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Estátua de uma jovem mulher, nua, com os
braços apoiados no plinto de mármore e com a cabeça levemente pendente,
por isso designada por Menina Nua. Porém, o seu verdadeiro nome é
Juventude e é uma escultura de Henrique Moreira, de 1929 .
Chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era conhecida por Lela, Lelinha
ou por “Ceguinha do 9”. Para a eternidade ficará sempre a ser a “Menina
Nua” da Av. dos Aliados no Porto, estátua que toda a cidade conhece e
aprecia.
Nasceu no dia 4 de Dezembro de 1910, na freguesia do Bonfim e, pouco tempo antes
de falecer, dizia-me que “tinha sido uma das mulheres mais apreciadas e
cobiçadas do seu tempo...”. Vivia no rés-do-chão do Bloco 9 do Bairro da
Pasteleira, numa casa simples e humilde com flores a enfeitarem a
entrada e a sala de jantar.
Um dia convidou-me a entrar e contou-me um pouco da história da “Menina Nua”:
«Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que fez a
estátua: Mais tarde colocaram-me na Avenida dos Aliados - que belos anos
aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje recordo com alegria
e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer amanhã que
todos ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura,
dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me. Andava por
toda a parte, ganhei uns “cobres” com o Henrique Moreira, mas hoje...
Resta-me a consolação de estar ali, de costas voltadas para o Almeida
Garrett e de frente para o D. Pedro IV.»
Perguntei-lhe nessa altura se não tinha havido problemas com a nudez da
estátua - por exemplo, proibições, censuras.
Ela
respondeu-me:
- «Bem, sabe que naquela época havia certos sectores que se opunham claramente e
até ficaram escandalizados com a “Menina Nua”. Nós éramos muito tacanhos
e veja bem que há 50 anos as ideias eram realmente diferentes. Havia o
Salazar, a Pide e o povo era mais fechado, mais religioso. Felizmente o
mestre Henrique Moreira conseguiu “levar a água ao seu moinho” e lá
fiquei, de pedra e nua, assim como Deus me botou ao Mundo...»
Sorriu de
imediato, mostrando ainda réstias de um rosto bonito e de uma boca fina,
onde já rareavam os dentes, vítima do peso dos anos e das canseiras e
desgraças da vida. Além disso, imagine uma “moçoila”, no tempo da “outra
senhora”, a expor-se toda nua perante uns homens de tela e pincéis ou
bocados de pedra. Bem... era quase como ser comunista ou mulher da vida.
Fez-se uma
pausa para mandarmos umas “bocas” contra o sistema do antigamente.
Prossegui, perguntando-lhe quando e onde tinha começado a ser modelo.
Antes de me responder, fica um pouco pensativa, levanta-se e
encaminha-se para o seu quarto, vasculha dentro do guarda-vestidos e
traz-me um amontoado de papéis e fotografias.
- «Vá, veja
lá tudo isto» - diz-me. (Anotei visualmente uma série de fotografias,
pequenas referências, recordações e memórias da “Menina Nua”). «De
qualquer modo, e se a memória não me falha, comecei com o mestre
Teixeira Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia. Esta estátua
encontra-se atualmente no museu com o mesmo nome, em Vila Nova de Gaia.
Nessa época tinha muita vergonha. Era uma “moçoila” com 18 anos, bem
feita e bonita. A minha mãe tinha falecido e fiquei mais tarde com uma
madrasta, de quem por acaso não gostava nada; por isso mudei-me para o
Bonfim, para casa da minha santa avó. Que tempos... Nessa altura,
iniciei-me como modelo nas Belas Artes do Porto e lentamente fui-me
habituando, até que fiquei mais descarada...»
Levantou a
cabeça e, numa reflexão interior, com risos de vaidade e inconformismo,
continuou:
- «Ah, nesse tempo, punha a cabeça dos rapazes em fogo, era bonita e não havia
ninguém que não me conhecesse como a “Menina Nua”. Depois passei alguns
anos como modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a Lourenço Marques
(hoje Maputo) eu fui. Fiz de modelo para vários mestres, entre eles:
Acácio Lino, Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa Caldas, Augusto Gomes,
Camarinha e os consagrados Henrique Moreira e Teixeira Lopes. Além da
“Menina Nua”, estou no Buçaco, no Cinema Rivoli, em Lisboa e em
Moçambique... E hoje? Como vê, aqui estou, desde os 43 anos cega, uma
vida difícil de adaptação, um mundo escuro, negro. E mais negro se
tornou aquando da morte do meu marido. Fiquei completamente só. Hoje,
passados alguns anos, tenho um casal a viver comigo, sempre me ajudam a
pagar a renda e a fazer-me um pouco de companhia. Tenho umas ajudas do
Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social cá do bairro,
onde vou almoçar e lanchar. Enfim, sempre ajuda a passar o tempo e a
velhice. Mas o que eu mais desejava na vida, além de mais dinheiro para
viver, era dos meus ricos olhos...» (Algumas lágrimas correram-lhe pelas
faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao Centro.)
Despedi-me
dela, tentando consolá-la com frases de carinho e amizade, mas a vida é
um cão que não conhece o dono… Ela despediu-se (nessa altura), com um
bom dia, entrecortado com um sorriso morgaiato, misto de Ribeira, Bonfim
e Pasteleira...
Aurélia Magalhães Monteiro, a Lela, a Lelinha ou a “Ceguinha do 9”, faleceu no
dia 2 de Junho de 1992, com 82 anos de idade. No entanto, a “Menina Nua”
continua viva, fixa e eterna, ali na Avenida dos Aliados, envolta nos
nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias deste
povo.
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Do livro
"Pasteleira City"
Raul Simões Pinto
Edições Pé de Cabra
Fevereiro de 1994
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