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Série Les Aveugles | Les Poissons - Sophie Calle, 1986
Gosto de ver aquários, especialmente os marinhos, com suas formas surpreendentes
e coloridas, peixes azuis, amarelos, vermelhos, lisos, listrados, pintados,
anêmonas, medusas. Os olhos se espantam com tanta beleza, tanta variedade de
formas. O Criador tem de ter sido um brincalhão… Uma amiga colocou um pedaço do
mar na sua casa, dividindo duas salas: um enorme aquário marinho. Lá, luzes
apagadas, somente as luzes do aquário acesas, tudo fica calmo. Um aquário
marinho, para que serve? Para nada. Não possui utilidade alguma. Peixes de
aquário não são para serem comidos. Os aquários são para serem vistos. Aquários
são belos. Os olhos se alimentam de beleza.
Fico com pena dos cegos. Eles não podem ver os peixes. Tempos atrás imaginei
pela primeira vez a possibilidade da cegueira. Sem aviso prévio, apareceu,
dentro de um dos meus olhos, uma mancha negra. Ela se movia como se fosse um
pingo de tinta nanquim na água. De fora, ela não aparecia. Estava dentro.
Percebi que era coisa séria. Corri para o João Alberto, oftalmo meu amigo. Ele
olhou dentro do meu olho com aqueles aparelhos de última geração e disse: “Rasgo
na retina. Cirurgia.” “Quando?”, eu perguntei. “Agora”, ele respondeu. E lá fui
eu para a sala de costura, para ter minha retina costurada a laser. A costura
ficou boa. Estou vendo direito. Mas comecei a pensar no milagre delicado da
visão. É sempre possível ficar cego. Aconteceu com Jorge Luís Borges, no fim da
sua vida. Um dos seus ensaios mais fascinantes é sobre a cegueira, as cores que
os cegos vêem. Saramago fez da cegueira o tema central de um dos seus livros:
uma cidade onde todos os moradores vão ficando cegos. Cegueira é triste. Ver é
uma felicidade.
Os poemas bíblicos que relatam a Criação contam que ao fim de cada dia de
trabalho Deus se alegrava com a felicidade de ver. “E viu Deus que era bom”:
esse é o refrão que vai se repetindo. No Paraíso, diz Bachelard, “todos os seres
são puros porque belos”. O mundo foi criado para a beleza. “O mundo não se fez
para pensarmos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo”, diz Alberto
Caeiro. Bem observou Nicolas Berdjaev, filósofo místico russo, que no Paraíso
não há ética, só há estética. No Paraíso a bondade se confunde com a beleza. Com
o que concorda o filósofo chinês Hui-Neng, de não sei quantos séculos atrás: “O
sentido da vida é ver”. Quem sabe ver reencontra o Paraíso.
Do ponto de vista anatômico e fisiológico, a visão é o mais simples dos
sentidos. Na sala de espera dos oftalmologistas há aqueles posters com cortes
transversais do olho, em que a anatomia e a fisiologia do ver são explicadas.
Tudo se passa como numa câmara fotográfica. A luz vem de fora, atravessa uma
lente, e projeta a imagem no fundo do olho. Tendo olhos bons, todos vêem igual.
Vêem igual? Vêem nada. Ver é muito complicado. Não basta ter bons olhos para
ver. “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores”, dizia
Alberto Caeiro. Édipo tinha olhos perfeitos e não via nada. Tirésias era cego e
era o único que via com clareza. William Blake, num curto aforismo, afirma: “A
árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê.”
Mas como? A tolice e a sabedoria nos fazem ver diferente? As idéias interferem
no ver? Caeiro diz que sim. “Pensar é estar doente dos olhos”. E, num outro
lugar, afirma que para se ver com clareza é “é preciso não ter filosofia
nenhuma”. Quem explica é Bernardo Soares: “Não vemos o que vemos; vemos o que
somos”. Naquilo que vemos estão escondidas as linhas do nosso próprio rosto. “Os
olhos são as lâmpadas do corpo”, disse Jesus. “Se as lâmpadas derem luz clara, o
mundo será colorido. Se as lâmpadas derem luz trevosa, o mundo será tenebroso”.
O que vemos é o mundo arranjado à nossa imagem e semelhança. O Paraíso é o rosto
visível de Deus. Uma companhia de cerveja colocou um divertido e inteligente
comercial na televisão:
Um moço entra num bar. No bar tudo é sinistro. As pessoas são tipos
mal-encarados. O barman é grosseiro, disforme e feio. O moço olha desconfiado
para os lados. Pede uma cerveja. Dá um gole – e então, o milagre: tudo se
transforma. O bar fica alegre, todo mundo sorri, e o barman carrancudo se
transforma numa moça linda.
A teoria implícita no comercial é que a gente vê
segundo o que está dentro. Bebendo alegria o mundo fica alegre. Quando a gente
está deprimido é sempre dia chuvoso de inverno, mesmo se o sol estiver
brilhando. Quando não está deprimido, até o dia chuvoso de inverno fica gostoso.
Os poemas bíblicos dizem que no Paraíso o homem e a mulher eram felizes. Aí
aconteceu algo que estragou tudo: os olhos deles ficaram perturbados. Antes seus
olhos apenas viam. E nem precisavam pensar porque a beleza enchia a alma. De
repente, os olhos deles se alteraram. O homem olhou desconfiado para a mulher, a
mulher olhou desconfiada para o homem, e aquilo que antes era puro e belo ficou
feio.
À nudez, dantes bela, se acrescentou uma palavra ruim: vergonha. A vergonha
nasce de um pensamento: a gente olha para o outro e imagina que ele está rindo
da gente. Pode ser que o outro nem esteja pensando isso. Mas, na minha
imaginação ele está rindo de mim. O meu ser se altera. Esconde-se. O olhar
altera o ser. Adão e Eva se alteraram. Tiveram vergonha dos seus corpos. E
fizeram tangas de folhas. O “vergonhoso” foi condenado a ser esquecido.
Os mitos são relatos de coisas que não aconteceram nunca porque acontecem
sempre. Esse poema é o nosso retrato. Nossos olhos puros foram enfeitiçados pelo
olho mau de um “Outro” que me observa. Álvaro de Campos lamenta: “Sou o
intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim.”
Perseguido pelos olhos dos outros, o nosso olho bom fica cego.
Místicos e poetas sabem que o Paraíso está espalhado pelo mundo – mas não
conseguimos vê-lo com os olhos que temos. Para isso seria necessário que a nossa
cegueira fosse curada. O zen-budismo fala da necessidade de se “abrir o terceiro
olho”. De repente a gente vê o que não via! Não se trata de ver coisas
extraordinárias, anjos, aparições, espíritos, seres de um outro mundo. Trata-se
de ver esse nosso mundo sob uma nova luz. Foi isso que aconteceu com o operário
do poema do Vinícius. Perdido no seu trabalho, construindo casas e apartamentos,
ele via tudo mas não via nada. Até que um dia, uma coisa extraordinária
aconteceu:
“De forma que, certo dia/à mesa, ao cortar do pão/o operário foi
tomado de uma súbita emoção/ao constatar, assombrado/que tudo naquela mesa/–
garrafa, prato, facão /era ele quem fazia/ele, um humilde operário,/um operário
em construção. (…) Naquela casa vazia/que ele mesmo levantara/um mundo novo
nascia/de que nem sequer suspeitava./O operário emocionado/olhou sua própria
mão/sua rude mão de operário/e olhando bem para ela/teve um segundo a
impressão/de que não havia no mundo/coisa que fosse mais bela./E o operário
adquiriu então uma nova dimensão:/a dimensão da poesia.”
Os poetas e místicos sempre souberam disso, intuitivamente. Eles sabem que a
beleza salva. Fairbairn disse num dos seus textos que a vocação da psicanálise
era exorcizar demônios. Certo. E eu acrescento: e abrir os olhos aos cegos.
Demônios causam sempre perturbações visuais… A psicanálise é uma teoria sobre a
cegueira e uma busca da experiência que faz os olhos abrir. Para que as pessoas
possam ver, em meio às coisas que sempre viram e que formam o seu cotidiano,
fragmentos do Paraíso perdido – tal como aconteceu com o operário. E quando isso
acontece o ser da pessoa se transforma. Porque a ele se acrescenta “uma nova
dimensão, a dimensão da poesia…”
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