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-excerto-
Mulher conduz um soldado cego | escultura de Clare Sheridan, 1917
Gente que nunca vi antes enche o patamar e o hall, e dentro, a porta do salão
está aberta, como se tivesse sido franqueada para se ver, da luz do hall, uma cópia da Invencível
Armada em luta contra a sagaz flotilha de Drake. O fumo que envolve a armada invencível enche o quadro
até à talha. As cadeiras estão pastas coma ouvintes. As paredes têm as janelas cobertas por
veludos verdes, agarrados por bolas de passamanaria, pesadas como sinos. lr a primeira vez que
as mulheres de alferes espreitam para dentro do salão das festas. O Gerente curva-se — a calva
luzidia dele brilha com as lâmpadas e ele diz imensamente Mesdames, por favor...
«Lindo, lindo anoitecer!» diz uma mulher de major, sem costas. «Não sou
africanista, mas ouso dizer que em África, nunca vi um pôr de Sol assim, tão rubro!»
«Sim, major!»
Há coronéis, tenentes-coronéis, majores, vestidos a rigor e com medalhas. Várias
senhoras com vestidos sem costas entram pela porta aberta em quatro dobras, e vão parar na
direcção do óleo da Invencível Armada que fumega entre as talas cor de oiro. Têm colares de pérolas
que apertam nos pescoços como mãos. Cabelos penteados contra a natureza como ramos. A mesa onde
estão flores do Cabo tem as pernas retorcidas como tornos, como roscas. A sala sua e ondeia.
Não se poderá ligar o climatizados porque o ruído poderá aniquilar a voz de quem vai orar.
Quem ora? Ainda não chegou. Chegará dentro de instantes, acompanhado da mulher, de dois óculos
escuros e dum bordão.
Silêncio — É um cego triunfal quem vai orar. As últimas cadeiras, junto
das portas, só agora são ocupadas pelas mulheres dos alferes, porque sobejaram. Se não tivessem
sobejado, as mulheres deles teriam de ficar em pé, junto das portas. Mas sobejam e
felizmente, porque passaram a tarde na lavandaria passando a ferro os cabelos, á espera que sobejassem.
Quando o cego chega junto da mesa onde não tacteia porque é amparado pelos passos da sua vestal,
pode-se ver que em todas as paredes da sala estão espalhados quadros sobre a memorável noite
ibérica que foi a de 28 de Junho de 1588. Não importa que seja a imagem dum desastre — a estética
consome o desastre e redime-o em grandeza.
O tenente, agora capitão, provém de formação térrea,
pertenceu à arma de Cavalaria. Dois anos atrás, ao longo duma picada, quando desempenhava funções
que nada tinham a ver com a sua lembrança equestre, o coice duma granada. Nos olhos. Podia ter
sido noutra parte do corpo, e logo nos olhos. Mas um homem com cérebro inteiro, formado sob a arma
proeminente da Cavalaria, reage como reagiu o pulmão de Forza Leal — lembra-se? E muitos
outros. Talvez seja necessária a guerra para se compreenderem certos fenómenos de defesa e
ataque do corpo e da alma. Foi assim, estou a ver — disse Eva Lopo. Desde que ficou sem visão,
entregou-se à História, o tenente-capitão.
A demonstração que traz, naquela noite, já ele apresentou
diante de várias mesas, pelas várias províncias ultramarinas. O seu titulo é abrangente como um círculo
— Portugal dAquém e dAlém Mar. Eterno. Em todas as cidades tem sido oportuno,
mas onde mais do que ali, quando a incompreensão dos ultras levou à organização de
gincanas contra a soberania, apenas por causa da morte dum velho pianista?
Só que ainda não se disse tudo — disse Eva Lopo. Para além dos olhos, o cego
também foi atingido a nível da cabeça, embora guarde grandes tufos de cabelo jovem e
brilhante. Falar da eternidade dum império sem ver, e com cabelo em peladas, cria na sala o temor de
quando se faz aproximar a temporalidade do absoluto. Mas tudo bem — as rosas do Cabo ondeiam.
A mulher arrasta a jarra para um canto não só porque ondeiam, como pelo facto de o braço
do tenente ter o impulso dum cavaleiro que monta. Ele diz no primeiro impulso — desde sempre os
homens fizeram a guerra. Enumera as armas — paus, ossos, pedras, dentes de animais. Descreve a
horda humana nua, cheia de paus, ossos, dentes. Não demora muito a dizer que desde sempre os
povos da Ibéria se manifestaram aguerridos e belicosos, tendo começado com cajados, fundas e
pedras. Pouco demorou a chegar a D. Afonso Henriques, já com a terrível espada. E logo o
Infante com barco, e logo Dona Filipa de Vithena com os filhos, e logo o Mapa-Cor-de-Rosa com o hino.
E logo diz colónias, e logo províncias, e entre elas o cavaleiro cego rapidamente destaca
Moçambique, e quem fala de Moçambique tem de falar de Gungunhana, e Bonga, e Mussa Quanta. E
logo depois uma lista por ordem alfabética de diferentes tribos, uma outra lista de
diferentes intrusos. Uma outra ainda sobre a luta entre as tribos, os cativos e a venda dos cativos. E
assim, as flores, mesmo postas no canto mais afastado da mesa, ondulam sob o sopro do tenente-capitão de
Cavalaria que prevê o esmigalhamento dum mapa que só está unido dentro duma linha quebrada,
porque ele, o recém-historiador, está ali. Estão as damas, os cavalheiros, os oficiais, os
soldados que não estão ali, estão necessariamente espalhados dentro do limite da enorme linha quebrada,
para que seja possível a união, impensável sem a presença de todos os que estão ali, os que
não estão mas era como se estivessem. Já tinham estado e haveriam de estar. «Há quem não
entenda...» — disse ele. Era uma óbvia alusão aos acontecimentos da gincana tão recente e aos seus vários
tiros de intimidação. As mãos da primeira fila, quando se ouviu sair ao lado das rosas a
palavra de desentendimento, começaram a aplaudir. De facto era ingrato e inoportuno um
protesto desses quando se fazia um esforço triunfante e definitivo em Cabo Delgado, para se
esmagar a rebelião sangrenta. Eram palmas sem exuberância que batiam continuamente, como se os
donos das mãos falassem com as palmas e dissessem de forma articulada — sim, sim, sim, estamos
entre duas incompreensões, mas resistimos. Talvez porque as palmas fossem firmes, mas não
exuberantes, embora contínuas, dava para rodar a cabeça e reparar que lá fora, a luz dos
candeeiros da rua estava a passar de amarelo a esverdeado por acção duma chuva de ortópteros que
chegava — disse Eva Lopo. Foi aí.
Eva Lopo ficou suspensa — Que bem descreveu os gafanhotos! Lindos, brilhantes,
fosforescentemente verdes, rondavam perto das lâmpadas que iluminavam as portas.
Chegava-se-lhes a divisar a renda das asas, mesmo dali, enquanto se estava sentado, e o discurso
do cavaleiro historiador avançava na direcção dos últimos parágrafos mentais. Apetecia apagar
as luzes das flâmulas brancas das paredes — para que estavam acesas as flâmulas se o orador
não precisava ler, nem poderia jamais servir-se da luz? — e ouvir o resto na penumbra, ou às
escuras, vendo a luminosidade verde dos candeeiros entornar-se pela avenida da beira-mar, e
chegar até ali, como a aba dum vestido longo. Infelizmente ninguém ousava ceder ao impulso. Mas toda a
gente procurava fechar os olhos e desviava a cabeça para fora, ainda que ouvisse o que se dizia
ali dentro com a maior pertinácia. Aliás, o que acontecia fora, e dentro, não era uma e a mesma
coisa? O orador, que não sabia que uma chuva de gafanhotos se desprendia sobre a costa, tinha
atingido o auge da perenidade nas palavras do seu discurso. «O Planeta é eterno, Portugal faz parte do Planeta, o Além-Mar é tão Portugal
quanto o solo pátrio do Aquém, estamos pisando solo de Além-Mar, estamos pisando Portugal
eterno!» Havia obviamente uma parcela que se tinha perdido, entre as palmas e os
gafanhotos, e que tinha a ver com a demonstração da eternidade da Terra. Mas não fazia mal, as palmas
estrugiam de novo, eram definitivas, e não importava a parcela perdida do pensamento do cavaleiro
cego sobre a eternidade do Planeta onde Portugal era eterno, e as províncias eternas também.
De repente, tudo parecia imóvel e de cristal, sem princípio nem fim, comandado pela vontade do
tenente-capitão. Aliás — disse Eva Lopo — tudo estava traçado desde o início, através daquele
título. Só tinha ocupado hora e meia a demonstrar, e como toda a demonstração é um esforço que se
faz contra o caos, a conferência acabava de ser a demonstração da ordem.
Assim que terminou, porém, alguém disse que voavam gafanhotos, que se ia apagar
a luz, que viesse ele ver. — Obviamente que houve imensos abraços e apoios, e incentivos a
continuar a investigação que ele haveria de prosseguir, auxiliado pelos atentos olhos da sua
mulher. Mas logo depois disso, foi levado até ao pátio térreo. Esse pátio era a varanda natural
para onde davam as portas do salão de festas do Stella. A partir das portas via-se a luz quase azul
das lâmpadas.
O cego, sinistrado de guerra, disse — «Lindo, lindo, como é verde!» Todos aqueles
vestidos, todos aqueles colares, todas aquelas cabeleiras estavam postas no pátio, movendo-se e
falando-se. Era preciso ter sorte na vida para acontecer tanta coisa boa em simultâneo. O que
pensariam agora as pessoas da gincana? Eles tinham ficado mudos, quietos, cheios de paciência
institucional, e haviam demonstrado a superioridade da instituição. Ali estavam, dias depois, com os
ferrolhos das portas reparados, a vidraria refeita, as mossas repintadas, mostrando a superioridade
das suas vidas, por vezes mártires. Por vezes festivas. Que abrissem bem as portas! Contra os
candeeiros, estalavam os gafanhotos. O Índico era um mar de asas de gafanhotos e a atmosfera da costa era
uma paisagem aquática montando. «Lindo, lindo, como é verde!» — dizia o rapaz, cavaleiro,
completamente cego, e que se deslocava agora com o auxílio dum pingalim. Batia com a ponta no chão
repetindo — «Como é lindo!»
FIM
África Portuguesa, no princípio dos anos 70, durante a guerra colonial. 'A Costa dos Murmúrios' é uma conseguida reflexão sobre a guerra colonial em Moçambique. Para escrever este romance, a escritora baseou-se em alguns factos verídicos, pesquisando no Museu Militar de Lisboa para escrever sobre determinados eventos.
Lídia Jorge concede a voz a Eva Lopo, uma mulher portuguesa, situada num posicionamento de contestação que desautoriza a visão dos combatentes portugueses, desconstruindo a ideia de que a guerra era um assunto exclusivo da mundividência masculina.
Filipa Silva (2014)
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A Costa dos Murmúrios
(1988)
excerto
Autor: Lídia Jorge
Publicações Dom Quixote, 2009
5.Nov.2022
Publicado por
MJA
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