, por mais que
queira, já não a consegue arrancar. Afivelou-se-lhe para sempre à cara. Seu
castigo é esse. Criou aquele tipo não o pode modificar. E
durante noites sem nome revolve, cisma, tece... Uma a uma, tornam-lhe a vir à
boca as amarguras passadas. Pesa-as. Lembram-lhe como se fossem punhais que se
compraz em revolver na ferida. Vê à sua roda todas as velhas, revive um a um os
minutos da existência inteira. Sua alma é uma tormenta. E aos ímpetos torna, cai
nas casas alheias cada vez mais rota, toda ela um farrapo a estremecer de ódio.
Seu desespero é enorme, sua dor atroz. Mas as velhas escancaram-se... Ao que ela
chegou! Chamam-na e dizem-lhe:
— Conta lá o ódio, Candidinha...
E a Candidinha, sem nexo, clama obscenidades, injúrias, chufas: as noites de
tortura: como pensou em encher-se de regalo com as dores alheias, em se fartar
de catástrofes. Logo as velhas múmias, com as mãos apertadas no ventre, desatam
num coro de formidáveis risadas.
— Conta! conta mais, Candidinha!...
— Esmolas não quero! nem a vossa piedade! Se eu pudesse envenenava-vos!...
As escondidas imitam-na, divertem-se, apontam com piedade a testa e dizem:
— Coitada! endoideceu!
— Desgostos!...
Em vão brada; em vão procura minúcias e horrores; as velhas divertem-se, as
velhas estoiram de gozo. Acham-lhe uma graça sem-par. Em vão estatela o seu ódio
imenso perante a Teles, a Adélia, as outras. Seu sonho faz rir; seu ódio
disforme é motivo para chalaças. Não a compreendem. É em vão que lhes afirma que
mentiu sempre, que as enganou durante tantos anos...
— Variou... dizem. Conta lá mais um bocadinho.
— Deu-lhe volta ao miolo a morte do filho.
Acham-na mais ridícula e pelintra. Encontre embora gestos terríveis nem neles
reparam; coisas desconhecidas que lhe vêm do fundo da alma não na entendem. Vai
pela rua e aos seus ouvidos ecoam gritos e clamores:
— Fora! fora!
Lá segue sem ver, sem ouvir, com o pedaço do xale a rasto.
— O meu filho morreu-me! o meu filho morreu-me!...
Nessa velha impiedosa só existem ruínas: a fome e a desgraça empederniram-na e
diante de si tem ainda a Candidinha largos anos de vida...
«Vejo-o! vejo-o! Mirro-me, seco-me e não arranco de mim própria esta figura
lívida e ansiosa, a dizer-me: Não quero morrer! não quero morrer!...
Seus olhos sobretudo perseguem-me, cheios de terror e de desespero, seus olhos
que me interrogavam, que procuravam ler na minha alma até os mais
recônditos escaninhos; seus olhos que tudo exprimiam, sonho, e um apego
extraordinário à vida, um medo infinito ao frio eterno, ao nada eterno. Já não
falava, já sua boca não tinha forças para pronunciar uma palavra e ainda os
olhos, onde a vida se concentrara, diziam coisas inexprimíveis e atrozes, as
palavras que não se atrevia a pronunciar e o ódio, o ódio, ouviste? que sentia
por mim: Enganaste-me e eu não quero morrer. Encheste-me de sonho e eu não quero
morrer!
E agora isto nada. O mundo não existe; só sinto secura e uma frialdade tão
grande, como decerto a não encontrarei na própria morte.
Tudo caído, tudo derrocado. E vem-me à boca como chumbo derretido, o que sofri,
o que odiei as horas perdidas a sonhar, as mínimas amarguras, todos os
escárnios, todos os desesperos. Não há minúcia de que me não lembre; não há
pormenor que não veja; não há desdém que não sinta. Perseguem-me como realidades
que não posso afastar. Mas para quê? porquê? Se nem o sonho me é permitido agora
se até esse último pão me arrancaram... Eu já não posso sonhar! eu já não posso
sonhar! Vejo tudo, sinto tudo e sem poder sonhar!
Oh as velhas!... Trago-as aqui, tenho-as aqui! Podem morrer. Seus corpos secos
podem reduzir-se a pó, comê-los os bichos, desfazê-los a podridão, levá-los o
vento. Embora! trago-as aqui sempre vivas, a rirem-se, a calcarem-me secas e
vitoriosas... E tudo o que me fizerem, tudo o que lhes ouvi, tudo o que sofri,
se desdobra na minha frente, como um drama a que sou obrigada, dia e noite, a
assistir... E de que me serve o ódio agora?
Bem tapo os ouvidos ouço sempre os mesmos risos! Bem tapo os olhos tenho-o
sempre diante de mim: Tu é que tiveste a culpa! tu é que tiveste a culpa! Foste
tu! foste tu!... Fui, sim, e não me arrependo. Pudesse eu e tornava a dar-te a
mesma vida, a sustentar-te do mesmo ódio, a encher-te do mesmo sonho!
Eu é que não posso sonhar! eu já não posso sonhar! Porque a verdade é esta: quem
me dera a mim sonhar! Quem me dera ser mais desgraçada ainda, mais injuriada
ainda, mas poder, como outrora, tecer, sonhar, fartar-me... O pão não me faz
falta; os risos, a piedade não me doem tão fundo que eu não pudesse viver; o meu
filho ouvi podia passar sem ele... O que me é necessário é o sonho; são aquelas
noites em que aquecia o meu frio imenso com o imenso e delicioso sonho!...
Que me importava calcar? que me importava afinal ser rica ou ser pobre? Tudo na
verdade era insignificante, sem valor, mesquinho e estúpido, ao pé do que
sonhei. Reconheço-o tarde...
Um castigo? Foi então justo que toda a gente me calcasse, que me dessem escárnio
e esmolas, que eu tivesse sempre este xale e desprezo; que as velhas fossem
ricas e eu pobre; que criasse de côdeas este filho e que o visse morrer-me de
frio? É proibido então aos desgraçados sonhar, encher-se a gente de
ilusões, viver de fome e de sonho, à espera, à espera, sempre à espera?... E que
tinham elas mais do que eu? Sorte? É justo que eu fosse toda a vida calcada e
elas cheias de importância se rissem de mim, da minha pobreza, das minhas
amarguras? É justo, que eu só para ele vivesse, que por ele desse tudo, tudo
sacrificasse para ao fim o ver morrer como os cães, nas pedras do monte?...
Pergunto a Deus se é justo?... Mas eu valho mais que elas todas! e meu filho
mais que os filhos das outras! Qual foi então o meu pecado?...
Agora é que eu vejo! Nem aos pobres é lícito sonhar! Nem os pobres se podem
fartar à vontade de sonho! Foi com ele que sustentei a vida, foi ele que me
ajudou a atravessá-la cheia de fome e de frio, foi ele que me deu forças e foi
ele, afinal, que destruiu toda a minha existência!
O Sonho não há nada que o pague, nem oiro, nem valores, nem ódios, nem gritos. A
realidade nunca satisfaz e de Sonho podia eu fartar-me!
Agora aí tens a realidade. Sustenta-te! O meu sonho morreu! o meu filho morreu!»
Só ela na vila se atreveu contra um mundo de fórmulas, contra as velhas
fedorentas e postiças. Não teve medo nem a Deus nem ao Diabo. Invejou e odiou
talvez por um sentimento de justiça... E agora encontra-se diante duma muralha
impenetrável que se lhe afigura cada vez maior e mais espessa. Com o filho morto
todos os seus sonhos são desconexos. Ouviste? ouviste? ouviste?...
Vê-se de súbito sem base. Sobre a cabeça do filho construíra todas as suas
quimeras. Ele morto, tudo era inútil. De forma que até esse pão amargo, de que
se podia sustentar ainda, lhe arrancaram. Nem o sonho lhe era possível! nem a
ilusão lhe restava! E tiravam-no a quem estava habituada a fartar-se dia e
noite, à larga, sem medida, a quem costumava encher-se a trasbordar desse rio
esplêndido, alimento de muitos seres que só dele vivem e que morrem contentes e
com os olhos extáticos.
Remexe bem, vai até o fundo desta alma e que encontras? Nada. Pior: uma secura
atroz. É uma fonte que deitou fel se querem mas que de vez se extinguiu.
Caíram-lhe em cima e ela resistiu. Escarneceram-na e resistiu. Falharam-lhe um a
um todos os planos e a alma de ferro da Candidinha resistiu. Morreu-lhe o filho
e talvez a Candidinha resistisse ainda, resistisse sempre, se lhe fosse dado
continuar a sonhar. Não é a energia que lhe falta a esta figura de ferro.
Retemperam-na o amargo, o fel e a própria dor.
Diga-se tudo: não é o filho que ela chora o sonho para sempre morto. A perda
maior, a perda irreparável e imensa fora essa. E ainda não digo o pior: a velha
tornara-se efetivamente grotesca porque todo o sonho inútil é desprezível, todo
o sonho impotente só merece chascos.
Domingo. Chove. Ainda há pouco passou na rua, chapinhado de lama, um ignóbil
enterro o carro doirado, os moços de frete atrás, com crepes nos chapéus. As
nuvens aglomeram-se no céu, pastada sobre pastada, e envolvem
de todo a vila. Cismo mergulhado em tristeza, mas, de súbito, oiço ao fundo da
rua um grito e assobios e apupos. Lembra o uivar dum cão entre gargalhadas.
Sacudo o torpor que me envolve, e espreito: são gaiatos à volta duma velha. Dois
galegos dão-lhes gebadas: em redor dela as fauces arreganham-se num gozo feroz.
É talvez uma doida: na cabeça traz um resto de chapéu, na mão adunca meneia com
elegância um guarda-chuva sem varas... E uiva: não diz coisa com coisa, entre as
risadas, que vão subindo num crescendo. A garotada berra:
— Fora! fora!...
É domingo e ainda há pouco passou na rua um ignóbil enterro. Cismo, e a grande
nuvem que envolve de todo a vila pesa-me e abafa-me também...
Não! Essa mulher apupada não é a Candidinha, é o meu Sonho e o teu Sonho, é todo
o sonho que não vence e se torna mesquinho. Uma vida inteira passada a sonhar e
no fim encontra-se a gente com o sonho derrocado! Ter-lhe dado tudo e na velhice
achá-lo grotesco, quando nem nos é dado sonhar, construir, tecer de novo, tecer
sempre!...
Também o meu sonho foi belo e alto, como um mármore também o meu sonho caiu por
terra escarnecido.
...Lá continuam os uivos. Atiram-lhe lama. A canalha em volta berra:
— Fora! fora!...
É sempre o mesmo grito, o mesmo uivo atroz e que me magoa como se partisse da
minha alma. Que domingo fúnebre este com luz subterrânea e uma chuva eterna!...
Tenho a impressão de que estou cheio de tinta... Tenho a impressão de que se
riem de mim. E do meu sonho ou do dela que se riem afinal?
Foi talvez magnético. De seus olhos saia um jato de fogo que anulava todas as
resistências e quantos não teriam como suprema ventura acabar envoltos na coma
dos seus estranhos cabelos. Admirável sepulcro! O sonho é a nossa vida e resume
a beleza do universo e a tentação do inferno. Ou talvez fosse uma figura trágica
que nos metia medo. Agora é um trapo.
— Fora! fora!...
De que se riem eles? Riem-se do Sonho, de todo o sonho que não triunfa, do sonho
inútil que se reduz a trapo.
— Fora! fora! brada a canalha. A mulher enorme volta-se. Quer falar, quer
protestar apupam-na. É uma figura de descalabro e de infâmia é uma figura de
sonho. Passou na terra devastando, e sob a sua pele havia um coração de pedra.
Passou e envelheceu. Então todos os que ela fizera sofrer a fazem gritar. Pior:
por dentro daquela pele engelhada, há o mesmo fogo. É como uma estátua soberana
e bela que alguém vestisse de irrisão. Por fora velhice na alma uma labareda.
Bem punha flores de papel nos cabelos ásperos e ensaiava
atitudes. Seus risos toavam falso. Por dentro paixão mais viva, por fora rugas e
asco.
E a canalha apupa-a (a canalha apupa sempre o sonho) sem que ela se detenha:
— Fora! fora!...
Assim a Velha. Não há nada pior do que a gente habituar-se a sonhar e ver ao fim
da vida seu sonho desprezível. Por mais que queira não pode viver depois sem
sonho. Por fora mirrada por dentro o desespero.
— Fora! fora!...
Bem rebusca o antigo refúgio, bem tenta de novo encontrá-lo. Antes lhe tirassem
o pão da boca. Parece tonta e é enorme, carregada com aquele sonho grotesco.
Ficam-lhe bem a lama, os farrapos, o desvario e não sei que estranha fuligem,
que poeira de oiro a cobre apesar da chuva da chuva eterna que desaba do céu.
Ficam-lhe bem os apupos:
— Fora! fora!...
Ei-la sem remissão cara a cara com a feroz realidade. Mergulha numa absorção, de
que não é possível arrancá-la, e contempla o vazio da sua alma.
A realidade é o nada temeroso. A vida somos nós que a construímos à custa de
quimeras, de gritos, de ternura: o mundo pertence-nos: a árvore, a água, o que
te rodeia de simples, de belo ou de trágico, o que te faz viver e o que nos
faz viver tiraste-o de tua própria alma. A realidade é o negrume, o abismo donde
só sai o silêncio. O sol foste tu que o criaste porque a realidade é a treva: a
luz nasce aos borbotões de teu ser.
Por isso a Candidinha preferia ser cem vezes mais desgraçada e calcada, ver a
todas as horas morrer-lhe o filho nos braços, viver sob o domínio e a piedade
das velhas mas poder tecer, poder sonhar ainda!...
É de pedra e ódio. Nunca mais fala. Enorme, vestida de trapos, mergulha na
trágica absorção, confundida com as fragas ásperas dos montes. Todos os dias se
deita a caminho da vila para o casebre onde o filho morreu. Se lhe falam nem
desvia o olhar. Com a mão afiada achega ao peito seco o xale esfarpado,
empedernida como se fora talhada no bloco granítico da serra. Tem os cabelos
negros. Não morre. Fita um abismo de ódio inútil. Os anos passam e ela queda-se
a olhar cara a cara o Destino.
CAPÍTULO 16
CARTA DA SERRA:
Meu amigo:
Sete horas da manhã. Pela janelinha sem vidro do meu quarto entra uma coluna de
sol que empoeira de oiro o sobrado. As pedras de que é construído este casebre
são mal unidas e toscas. Dum lado arrima-se aos penedos e sinto palpitar o
coração dos montes. Do outro abre para o panorama, píncaros sobre píncaros,
fragas revolvidas e um ar tão fino que me não farto de o beber.
Cheira bem. Pela fresta vejo pedras, os montes cobertos de neve, o céu, coisas
grandes e eternas... Porque fugi ao ódio, aos desesperos, aos mil nadas que
complicam a vida?... Para ter este pão negro, que tão bem me sabe, este ar e
esta paz que me penetram. Sou feliz. Vivo!...
Cismo e a paz é tanta neste triste casebre onde o pão não sobra, que o não
trocaria pelas maiores riquezas do mundo. O meu sonho corre, incha, trasborda.
Ninguém o tolda. Farto-me...
Esta gente que me rodeia, pobres, cavadores, pastores, homens que se parecem um
pouco com as árvores pela sua simplicidade e grandeza e porque dão sombra também
são criaturas diferentes das que tu conheces... Sombra,
perguntas? Não é a bondade das árvores a sua sombra? Nunca sentiste, junto a um
velho sobro, a simpatia e a frescura que de seus ramos se exalam?
Pois muitos homens dão sombra como as árvores: acolhem: estendem os ramos,
protegendo os que se aproximam: a simpatia que de certas criaturas se evola é
uma frescura só comparável à frescura das árvores.
E que dramas! Há aqui santos, figuras épicas cobertas de farrapos, e heróis,
seres da maior ignorância e que convivem com Deus... Ontem, por exemplo, me
contaram esta história de duas santas...
Ninguém sabe a sua vida. Apareceram um dia na serra, uma cega, extática, rota, a
outra alta, magra, guiando-a, como expulsas do mundo. Tinham decerto sofrido
muito. Já não podiam gritar. Uma chamava-se Sofia, a outra a Cega. Mais nada.
Sofia, tomando a Cega pela mão, encaminhou-se pela serra.
Parecia que tudo lhes era indiferente. A gente habitua-se até mesmo às lágrimas.
Pediam esmola, a Cega, hirta e extática, Sofia, esfarrapada e descalça. Não
falavam uma com a outra porque já não tinham que dizer. Haviam desaprendido de
gritar e de se queixar: ficaram mudas e endurecidas para todas as desgraças,
para o escárnio, o sofrimento e a fome.
Iam pelas arribanas mendigar. Sucedia no verão dormirem sob as árvores, nos
côncavos das fragas, onde calhava, e no inverno, se acontecia darem-lhe agasalho
os lavradores, nos palheiros e nas barras. Pegou o povo do sitio de chamar-lhes
santas, e talvez na realidade o fossem pelo muito que haviam
sofrido. Um dia um lavrador compadecido deu-lhes uma cabana para habitação meia
dúzia de pedregulhos toscos, com umas traves ao alto, sustentando o colmo roído
pelo tempo, e ai findou, ao depois, a Cega seus dias e suas penas. O teto
abandonado da Joana serviu ainda para as cobrir.
Foi talvez esse o tempo mais feliz da existência destas duas criaturas. Por suas
próprias mãos desbravara Sofia o terreno em redor. Era um chão bravio,
pedregoso, constituído pela desagregação das rochas e onde o pão mal crescia;
por suas mãos rachava velhas raízes de carvalho, duras como ferro mas viviam
numa paz e numa felicidade enormes. Quando a fome as acossava, desciam ao
povoado mendigando.
Nas noites infinitas de inverno, ardia no lar uma brasa e fora a tempestade
abalava as montanhas. Então as duas, sentadas cada uma da sua banda do lume,
viam suceder-se as horas infinitas sem palavra que dissessem. Sentiam bem
presentes as suas desgraças passadas, e futuro não no tinham. De que serve
falar? Só Deus as escutava, e a esse limitavam-se a pedir-lhe o pão nosso de
cada dia. Decerto chegaram a perder a noção do tempo: eram quase irmãs da
penedia tumultuária do monte e dos troncos seculares. Pareciam velhas ambas, e
ambas se tinham posto grosseiras e feias -dessa fealdade áspera e negra da gente
bruta da serra. A sua vida era tão simples, que um mendigo julgar-se-ia rico a
seu lado. Eram ambas felizes talvez pela primeira vez na sua vida.
Um dia a Cega chamou a outra e disse-lhe:
— Vou morrer.
E como Sofia irrompesse em pranto:
— Chiu, baixinho... Temos chorado tanto!... Deus ouviu, enfim, as minhas
súplicas. Acabam-se-me os trabalhos. Para que chorar? Que maior felicidade posso
esperar nesta vida do que a morte?
Foi como se uma parte dela abalasse. Sentiu-se sozinha de todo. Até o que
sofremos custa a ver partir, quanto mais um irmão de galés! E da nossa
existência não serão realmente as penas, que mais nos custa deixar? Alucinada,
cavou-lhe por suas próprias mãos a sepultura dentro da cabana, para a livrar da
chuva, e ela mesma a enterrou. Como aquele lugar era solitário e perdido, e se
estava no coração do inverno, dias e dias passou sozinha chorando sobre a terra
revolvida de fresco. Depois, aos soluços e aos gritos, internou-se na serra e
nunca mais a viram. Que história a destas duas mulheres! que drama para sempre
ignorado!... O povo daqueles lugares, como tornasse a primavera sem avistar as
santas, foi lá acima e só encontrou a cabana tosca, o lume apagado, cinzas e uma
pouca de terra revolvida...
Fez-se a lenda. Começou a rezar-se de milagres, e as pobres mulheres do povo,
fartas de trabalho e de lágrimas, afizeram-se a vir ajoelhar nas aflições da sua
vida naquele cerro da montanha, pedindo às santas que lhes valessem.
Mostram-se ainda hoje no lugar as paredes conservadas, a pedra onde ardia o
lume, a rocha onde as duas se sentavam, e, como prova de milagre, o fiozinho de
água que brota da pedra que está arrumada à cabana. Há quem diga que as gotas
que tombam uma a uma da abertura da fraga são as lágrimas que as duas choraram
neste lugar de desterro. É uma água frígida e límpida que apetece sempre beber.
Outubro 1902 - Maio 1903
FIM
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Raul
Brandão
concluiu a escrita de 'A Farsa' em Maio de 1903 e, a crer na data que
inscreveu no início da obra, terá começado a escrever a sua obra-prima, 'Húmus',
no dia 13 de Novembro de 1915. Entre essas duas datas, passaram doze anos e meio
sem que, aparentemente, o mestre de 'Nespereira' tenha escrito prosa ficcional. É
certo que, em 1906, publicou 'Os Pobres', mas esse livro já estava escrito desde
1900, tendo ficado três anos a aguardar a carta-prefácio de Guerra Junqueiro e
outros tantos à espera de entrar no prelo. Nos doze anos que transcorreram entre
o momento em que Brandão escreveu a última frase de 'A Farsa' (É uma água frígida
e límpida que apetece sempre beber) e aquele em que começou a compor 'Húmus', o
escritor não deixou de escrever: dedicou-se ao jornalismo e à escrita da
história, centrada nos anos conturbados que antecederam a implantação do
liberalismo em Portugal, em Agosto de 1820, tendo publicado 'El-Rei Junot', em
1912, 'A Conspiração de 1817', em 1914, e 'O Cerco do Porto', contado por uma
testemunha, 'o Coronel Owen', que prefaciou, anotou e publicou em 1915.
Com 'Húmus', Raul Brandão quebra um longo interregno e regressa à escrita de
ficção, dando continuidade a uma obra que inaugurara com a 'História dum Palhaço'
e onde já se inscreviam 'Os Pobres' e 'A Farsa'. Com ele, regressa também à vila que
já conhecia, e que agora servirá de palco às maquinações da mesquinha, perversa
e hipócrita Candidinha. A afirmação de que a vila de 'A Farsa' é a mesma de 'Húmus' é
consensual entre os especialistas que se têm dedicado ao estudo da obra de Raul
Brandão.
'Húmus' é o melhor livro que Raul Brandão escreveu. É uma das obras maiores da
literatura em língua portuguesa do século XX. A narrativa situa-se numa vila
onde decorre um drama cujas personagens são reflexos das angústias, dos
sentimentos e do pensamento do próprio autor. Uma povoação fantasmática que
reproduz a vila de ''A Farsa', réplica da Guimarães que Raul Brandão bem conhecia,
cuja identidade se desvenda logo nas linhas iniciais, datadas de 13 de Novembro:
-
"Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único
esforço da erva – o castelo – restos intactos de muralha que não têm serventia:
uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma
figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai
suco e vida. A torre – a porta da Sé com os santos nos seus nichos – a praça com
árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme:
a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade".
Uma vila com pátios lajeados; um castelo; restos intactos de muralha sem
serventia; a Sé, a que mais adiante chamará de Colegiada, com uma porta com
santos nos seus nichos; uma praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco,
que o escritor não necessita de nomear para nós sabermos que é o Toural.
-
"Não se passa nada! não se passa nada! No Verão o calor sufoca, de Inverno a
mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das
janelas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas.
Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia – e
as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que à noite redobra,
caem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa".
E percebemos que “a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas”, é
a árvore que dá nome à Praça Maior de Guimarães, onde antigamente se
concentravam o poder político (Casa da Câmara), o poder judicial (Casa das
Audiências) e o poder religioso (Colegiada) e que as montanhas em volta são os
montes que cercam o vale onde Guimarães está implantada, entre os quais
sobressai a serra, então descarnada, que é a Penha.
-
"Os padres clamam num coro desesperado: – Acabou o inferno! acabou tudo!
Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado – o claustro com um
pé de oliveira, e dois túmulos encravados na parede, cenografia para o Hamlet –
ser ou não ser eis a questão... Cheiram a urina e a ranço. A religião sem
inferno está perdida".
A vila de 'Húmus' é feita de granito, tem uma montanha descarnada a vigiá-la, uma
praça com uma oliveira e outra com um coreto de zinco e árvores raquíticas, um
castelo e restos de muralha, com ou sem ameias, e uma igreja com um portal
encimado por nichos com estátuas de santos talhadas em pedra que se esboroa e
onde se encosta um claustro com uma oliveira e dois túmulos de pedra encravados
na parede. A vila de 'Húmus', como a de 'A Farsa', é Guimarães.
in
http://araduca.blogspot.pt/
Ler também: Notas para uma leitura de 'A Farsa' de Maria João Reynaud
http://ler.letras.up.pt/
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A FARSA
(texto integral)
Raul Brandão (1903)
Publicações Europa-América
Coleção Livros de Bolso | Série Grandes Obras
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