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-excerto-

Andrea Islas García, camponesa cega. Buenavista, Otumba, 1998 -
foto de Marco Antonio Cruz
Sua própria vida, conforme explicava, havia sido um aprendizado constante. Não
aprendeu a
ler nem a escrever até os vinte anos, para dar um número redondo. Nascera em
Nácori Grande e não pôde ir à escola como uma menina normal porque sua mãe
era cega, e ela precisou cuidar dela. De seus irmãos, dos quais guardava uma
lembrança vaga e carinhosa, não sabia nada. O vendaval da vida foi levando eles
para os quatro cantos do México e provavelmente já estavam debaixo da terra.
Sua infância, apesar dos apertos e das desventuras próprias de uma família
camponesa, foi feliz. Adorava o campo, dizia, se bem que agora me incomode
um pouco porque me desacostumei com os bichos.
A vida em Nácori Grande,
embora muitos custem a acreditar, podia ser às vezes muito intensa. Cuidar da
mãe cega podia ser divertido. Cuidar das galinhas podia ser divertido. Lavar
roupa
podia ser divertido. Cozinhar podia ser divertido. A única coisa que lamentava
era
não ter ido à escola. Depois se mudaram, por causas que não vinham ao caso,
para Villa Pesqueira, onde sua mãe morreu e ela, oito meses depois do
falecimento, se casou com um homem a quem quase não conhecia, uma pessoa
trabalhadora, honrada, respeitosa com todo o mundo, um homem bem mais
velho do que ela, diga-se de passagem, que na hora de ir para o altar tinha
trinta e
oito anos e ela só dezessete, quer dizer, um homem vinte e um anos mais velho!,
que trabalhava com compra e venda de animais, sobretudo cabras e ovelhas, se
bem que de vez em quando também vendia ou comprava gado bovino e até suíno,
e que por essas circunstâncias de trabalho tinha de viajar constantemente pelas
cidades da região, como San José de Batuc, San Pedro de la Cueva, Huépari,
Tepache, Lampazos, Divisaderos, Nácori Chico, El Chorro e Napopa, por
estradinhas de terra ou trilhas de animais e por atalhos que margeavam aquelas
montanhas intrincadas. Seus negócios não iam mal. Às vezes ela o acompanhava
em alguma das suas viagens, não muitas, porque era malvisto um comerciante de
gado viajar com uma mulher, ainda mais se fosse sua própria mulher, mas em
algumas o acompanhou. Era uma oportunidade única de ver o mundo. Para ver
outras paisagens que, embora pareçam a mesma, se você olhasse bem, com os
olhos bem abertos, se revelavam no fim das contas muito diferentes das paisagens
de Villa Pesqueira. A cada cem metros o mundo muda, dizia Florita Almada. Isso
de que há lugares iguais a outros é mentira. O mundo é como um tremor.
Claro,
ela gostaria de ter tido filhos, mas a natureza (a natureza em geral ou a
natureza
do seu marido, dizia rindo) privou-a dessa responsabilidade. O tempo que teria
dedicado ao bebê empregou em estudar. Quem a ensinou a ler? As crianças me
ensinaram, afirmava Florita Almada, não existe melhor professor do que elas. As
crianças, com seus abecedários, que iam à sua casa pedir que lhes desse pinole.
A
vida é assim, justo quando acreditava que se desvaneciam para sempre as
possibilidades de estudar ou voltar aos estudos (vã esperança, em Villa
Pesqueira
achava-se que Escola Noturna era o nome de um bordel nos arredores de San
José de Pimas), aprendeu, sem maiores esforços, a ler e a escrever. A partir
desse momento leu tudo o que lhe caía nas mãos. Num caderno anotou as
impressões e pensamentos que suas leituras lhe produziram. Leu revistas e
jornais
velhos, leu programas políticos, que de quando em quando jovens de bigode vindos
em caminhonetes entregavam no vilarejo, e jornais recentes, leu os poucos livros
que pôde encontrar, e seu marido, depois de cada ausência traficando com
animais nos lugares vizinhos, se acostumou a lhe trazer livros que às vezes
comprava não por unidade mas por peso. Cinco quilos de livros. Dez quilos. Uma
vez chegou com vinte quilos. Ela não deixou de ler um só e de todos, sem
exceção, extraiu algum ensinamento. Às vezes lia revistas que chegavam da
Cidade do México, às vezes lia livros de história, às vezes lia livros de
religião, às
vezes lia livros licenciosos que a faziam corar, sozinha, sentada na mesa, as
páginas iluminadas por um abajur cuja luz parecia bailar ou adotar formas
demoníacas, às vezes lia livros técnicos sobre o cultivo de vinhedos ou sobre a
construção de casas pré-fabricadas, às vezes lia histórias de terror e de
assombração, qualquer tipo de leitura que a divina providência pusesse ao
alcance
da sua mão, e com todos eles aprendeu alguma coisa, às vezes muito pouco, mas
alguma coisa ficava, como uma pepita de ouro numa montanha de lixo, ou para
afinar a metáfora, dizia Florita, como uma boneca perdida e reencontrada numa
montanha de lixo desconhecida.
Enfim, ela não era uma pessoa instruída, em todo
caso não tinha o que se chama de educação clássica, pelo que se desculpava, mas
tampouco se envergonhava de ser o que era, pois o que Deus tira de um lado a
Virgem repõe do outro, e quando isso acontece a gente tem de estar em paz com
o mundo. Assim passaram os anos.
Seu marido, por essas coisas misteriosas que
alguns chamam de simetria, um dia ficou cego. Por sorte ela já tinha experiência
em cuidado com os deficientes visuais e os últimos anos do comerciante foram
sossegados, pois sua mulher cuidou dele com eficiência e carinho. Depois ficou
sozinha, e por então já havia feito quarenta e quatro anos. Não se casou de
novo,
não porque faltassem pretendentes, mas porque tomou gosto pela solidão. O que
fez foi comprar um revólver calibre 38, porque a escopeta que seu marido lhe
deixou de herança lhe pareceu pouco manejável, e dar, momentaneamente,
seguimento aos negócios de compra e venda de animais. Mas o problema,
explicava, é que para comprar e sobretudo para vender animais era necessária
certa sensibilidade, certa educação, certa propensão à cegueira que ela de modo
algum possuía.
Viajar com os animais pelas trilhas dos morros era muito bonito,
praceá-los no mercado ou no matadouro era um horror. De modo que em pouco
tempo abandonou o negócio e continuou viajando, em companhia do cachorro de
seu falecido marido, do seu revólver e às vezes dos seus animais, que começaram
a envelhecer com ela, mas desta vez fazia isso como uma curandeira
transumante, das tantas que há no bendito estado de Sonora, e durante as viagens
procurava ervas ou escrevia pensamentos enquanto os animais pastavam, como
fazia Benito Juárez quando era um menino pastor, ai, Benito Juárez, que grande
homem, que correto, que íntegro, mas também que menino mais encantador,
desse pedaço da sua vida se falava pouco, em parte porque pouco se sabia, em
parte porque os mexicanos sabem que quando falam de crianças costumam dizer
besteiras ou cafonices.
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ROBERTO BOLAÑO nasceu em 1953, em Santiago do Chile, filho de pai camionista e de mãe professora. A sua infância foi vivida em várias cidades chilenas (Valparaíso, Quilpué, Viña del Mar ou Cauquenes) e a passagem pela escola atormentada pela dislexia. Aos quinze anos a família mudou-se para a Cidade do México. Durante a adolescência leu vorazmente, escreveu poesia - e abandonou os estudos para regressar ao Chile poucos dias antes do golpe que depôs Salvador Allende. Ligado a um grupo trotsquista, foi preso pelos militares e libertado algum tempo depois. De volta ao México, fundou com amigos o Infrarrealismo, um movimento literário punk-surrealista, que consistia na «provocação e no apelo às armas» contra o establishment das letras latino-americanas e suas figuras de proa, de Octavio Paz a García Márquez. Nos anos setenta, Bolaño vagabundeou pela Europa - lavou pratos em restaurantes, trabalhou nas vindimas ou como guarda-nocturno de parques de campismo -, após o que se instalou em Espanha, na Costa Brava, com a mulher e os dois filhos. Aí, dedicou os últimos dez anos da sua vida à escrita. Fê-lo febrilmente, com urgência, até à morte (em Barcelona, em Julho de 2003), aos cinquenta anos.
A sua herança literária é de uma grandeza ímpar, sendo considerado o mais importante escritor latino-americano da sua geração - e da actualidade. Entre outros prémios, como o Rómulo Gallegos ou o Herralde, Roberto Bolaño já não pôde receber o prestigiado National Book Critics Circle Award, o da Fundación Lara, o Salambó, o Ciudad de Barcelona, o Santiago de Chile ou o Altazor, atribuídos a 2666, unanimemente considerado o maior fenómeno literário da última década.
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A escrita de 2666 ocupou os últimos anos de vida de Bolaño. Mas a
concepção e o desenho do romance são muito anteriores, e retrospectivamente
cabe reconhecer suas pulsações neste e naquele livro de Bolaño, mais em
particular entre os que foi publicando a partir da conclusão de 'Os detetives
selvagens' (1998), que não por acaso termina no deserto de Sonora.
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Um júri que reuniu críticos, escritores e livreiros de ambos os lados do
Atlântico, escolheu 2666, de Roberto Bolaño (publicado pela Quetzal em
2009), como o melhor livro de língua espanhola dos últimos 25 anos. WOOK

2666
Roberto Bolano
-excerto-
tradução: Cristina Rodríguez e Artur Guerra
(Prémio de tradução Casa da América Latina/BANIF 2011 )
Quetzal Editores, 2009
28.Fev.2018
publicado
por
MJA
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