O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha amanhecido puro e sem nuvens. Os campos, cobertos aqui de relva, acolá de searas, que cresciam a
olhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para o lavrador. Era um destes formosíssimos dias de Inverno
mais gratos que os do Estio, porque são de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu aos países do Ocidente, em que
os raios do Sol, que começa a subir na eclíptica, estirando-se vívidos e trémulos por cima da terra enegrecida pela humidade, e errando por entre os troncos
pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se assemelham a um bando de crianças, no primeiro viço da vida, a folgar e a rolar-se por cima da campa, sobre a qual
há muito sussurrou o último ai da saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era um destes dias antipáticos aos poetas
ossiânico-regelo-nevoentos, que querem fazer-nos aceitar como cousa mui poética
Esses gelos do Norte, esses brilhantes
Caramelos dos topes das montanhas;
sem se lembrarem de que
Do sol do Meio-Dia aos raios vívidos,
Parvos! ― se lhes derretem: a brancura
Perdem co'a nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em água chilre;
destes dias, enfim, em que a Natureza sorri como a
furto, rasgando o denso véu da estação das tempestades.
No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória,
vulgarmente chamado da Batalha, fervia o povo, entrando
para a nova igreja, que de mui pouco tempo servia para
as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem
el-rei D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro,
cantavam a missa do dia debaixo daquelas altas abóbadas,
onde repercutiam os sons do órgão e os ecos das vozes do
celebrante, que entoava os kyries.
Mas não era para ouvir a missa conventual que o povo se
escoava pelo profundo portal do templo para dentro do
recinto sonoro daquela maravilhosa fábrica; era para
assistir ao auto da adoração dos reis, que com grande
pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja
e diante do rico presépio que os frades tinham
alevantado junto do arco da Capela do Fundador, então
apenas começada. A concorrência era grande, porque os
habitantes da Canoeira, de Aljubarrota, de Porto de Mós
e dos mais lugares vizinhos, desejosos de ver tão
curioso espectáculo, tinham deixado desertas as
povoações para vir povoar por algumas horas o ermo do
mosteiro. Aprazível cousa era o ver, descendo dos
outeiros para o vale por sendas torcidas, aquelas
multidões, vestidas de cores alegres e semelhantes, no
seu complexo, a serpentes imensas, que, transpondo as
assomadas, se rolassem pelas encostas abaixo,
reflectindo ao longe as cores variegadas da pele luzidia
e lúbrica. Atravessando a pequena planície onde avultava
o mosteiro, passava o rio Lena, cuja corrente tinham
tornado caudal as chuvas da primeira metade da estação
invernosa.
No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá,
alevantavam-se casarias irregulares, algumas fechadas
com suas portas, outras apenas cobertas de madeira e
abertas para todos os lados, à maneira de simples
telheiros. As casas fechadas e reparadas contra as
injúrias do tempo eram as moradas dos mestres e
artífices que trabalhavam no edifício: debaixo dos
telheiros viam-se nuns pedras só desbastadas, noutros
algumas onde se começavam a divisar lavores, noutros,
enfim, pedaços de cantaria, em que os mais hábeis
escultores e entalhadores já tinham estampado os
primores dos seus delicados cinzéis. Mas o que punha
espanto era a inumerável porção de pedras, lavradas,
polidas e prontas para serem colocadas em seus lugares,
que jaziam espalhadas pelo terreiro que, ao redor do
edifício, se alargava por todos os lados: mainéis
rendados, peças dos fustes, capitéis góticos, laçarias
de bandeiras, cordões de arcadas, aí estavam tombados
sobre grossas zorras ou ainda no chão, endurecido pelo
contínuo perpassar de trabalhadores, oficiais e mais
obreiros desta maravilhosa fábrica. Quem de longe
olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos
primores de escultura, julgara ver o assento de uma
cidade antiquíssima, arrasada pela mão dos homens ou dos
séculos, de que só restava em pé um monumento, o
mosteiro. E todavia, esses que pareciam restos de uma
antiga Balbek não eram senão algumas pedras que faltavam
para o acabamento dum convento de frades dominicanos, o
Convento de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado
a Batalha!
Um quadrante de pedra, assentado em um canto do adro,
apontava meio-dia. A igreja tinha sorvido dentro do seu
seio desmesurado os habitantes das próximas povoações, e
de todo o ruído e algazarra que poucas horas antes soava
por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas frestas
e portas do templo os sons do órgão, soltando a espaços
as suas melodias, que sussurravam e morriam ao longe,
suaves como pensamento do Céu.
Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da
frontaria do edifício. Assentado sobre um troço de
fuste, com os pés ao sol e o resto do corpo resguardado
dos seus ardentes raios pela sombra de um telheiro, a
qual se começava a prolongar para o lado do oriente,
via-se um velho, venerável de aspecto, que parecia
embrenhado em profundas meditações. Pendia-lhe sobre o
peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma
touca foteada, um gibão escuro vestido, e sobre ele uma
capa curta ao modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de
todo apagado a velhice; mas as suas feições revelavam
que dentro daqueles membros trémulos e enrugados morava
um ânimo rico de alto imaginar. As faces do velho eram
fundas, as maçãs do rosto elevadas, a fronte espaçosa e
curva e o perfil do rosto quase perpendicular. Tinha a
testa enrugada, como quem vivera vida de contínuo
pensar, e, correndo com a mão os lavores da pedra sobre
que estava assentado, ora carregando o sobrolho, ora
deslizando as rugas da fronte, repreendia ou aprovava
com eloquência muda os primores ou as imperfeições do
artífice que copiara à ponta de cinzel aquela página do
imenso livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam
simplesmente o Mosteiro da Batalha.
Enquanto o velho cismava sozinho e palpava o canto,
subtilmente lavrado, sobre que repousava os membros
entorpecidos, à portaria do mosteiro, que perto dali
ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades
estavam em pé no limiar da porta e altercavam em voz
alta: de vez em quando, pondo-se nos bicos dos pés e
estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir no
horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum
objecto; depois de assim olharem um pedaço, encolhiam os
pescoços e, voltando-se um para o outro, travavam de
novo renhida disputa, que levava seus visos de não
acabar.
― Oh homem! ― dizia um dos dois frades, a quem a tez
macilenta e as barbas e cabelos grisalhos davam certo ar
de autoridade sobre o outro, que mostrava nas faces
coradas e cheias e na cor negra da barba povoada e
revolta mais vigor de mocidade. ― Já disse a vossa
reverência que el- -rei me escreveu, de seu próprio
punho, que viria assistir ao auto da adoração dos reis
e, de caminho, veria a Casa do Capítulo, a que ontem
mestre Ouguet mandou tirar os simples que sustentavam a
abóbada.
― E nego eu isso? ― replicou o outro frade. ― O que digo
é que me parece impossível que el-rei venha, de feito,
conforme a vossa paternidade prometeu em sua carta. Há
muito que lá vai o meio-dia: daqui a pouco tocará a
vésperas, e às duas por três é noite. Não vedes,
padre-mestre, a que horas virá a acabar o auto? E este
povo, este devoto povo que aí está, que aí vem, há-de ir
com o escuro por esses descampados e serras, com
mulheres, com raparigas...
― Tá, tá ― interrompeu o prior. ― Temos luar agora, e
vão de consum. O caso não é esse, padre-procurador, o
caso é se está tudo aviado para agasalharmos el-rei e os
de sua companha.
― Oh lá, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que
tenho tido tanto descanso como hoste ou cavalgada de
castelhanos diante das lanças do Condestável; o pior é
que, segundo me parece, e dizei o que quiserdes, opus et
oleum perdidi (1).
― Não falta quem tarda: el-rei não quebrará a palavra ao
seu antigo confessor. O que quero é que todos os noviços
e coristas que têm de fazer suas representações no auto
estejam a ponto e vestidos, para ele começar logo que
sua senhoria chegue.
― Nada receeis, que tudo está preparado; do que duvido é
de que comecemos, se por el-rei houvermos de esperar.
O frade mais velho fez, a estas palavras, um gesto de
impaciência e, sem dar resposta ao seu pirrónico
interlocutor, estendeu outra vez o gasnate para a banda
da estrada, fazendo com a extremidade do hábito uma
espécie de sobrecéu para resguardar os olhos dos raios
do Sol, que, já muito inclinado para o ocidente, batia
de chapa no portal onde os dois reverendos estavam
altercando.
Porém, meio descoroçoado, o dominicano logo abaixou os
olhos: nem o mínimo vulto se enxergava no horizonte; e
neste abaixar de olhos viu o cego, que estava ainda
assentado sobre o fuste da coluna.
Para escapar, talvez, às reflexões do seu confrade, o
reverendo bradou ao velho:
― Oh lá, mestre Afonso Domingues, bem aproveitais o
soalheiro! Não vos quero eu mal por isso; que um bom sol
de Inverno vale, na idade grave, mais que todos os
remédios de longa vida que em seus alforges trazem por
aí os físicos.
Dizendo e fazendo, o reverendo desceu os degraus do
portal e encaminhou-se para o cego.
― Quem é que me fala? ― perguntou este, alçando a
cabeça.
― Frei Lourenço Lampreia, vosso amigo e servidor,
honrado mestre Afonso. Tão esquecida anda já minha voz
em vossas orelhas, que me não conheceis pela toada?
― Perdoai-me, mui devoto padre-prior ― atalhou o velho,
tenteando com os pés o chão para erguer-se, no momento
em que Frei Lourenço Lampreia chegava junto dele,
seguido do seu confrade Frei Joane, procurador do
mosteiro. ― Perdoai-me! Foi-se o ver, vai-se o ouvir. Em
distância, já não acerto a distinguir as falas.
― Estai quedo; estai quedo, mestre Afonso ― disse Frei
Lourenço, segurando o cego pelo braço. ― O indigno prior
do Mosteiro da Vitória não consentirá que o mui sabedor
arquitecto e imaginador Afonso Domingues, o criador da
oitava maravilha do Mundo, o que traçou este edifício,
doado pelo virtuoso de grandes virtudes rei D. João à
nossa Ordem, se alevante para estar em pé diante do
pobre frade...
― Mas esse religioso ― interrompeu o cego ― é o mais
abalizado teólogo de Portugal, o amigo do mui excelente
doutor João das Regras e do grande Nun’Álvares, e
privado e confessor de el-rei; Afonso Domingues é apenas
uma sombra de homem, um troço de capitel partido e
abandonado no pó das encruzilhadas, um velho tonto, de
quem já ninguém faz caso. Se vossa caridade e humildosa
condição vos movem a doer-vos de mim e a lembrar-vos de
que fui vivo, não achareis nisso muitos de vossa
igualha.
― De merencório humor estais hoje ― disse o prior,
sorrindo. ― Não só eu vos amo e venero: el-rei me fala
sempre de vós em suas cartas. Não sois cavaleiro de sua
casa? E a avultada tença que vos concedeu em paga da
obra que traçastes e dirigistes, enquanto Deus vos
concedeu vista, não prova que não foi ingrato?
― Cavaleiro!? ― bradou o velho. ― Com sangue comprei
essa honra! Comigo trago a escritura. ― Aqui, mestre
Afonso, puxando com a mão trémula as atacas do gibão,
abriu-o e mostrou duas largas cicatrizes no peito. ― Em
Aljubarrota foi escrito o documento à ponta de lança por
mão castelhana: a essa mão devo meu foro, que não ao
Mestre de Avis. Já lá vão quinze anos! Então ainda estes
olhos viam claro, e ainda para este braço a acha de
armas era brinco. El-rei não foi ingrato, dizeis vós,
venerável prior, porque me concedeu uma tença!? Que a
guarde em seu tesouro; porque ainda às portas dos
mosteiros e dos castelos dos nobres se reparte pão por
cegos e por aleijados.
Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a
voz tinha-lhe ficado presa na garganta, e dos olhos
embaciados caíam-lhe pelas faces encovadas duas lágrimas
como punhos. A Frei Lourenço também se arrasaram os
olhos de água. Frei Joane, esse olhou fito para o cego
durante algum tempo, com o olhar vago de quem não o
compreendia. Depois, a ideia da tardança de el-rei e da
tardança do auto, que, entrando pelas horas de cear e
dormir, iria fazer uma brecha horrorosa na disciplina
monástica, veio despertá-lo como espinho pungente.
Começou a bufar e a bater o pé, semelhante ao corredor
brioso do Livro de Job e da Eneida. Entretanto, o
arquitecto havia-se posto em pé: um pensamento
profundamente doloroso parecia reverberar-lhe pela
fronte nobre e turbada, e houve um momento de silêncio.
Por fim, segurando com força a manga do hábito de Frei
Lourenço, disse-lhe:
― Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum
traslado da Divina Comédia do florentino Dante.
― Li já, e mais de uma vez ― respondeu o prior. ― É
obra-prima, daquelas a que os Gregos chamavam epos, id
est, enarratio et actio, segundo Aristóteles; e se não
houvesse nessa escritura algumas ousadias contra o
papa...
― Pois sabei, reverendo padre ― prosseguiu o arquitecto,
atalhando o ímpeto erudito do prior –, que este mosteiro
que se ergue diante de nós era a minha Divina Comédia, o
cântico da minha alma: concebi-o eu; viveu comigo largos
anos, em sonhos e em vigília: cada coluna, cada mainel,
cada fresta, cada arco, era uma página de canção imensa;
mas canção que cumpria se escrevesse em mármore, porque
só o mármore era digno dela. Os milhares de favores que
tracei em meu desenho eram milhares de versos; e porque
ceguei arrancaram-me das mãos o livro, e nas páginas em
branco mandaram escrever um estrangeiro! Loucos! Se os
olhos corporais estavam mortos, não o estavam os do
espírito. O estranho a quem deram meu cargo não me
entendia, e ainda hoje estes dedos descobriram nessa
pedra que o meu alento não a bafejara. Que direito tinha
o Mestre de Avis para sulcar com um golpe do seu
montante a face de um arcanjo que eu criara? Que direito
tinha para me espremer o coração debaixo dos seus
sapatos de ferro? Dava lho o ouro que tem despendido? O
ouro!... Não! O Mestre de Avis sabe que o ouro é vil; só
é nobre e puro o génio do homem. Enganaram no: vassalos
houve em Portugal que enganaram seu rei! Este edifício
era meu; porque o gerei; porque o alimentei com a
substância da minha alma; porque necessitava de me
converter todo nestas pedras, pouco a pouco, e de
deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar perpetuamente
por essas colunas e por baixo dessas arcarias. E
roubaram me o filho da minha imaginação, dando me uma
tença!... Com uma tença paga se a glória e a
imortalidade? Agradeço vos, senhor rei, a mercê!... Sois
em verdade generoso... mas o nome de mestre Ouguet
enredar se á no meu ou, talvez, sumirá este no brilho de
sua fama mentida...
Sala do Capítulo do Mosteiro da
Batalha
O cego tremia de todos os membros: a veemência com que
falara exaurira lhe as forças: os joelhos vergaram lhe,
e assentou se outra vez em cima do fuste. Os dois frades
estavam em pé diante dele.
― Estais mui perturbado pela paixão, mestre Afonso ― disse Frei Lourenço, depois de larga pausa –, por isso
menoscabais mestre Ouguet, que era, talvez, o único
homem que aí havia capaz de vos substituir. Quanto a
vós, pensaram os do conselho de el rei que deviam propor
lhe vos desse repouso e honrado sustentamento para os
cansados dias. Ninguém teve em mente ofender o mais
sabedor e experto arquitecto de Portugal, cuja memória
será eterna e nunca ofuscada.
― Obrigado ― atalhou o velho ― aos conselheiros de el
rei pelos bons desejos que em meu prol têm. São
políticos, almas de lodo, que não compreendem senão
proveitos materiais. Dão me o repouso do corpo e
assassinam me o da alma! Acerca de mestre Ouguet, não
serei eu quem negue suas boas manhas e ciência de
edificar: mas que ponha ele por obra suas traças, e
deixem me a mim dar vulto às minhas. E demais: para
entender o pensamento do Mosteiro de Santa Maria da
Vitória, cumpre ser português; cumpre ter vivido com a
revolução que pôs no trono o Mestre de Avis; ter
tumultuado com o povo defronte dos paços da adúltera(2);
ter pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido em
Aljubarrota. Não é este edifício obra de reis, ainda que
por um rei me fosse encomendado seu desenho e
edificação, mas nacional, mas popular, mas da gente
portuguesa, que disse: não seremos servos do estrangeiro
e que provou seu dito. Mestre Ouguet, escolar na
sociedade dos irmãos obreiros (3), trabalhou nas sés de
Inglaterra, de França e de Alemanha, e aí subiu ao grau
de mestre; mas a sua alma não é aquecida à luz do amor
da pátria; nem, que o fosse, é para ele pátria esta
terra portuguesa. Por engenho e mãos de portugueses
devia ser concebido e executado, até seu final remate, o
monumento da glória dos nossos; e eis aí que ele chamou
de longes terras oficiais estranhos, e os naturais lá
foram mandados adornar de primorosos lavores a igreja de
Guimarães. Sei que não seriam nem eles nem eu quem
pusesse esse remate; mas nós deixaríamos sucessores que
conservassem puras as tradições da arte. Perder se á
tudo; e, porventura, tempo virá em que, nesta obra dos
séculos, não haja mãos vigorosas que prossigam os
lavores que mãos cansadas não puderam levar a cabo.
Então o livro de pedra, o meu cântico de vitória, ficará
truncado. Mas Afonso Domingues tem uma pensão de el
rei...
Em uma das casas que ficavam mais próximas, daquelas de
que fizemos menção no princípio deste capítulo, ergueu
se a adufa de uma janela no momento em que o cego
proferia as últimas palavras, e uma velha, em cuja
cabeça alvejava uma toalha mui branca, gritou da janela:
― Mestre Afonso, quereis recolher-vos? Está pronta a
ceia, e começa a cair a orvalhada, que a tarde vai
nevoenta.
― Vamos lá, vamos lá, Ana Margarida; vinde guiar-me.
E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da
porta com a roca ainda na cinta, e o fuso espetado entre
o linho e o ourelo que o apertava. Chegando ao pé do
velho, tocou- -lhe com o braço, em que ele se firmou,
tornando a erguer-se.
― Boas tardes, padre-prior ― disse a ama, fazendo sua
mesura, seguida de um lamber de dedos e de dois puxões
nas barbas da estriga quase fiada.
― Vá na graça do Senhor, filha ― respondeu Frei
Lourenço, e acrescentou, dirigindo-se ao cego:
― Meu irmão, Deus aceita só ao homem, em desconto da
grande dívida, a dor calada e sofrida. Resignai-vos na
sua divina vontade.
― Na dele estou eu resignado há muito: na dos homens é
que nunca me resignarei.
E Ana Margarida, que tinha a ceia ainda no lume, foi
puxando o cego para a porta de casa.
― Ai, Afonso Domingues, Afonso Domingues! Vai-se-te após
a vista o siso. Aborrecida cousa é a velhice. Não vos
parece, Frei Joane?
Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que
supunha estaria atrás dele; mas Frei Joane tinha
desaparecido dali manso e manso. Alongando os olhos ao
redor de si, Frei Lourenço viu-o em pé sobre uma pedra a
alguma distância.
O prior ia a perguntar-lhe o que fazia ali, quando o
reverendo procurador saltou a correr, bradando:
― Ganhastes, padre-prior; ganhastes!... Eis el-rei que
chega.
E, com efeito, Frei Lourenço, volvendo os olhos para o
cimo de um outeiro, viu uma lustrosa companhia de
cavaleiros, que, com grande açodamento, descia para o
vale do mosteiro.
FIM
NOTAS:
[1] Perdi
o azeite e o trabalho:
expressão proverbial.
[2] D. Leonor Telles, mulher d'el-rei D. Fernando.
[3] Arquitectos sarracenos espalharam-se pela Grécia, Sicília, e outros paises, durante certo tempo: um avultado
número de artífices cristãos, principalmente gregos, juntaram-se a eles, e formaram todos uma corporação, que tinha
as suas leis e estatutos secretos, e cujos membros se reconheciam por sinais. Esta foi a origem da Maçonaria.
[in Conversation's Lexicon].
ϟ
A Abóbada é uma das Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano.
Localiza-se no ano de 1401, tendo por assunto a construção do Mosteiro da Batalha,
mais concretamente, a construção da abóbada da casa do capítulo do Convento, pelo
arquitecto Afonso Domingues, que a delineou, e que, apesar de cego, a concluiu,
depois das obras terem sido entregues ao arquitecto Huguet e de este não ter conseguido o
seu intento.
A lenda está dividida em cinco capítulos:
I - O Cego, II - Mestre Huguet, III - O
Auto, IV - Um Rei Cavaleiro, V - O Voto fatal
Segundo esta lenda,
Afonso Domingues quis morrer na célebre sala, em cumprimento
de um voto
fatal,
embora não
sem antes
concluir com
a célebre
frase: “A
Abóbada não
caiu, a
abóbada não
cairá!”
Alexandre
Herculano
que, além de
insigne
escritor,
foi também
um notável
historiador,
conhecia um
relato mais
antigo que o
inspirou. Na sua História de S. Domingos, de 1623, Frei Luís de Sousa regista uma história que
os frades da Batalha então contavam: a abóbada da casa do capítulo fora levantada por três vezes; das
primeiras duas vezes, caiu com grande perda de vidas, ao serem retirados os cimbres; da terceira, o
rei mandou chamar, de várias prisões do reino, criminosos sentenciados a penas pesadas, com
o compromisso de os libertar, caso a abóbada não os consumisse.
Herculano acrescentou um ponto a este conto, distinguindo o arquitecto português do
estrangeiro, num momento de afirmação nacionalista da cultura portuguesa. Na verdade, sabe-se hoje que a abóbada da Casa Capitular não é da autoria de Afonso Domingues, mas sim de Huguet, tendo podido ser, eventualmente,
reconstruída por Martim Vasques pois acredita-se que a lenda tenha um fundo de verdade. in
Mosteiro da
Batalha
fotografia, vídeo e
texto de José M. Gonçalves
O Cego 1.º capítulo de:
A ABÓBADA AlexandreHerculano [publicada pela 1.ª vez em 'O Panorama' em 1839] in Lendas e Narrativas (Tomo I), 1851