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RESUMO | Colin Lamb é um agente do serviço secreto
que, ao visitar o condomínio
Wilbraham Crescent, na cidadezinha de Crowdean, acaba envolvido na
investigação de um estranho assassinato ocorrido naquele lugar: um desconhecido foi encontrado apunhalado na casa n.º 19, cuja
proprietária é uma senhora cega.
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Na cena do crime são encontrados
quatro relógios que marcam todos a mesma hora, 4h13, mas que não pertencem à
dona da casa. Quem descobriu o corpo foi a estenógrafa, que tinha
recebido ordem para se apresentar em casa da cliente cega, só que esta não tinha
solicitado nenhum serviço de estenografia.
O caso parece complexo e Colin Lamb decide desafiar o amigo Hercule Poirot a
desvendá-lo sem se levantar da sua poltrona. E somente com as informações
recebidas de Lamb, Poirot consegue sugerir uma hipótese viável para a solução
do enigma.
PRÓLOGO
A tarde do dia 9 de Setembro foi exactamente igual a qualquer outra
tarde. Nenhuma das pessoas que viriam a estar relacionadas com os
acontecimentos desse dia poderia alegar que tivera uma premonição de
tragédia. (Com excepção, evidentemente, de Mrs. Packer, de Wilbraham
Crescent, 47, a qual era especializada em premonições e, depois, descreveu
sempre, com grande minúcia de pormenores, os estranhos
pressentimentos e as tremuras que tivera. Mas Mrs. Packer estava, no 47,
tão distante do 19, e o que neste número se passou relacionou-se tão pouco
com ela, que lhe pareceu absolutamente desnecessário ter uma
premonição.)
No Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigido por
Miss K. Martindale, no dia 9 de Setembro fora um dia igual a tantos outros,
um dia rotineiro. O telefone tocara, as máquinas de escrever tinham
matraqueado como de costume e o nível de trabalho fora médio, nem acima
nem abaixo do habitual.
O género também fora o costumado, sem interesse especial. Até às
duas e trinta e cinco da tarde, o dia 9 de Setembro não teve nada a
distingui-lo de outro dia qualquer.
Às duas e trinta e cinco, a extensão de Miss Martindale deu sinal e
Edna Brent, que trabalhava no escritório contíguo, atendeu-a com a voz
ofegante e um nadinha nasalada do costume, enquanto empurrava um
caramelo para um dos lados da boca.
- Que deseja, Miss Martindale?
- Já lhe disse que não deve falar assim quando atende o telefone,
Edna! Pronuncie as palavras com clareza e domine a respiração.
- Desculpe, Miss Martindale.
- Já foi melhor. Se tentar, consegue. Mande-me a Sheila Webb.
- Ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.
- Ah! - Miss Martindale viu que eram duas horas e trinta e seis
minutos, o que significava que Sheila estava exactamente seis minutos
atrasada. - Mande-ma assim que chegar - acrescentou, a pensar que, nos
últimos tempos, Sheila Webb se desmazelava um pouco.
- Sim, Miss Martindale.
Edna passou de novo o caramelo para o meio da língua e, a chupar
prazenteiramente, recomeçou a dactilografar o romance Amor Nu, de
Armand Levine.
O erotismo forçado da obra deixava-a indiferente - como, aliás, à
maioria dos leitores de Mr. Levine, não obstante os seus esforços. Armand
Levine era uma prova convincente de que nada pode ser mais enfadonho do
que a pornografia enfadonha. Apesar das capas sinistras e dos títulos
provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de
serviços dactilográficos já lhe fora apresentada três vezes, em vão.
A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, um bocadinho ofegante.
- A Sandy Cat * chamou-te - informou Edna.
* Gata Loura. (N. da T.)
- Já é preciso ter azar! - exclamou Sheila, a fazer uma careta. - No
único dia em que chego atrasada!
Passou a mão pelo cabelo, pegou num lápis e num livro de
apontamentos e bateu à porta da directora.
Miss Martindale levantou a cabeça. Era uma mulher de quarenta e tal
anos, que respirava actividade e eficiência e devia a alcunha de Sandy Cat
ao seu cabelo ruivo-claro e ao seu nome próprio de Katherine.
- Chegou atrasada, Miss Webb.
- Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento
de trânsito...
- Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia.
Devia contar com isso e sair de casa mais cedo. - Consultou a sua agenda e
prosseguiu: - Telefonou uma tal Miss Pebmarsh, que precisa de uma
estenógrafa para as três horas e se mostrou particularmente interessada em
que fosse você. Já trabalhou alguma vez para ela?
- Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não
trabalhei.
- A morada é Wilbraham Crescent, dezanove...
- Calou-se, com um ar interrogador, mas Sheila Webb abanou a
cabeça.
- Não me lembro de lá ter ido.
Miss Martindale consultou o relógio.
- Três horas... Consegue lá chegar a tempo. Tem outros
compromissos, para esta tarde? - Passou os olhos pela agenda, que tinha a
seu lado. - Professor Purdy, Curlew Hotel, às cinco horas. Deve chegar
antes disso, mas se não chegar mandarei a Janet.
Mandou-a embora, com um aceno de cabeça, e Sheila voltou para o
escritório.
- Alguma coisa interessante, Sheila?
- Ora, mais um daqueles dias chatos... Uma velhota qualquer de
Wilbraham Crescent e, às cinco horas, o professor Purdy... e todos aqueles
horríveis nomes arqueológicos! Como desejaria que, de vez em quando,
acontecesse alguma coisa emocionante, para variar!
A porta de Miss Martindale abriu-se e a directora avisou:
- Esqueci-me de um pormenor, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver,
quando chegar, entre, pois a porta não estará fechada. Entre para a sala que
fica à direita do vestíbulo e espere. Não se esquece ou prefere que escreva
num papel?
- Não me esquecerei, Miss Martindale.
A directora voltou para o seu santuário.
Edna Brent tirou debaixo da cadeira um sapato um bocado
espampanante, cujo salto altíssimo e muito fino se despregara.
- Como diabo regressarei a casa? - perguntou, tristemente.
- Deixa-te de lamúrias, alguma coisa se há-de arranjar - respondeu-lhe
uma das outras raparigas, quase sem deixar de martelar as teclas.
Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel. 'O
desejo dominava-o. Com dedos frenéticos rasgou o tecido finíssimo que
lhe cobria os seios e empurrou-a para a sopa'...
- Bolas! - resmungou Edna, a procurar a borracha, ao ver que
escrevera "a sopa" em vez de "o sofá".
Sheila pegou na malinha de mão e saiu.
Wilbraham Crescent era uma fantasia criada por um construtor de
1880, mais ou menos, e constava de uma meia-lua de duas fileiras de casas
com os jardins de permeio, traseiras com traseiras. Este conceito
arquitectónico causava constantes dificuldades às pessoas que não
conheciam o lugar. As que chegavam ao lado exterior da meia-lua tinham
dificuldade em encontrar os números mais baixos, e as que chegavam ao
lado interior viam-se às aranhas para descobrir os mais altos.
As casas eram limpas, afectadas, com varandas artísticas e um ar
muitíssimo respeitável. O modernismo mal lhes tocara ainda, pelo menos
exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as
primeiras divisões a sofrer as consequências das mudanças.
Não havia nada de especial no número 19. Tinha cortinas impecáveis
e um puxador muito reluzente, na porta principal. De ambos os lados do
caminho que conduzia à entrada erguiam-se roseiras.
Sheila Webb abriu a cancela, encaminhou-se para a
porta principal e tocou à campainha. Aguardou um ou dois minutos e,
como não lhe respondessem, obedeceu às instruções recebidas. Girou o
puxador, a porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do vestíbulo
estava entreaberta. Sheila bateu, aguardou um momento e entrou também.
Encontrou-se numa vulgar e aconchegada sala de estar, talvez um pouco
atravancada para o gosto moderno. A única coisa extraordinária que lhe
chamou a atenção foi a abundância de relógios: um relógio de pé, a um
canto; um relógio de porcelana de Dresden, na chaminé; um relógio de prata,
na secretária; um pequeno relógio dourado de fantasia, numa papeleira, e
numa mesa, junto da janela, um velho relógio de viagem, com uma caixa
de cabedal, desbotado e o nome ROSEMARY * em letras douradas e já um
pouco apagadas, a um canto.
* Rosemary significa alecrim, em inglês, mas também é tomado na
acepção de "recordação". (N. da T.).
Sheila olhou, um pouco surpreendida, para o relógio da secretária,
segundo o qual já passava das quatro e dez. Olhou para o da chaminé e
verificou que se encontrava nas mesmas circunstâncias.
Estremeceu violentamente, ao ouvir um estalido, por cima da cabeça,
e ao ver sair um cuco de um relógio de parede, de maneira esculpida. O
passaroco anunciou, em tom audível e firme, quase ameaçador:
cu, cu! cu, cu! cu, cu! Depois desapareceu e a portinha fechou-se.
Sheila Webb esboçou um sorriso e contornou a ponta do sofá. De
repente, porém, estacou, petrificada.
Estiraçado no chão estava o corpo de um homem, de olhos
semicerrados e sem vida e com uma mancha escura e húmida na frente do
fato cinzento-escuro.
A jovem baixou-se, quase maquinalmente, e tocou-lhe na cara e
numa das mãos. Estavam ambas frias. Depois tocou na mancha húmida e
retirou bruscamente a mão, de olhos desorbitados de horror.
No mesmo instante ouviu abrir a cancela e olhou, quase sem dar por
isso, para a janela. Uma figura de
mulher subia o carreiro, apressada. Sheila engoliu a custo a saliva,
pois tinha a garganta ressequida. Sentia-se pregada ao chão, incapaz de se
mexer ou gritar, de olhos fixos em frente.
A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de
compras. Tinha cabelos grisalhos ondulados, penteados para trás, e olhos
muito grandes e de um azul muito bonito, olhos que fitaram Sheila, mas
não a viram.
A jovem soltou uma espécie de gemido abafado, os olhos azuis
fitaram-na de novo e a mulher perguntou, vivamente:
- Está aí alguém?
- Es... está - gaguejou Sheila, enquanto a mulher se aproximava,
depressa, das costas do sofá.
Depois gritou:
- Não... não! Pisa-o... pisa-o e ele está morto!
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Para falar em termos policiais: às 2.59 h da tarde de 9 de Setembro,
passava por Wilbraham Crescent, na direcção oeste. Era a primeira vez que
por ali passava e confesso francamente que Wilbraham Crescent me
intrigava.
Obedecia a um pressentimento com uma persistência que se tornava
cada dia mais obstinada, ao mesmo tempo que o pressentimento parecia
cada vez mais inconsistente e com menos probabilidades de dar qualquer
resultado positivo. Eu sou assim.
O número que me interessava era o 61, mas nunca mais o encontrava.
Seguira cuidadosamente os números de 1 a 35, mas ao chegar aí
Wilbraham Crescent parecera terminar. Uma artéria com o nome vulgar
de Albany Road barrava-me o caminho. Retrocedi. Do lado norte não havia
casas; apenas um muro atrás do qual se erguiam quarteirões de prédios
altos e modernos, cujas entradas deviam ficar noutra estrada.
Olhei para os números por onde passava: 24, 23, 22, 21... Diana
Lodge (provavelmente o número 20, com um gato amarelado no poste da
cancela, a lavar o focinho), 19...
A porta do número 19 estava aberta e uma jovem saiu e correu pelo
carreiro abaixo com o que me pareceu a velocidade de uma bomba.
Acentuavam a semelhança os gritos que ela soltava, gritos altos, agudos,
quase desumanos. A pequena transpôs a cancela e chocou comigo
com tal força que por pouco não me atirava para fora do passeio. Como se
isso não bastasse, agarrou-se a mim num frenesi desesperado.
- Calma! - aconselhei, a sacudi-la um bocadinho, depois de recuperar
o equilíbrio. - Vamos calma...
Continuou a agarrar-me, mas deixou de gritar e começou a ofegar,
em arquejos profundos e trémulos como soluços.
Não posso dizer que tenha reagido brilhantemente à situação...
Perguntei-lhe se acontecera alguma coisa, compreendi que a pergunta era
redundante e emendei:
- Que aconteceu?
A pequena respirou fundo, antes de responder, a apontar para trás:
- Ali!
- Ali o quê?
- Está um homem no chão... morto... Ela ia-lhe passar por cima...
- Quem? Porquê?
- Creio que... que é cega. Ele está sujo de sangue... - Levantou uma
das mãos que me seguravam e acrescentou: - E eu também. E eu também
estou suja de sangue!
Examinei as manchas da manga do meu casaco e observei:
- E, agora, também eu estou sujo de sangue. Parece-me melhor levar-me
lá e mostrar-me.
- Não posso! - afirmou, a tremer violentamente. - Não posso! Não
voltarei a entrar lá!
- Talvez tenha razão.
Olhei à minha volta, mas não encontrei nenhum lugar adequado para
depositar uma jovem quase desmaiada. Acabei por a sentar no passeio,
encostada ao gradeamento de ferro.
- Deixe-se ficar aqui até eu voltar. Não me demorarei. Se se sentir
mal, incline-se para a frente e meta a cabeça entre os joelhos.
- Creio... creio que já estou bem.
Não parecia muito convencida, mas eu não perdi tempo a
argumentar. Dei-lhe uma palmadinha tranquilizadora no ombro e meti pelo
carreiro acima, apressadamente. Entrei, hesitei um momento no vestíbulo,
espreitei no aposento da esquerda, que era uma sala de jantar deserta,
atravessei o vestíbulo e entrei na sala da direita.
A primeira coisa que vi foi uma mulher idosa, de cabelo grisalho,
sentada numa cadeira. Virou bruscamente a cabeça, ao sentir-me entrar, e
perguntou:
- Quem é?
Percebi logo que era cega. Os seus olhos, embora virados para mim,
estavam fixos num ponto atrás do meu ouvido esquerdo.
- Uma jovem chocou comigo, na rua, e disse que estava aqui um
homem morto - expliquei, sem rodeios.
Acto contínuo, tive consciência do absurdo das minhas palavras. Não
parecia possível que estivesse um homem morto naquela sala arrumada,
com aquela mulher calma sentada numa cadeira, de mãos entrelaçadas.
Mas ela redarguiu-me, sem hesitar:
- Atrás do sofá.
Contornei o sofá e vi os braços abertos, os olhos vítreos e a mancha
de sangue coagulado, no peito.
- Como foi?
- Não sei.
- Mas... Quem é?
- Não faço a mínima ideia.
- Temos de chamar a Polícia. - Olhei à minha volta e indaguei: -
Onde está o telefone?
- Não tenho telefone.
Observei-a com mais atenção.
- A senhora mora aqui? Esta é a sua casa?
- Sim.
- Pode-me dizer o que sucedeu?
- Sem dúvida. Vim das compras - reparei no saco das compras,
abandonado em cima de uma cadeira, à entrada - e entrei aqui. Percebi
imediatamente que estava alguém na sala. São coisas que sentimos com
facilidade, quando somos cegos. Perguntei quem era e só ouvi o barulho da
respiração acelerada de alguém.
Encaminhei-me na direcção do som e então quem quer que era
começou a gritar que estava um homem morto e eu ia pisá-lo. Depois essa
pessoa passou por mim a correr e saiu da sala.
Acenei com a cabeça. As histórias condiziam.
- Que fez, então?
- Tacteei o caminho, com cuidado, até o meu pé encontrar um
obstáculo.
- E depois?
- Ajoelhei e toquei em qualquer coisa... na mão de um homem.
Estava fria, não se sentia o pulso...
Levantei-me e sentei-me aqui, à espera. Estava convencida de que
alguém apareceria, de que a jovem, quem quer que fosse, daria o alarme.
Achei melhor não sair de casa.
Impressionou-me a calma da criatura. Não gritara nem saíra, aos
tropeções e cheia de pânico, da casa onde se encontrava um morto.
Limitara-se a sentar-se calmamente, à espera. Era a única maneira sensata
de proceder, mas exigia coragem.
- Quem é o senhor?
- Chamo-me Colin Lamb e ia a passar.
- Onde está a jovem?
- Deixei-a encostada à cancela. Encontra-se em estado de choque.
Onde fica o telefone mais próximo?
- Há uma cabina a cerca de cinquenta metros, pouco antes de chegar
à esquina.
- Tem razão, lembro-me de passar por lá. Vou telefonar à Polícia. A
senhora...
Hesitei, sem saber se deveria perguntar se ficaria onde estava ou se
ficaria bem.
Ela poupou-me a escolha:
- Acho melhor trazer a jovem cá para dentro.
- Não sei se quererá vir... - redargui, duvidoso.
- Não virá para esta sala, claro. Leve-a para a casa de jantar, que fica
do lado oposto do vestíbulo, e diga-lhe que vou fazer chá.
Levantou-se e encaminhou-se para mim.
- Mas... a senhora poderá...
Esboçou um leve e breve sorriso.
- Meu caro jovem, preparo as minhas refeições, na minha cozinha,
desde que vim morar para esta casa, há catorze anos. Ser cega não é
forçosamente ser inválida.
- Desculpe, fui estúpido. Talvez não se importe de me dizer o seu
nome?
- Millicent Pebmarsh... Miss. Saí e desci o carreiro. A pequena
levantou a cabeça e começou a erguer-se.
- Creio... creio que já estou mais ou menos bem.
- Óptimo! - redargui, enquanto a ajudava a levantar-se.
- Estava... estava lá um homem morto, não estava?
- Claro que estava. Vou lá abaixo, à cabina, avisar a Polícia. No seu
lugar, esperaria dentro de casa.Levantei a voz, para abafar os seus protestos
imediatos e veementes: - Vá para a sala de jantar, que fica à esquerda do
vestíbulo. Miss Pebmarsh está a fazer uma chávena de chá para si.
- Ela é, então, Miss Pebmarsh? E é cega?
- É. Também foi um grande choque para ela, evidentemente, mas está
a proceder com muita sensatez.
Venha, eu levo-a. Uma chávena de chá far-lhe-á bem, enquanto
espera pela Polícia.
Passei-lhe um braço pelos ombros, conduzi-a pelo carreiro acima,
instalei-a à mesa da sala de jantar e saí a correr, para telefonar.
- Posto da Polícia de Crowdean - anunciou uma voz calma.
- Posso falar com o detective-inspector Hardcastle?
- Não sei se está... - respondeu a voz, cautelosa. - Quem fala?
- Diga-lhe que é Colin Lamb.
- Um momento, por favor.
Pouco depois, ouvi a voz de Hardcastle:
- Colin? Não esperava que telefonasse tão cedo.
Onde está?
- Crowdean... ou melhor, estou em Wilbraham Crescent. Está um
homem morto no número dezanove, creio que apunhalado. Deve estar
morto há meia hora, aproximadamente.
- Quem o encontrou? Você?
- Não. Ia a passar, inocentemente, quando uma pessoa saiu de casa,
como se o Diabo a perseguisse, e quase me derrubou. Disse-me que estava
um homem morto e uma mulher cega o pisara.
- Não está a mangar comigo, pois não?
- Admito que parece fantástico, mas creio que os factos são os que
expus. A cega é Miss Millicent Pebmarsh, que mora na referida casa.
- Mas ela pisou o morto?
- Não no sentido em que pensa. Parece que, em virtude de ser cega,
não sabia que ele lá se encontrava.
- Vou pôr a engrenagem em acção. Espere lá por mim. Que fez à
pequena?
- Miss Pebmarsh está a preparar-lhe uma chávena de chá.
Dick observou que parecia tudo muito aconchegadinho.
A engrenagem da Lei trabalhava a todo o vapor em Wilbraham
Crescent,19. Estavam presentes um cirurgião e um fotógrafo da Polícia e os
peritos em impressões
digitais. Trabalhavam com eficiência, cada um deles entregue à sua
própria tarefa.
Por fim chegou o detective-inspector Hardcastle, um homem alto e
impassível, de sobrancelhas expressivas e ar autoritário. Queria-se
certificar de que estavam a fazer tudo quanto ordenara, e de que o
estavam a fazer como deviam. Lançou um último olhar ao cadáver, trocou
algumas palavras com o médico da Polícia e depois dirigiu-se à sala de
jantar, onde se encontravam três pessoas diante de chávenas vazias:
Miss Pebmarsh, Colin Lamb e uma rapariga alta, de cabelos castanhos
anelados e grandes olhos cheios de medo.
"Muito bonita", pensou o inspector, para consigo, e apresentou-se a
Miss Pebmarsh:
- Detective-inspector Hardcastle.
Sabia algumas coisas acerca de Miss Pebmarsh, embora os seus
caminhos nunca se tivessem cruzado, profissionalmente. Vira-a diversas
vezes e sabia que se tratava de uma ex-professora e que tinha um
emprego relacionado com o ensino de braille no Instituto Aaronberg de
Crianças Deficientes. Parecia inacreditável que encontrassem um homem
assassinado na sua casa impecável e austera, mas o inacreditável acontecia
mais vezes do que se supunha.
- Foi terrível o que aconteceu, Miss Pebmarsh, e deve tê-la abalado
muito. Preciso que me descrevam, com toda a clareza, o que sucedeu.
Estou informado de que foi Miss... - olhou para o livro de apontamentos
que um agente lhe entregara - ... Sheila Webb quem descobriu o cadáver. Se
me autorizar a utilizar a sua cozinha, Miss Pebmarsh, levarei para lá
Miss Webb, a fim de podermos conversar calmamente.
Abriu a porta de comunicação com a cozinha e aguardou que a jovem
passasse. Um polícia novo, à paisana, já lá se encontrava instalado a
escrever, sentado à mesa de tampo de fórmica.
- Esta cadeira parece confortável...
Hardcastle puxou uma cadeira e Sheila Webb sentou-se
nervosamente, a fitá-lo com os grandes olhos assustados.
O inspector teve vontade de lhe dizer que não a comeria, mas
conteve-se e limitou-se a declarar:
- Não precisa de estar preocupada; queremos apenas fazer uma ideia
clara do que se passou. Chama-se Sheila Webb e mora?...
- Palmerston Road, catorze, a seguir à fábrica de gás...
- Bem sei. Suponho que é empregada
- Sou estenodactilógrafa e trabalho no Gabinete de Secretariado de
Miss Martindale.
- Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish. É este o nome
completo, não é?
- Exactamente.
- Há quanto tempo lá trabalha?
- Há cerca de um ano... isto é, há dez meses certos.
- Agora explique-me, por palavras suas, como veio parar a
Wilbraham Crescent, dezanove.
- Foi assim.. - Sheila Webb já falava com maior segurança. - Miss
Pebmarsh telefonou para o escritório e pediu que lhe mandassem uma
secretária, às três horas. Por isso, quando regressei do almoço, Miss
Martindale mandou-me cá.
- Isso passou-se tudo de acordo com a rotina, não é verdade? Quero
dizer, você era a primeira da lista, ou lá como fazem essas coisas...
- Desta vez, não. Miss Pebmarsh pediu especificamente que me
mandassem a mim.
- Miss Pebmarsh pediu especificamente que a mandassem a si... -
repetiu Hardcastle, de sobrancelhas arqueadas. - Compreendo... Por já ter
trabalhado anteriormente para ela, suponho?
- Mas eu nunca trabalhei para ela! - apressou-se Sheila a esclarecer.
- Não? Tem a certeza disso?
- Absoluta! Não é uma daquelas pessoas fáceis de esquecer. É isso
que me parece tão estranho...
- Bem, deixemos esse pormenor por agora. A que horas chegou?
- Devia faltar pouco para as três horas, pois o relógio de cuco... -
Calou-se, bruscamente, de olhos muito abertos. - Que estranho! Na altura
não reparei...
- Não reparou, em quê, Miss Webb?
- Nos relógios.
- Que têm os relógios?
- O relógio de cuco deu as três horas, mas todos os outros estavam
cerca de uma hora adiantados. Que esquisito!
- É, sem dúvida, muito esquisito - concordou o inspector. - Quando
deu pela presença do cadáver?
- Só quando contornei o sofá... Foi... foi horrível!
- Concordo. Reconheceu o homem? Tratava-se de alguém que já
tivesse visto?
- Oh, não!
- Tem a certeza absoluta? Podia parecer diferente do seu aspecto
habitual... Pense bem. Tem a certeza absoluta de que nunca o vira?
- Tenho.
- Muito bem. E que fez?
- Que fiz?
- Sim.
- Bem... nada, absolutamente nada! Não fui capaz.
- Compreendo. Não lhe tocou?
- Sim, toquei. Para ver se... quero dizer, só para ver... Mas ele estava
frio e... e... fiquei com a mão suja de sangue... de sangue espesso e viscoso.
Começou a tremer e Hardcastle tranquilizou-a, em tom paternal:
- Então, então, acalme-se. Já acabou tudo, não pense no sangue.
Conte o que sucedeu a seguir.
- Não sei... Ah, sim, ela chegou.
- Refere-se a Miss Pebmarsh?
- Sim... mas eu não pensei que fosse Miss Pebmarsh.
Entrou com um saco de compras. - Sublinhou o "saco de compras",
como se fosse algo incongruente e relevante.
- E que lhe disse você?
- Não creio que lhe tenha dito alguma coisa...
Tentei, mas não pude. Senti-me abafada aqui... - levou a mão à
garganta.
O inspector acenou afirmativamente e Sheila Webb prosseguiu:
- E depois ela... ela perguntou: "Quem está aí?"
Começou a contornar o sofá, pela retaguarda, e eu pensei... pensei
que o ia pisar. Gritei... e o mal foi começar. Não consegui conter os gritos,
saí, não sei como, pela porta fora...
... Como se o Diabo a perseguisse - murmurou o inspector, ao
recordar-se das palavras de Colin.
Sheila Webb fitou-o, muito triste e assustada, e disse,
inesperadamente:
- Peço desculpa.
- Não tem de que pedir desculpa, pois contou a sua história muito
bem. Agora não precisa de pensar mais no assunto. Só uma coisa: por que
motivo se encontrava na sala?
- Porquê? - indagou, intrigada.
- Sim. Suponho que chegou alguns minutos mais cedo e tocou à
campainha. Mas se ninguém atendeu, porque entrou?
- Porque ela disse que entrasse.
- Quem?
- Miss Pebmarsh.
- Mas eu pensei que não tinha falado com ela...
- E não falei. Foi Miss Martindale que o disse...
Que entrasse e esperasse na sala da direita do vestíbulo.
- Ah! - exclamou Hardcastle, pensativo.
- Deseja mais alguma coisa? - perguntou Sheila Webb, timidamente.
- Creio que não. Mas gostaria que aguardasse mais uns dez minutos,
pois pode surgir alguma coisa acerca da qual a deseje interrogar. Depois
disso, mandarei um carro levá-la a casa. É verdade, e a sua família? Tem
família?
- Os meus pais morreram. Vivo com uma tia.
- Como se chama ela?
- Mistress Lawton.
O inspector levantou-se e estendeu a mão.
- Muito obrigado, Miss Webb. Tente repousar bem, esta noite.
Precisa disso, depois do que lhe aconteceu.
Ela sorriu-lhe, tímida, e voltou para a sala de jantar.
- Colin, olhe por Miss Webb - recomendou o inspector. - Miss
Pebmarsh, quer fazer o favor de vir cá?
Hardcastle começou a estender a mão para a guiar, mas ela passou
resolutamente por ele, estendeu as pontas dos dedos para uma cadeira que
estava encostada à parede, puxou-a um pouco para a frente e sentou-se.
Hardcastle fechou a porta, mas Millicent Pebmarsh não lhe deu
tempo para falar e perguntou:
- Quem é aquele jovem?
- Chama-se Colin Lamb.
- Isso já ele me disse. Mas quem é? Porque veio cá?
Hardcastle olhou-a, um pouco surpreendido.
- Ia a passar por acaso quando Miss Webb saiu a correr e a gritar
como uma desalmada. Depois de entrar e de verificar o que sucedera,
telefonou-nos e nós convidámo-lo a acompanhar-nos e a esperar.
- O senhor tratou-o por Colin.
- É muito observadora, Miss Pebmarsh...(Observadora? Parecia uma
palavra pouco adequada e, todavia, nenhuma outra se ajustava.) - Colin
Lamb é meu amigo embora eu já não o visse havia algum tempo. É biólogo
marítimo.
- Ah, compreendo!
- Miss Pebmarsh, ficar-lhe-ia grato se me pudesse dizer alguma coisa
acerca deste surpreendente acontecimento.
- Da melhor vontade... mas há muito pouco que dizer.
- Suponho que mora aqui há algum tempo?
- Desde mil novecentos e cinquenta. Sou... fui, professora. Quando
me informaram de que não podiam fazer nada pela minha visão deficiente
e de que não tardaria a cegar, empreguei todos os meus esforços para me
especializar em braille e em várias outras técnicas de auxílio aos cegos.
Sou empregada no Instituto Aaronberg de Crianças Cegas e Deficientes.
- Obrigado. Falemos dos assuntos desta tarde.
Esperava alguma visita?
- Não.
- Vou-lhe ler uma descrição do morto, para ver se lhe recorda alguém
em especial. Altura entre um metro e setenta e dois e um metro e setenta e
cinco, cerca de sessenta anos, cabelo escuro a começar a embranquecer,
olhos castanhos, cara rapada e magra e queixo firme. Aspecto de pessoa
bem alimentada, mas sem ser gordo, fato cinzento-escuro e mãos bem
tratadas.
Podia tratar-se de um empregado bancário, de um contabilista, de um
advogado ou de homem com qualquer profissão liberal. Esta descrição
lembra-lhe alguém conhecido?
Millicent Pebmarsh pensou um bocado, antes de responder:
- Não posso dizer que lembre... Trata-se, evidentemente, de uma
descrição muito generalizada e que se coadunaria com um grande número
de pessoas. Poder-se-á tratar de alguém que vi ou conheci em qualquer
ocasião, mas não se trata, com certeza, de alguém que conhecesse bem.
- Nos últimos tempos não recebeu nenhuma carta de qualquer pessoa
que se propusesse visitá-la?
- Não.
- Muito bem. A senhora telefonou ao Gabinete de Secretariado
Cavendish, solicitou os serviços de uma estenógrafa e...
- Desculpe - interrompeu-o a cega. - Não fiz semelhante coisa.
- Não telefonou ao Gabinete de Secretariado Cavendish a pedir?...
- Nem tenho telefone em casa.
- Há uma cabina ao fundo da rua - lembrou o inspector.
- Há, de facto. Mas afirmo-lhe, inspector Hardcastle, que não precisei
dos serviços de nenhuma estenógrafa e não, repito: não telefonei a esse tal
Gabinete, a fazer semelhante pedido.
- Não pediu, especificamente, que lhe mandassem Miss Sheila
Webb?
- Nunca ouvira, sequer, falar desse nome.
Hardcastle fitou-a, estupefacto.
- Deixou a porta da frente apenas no fecho...lembrou.
- Deixo-a assim com muita frequência, de dia.
- Qualquer pessoa poderia entrar...
- Parece que foi isso que sucedeu, neste caso - comentou secamente a
cega.
- Miss Pebmarsh, segundo a opinião do médico, o homem morreu
aproximadamente entre a uma e meia e as duas e quarenta e cinco da tarde.
Onde estava nessa altura?
Miss Pebmarsh pensou, de novo, antes de responder:
- Creio que saí de casa cerca da uma e meia. Precisava de fazer umas
compras.
- Sabe-me dizer exactamente aonde foi?
- Deixe ver... Fui aos Correios da Albany Road expedir uma
encomenda e comprar alguns selos; depois comprei umas coisas para a
casa, botões e alfinetes de segurança, na capelista Field & Wren. A
seguir regressei... Posso-lhe dizer exactamente que horas
eram: o meu relógio de cuco estava a dar as três horas quando
transpus a cancela. Consigo ouvi-lo da estrada.
- E quanto aos seus outros relógios?
- Como?
- Os seus outros relógios parecem estar todos adiantados cerca de
uma hora.
- Adiantados? Refere-se ao relógio de pé, do canto?
- Não apenas a esse. A todos os outros relógios da sala.
- Não compreendo o que quer dizer com "os outros relógios". Não
existem outros relógios na sala.
- Essa agora, Miss Pebmarsh! Que me diz do belo relógio de
porcelana de Dresda, que tem na prateleira da chaminé? E do bonito
relógio dourado francês? E do relógio de prata? E... sim, e do relógio
que tem o nome de "Rosemary" gravado a um canto?
- Um de nós deve estar doido, inspector. Garanto-lhe que não tenho
nenhum relógio de porcelana de Dresda, nenhum relógio com o nome... -
como disse? - ... com o nome de "Rosemary" gravado, nenhum relógio
dourado francês... e qual era o outro?
- Um relógio de prata.
- Nem nenhum relógio de prata. Se não acredita em mim, pode
perguntar à mulher que vem fazer a limpeza. Chama-se Mistress Curtin.
O detective-inspector Hardcastle estava perplexo.
Miss Pebmarsh falava em tom de grande segurança e firmeza,
convictamente. Meditou, alguns momentos, e depois levantou-se.
- Miss Pebmarsh, importa-se de me acompanhar à sala?
- Às suas ordens. Para lhe ser franca, eu própria gostaria de ver esses
relógios.
- Ver? - repetiu Hardcastle, surpreendido.
- Examinar seria um termo mais adequado - concordou Miss Pebmarsh
-, mas até as pessoas cegas usam modos convencionais de linguagem que
não se aplicam exactamente às suas capacidades. Quando disse que
gostaria de ver esses relógios, queria dizer que gostaria de os examinar e
sentir com os meus dedos.
Hardcastle saiu da cozinha, atravessou o pequeno vestíbulo e entrou
na sala, seguido por Miss Pebmarsh. O perito das impressões digitais
levantou a cabeça e anunciou:
- Estou quase a acabar, inspector. Pode mexer no que quiser.
Hardcastle acenou afirmativamente e pegou no pequeno relógio de
viagem, com a palavra "Rosemary"
gravada a um canto. Entregou-a a Miss Pebmarsh, que o apalpou
cuidadosamente.
- Parece um vulgar relógio de viagem, com estojo de cabedal que se
fecha. Não é meu, inspector, e tenho praticamente a certeza de que não se
encontrava nesta sala quando eu saí, à uma e meia.
- Obrigado.
O inspector aceitou o relógio de viagem e tirou o de porcelana da
prateleira da chaminé.
- Tenha cuidado com este - recomendou, ao entregá-lo à cega. - É
frágil.
Millicent Pebmarsh tacteou o relógio, com dedos delicados e
cuidadosos, e abanou a cabeça.
- Deve ser um relógio encantador, mas não é meu. Onde disse que
estava?
- Do lado direito da prateleira da chaminé.
- Aí devia estar um castiçal de porcelana.
- Está, de facto, mas foi puxado para a porta.
- Disse que havia ainda outro relógio, não disse?
- Há mais dois.
Hardcastle arrumou o relógio de porcelana de Dresda e entregou a
Miss Pebmarsh o pequeno relógio dourado francês. Ela examinou-o
depressa e devolveu-o.
- Também não é meu.
Foi a vez do de prata, que ela devolveu igualmente e afirmou não lhe
pertencer.
- Os únicos relógios que deviam estar nesta sala são um relógio de
pé, naquele canto junto da janela...
- Exactamente.
... e um relógio de cuco, na parede, próximo da porta.
Hardcastle não soube ao certo que dizer.
Observou perscrutadoramente a mulher que tinha à sua frente, tranquilo por
ela não saber que estava a ser observada.
Miss Pebmarsh tinha a testa um pouco franzida, numa expressão de
perplexidade.
- Não compreendo - afirmou, irritada. - Não consigo compreender.
Estendeu uma das mãos, com perfeito conhecimento do ponto da sala
onde se encontrava, e sentou-se. Hardcastle olhou para o homem das
impressões digitais, que se encontrava de pé, à porta.
- Examinou estes relógios?
- Examinei tudo, inspector. Não há quaisquer impressões no relógio
dourado, nem seria de esperar que as houvesse, pois a superfície não as
retém. Acontece o mesmo com o de porcelana. No entanto, o de viagem e o
de prata também as não têm, e isso já parece um pouco esquisito.
Normalmente, deviam ter impressões digitais. A propósito, nenhum deles
tem corda e estão todos parados à mesma hora: quatro horas e treze
minutos.
- E quanto ao resto da sala?
- Há três ou quatro jogos diferentes de impressões digitais, suponho
que todas de mulheres. O conteúdo das algibeiras da vítima está em cima
da mesa.
Indicou com a cabeça um montinho de coisas e Hardcastle
aproximou-se e observou. Encontrou uma
carteira com sete libras e dez xelins; algumas moedas;
um lenço de seda, de bolso, sem qualquer inicial; uma caixa de
pastilhas digestivas; e um cartão impresso, que o inspector se inclinou para
ler.
-
MR. R. H. CURRY.
Metropolis and Provincial Insurance Company, Ltd.
Denvers Street, 7 Londres, W. 2.
O inspector voltou ao sofá onde Miss Pebmarsh se sentara e
perguntou-lhe:
- Aguardava a visita de alguém de uma companhia de seguros?
- De uma companhia de seguros? Não, não aguardava.
- Da Metropolis and Provincial Insurance Company...
- Nunca ouvi falar dela - afirmou Miss Pebmarsh, a abanar a cabeça.
- Não tencionava fazer nenhum seguro?
- Não. Estou segura contra incêndio e roubo na Jove Insurance
Company, que tem aqui uma sucursal.
Não tenho nenhum seguro pessoal; como não tenho família nem
parentes chegados, não acho necessário fazer um seguro de vida.
- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa? Mister R. H. Curry*?
* Curry significa caril, em inglês. Daí a associação de ideias da
mulher.
(N. da T. ).
O inspector observava-a atentamente, mas não notou nenhuma
reacção.
- Curry... - repetiu, e abanou a cabeça. - É um nome pouco vulgar,
não é? Mas não, não me lembro de o ter ouvido nem de conhecer alguém
com esse nome.
Era assim que se chamava o homem que mataram?
- Parece que sim.
Miss Pebmarsh hesitou um momento, antes de perguntar:
- Deseja que eu... que eu toque...
O inspector compreendeu-a imediatamente.
- Importava-se, Miss Pebmarsh? Não é exigir-lhe demasiado?
Percebo pouco destes assuntos, mas suponho que os seus dedos lhe dirão
mais exactamente o aspecto de uma pessoa do que qualquer descrição.
- Sem dúvida. Confesso que a ideia não é muito agradável, mas estou
disposta a fazê-lo, se pensa que o poderá ajudar.
- Obrigado. Se me deixar conduzi-la...
Levou-a atrás do sofá, pediu-lhe que se ajoelhasse e depois,
suavemente, aproximou-lhe as mãos do morto. Ela parecia muito calma e
não denunciava qualquer emoção. Os seus dedos percorreram o cabelo, as
orelhas - demoraram-se um momento atrás da orelha esquerda -, a linha do
nariz, da boca e do queixo. Depois abanou a cabeça e levantou-se.
- Faço uma ideia clara do seu aspecto, mas tenho a certeza de que não
é ninguém que conheça ou haja visto.
O perito das impressões digitais, que arrumara a sua maleta e saíra da
sala, apareceu à porta e anunciou, a apontar o cadáver:
- Vêm buscá-lo. Podem levá-lo?
- Podem. Miss Pebmarsh, venha sentar-se aqui, sim?
Instalou-a numa cadeira, a um canto, enquanto dois homens entravam
e removiam, com rapidez e eficiência, o corpo do falecido Mr. Curry.
Hardcastle acompanhou-o à cancela e depois voltou à sala e sentou-se perto
de Miss Pebmarsh.
- Este caso é muito estranho, Miss Pebmarsh.
Preciso de passar em revista, consigo, os pontos principais, para ter a
certeza de que percebi tudo bem.
Corrija-me, se me enganar. A senhora não esperava nenhuma visita,
não fez consultas acerca de qualquer espécie de seguros e não recebeu
nenhuma carta a informá-la de que receberia, hoje, a visita de um
representante de uma companhia de seguros. Está certo?
- Está.
- Não precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa e não
telefonou ao Gabinete Cavendish nem pediu que lhe mandassem alguém às
três horas.
- Continua a estar certo.
- Quando saiu de casa, cerca da uma e meia, nesta sala só havia dois
relógios, o de cuco e o de pé.
Mais nenhum.
Miss Pebmarsh ia a responder imediatamente, mas hesitou um
momento.
- Para responder com toda a verdade, não posso jurar, a esse respeito.
Em virtude de me encontrar privada da visão, não notaria a ausência de
qualquer objecto, nem a presença de quaisquer outros que não
costumassem estar nesta sala. Só tenho a certeza do que estava nesta sala
quando limpei o pó, de manhã cedo. Nessa altura, estava tudo no seu lugar.
Geralmente sou eu que limpo esta sala, pois as mulheres-a-dias são
um bocado descuidadas com os ornamentos.
- De manhã saiu de casa?
- Saí. Como de costume, às dez horas fui ao Instituto Aaronberg,
onde dou aulas até ao meio-dia e um quarto. Regressei a casa cerca do
meio-dia e quarenta e cinco, preparei uns ovos mexidos e uma chávena
de chá, na cozinha, e voltei a sair, como já disse, cerca da uma e meia. A
propósito, almocei na cozinha e não vim a esta sala.
- Portanto, embora possa afirmar que às dez horas da manhã não
estavam relógios a mais nesta sala, admite que os podiam cá ter posto
durante a manhã.
- A esse respeito, talvez seja conveniente interrogar a minha mulher-a-dias, Mistress Curtin. Costuma vir por volta das dez horas e partir cerca
do meio-dia.
Mora na Dipper Street, dezassete.
- Obrigado, Miss Pebmarsh. Restam-nos, agora, os factos que vou
enumerar e acerca dos quais gostaria que me apresentasse algumas
sugestões ou ideias que porventura lhe ocorram. A certa altura do dia de
hoje, foram introduzidos nesta casa quatro relógios; todos esses relógios
estavam parados às quatro horas e treze minutos. Esta hora sugere-lhe
alguma coisa?
- Quatro horas e treze minutos... Não, nada.
- Passemos agora dos relógios para o morto. Parece improvável que a
sua mulher-a-dias o recebesse e deixasse cá ficar à espera, a não ser que a
senhora lhe dissesse que o esperava. Mas a esse respeito interrogá-la-emos
a ela. Ele veio presumivelmente para falar consigo acerca de qualquer
coisa, quer pessoal, quer de negócios. Entre a uma e meia e as duas e
quarenta e cinco foi apunhalado e morto. Se ele veio por ter sido chamado,
a senhora afirma nada saber acerca disso. É provável que ele estivesse
relacionado com seguros, mas a esse respeito, a senhora também não nos
pode ajudar. Como a porta estava apenas no fecho, ele podia ter entrado e
ficado à sua espera. Mas porquê?
- Parece-me tudo muito estúpido - declarou a cega, impacientemente.
- O senhor pensa, então, que esse... esse Curry trouxe os relógios?
- Não encontrámos nenhuma embalagem e ele dificilmente poderia
trazer quatro relógios nas algibeiras. Pense bem, Miss Pebmarsh. Não lhe
acode ao espírito nada que se possa relacionar com relógios ou, se não com
relógios, digamos, por exemplo, com tempo?
Quatro horas e treze minutos?.
Millicent Pebmarsh abanou "a cabeça.
- Tenho estado a dizer para comigo que se trata de obra de um louco
ou que alguém se enganou na casa, mas nem mesmo isso explica o que se
passou. Não, inspector, não o posso ajudar.
Um jovem polícia chegou à porta e Hardcastle foi ter com ele e
acompanhou-o até à cancela, onde se demoraram alguns minutos a
conversar.
- Agora pode levar a pequena a casa - disse-lhe, por fim. - Mora na
Palmerston Road, catorze.
Retrocedeu e entrou na casa de jantar. Pela porta aberta, viu Miss
Pebmarsh a fazer qualquer coisa, no lava-louça.
- Preciso de levar os relógios, Miss Pebmarsh.
Deixar-lhe-ei um recibo.
- Pode levá-los à vontade, inspector. Não me pertencem...
Hardcastle virou-se para Sheila Webb e informou-a:
- Pode ir para casa, Miss Webb. O carro da Polícia levá-la-á.
A jovem e Colin levantaram-se ao mesmo tempo.
- Acompanhe-a ao carro, sim, Colin? - pediu Hardcastle, ao mesmo
tempo que chegava uma cadeira para a mesa e se sentava a passar um
recibo.
Colin e Sheila saíram. No carreiro, Sheila parou, de súbito:
- As minhas luvas! Deixei-as...
- Vou buscá-las.
- Não... Sei exactamente onde as pus. Não me importo de lá voltar,
agora... agora que o levaram.
Retrocedeu a correr e voltou um ou dois minutos depois.
- Peço desculpa de ter sido tão pateta... antes.
- Qualquer pessoa procederia do mesmo modo.
Hardcastle alcançou-os, quando Sheila entrava no automóvel, deixou
o carro arrancar e disse ao jovem polícia:
- Quero os relógios da sala acondicionados com cuidado. Todos
menos o relógio de cuco, da parede, e o relógio de pé.
Deu mais algumas instruções e depois voltou-se para o amigo:
- Vou a uns lados. Quer vir?
- Porque não? - respondeu Colin.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
- Aonde vamos? - perguntei a Dick Hardcastle.
- Gabinete de Secretariado Cavendish - respondeu, mas a dirigir-se
ao motorista. - Fica na Palace Street, perto do Esplanade, à direita.
- Sim, inspector.
O carro arrancou. Entretanto, juntara-se uma pequena multidão de
mirones, cheia de curiosidade.
O gato amarelo continuava empoleirado no pilar da cancela da Diana
Lodge, ao lado do número 19. Agora já não lavava o focinho. Estava
sentado muito direito, a abanar um pouco a cauda e a olhar por cima da
cabeça dos curiosos, com o absoluto desdém pela espécie humana que é
prerrogativa especial de gatos e camelos.
- Primeiro o Gabinete de Secretariado e depois a mulher-a-dias -
acrescentou Hardcastle, a olhar para o relógio. - O tempo urge; já passa das
quatro. Fez uma pausa prolongada, antes de perguntar: Uma pequena muito
atraente, não acha?
- Muito - concordei.
- Mas contou uma história extraordinária e, por isso, quanto mais
cedo a confirmarmos, melhor.
- Não pensa que ela...
- Interessam-me sempre as pessoas que encontram cadáveres -
interrompeu-me o inspector.
- Mas a pequena estava meio louca de medo! Se a ouvisse gritar...
Lançou-me um dos seus olhares irónicos e repetiu que ela era muito
atraente.
- A propósito, Colin, que andava você a fazer em Wilbraham
Crescent? A admirar a nobre arquitectura vitoriana? Ou tinha algum
objectivo?
- Tinha um objectivo. Procurava o número sessenta e um e não o
conseguia encontrar. Possivelmente não existe...
- Existe, sim. Suponho que a numeração vai até oitenta e oito.
- Mas quando cheguei ao vinte e oito, Wilbraham Crescent acabou-se!
- É um pormenor que intriga sempre as pessoas que não são daqui. Se
tivesse virado à direita, pela Albany Road, e depois novamente à direita,
encontrar-se-ia na outra metade de Wilbraham Crescent. As casas foram
construídas aos pares, mas traseiras com traseiras, com os jardins de
permeio.
- Ah, compreendo! Como aqueles largos e jardins de Londres, não é?
Onslow Square... ou Cadogan.
Começamos a descer um lado de um largo e ele transforma-se, de
súbito, numa praça ou num jardim. Às vezes até os motoristas de táxis
ficam às aranhas. Mas o que interessa é que o número sessenta e um existe.
Faz alguma ideia de quem lá mora?
- No sessenta e um? Deixe ver... Sim, deve ser Bland, o construtor
civil.
- Ora bolas! - resmunguei. - É pena. - Não lhe interessa um
construtor?
- Não, não me interessa um construtor para nada. A não ser... Talvez
se tenha instalado cá recentemente?
- Creio que o Bland nasceu aqui. É, pelo menos, homem destes sítios,
estabelecido há anos.
- Decepcionante.
- É um péssimo construtor, por sinal, utiliza materiais muito fracos.
Constrói aquele tipo de casas que parecem mais ou menos bem até lá
vivermos. Depois começa tudo a cair ou a funcionar mal. É esperto,
mas arrisca-se e algum dia quina.
- Não vale a pena tentar-me, Dick. O homem que procuro deve,
quase com certeza, ser a rectidão personificada.
- Bland herdou uma quantidade de dinheiro há cerca de um ano... ou
melhor, quem herdou foi a mulher. Ela é canadiana, veio para cá durante a
guerra e conheceu Bland. A família não queria que ela casasse com ele e
pô-la mais ou menos à margem, depois do casamento. O ano passado,
porém, faleceu um tio-avô cujo filho morrera num desastre de aviação.
Devido às baixas provocadas pela guerra e a outras circunstâncias,
verificou-se que Mistress Bland era a única pessoa que restava da família e
por isso o dinheiro foi para ela. Creio que Bland escapou da falência por
um triz.
- Parece muito bem informado acerca de Mister Bland.
- Bem, o serviço de impostos está sempre interessado quando um
homem enriquece da noite para o dia. Desconfia se não terá havido
tramóia nas declarações, se o tipo não terá posto uns dinheiros de parte, e
manda investigar. Desta vez investigou-se e estava tudo em ordem.
- Aliás, não estou interessado num homem que enriqueceu de súbito.
Não é isso que procuro.
- Não? Mas já lhe tem aparecido, não tem?
Acenei afirmativamente.
- Esta história é complicada - expliquei, evasivo. - Jantamos juntos,
como estava combinado, ou temos de mudar de planos, em virtude do que
sucedeu?
- Não, o combinado mantém-se. Neste momento, a primeira coisa a
fazer é pôr a engrenagem em funcionamento. Precisamos de descobrir tudo
quanto seja possível acerca de Mister Curry. É muito provável que, quando
soubermos quem era e o que fazia, tenhamos uma ideia mais ou menos
aproximada de quem o desejava afastar do caminho. - Olhou pela janela e
informou: - Chegámos.
O Gabinete de Secretariado e Dactilografia estava situado na
principal rua comercial, pomposamente denominada Palace Street. Tratava-se,
como muitos outros estabelecimentos daquela artéria, de uma casa
vitoriana, adaptada às necessidades actuais. À direita,
uma casa semelhante ostentava uma tabuleta a anunciar: "Edwin
Glen, fotógrafo artístico. Especializado em fotografias de crianças, de
casamentos, etc." Como a provar a afirmação, a montra estava cheia de
ampliações de fotografias de crianças de todos os tamanhos e idades, de
bebés e adolescentes de 16 anos. A intenção era, provavelmente, tentar as
mamãs enlevadas. Viam-se também algumas fotografias de noivos: jovens
tímidos e moças sorridentes. Do outro lado do Gabinete Cavendish ficavam
os escritórios de uma antiga e antiquada firma de comerciantes de carvão.
A seguir, as casas antigas tinham sido deitadas abaixo e dado lugar a um
cintilante edifício de três andares, em cuja tabuleta se lia o título imponente
de "Café-Restaurante Oriente".
Hardcastle e eu subimos os quatro degraus, transpusemos a porta da
rua e, obedientes ao letreiro de uma porta da direita, que dizia "Faça Favor
de Entrar", entrámos. Encontrámo-nos num aposento de boas dimensões,
onde três jovens estavam sentadas a escrever à máquina. Duas delas
continuaram a martelar as teclas, sem ligar importância nenhuma à nossa
chegada, e a terceira, instalada numa mesa que tinha um telefone e ficava
defronte da porta, levantou a cabeça e olhou-nos, de modo interrogador.
Parecia estar a chupar uma guloseima qualquer, que empurrou para um dos
lados da boca.
- Em que lhes posso ser útil? - perguntou, em tom levemente
adenoidal.
- Miss Martindale? - inquiriu Hardcastle.
- Creio que, neste momento, está a telefonar...
Ao mesmo tempo ouviu-se um clique e a jovem levantou o
auscultador do telefone, mexeu numa cavilha e anunciou:
- Estão aqui dois cavalheiros que desejam falar consigo, Miss
Martindale... - Olhou para nós e perguntou: - Como se chamam, por favor?
- Hardcastle.
- Mister Hardcastle, Miss Martindale. - Repôs o auscultador no
descanso e levantou-se. - Por aqui, se fazem favor. - Conduziu-nos a uma
porta que tinha o nome de "Miss Martindale" numa chapa de metal, abriu-a,
chegou-se para um lado para passarmos e fechou-a.
Miss Martindale estava sentada a uma grande secretária. Era uma
mulher de aspecto eficiente, cerca de cinquenta anos, cabelo ruivo-claro e
olhar vivo.
Olhou de um para o outro e perguntou:
- Mister Hardcastle?
Dick tirou um dos seus cartões oficiais e estendeu-lho, enquanto eu
tentava passar despercebido e me sentava numa cadeira de espaldar direito,
junto da porta.
As sobrancelhas arruivadas de Miss Martindale arquearam-se, numa
expressão de surpresa e certo desagrado.
- Detective-inspector Hardcastle? Em que lhe posso ser útil?
- Vim pedir-lhe uma pequena informação, Miss Martindale, e creio
que ma poderá dar.
Pelo tom da sua voz, deduzi que Dick ia usar de rodeios e recorrer ao
seu encanto. Pessoalmente, duvidei que Miss Martindale fosse vulnerável
ao encanto.
Pertencia àquele tipo que os Franceses qualificam sagazmente de
'femme formidable'.
Entretanto, fui observando o ambiente. Nas paredes, por cima da
secretária de Miss Martindale, estavam diversas fotografias autografadas.
Reconheci numa delas Mrs. Ariadne Oliver, uma escritora policial que
conhecia superficialmente e que escrevera a um canto da fotografia, em
letras firmes e grandes: Com consideração, Ariadne Oliver. Noutra, de um
escritor de suspense morto havia cerca de dezasseis anos, lia-se: Com
gratidão, Garry Gregson. Miriam Hogg, especialista em romances
amorosos, autografara a sua fotografia com um Sempre sua, Miriam, e o
género literário que explorava o sexo também lá tinha o seu representante,
um homenzinho careca e tímido, que escrevera, em letras miudinhas: Com
a gratidão de Armand Levine. Havia certas constantes naqueles troféus: os
homens, na sua maioria, seguravam cachimbos... e vestiam casacos de
tweed, e as mulheres tinham um ar muito sério e uma tendência para
parecerem afogadas em peles.
Enquanto eu me servia dos olhos, Hardcastle interrogava:
- Creio que tem ao seu serviço uma jovem chamada Sheila Webb?
- Tenho. Mas, neste momento, ela não está. Pelo menos...
Premiu um botão e falou com o escritório contíguo:
- Edna, a Sheila já voltou?
- Ainda não, Miss Martindale.
- Foi fazer um trabalho, ao princípio da tarde - explicou a directora. -
Calculei que já tivesse acabado... mas é provável que tenha seguido para o
Curlew Hotel, onde tinha outro trabalho marcado para as cinco horas.
- Compreendo. Sabe-me dizer alguma coisa acerca de Miss Sheila
Webb?
- Receio não lhe saber dizer muito... Ela está cá... deixe ver... sim,
creio que é nossa empregada há cerca de um ano. O seu trabalho tem sido
satisfatório.
- Sabe onde trabalhava antes de vir para cá?
- Acho que poderei procurar, se tem interesse especial nessa
informação, inspector Hardcastle. As referências dela estão arquivadas.
Que me lembre, assim de repente, esteve empregada em Londres e os
patrões deram muito boas informações a seu respeito. Creio, embora não
tenha a certeza, que se tratava de uma firma de agentes de propriedades.
- E a senhora diz que ela é boa empregada?
- É competente - respondeu Miss Martindale, que não devia ser
pessoa para grandes elogios.
- Mas não de primeira categoria?
- Não, isso não. Estenografa a uma velocidade regular e é
razoavelmente instruída. Como dactilógrafa, é cuidadosa e certa.
- Conhece-a pessoalmente, além de como empregada?
- Não. Suponho que vive com uma tia. - Miss Martindale hesitou um
momento. - Posso saber porque me faz todas estas perguntas, inspector
Hardcastle? A pequena meteu-se nalgúm sarilho?
- Suponho que não, Miss Martindale. Conhece uma tal Miss
Millicent Pebmarsh?
- Pebmarsh... - repetiu a directora, com as sobrancelhas arruivadas
franzidas. - Onde... Ah, já me lembro! Foi Miss Pebmarsh que chamou
Sheila, esta tarde. O encontro era para as três horas.
- Como foi marcada a entrevista?
- Pelo telefone. Miss Pebmarsh telefonou e disse que precisava dos
serviços de uma estenodactilógrafa e se lhe podia mandar Miss Webb.
- Ela pediu, especificamente, Sheila Weeb?
- Pediu.
- A que horas foi feito o telefonema?
Miss Martindale pensou um momento, antes de responder:
- O telefonema foi feito directamente para mim...
o que significa que foi na hora do almoço. Suponho que faltariam uns
dez minutos para as duas. Antes das duas foi, com certeza. Espere, lembro-me
de que tomei nota na minha agenda... Cá está: uma hora e quarenta e
nove minutos, precisamente.
- Foi a própria Miss Pebmarsh que lhe falou?
Miss Martindale pareceu um pouco surpreendida.
- Presumo que sim.
- Não lhe reconheceu a voz? Não a conhece pessoalmente?
- Não, não a conheço. Disse que era Miss Millicent Pebmarsh e
indicou-me o seu nome e a sua morada,
em Wilbraham Crescent. Depois, como já disse, pediu que lhe
mandasse Sheila Webb às três horas, se estivesse livre.
Pensei que Miss Martindale daria uma excelente testemunha, pois as
suas declarações eram claras e firmes.
- E se fizesse o favor de me dizer acerca de que vem tudo isto? -
perguntou, com certa impaciência.
- Sabe, Miss Martindale, Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante
telefonema.
- Deveras? Mas é extraordinário!
- Pelo seu lado, a senhora declara que o telefonema foi feito, mas não
pode afirmar que tenha sido Miss Pebmarsh quem telefonou.
- Claro que não posso afirmar, pois não conheço a criatura. No
entanto, não compreendo porque faria alguém tal coisa... Tratou-se de
alguma partida?
- Foi muito mais do que isso. Miss Pebmarsh, ou quem quer que
telefonou em nome dela, explicou por que motivo desejava
especificamente Miss Sheila Webb?
- Creio que disse que Sheila Webb já trabalhara para ela, antes.
- E isso é verdade?
- Sheila declarou-me não se lembrar de ter feito qualquer trabalho
para Miss Pebmarsh... mas isso não quer dizer nada. As pequenas saem
tantas vezes, trabalham para tanta gente e em sítios tão diferentes, que é
natural não se lembrarem, passados alguns meses.
Aliás, Sheila não foi muito peremptória a esse respeito. Disse apenas
não se lembrar de lá ter ido. Mas, inspector, mesmo que se tenha tratado de
uma partida, não compreendo o seu interesse...
- Já lhe explico. Quando Miss Webb chegou a Wilbraham Crescent,
dezanove, entrou na habitação e dirigiu-se para a sala. Disse-me que
tinham sido essas as instruções que recebera. É verdade?
- É, sim. Miss Pebmarsh disse que talvez chegasse
um bocadinho atrasada e que, nesse caso, Sheila podia entrar e
esperar.
- Quando Miss Webb entrou na sala, encontrou um homem morto,
caído no chão.
Miss Martindale fitou o inspector e, por momentos, pareceu incapaz
de falar.
- Disse um homem morto, inspector?
- Um homem assassinado. Apunhalado.
- Oh, meu Deus, a pequena deve ter sofrido um grande abalo!
- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa, Miss Martindale? Mister R.H. Curry?
- Não, suponho que não.
- Mister Curry, da Metropolis and Provincial Insurance Company?
A directora continuou a abanar a cabeça.
- Compreende o meu dilema, Miss Martindale: a senhora diz que
Miss Pebmarsh lhe telefonou e pediu que mandasse Sheila Webb a sua
casa, às três horas;
Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante telefonema. Sheila Webb
obedeceu às instruções que lhe deram e quando chegou encontrou um
homem morto.
O inspector aguardou, mas Miss Martindale olhou-o
inexpressivamente.
- Tudo isso me parece estranho e inacreditável - limitou-se a declarar,
desaprovadora.
Dick Hardcastle suspirou e levantou-se.
- Tem uma bela casa - elogiou, delicadamente.Já está estabelecida há
algum tempo, não está?
- Há quinze anos. Temos tido sorte. Começamos modestamente, mas
fomo-nos expandindo e agora quase não chegamos para as encomendas.
Tenho oito empregadas e elas nunca param.
- Vejo que se dedicam muito a trabalho literário - bservou Hardcastle,
a olhar para as fotografias da parede.
- Sim, ao princípio especializei-me em trabalhar para escritores. Fui
secretária do famoso ficcionista
Garry Gregson, durante muitos anos... e, por sinal, foi graças a um
legado dele que fundei o Gabinete. Conhecia muitos escritores e eles
recomendaram-me. Os conhecimentos especializados que adquirira junto
de Mister Gregson foram-me muito úteis e agora estou apta a prestar um
serviço importante, no capítulo de datas, citações, pormenores jurídicos,
procedimento policial, certas propriedades de venenos, coisas assim...
Nomes estrangeiros, moradas e nomes de restaurantes, quando os autores
situam os seus romances em países estrangeiros... Noutros tempos, o
público não ligava muita importância à exactidão, mas hoje em dia os
leitores não deixam escapar nenhuma oportunidade de escrever aos autores
sempre que encontram qualquer falha.
- Estou certo de que tem motivos para se sentir contente - declarou
Hardcastle, muito delicado.
Encaminhou-se para a porta e eu abri-lha.
No escritório, as três raparigas preparavam-se para sair e já tinham
tapado as máquinas de escrever. Edna, a recepcionista, estava de pé, com
um ar muito triste, a segurar numa das mãos um sapato e na outra um salto
alto e fino.
- Só os comprei há um mês - lamentava-se.E foram caros! A culpa foi
daquele maldito ralo da esquina, junto da pastelaria. O salto prendeu-se lá
e soltou-se. não pude continuar a andar, tive de descalçar os dois sapatos e
voltar para o escritório, com dois bolos para me servirem de almoço.
Palavra que não sei como hei-de chegar à paragem do autocarro e de seguir
para casa!
Nesse momento Edna deu pela nossa presença e apressou-se a
esconder o sapato, ao mesmo tempo que lançava a Miss Martindale um
olhar apreensivo. A directora, que calçava sapatos práticos, de meio-salto,
não devia apreciar saltos daqueles.
- Obrigado, Miss Martindale - agradeceu Hardcastle. - Lamento ter-lhe
roubado tanto tempo. Se se lembrar de alguma coisa...
- Com certeza - cortou a mulher, com certa brusquidão.
Quando entrámos no automóvel, observei:
- Afinal, apesar das suas suspeitas, a história de Sheila Webb é
verdadeira.
- Está bem, está bem, ganhou!
***
- Mãe! - gritou Ernie Curtin e desistiu momentaneamente de
movimentar um pequeno brinquedo metálico pelo vidro da janela acima e
abaixo, ao mesmo tempo que emitia um "zumeee" que pretendia reproduzir
o silvo de uma astronave a caminho de Vénus... - Que lhe parece, mãe?
Mrs. Curtin, uma mulher de rosto severo que estava ocupada a lavar a
louça, não respondeu.
- Mãe, parou um carro da Polícia defronte da nossa casa!
- Não digas mais mentiras, Ernie! - advertiu Mrs. Curtin, enquanto
punha as chávenas e pires a escorrer. - Não te esqueças do que te disse a
esse respeito.
- Não esqueço! - garantiu Ernie, virtuosamente. - É mesmo um carro
da Polícia e estão a sair dois homens.
Mrs. Curtin virou-se, ameaçadora, para o rebento.
- Que fizeste tu agora? Alguma vergonha, não?
- Claro que não! Não fiz nada.
- Tudo por andares com aquele Alf e o seu bando. Bandos,
imaginem! Tanto eu como o teu pai já te dissemos que um bando não é
uma coisa respeitável.
Dá sempre sarilho! Primeiro é o tribunal de menores e, mais cedo ou
mais tarde, a casa da correcção. Não consentirei semelhante coisa, ouviste?
- Dirigem-se para a porta da rua - anunciou Ernie.
Mrs. Curtin afastou-se do lava-louça e juntou-se ao filho, à janela.
Nesse momento bateram à porta e Mrs. Curtin limpou as mãos a uma
rodilha e apressou-se a ir abrir, ao corredor. Olhou, entre desconfiada e
provocadora, para os dois homens parados no limiar.
- Mrs. Curtin? - perguntou delicadamente o mais alto.
- Exactamente.
- Dá-me licença que entre um momento? Sou o detective-inspector
Hardcastle.
Mrs. Curtin recuou, contrariada, abriu a porta e fez sinal ao inspector
para entrar. Era uma saleta muito arrumada e limpa, que dava a impressão
de ser pouco usada, o que era verdade.
Curioso, Ernie aproximou-se, vindo da cozinha, e esgueirou-se para
dentro da sala.
- Seu filho? - perguntou o inspector.
- Sim - respondeu a mulher, e acrescentou, agressiva: - É bom rapaz,
diga o senhor o que disser!
- Estou certo de que é - concordou Hardcastle, delicadamente, e o
rosto de Mrs. Curtin tornou-se menos desafiador. - Desejo fazer-lhe
algumas perguntas acerca de Wilbraham Crescent, dezanove. Sei que
trabalha lá...
- Nunca disse que não trabalhava - replicou a mulher, incapaz, apesar
de tudo, de vencer a agressividade inicial.
- Trabalha para Miss Millicent Pebmarsh...
- Sim, trabalho para Miss Pebmarsh. Uma senhora muito simpática. -
Cega...
- Sim, coitadinha. Mas nem parece! É extraordinária a maneira como
estende a mão para as coisas e anda por todo o lado! Sai de casa, atravessa
ruas...
Não se atrapalha, como certas pessoas que conheço.
- A senhora trabalha lá de manhã?
- Trabalho. Entro entre as nove e meia e as dez horas e saio ao meio-dia
ou quando acabo o serviço.De súbito perguntou, vivamente: - Não veio
dizer que roubaram alguma coisa, pois não?
- Pelo contrário - respondeu o inspector, a pensar nos quatro relógios.
Mrs. Curtin olhou-o sem compreender e indagou:
- Que se passa?
- Esta tarde, foi encontrado um homem morto na sala da casa de
Wilbraham Crescent, dezanove.
Mrs. Curtin arregalou os olhos. Ernie encolheu-se todo, num êxtase,
abriu a boca para exclamar "Oh!", achou melhor não chamar a atenção para
a sua pessoa e fechou outra vez a boca.
- Morto? - perguntou a mulher, incrédula, e acrescentou, com maior
incredulidade ainda: - Na sala?
- Sim. Fora apunhalado.
- Quer dizer que foi... assassínio?
- Sim, foi assassínio.
- Quem o assassinou?
- Lamento, mas ainda não sabemos. Pensamos que talvez a senhora
nos pudesse ajudar.
- Não sei nada de assassínios! - afirmou Mrs. Curtin, categórica.
- Evidentemente. Mas surgiram alguns pormenores que talvez nos
possa esclarecer. Por exemplo, esta manhã foi lá algum homem?
- Que me lembre, não. Hoje não foi. Que espécie de homem era ele?
- Idoso, talvez dos seus sessenta anos, respeitavelmente vestido de
escuro... É provável que se apresentasse como agente de seguros.
- Não o deixaria entrar. Não deixaria entrar agentes de seguros nem
vendedores de aspiradores ou de edições da Enciclopédia Britânica. Nada
desse género. Miss Pebmarsh não compra nada à porta e eu também não.
-
O nome do indivíduo, segundo um cartão que trazia com ele, era Mister
Curry. Alguma vez ouviu esse nome?
- Curry?... - Mrs. Curtin abanou a cabeça.Soa-me a indiano... -
acrescentou, desconfiada.
- Oh, não, não era indiano!
- Quem o encontrou? Miss Pebmarsh?
- Uma jovem estenodactilógrafa. Foi lá a casa devido a um malentendido,
convencida de que Miss Pebmarsh a chamara, para lhe fazer
um trabalho.
Miss Pebmarsh regressou quase ao mesmo tempo.
Mrs. Curtin soltou um suspiro fundo e exclamou:
- Que complicação! Que complicação!
- É possível que tenhamos de lhe pedir que veja o cadáver, a fim de
nos dizer se alguma vez o viu em Wilbraham Crescent ou se ele lá foi a
casa. Miss Pebmarsh tem a certeza de que nunca foi... Agora desejava que
me esclarecesse alguns pormenores. Lembra-se, assim de repente, quantos
relógios há na sala?
Mrs. Curtin nem precisou de pensar:
- Há o relógio grande, ao canto, e o relógio de cuco, na parede. Sai
um passarinho por uma portinhola e diz cu, cu! cu, cu! As vezes prega-me
cada susto! - Apressou-se a acrescentar: - Não toquei em nenhum, nunca
lhes mexo. Miss Pebmarsh gosta de ser ela a dar-lhes corda.
- Não aconteceu nada aos relógios - tranquilizou-a o inspector. - Tem
a certeza de que esses dois eram os únicos relógios que estavam na sala,
esta manhã?
- Pois tenho! Não podiam lá estar outros.
- Não estavam lá, por exemplo, um pequeno relógio quadrado, de
prata, ou um relógio dourado? Um relógio de porcelana, com flores, ou um
relógio com um estojo de cabedal e o nome de "Rosemary" gravado a um
canto?
- Claro que não!
- Teria reparado neles se lá estivessem?
- Com certeza que teria.
- Qualquer destes quatro relógios marcava uma hora e tal a mais do
que o relógio grande e o de cuco.
- Deviam ser estrangeiros. Eu e o meu marido fomos, uma vez, numa
excursão, à Suíça e à Itália e lá era uma hora mais tarde. Deve ser qualquer
coisa relacionada com o Mercado Comum. Eu não quero nada com o
Mercado Comum e o meu homem também não;
a Inglaterra serve-me muito bem.
O inspector Hardcastle não se deixou arrastar para o campo político e
perguntou:
- Sabe-me dizer que horas eram, ao certo, quando saiu de casa de
Miss Pebmarsh, esta manhã?
- Mais ou menos meio-dia e um quarto.
- Miss Pebmarsh estava em casa?
- Não, ainda não regressara. Geralmente regressa entre o meio-dia e o
meio-dia e meia hora, mas varia.
- A que horas saíra ela?
- Antes de eu chegar. Entro às dez.
- Obrigado, Mistress Curtin.
- Isso dos relógios parece estranho. Talvez Miss Pebmarsh tenha ido
a alguns saldos... Não eram antigos? Pelo menos é o que me parecem, pelo
modo como os descreveu.
- Miss Pebmarsh costuma ir a saldos?
- Há uns quatro meses comprou uma carpete em muito bom estado,
num saldo. Muito barata, segundo me disse. Também comprou uns
cortinados de veludo. Foi preciso cortá-los um bocadinho, mas pareciam
novos.
- Mas ela não costuma comprar bricabraque, coisas assim como
quadros, porcelanas?...
- Que eu saiba, não. Mas nos saldos nunca se sabe, não é? Quero
dizer, deixamo-nos arrastar pela tentação. Quando chegamos a casa,
perguntamo-nos:
"Mas, afinal, para que quero isto?" Uma vez, comprei
seis boiões de compota, que eu própria podia ter feito mais barata.
Outra, foram chávenas e pires, que compraria mais baratos no mercado das
quartas-feiras...
Abanou a cabeça, tristemente, e o inspector compreendeu que, de
momento, não conseguiria saber mais nada e despediu-se. Ernie soltou,
então, a frase que se esforçara por conter:
- Assassínio! Ena!
Momentaneamente, a conquista do espaço exterior deu lugar, no seu
espírito, a um assunto actual e emocionante.
- Miss Pebmarsh não o podia ter morto, pois não? - sugeriu, ansioso.
- Não digas tolices! - ralhou a mãe, e murmurou, ao acudir-lhe um
pensamento: - Pergunto a mim mesma se lhe deveria ter dito...
- Se lhe deveria ter dito o quê, mãe?
- Não tens nada com isso. Não foi nada de importância, de resto...
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Depois de nos deliciarmos com dois bons bifes mal passados,
regados com cerveja de barril, Dick Hardcastle soltou um suspiro de
agradável saciedade, afirmou que se sentia melhor e exclamou:
- Ao diabo com os agentes de seguros assassinados, com os relógios
de fantasia e com as raparigas a gritar! Fale-me de si, Colin. Julgava que já
não tinha nada a fazer por estas bandas e ei-lo a vaguear pelas ruas
secundárias de Crowdean! Garanto-lhe que em Crowdean não há futuro
para um biólogo marítimo.
- Não troce da biologia marítima, Dick, pois trata-se
de uma matéria muito útil. A sua simples menção enfada tanto as
pessoas, elas têm tanto medo de que falemos do assunto, que nunca temos
oportunidade de explicar de que se trata.
- Assim, não corre o risco de se denunciar, hem?
- Esquece-se de que sou biólogo marítimo - observei, friamente. -
Formei-me em Cantabrígia. A classificação não foi muito elevada, mas
formei-me. É um trabalho muito interessante e, um dia, voltarei a dedicar-me
a ele.
- Claro que sei em que tem andado a trabalhar, e felicito-o. O
julgamento do Larkin é no próximo mês, não é?
- É.
- É espantoso como ele conseguiu passar informações durante tanto
tempo! Seria de supor que alguém desconfiasse...
- Mas ninguém desconfiou. Quando se mete na cabeça de uma pessoa
que determinado indivíduo é um tipo excelente, não lhe passa pelo espírito
que ele possa não o ser.
- Deve ter procedido com muita inteligência.
- Francamente, não creio. Estou convencido de que ele procedeu
como lhe mandaram proceder. Tinha acesso a documentos muito
importantes, saía com eles, fotografavam-nos, devolviam-lhos e ele
repunha-os no seu lugar, no mesmo dia. Boa organização, apenas. Ele tinha
o hábito de almoçar em lugares diferentes, todos os dias, e nós cremos que
pendurava o sobretudo onde havia sempre outro exactamente igual ao seu,
embora o homem que o usava não fosse todos os dias o mesmo. Os
sobretudos eram trocados, mas o homem que os trocava nunca falava com
Larkin nem este com ele.
Gostaríamos de saber muito mais coisas acerca da mecânica do
caso... Era tudo muito bem planeado, com uma sincronização perfeita, por
alguém que tinha miolos.
- É por isso que continua nas imediações da Estação Naval de
Portlebury?
- É. Conhecemos o papel da Estação e o papel de Londres, sabemos
quando e onde Larkin recebia, e como. Mas há uma lacuna, entre uma coisa
e outra existe uma obra-prima de organização. Era acerca dessa parte que
gostaríamos de saber mais alguma coisa, pois é aí que estão os miolos.
Algures, existe um bom quartel-general onde se fazem planos excelentes
que deixam uma pista que se torna confusa não uma vez, mas
provavelmente sete ou oito vezes.
- Porque procedia o Larkin desse modo? - perguntou Hardcastle,
curioso. - Por idealismo político? Para lisonjear o seu ego? Ou por simples
dinheiro?
- Ele não tem nada de idealista. Creio que lhe interessava apenas o
dinheiro.
- Não o podiam ter descoberto mais cedo, por esse motivo? Quero
dizer, ele gastava o dinheiro, não gastava? Não o juntava.
- Oh, não, ele desbaratava-o! Na realidade, desconfiámos dele mais
cedo do que dizemos.
Hardcastle acenou com a cabeça, compreensivo.
- Estou a perceber. Descobriram o jogo e depois serviram-se dele
durante uns tempos. Foi isso?
- Mais ou menos. O tipo transmitira valiosas informações, antes de
descobrirmos o que se passava, e por isso deixámo-lo transmitir mais
algumas, aparentemente valiosas, também. No Serviço a que pertenço
temos de nos resignar e de parecer idiotas, de vez em quando.
- Não creio que gostasse do seu trabalho, Colin observou Hardcastle,
pensativo.
- Não é tão emocionante como as pessoas julgam. Na realidade, a
maioria das vezes é muitíssimo enfadonho. Mas há mais alguma coisa, para
além disso. Hoje em dia, temos a sensação de que nada é realmente secreto.
Nós sabemos os segredos deles e eles sabem os nossos... os nossos agentes
são muitas vezes agentes deles, também, e os agentes deles nossos
agentes... No fim, descobrir quem anda a atraiçoar quem transforma-se
quase num pesadelo. Às vezes, penso que todos sabem os segredos
uns dos outros e participam numa espécie de conspiração para fingir que
não sabem.
- Compreendo o que quer dizer... - Dick fitou-me, cheio de
curiosidade, e acrescentou: - Percebo por que motivo ainda permanece nas
imediações de Portlebury, mas Crowdean fica a mais de
dezasseis quilómetros de distância!
- O que na realidade procuro são crescentes. - Crescentes? - repetiu o
inspector, intrigado.
- Sim. Ou, então, luas. Luas novas, quartos crescentes, etc. Comecei a
investigar em Portlebury, onde há um bar chamado Quarto Crescente, e
perdi muito tempo. Parecia ideal... Seguiram-se A Lua e as Estrelas, A Lua
Nascente, O Alegre Crescente, A Cruz e o Crescente, este numa terreola
chamada Seamede. Nada feito. Desisti das luas e concentrei-me nos
crescentes propriamente ditos. Há vários em Portlebury: Crescente de
Lansbury, Crescente de Aldridge, Crescente de Livermead, Crescente de
Vitória...
Reparei na cara espantada de Dick e desatei a rir.
- Não faça essa cara de espanto, homem! Eu tinha algo tangível em
que me basear.
Puxei da carteira, tirei uma folha de papel e estendi-lha. Tratava-se
de uma simples folha de papel de carta de um hotel, na qual alguém fizera
um desenho tosco. Hotel Pmrington Erners Strero Londres 61M.
- Um tipo chamado Hanbury tinha isso na carteira. Hanbury
trabalhou muito no Caso Larkin e era bom... muito bom. Foi atropelado em
Londres, por um automóvel que não parou. Ninguém viu o número. Não
sei o que isso significa, mas é qualquer coisa que Hanbury desenhou ou
copiou, por julgar que era importante. Alguma ideia que teve? Algo que
vira ou ouvira? Fosse o que fosse, estava relacionado com a Lua ou o
crescente, o número sessenta e um e a inicial M. Substituí-o, depois da sua
morte. Ainda não sei o que procuro, mas tenho a certeza de que existe
alguma coisa para encontrar. Não sei o que significa o sessenta e um nem o
M. Tenho estado a trabalhar numa área que tem Portlebury como centro,
parti daí para o exterior. Três semanas de trabalho intensivo e inútil.
Crowdean fica no meu caminho e é por isso que estou cá. Para ser franco,
nunca tive muitas esperanças em Crowdean, onde só há um crescente:
Wilbraham Crescent. Tencionava passear por Wilbraham Crescent e ver o
que pensava do número sessenta e um, antes de lhe perguntar se sabia
alguma coisa que me pudesse ajudar. Era o que estava a fazer esta tarde,
mas sem conseguir encontrar o número que me interessava.
- Como já lhe disse, no sessenta e um mora um construtor civil.
- E não é isso que procuro. Têm alguém estrangeiro ao seu serviço?
- É possível. Hoje em dia, muita gente tem criadas estrangeiras. Se
tiverem alguma, ela estará registada. Amanhã averiguarei isso.
- Obrigado, Dick.
- Amanhã efectuarei investigações de rotina nas duas casas que
ladeiam o número dezanove, para saber se viram alguém entrar, etc. Talvez
investigue também nas que ficam directamente atrás do número dezanove,
cujos jardins são contíguos. Tenho até a impressão de que o número
sessenta e um fica atrás do dezanove. Se quiser ir comigo, posso-o levar.
Aceitei a oferta sem hesitar.
- Serei o seu "sargento Lamb" e tomarei apontamentos em
estenografia.
Ficou combinado que me encontraria na esquadra da Polícia às nove
e meia da manhã seguinte.
Cheguei pontualmente e encontrei o meu amigo a ferver de raiva.
Quando despediu um subordinado cabisbaixo, perguntei, com todas
as cautelas, o que sucedera.
Ao princípio, Hardcastle pareceu incapaz de falar. Depois explodiu:
- Os malditos relógios!
- Outra vez os relógios? Que sucedeu agora?
- Um deles desapareceu.
- Desapareceu? Qual?
- O de viagem, com estojo de cabedal e o nome de "Rosemary"
gravado a um canto.
Soltei um assobio.
- Mas isso parece muito estranho! Como aconteceu?
- Os grandíssimos idiotas... - Dick, que era um homem muito
honesto, hesitou um momento e admitiu: - Suponho que também o sou.
Um homem tem de pôr todos os pontos nos is senão corre tudo mal.
Bem, os relógios estavam na sala, ontem, e eu pedi a Miss Pebmarsh
que os examinasse com os dedos, a fim de saber se lhe eram familiares.
Não eram. Depois chegaram para remover o cadáver...
- E então?
- Acompanhei-os até à cancela, para dirigir as operações, e depois
regressei à moradia e falei com Miss Pebmarsh, que estava na cozinha.
Disse-lhe que teria de trazer os relógios e lhe daria um recibo.
- Lembro-me perfeitamente, pois ouvi-o. - Depois disse à pequena
que a levaria a casa num dos nossos carros e você acompanhou-a ao
automóvel, a meu pedido.
- Exactamente.
- Passei o recibo a Miss Pebmarsh, embora ela dissesse que não era
preciso, pois os relógios não lhe pertenciam, e fui ter consigo. Disse ao
Edwards que queria os relógios da sala cuidadosamente acondicionados e
trazidos para cá. Todos, excepto, claro, o de pé e o de cuco. E foi aí que fiz
asneira. Devia ter dito, especificamente, os quatro relógios. Edwards diz
que foi logo à sala e cumpriu as minhas ordens, mas teima que só lá
estavam três relógios, além dos dois que não eram para trazer.
- Não houve muito tempo para agir - observei. Parece...
- Miss Pebmarsh podia ter pegado no relógio, assim que eu saí da
sala, e ido para a cozinha com ele.
- Claro. Mas porquê?
- Precisamos de saber tantas coisas! Mais alguém teria a mesma
possibilidade? Teria sido a pequena?
- Não creio. Eu... - calei-me, de repente, ao recordar uma coisa.
- Afinal, podia ter sido ela! - exclamou Hardcastle, perante a minha
hesitação. - Continue. Quando foi?
- Saíramos e dirigíamo-nos para o carro da Polícia - expliquei, muito
triste. - Ela lembrou-se de que se esquecera das luvas e eu disse-lhe: "Vou
buscá-las." Mas ela redarguiu: "Não... Sei exactamente onde as pus. Não
me importo de lá voltar, agora... agora que o levaram." E voltou para trás, a
correr. Só se demorou um minuto...
- Quando regressou, trazia as luvas calçadas ou na mão?
Hesitei.
- Sim... creio que as trazia...
- É evidente que não as trazia, pois se trouxesse você não hesitaria.
- Provavelmente meteu-as na mala.
- O mal é que você se deixou prender pela moça - resmungou
Hardcastle, acusadoramente.
- Não seja idiota! - protestei, com veemência.Via-a ontem à tarde
pela primeira vez, e não se tratou de uma apresentação nada romântica.
- Não estou muito de acordo com isso. Não é todos os dias que caem
nos braços de homens novos como você pequenas a gritar por socorro, no
bom estilo vitoriano. Um tipo sente-se um herói e um defensor galante do
sexo fraco... Mas tem de deixar de a defender, meu amigo. Nada nos
garante que ela não esteja metida até ao pescoço no assassínio.
- Pretende dizer que aquela criatura cravou uma faca num homem, a
escondeu tão bem que nenhum dos seus cães foi capaz de a encontrar e
depois saiu de casa e improvisou aquela cena de gritos, quando me caiu nos
braços?
- Ficaria surpreendido se soubesse o que tenho visto, durante a minha
vida.
- Não se lembra de que a minha vida também tem estado cheia de
belas espias de todas as nacionalidades? Espias com estatísticas vitais tão
impressionantes que fariam o mais esperto detective particular americano
esquecer-se da eterna garrafa de uísque na gaveta da secretária. Estou
imunizado contra todos os encantos femininos.
- Toda a gente acaba por ter o seu Waterloo. Depende tudo do tipo...
e Sheila Webb parece ser o seu tipo.
- Seja como for, não compreendo porque está tão empenhado em lhe
atribuir as culpas.
Hardcastle suspirou.
- Não lhe estou a atribuir culpas nenhumas, mas preciso de começar
por qualquer lado. O corpo foi encontrado na casa de Miss Pebmarsh e esse
facto envolve automaticamente a cega no assunto. O corpo foi encontrado
por Miss Webb... e eu não preciso de lhe dizer que, muito frequentemente,
a primeira pessoa a encontrar um cadáver foi a última a ver o indivíduo
vivo. Portanto, enquanto não descobrirmos novos factos,
não podemos ignorar o papel destas duas mulheres.
- Quando entrei na sala, pouco depois das três horas, o indivíduo
morrera havia pelo menos meia hora. Ou mais, provavelmente. Que me diz
a isto?
- Sheila Webb foi almoçar da uma e meia às duas e meia.
Fitei-o, desesperado, e perguntei:
- Que descobriu acerca de Curry?
- Nada! - replicou o inspector, com inesperado azedume.
- Nada? Que quer dizer?
- Quero dizer que não existe, que não há semelhante pessoa.
- Que diz a Metropolis Insurance Company?
- Não diz nada, porque também não existe. A Metropolis and
Provincial Insurante Company não existe. Quanto a Mister Curry, da
Denvers Street, não existe nenhum Mister Curry, nem nenhuma Denvers
Street, nem nenhum número sete ou qualquer outro.
- Interessante! Quer dizer que o tipo mandou imprimir alguns cartões
falsos, com um nome falso e a menção de uma companhia de seguros
falsa?
- Assim parece.
- E qual seria a grande ideia?
Hardcastle encolheu os ombros.
- Por enquanto, só podemos conjecturar. Talvez ele cobrasse prémios
falsos, para não destoar do resto... Ou talvez fosse uma maneira de se
introduzir na casa das pessoas e praticar qualquer vigarice. Tanto podia ser
um vigarista como um aldrabão, um gatuno de bagatelas como um
investigador particular... Não sabemos.
- Mas descobrirão?
- Oh, sim, acabaremos por descobrir! Recolhemos as suas impressões
digitais, para sabermos se tem cadastro de qualquer espécie. Se tiver, será
um grande passo em frente. Se não tiver, será mais difícil.
- Um investigador particular... - murmurei, pensativo. - Agrada-me
essa hipótese. Apresenta... possibilidades.
- Possibilidades é tudo quanto temos, até agora.
- Quando é o inquérito?
- Depois de amanhã. Será puramente formal e haverá um adiamento.
- Qual foi o relatório médico?
- Apunhalado com um instrumento aguçado. Qualquer coisa do
género de uma faca de vegetais.
- Isso a bem dizer iliba Miss Pebmarsh, não lhe parece? Seria muito
difícil a uma cega apunhalar um homem. Suponho que ela é realmente
cega?
- Sim, é realmente cega. Investigámos isso. Disse a verdade. Foi
professora de matemática numa escola do Norte, perdeu a vista há cerca de
dezasseis anos, aprendeu braille, etc., e, finalmente, arranjou emprego no
Instituto Aaronberg.
- Não terá qualquer tara?
- A mania dos relógios e dos agentes de seguros?
- É, de facto, tudo muito fantástico. - Não pude deixar de acrescentar,
com certo entusiasmo: - Como Ariadne Oliver nos seus piores momentos,
ou o defunto Garry Gregson no auge da sua forma...
- Divirta-se à vontade! Não é o desgraçado do detective-inspector a
quem compete investigar o caso! Não tem de prestar contas a um
superintendente nem a um chefe de Polícia e a todos os outros!
- Anime-se! Talvez a vizinhança nos diga alguma coisa útil.
- Duvido - resmungou Hardcastle, pessimista.Se o tipo tivesse sido
apunhalado no jardim da frente e dois mascarados o levassem para dentro
de casa, ninguém teria visto nada. Por azar, não estamos numa aldeia.
Wilbraham Crescent é uma artéria residencial burguesa. A uma hora, as
mulheres-a-dias, que poderiam ver alguma coisa, deixam o trabalho e
regressam a sua casa. Nem sequer se vê ninguém a empurrar um carrinho
de bebé na rua!
- Não há nenhum doente idoso, que passe o dia junto da janela?
- Isso era o que nos convinha, mas não é a realidade.
- E a respeito das casas números dezoito e vinte?
- No número dezoito moram Mister Waterhouse, gerente da firma de
solicitadores Gainsford & Swettenham, e a sua irmã, que se entretém a
geri-lo a ele nas horas vagas... Quanto ao número vinte, só sei que mora lá
uma mulher que tem cerca de duas dezenas de gatos. Não gosto de gatos...
Disse-lhe que a vida de polícia era muito dura e pusemo-nos a
caminho.
***
Mr. Waterhouse, que se encontrava, hesitante, no degrau da casa
número 18 de Wilbraham Crescent, olhou nervosamente para trás, para a
irmã.
- Tens a certeza de que ficas bem? - perguntou.
Miss Waterhouse replicou, indignada:
- Confesso que não compreendo o que queres dizer, James!
Mr. Waterhouse mostrou um ar contrito. Tinha de se mostrar contrito
com tanta frequência que tal expressão se tornara, praticamente, constante.
- Bem, minha querida, se pensarmos no que sucedeu ontem, aqui ao
lado...
Mr. Waterhouse preparava-se para seguir para o escritório onde
trabalhava. Era um homem grisalho e imaculado, de ombros ligeiramente
curvados e rosto mais cinzento do que rosado, embora sem aspecto
doentio.
Miss Waterhouse era uma mulher alta e angulosa, pouco dada a
contra-sensos e sem tolerância nenhuma pelos contra-sensos dos outros.
- O facto de, ontem, terem assassinado alguém aqui ao lado será
razão para me assassinarem, hoje, a mim?
- Bem, Edith, depende muito da pessoa que cometeu o assassínio,
não achas?
- Pensas, então, que anda alguém por Wilbraham Crescent, a escolher
uma vítima em cada casa? Francamente, James, isso é quase blasfemo!
- Blasfemo, Edith? - perguntou Mr. Waterhouse, muito surpreendido,
pois jamais lhe ocorreria que o seu comentário merecesse tal comparação.
- Reminiscente da Páscoa dos Judeus*, à qual, deixa-me que te
lembre, a Bíblia se refere.
* A Páscoa dos Judeus comemora a passagem do mar Vermelho e,
também - e daí a alusão acima -, a passagem do anjo exterminador, que
matou todos os primogénitos dos Egípcios, na noite da partida dos Judeus,
e poupou as casas dos Israelitas, assinaladas pelo sangue do cordeiro.(N. de
T.).
- Creio que a comparação é um bocadinho descabida, Edith...
- Sempre queria ver alguém vir aqui e tentar matar-me! - exclamou
Miss aterhouse, muito decidida.
O irmão pensou que, de facto, seria muito pouco provável. Ele
próprio, se quisesse escolher uma vítima, jamais escolheria a irmã. Se
alguém se lembrasse de tal cometimento, acabaria provavelmente, por
ser posto xo com um atiçador ou a tranca da porta, e entregue à Polícia sujo
de sangue e humilhado.
- Só queria dizer que... - murmurou, com um ar mais contrito do que
nunca - ... enfim, que andam por aí pessoas muito indesejáveis.
- Pouco sabemos, ainda, acerca do que sucedeu. Por enquanto, só há
boatos. Mistress Head contou alguns extraordinários, esta manhã...
- Acredito, acredito...
Mr. Waterhouse olhou para o relógio. Não tinha vontade nenhuma de
ouvir repetir os boatos contados
pela sua tagarela mulher-a-dias. A irmã apressava-se sempre a
reduzir às devidas proporções esses disparatados voos da imaginação, mas,
no entanto, gostava de os ouvir...
- Já há quem diga que a vítima era o tesoureiro ou um administrador
do Instituto Aaronberg, e que veio interrogar Miss Pebmarsh, em virtude de
haver qualquer coisa errada nas contas.
- E Miss Pebmarsh assassinou-o? - perguntou Mr. Waterhouse,
surpreendido. - Uma cega? Certamente...
- Passou-lhe um bocado de arame pelo pescoço e estrangulou-o. Ele
estava desprevenido, compreendes?
Qualquer pessoa estaria, na presença de um cego...
Claro que eu não acredito - apressou-se a afirmar. Estou certa de que
Miss Pebmarsh é uma senhora de excelente carácter. Posso não estar de
acordo com ela a certos respeitos, mas isso não significa que a
considere criminosa. Considero apenas que tem opiniões intolerantes e
extravagantes. No fim de contas, há outras coisas além da instrução. Todos
esses estranhos liceus que hoje constroem, praticamente de vidro... Até
parecem estufas para pepinos ou tomates! Tenho a certeza de que são
prejudiciais para as crianças, nos meses de Verão. Mistress Head, por
exemplo, disse-me que a sua Susan não gosta das novas salas de aula: as
janelas são tantas que a tentação de olhar constantemente para a rua não lhe
permite prestar atenção às lições.
- Meu Deus, vou chegar muito atrasado! - exclamou Mr. Waterhouse,
a olhar de novo para o relógio. - Até logo, minha querida. Tem cuidado.
Talvez seja melhor manter a corrente na porta...
Miss Waterhouse soltou um rosnido e fechou a porta. No entanto,
antes de subir para o andar de cima, parou um instante, pensativa, e depois
foi ao saco de golfe buscar um niblick*, que colocou estrategicamente,
junto da porta principal.
*Taco de golfe com uma cabeça grande, redonda e pesada, próprio
para tirar bolas dos obstáculos constituídos por depressões arenosas. (N. da
T.).
Sorriu, satisfeita. Claro que James só dissera
tolices, mas não perdia nada em estar prevenida. Na sua opinião, a maneira
como, hoje em dia, davam alta aos doentes mentais e os incitavam a levar
uma vida normal, era um perigo para as pessoas inocentes.
Miss Waterhouse estava no seu quarto quando Mrs. Head subiu a
escada, numa grande agitação.
Mrs. Head era baixinha, roliça e muito semelhante a uma bola de
borracha, e deliciava-se praticamente com tudo quanto sucedia.
- Dois cavalheiros desejam falar-lhe - anunciou, toda eufórica. - Bem,
não são realmente cavalheiros... São polícias.
Estendeu um cartão, que Miss Waterhouse leu.
- Detective-inspector Hardcastle... Mandou-os entrar para a sala?
- Não. Levei-os para a casa de jantar. Já tinha levantado a mesa do
pequeno-almoço e pensei que seria um lugar mais adequado, atendendo a
que não passam de polícias.
Miss Waterhouse não compreendeu bem o raciocínio da empregada,
mas limitou-se a responder-lhe:
- Desço já.
- Naturalmente querem interrogá-la acerca de Miss Pebmarsh,
perguntar-lhe se notou algo estranho no seu comportamento... Parece que,
às vezes, estas manias surgem de repente, sem ninguém dar por isso. Mas
há sempre qualquer coisa, uma maneira especial de falar... Dizem, também,
que se percebe pelos olhos... mas no caso de uma cega não deve ser assim.
Miss Waterhouse desceu a escada e entrou na sala de jantar com uma
certa e agradável curiosidade, disfarçada pelo seu habitual ar de
beligerância.
- Detective-inspector Hardcastle?
- Bons dias, Miss Waterhouse.
Hardcastle levantara-se. Acompanhava-o um homem novo, alto e
moreno, que Miss aterhouse não se deu ao trabalho de cumprimentar,
embora o inspector lho apresentasse como o "sargento Lamb".
- Espero não ter vindo muito cedo e suponho que sabe de que se trata,
pois deve ter ouvido contar o que sucedeu na casa ao lado, ontem à tarde.
- Um assassínio na casa do vizinho do lado não costuma passar
despercebido - redarguiu Miss Waterhouse. - Até tive de correr com um ou
dois repórteres, que me vieram perguntar se vira alguma coisa.
- Correu com eles?
- Naturalmente.
- Fez muito bem. Tentam infiltrar-se em toda a parte, mas eu estou
certo de que a senhora é muito capaz de fazer frente a situações dessas.
Miss Waterhouse dignou-se demonstar uma leve reacção de prazer ao
cumprimento.
- Espero que não leve a mal se lhe fizermos o mesmo género de
perguntas - prosseguiu o inspector.Se viu alguma coisa de susceptível de
nos interessar, creia que ficaremos muito gratos se nos informar. Suponho
que estava aqui, em sua casa, quando cometeram o crime?
- Não sei quando foi cometido o crime.
- Calculamos que foi entre a uma e meia e as duas e meia da tarde.
- Nesse caso, estava, com certeza.
- E o seu irmão?
- Não vem almoçar a casa. Mas afinal, quem assassinaram? Não
esclarecem esse ponto, na breve notícia publicada no jornal desta manhã.
- Ainda não sabemos quem era.
- Um desconhecido?
- Assim parece.
- Não quer dizer que era, também, um desconhecido para Miss
Pebmarsh?
- Miss Pebmarsh garantiu-nos que não esperava a visita do indivíduo
e que não fazia ideia nenhuma de quem se tratava.
- Ela não pode ter a certeza a esse respeito, em virtude de não ver.
- Descrevemos-lhe com a maior minúcia.
- De que género de homem se tratava?
Hardcastle tirou uma fotografia de um sobrescrito e mostrou-lha.
- Aqui o tem. Faz alguma ideia de quem poderá ser?
- Não. Não... Tenho a certeza de que nunca o vi. Meu Deus, parece
um homem respeitável!
- Tinha, de facto, um aspecto muito respeitável, concordou o
inspector. - Parecia um advogado, ou um homem de negócios...
- Tem razão. A fotografia não impressiona nada, ele parece que está
apenas a dormir.
Hardcastle não lhe explicou que das várias fotografias tiradas ao
cadáver escolhera aquela precisamente por ser a menos perturbadora.
- A morte, às vezes, traduz-se em paz. Não creio que este homem
esperasse morrer quando morreu.
- Que diz Miss Pebmarsh acerca do assunto?
- Não sabe que dizer.
- Extraordinário!
- Pode-nos ajudar de alguma maneira, Miss Waterhouse? Tente
recordar o dia de ontem. Lembra-se de ter olhado pela janela, ou de ter ido
ao jardim entre, digamos, o meio-dia e meia hora e as três horas?
Miss Waterhouse pensou, uns momentos.
- Sim, estive no jardim... Deixe-me ver... deve ter sido antes da uma
hora. Quando vim para dentro faltavam uns dez minutos para a uma, lavei
as mãos e sentei-me a almoçar.
- Viu Miss Pebmarsh entrar ou sair de casa?
- Creio que ela entrou... Ouvi a cancela ranger depois do meio-dia e
meia hora.
- Não falou com ela?
- Oh, não! Levantei apenas a cabeça, ao ouvir a cancela ranger.
Costuma regressar mais ou menos
àquela hora, quando acaba as suas aulas. Ensina crianças deficientes,
como provavelmente já sabe.
- Segundo declarou, Miss Pebmarsh voltou a sair, cerca da uma e
meia. Pode confirmá-lo?
- Bem, não posso dizer a hora certa, mas lembro-me de ela passar
pela cancela.
- Perdão, Miss Waterhouse, disse "passar pela cancela"...
- Com certeza. Estava na sala, que dá para a rua, ao passo que a casa
de jantar, onde estamos agora, dá para o quintal das traseiras, como pode
verificar. Levei o café para a sala, depois de almoçar, e sentei-me
numa cadeira, junto da janela, a bebê-lo e a dar uma vista de olhos pelo
Times. Creio que foi ao virar uma página que reparei em Miss Pebmarsh,
que ia a passar pela cancela da frente. Há alguma coisa de extraordinário
nisso, inspector?
- Não, não há nada de extraordinário - respondeu Hardcastle, a sorrir.
- Consta-me, no entanto, que Miss Pebmarsh saiu para fazer umas compras
e ir aos Correios, e estava convencido de que o caminho mais curto para as
lojas e para os Correios era o oposto.
- Depende das lojas a que se vá. Claro que há lojas mais perto desse
lado e um posto dos Correios na Albany Road...
- Talvez Miss Pebmarsh costume passar pela sua cancela mais ou
menos a essa hora?
- Não sei, francamente, a que horas Miss Pebmarsh costuma passar
nem em que direcção vai, pois não tenho o hábito de espiar os meus
vizinhos, inspector. Sou uma mulher atarefada e tenho muito com que me
entreter. Certas pessoas que conheço passam o tempo todo a espreitar pela
janela e a ver quem passa e quem vai visitar este ou aquele. Considero isso
um hábito de doentes ou de quem não tem mais que fazer do que
bisbilhotar a vida dos vizinhos e mexericar.
Miss Waterhouse falou em tom tão acerbo que o inspector teve a
certeza de que ela se referia a alguém em especial.
- Tem razão - declarou. - Tem toda a razão. Visto Miss Pebmarsh ter
passado pela sua cancela, talvez tivesse ido telefonar, não? A cabina
pública fica para esse lado...
- Sim, fica defronte do número quinze.
- A pergunta importante que tenho de lhe fazer, Miss Waterhouse, é
esta: viu chegar o homem em questão, o homem misterioso, conforme os
jornais matutinos lhe chamam?
Miss Waterhouse abanou a cabeça, sem hesitar:
- Não, não o vi chegar a ele nem a outro visitante.
- Que esteve a fazer entre a uma e meia e as três horas?
- Passei cerca de meia hora a fazer as palavras cruzadas do Times,
pelo menos até onde fui capaz... e depois fui para a cozinha lavar a louça
do almoço. Deixe ver... Escrevi duas cartas, passei uns cheques para
pagamento de umas contas e a seguir fui lá acima escolher umas coisas que
precisava de mandar para a tinturaria. Creio que foi da janela do meu
quarto que reparei ter-se passado qualquer coisa na casa do lado. Ouvi
gritar e, naturalmente, fui à janela. Estavam um homem novo e uma
pequena à cancela. Ele parecia estar a abraçá-la.
O "sargento Lamb" mudou de posição, mas Miss Waterhouse não
estava a olhar para ele e era evidente que não fazia a mínima ideia de que
ele fora o "homem novo" em questão.
- Só vi a nuca do homem, que parecia estar a dizer qualquer coisa à
jovem. Por fim sentou-a junto do pilar da cancela, o que me pareceu muito
estranho, meteu pelo carreiro e entrou na casa ao lado.
- A senhora não dera por Miss Pebmarsh ter regressado a casa pouco
antes?
- Não. Creio que só espreitei pela janela quando ouvi gritar. No
entanto, confesso que não liguei muita importância. Os jovens estão
sempre a fazer coisas tão
extraordinárias, a gritar, a empurrarem-se, a rir..., que não me passou
pela cabeça que tivesse acontecido algo sério. Só quando chegaram carros
da Polícia compreendi que devia ter sucedido qualquer coisa fora do
vulgar.
- Que fez, então?
- Saí de casa, naturalmente. Parei nos degraus e depois dei a volta e
fui ao quintal das traseiras. Estava intrigada, mas não vi nada de especial.
Quando voltei, juntara-se uma pequena multidão e uma pessoa disse-me
que tinha havido um assassínio. Pareceu-me muito extraordinário! -
exclamou, em tom de grande desaprovação.
- Não se lembra de mais nada?
- Infelizmente, não.
- Ultimamente alguém lhe escreveu a oferecer um seguro, ou alguém
a visitou ou lhe sugeriu uma visita?
- Não, não aconteceu nada desse género. Tanto James como eu
estamos seguros pela Mutual Help Assurance Society. Claro que estão
sempre a chegar circulares e anúncios diversos, mas não me lembro de ter
recebido nada desse género, ultimamente.
- Nem cartas assinadas com o nome de Curry?
- Curry? Não, tenho a certeza de que não.
- O nome de Curry não lhe diz nada, em sentido nenhum?
- Não. Deveria dizer?
- Não, creio que não - respondeu Hardcastle, a sorrir. - Trata-se
apenas do nome que o homem assassinado usava.
- Mas não era o seu verdadeiro nome?
- Temos razões para supor que não.
- Uma espécie de vigarista, não?
- Não o poderemos afirmar enquanto não tivermos provas disso.
- Claro, claro. Precisam de ser cuidadosos, bem sei. Não acontece o
mesmo com certas pessoas daqui, que dizem tudo quanto lhes vem à
cabeça. Até me admira que não estejam sempre a ser acusadas de calúnias.
- Difamação - corrigiu o "sargento Lamb", que falava pela primeira
vez.
Miss Waterhouse olhou-o, surpreendida, como se só então tivesse
consciência de que ele era uma entidade independente e não, apenas, um
apêndice necessário do inspector Hardcastle.
- Lamento não o poder ajudar - disse a mulher ao inspector.
- Também eu. Uma pessoa com a sua inteligência e o seu poder de
observação seria uma testemunha muito útil.
- Gostava de ter visto alguma coisa! - confessou Miss Waterhouse, e
por momentos o tom da sua voz pareceu triste como o de uma
rapariguinha.
- E o seu irmão, Mister James Waterhouse?
- James não sabe de nada - afirmou a interpelada, com desdém. -
Nunca sabe coisa nenhuma. Além disso, estava na firma Gainsford &
Swettenhams, na High Street. Não, o James não o poderia ajudar. Como já
disse, não vem a casa almoçar.
- Onde costuma almoçar?
- Geralmente come sanduíches e bebe café nas Três Penas, uma casa
muito asseada e respeitável, especializada em almoços rápidos.
- Muito obrigado, Miss Waterhouse. Não lhe roubaremos mais
tempo.
O inspector levantou-se e dirigiu-se para o vestíbulo, seguido por
Miss Waterhouse e pelo "sargento Lamb". Este pegou no taco de golfe,
que estava ao pé da porta, e comentou, enquanto o sopesava:
- Belo taco, com muito peso na cabeça. Vejo que está preparada para
qualquer eventualidade...
Miss Waterhouse pareceu um bocadinho atrapalhada e declarou:
- Não sei francamente, como foi aí parar.
Arrancou-lho da mão e meteu-o no saco.
- Era uma precaução muito sensata - observou Hardcastle.
Miss Waterhouse abriu a porta e os dois homens saíram.
- Bem, não conseguimos muito dela, apesar de você lhe dar uma
graxa danada - murmurou Colin Lamb, a suspirar. - É esse o seu método
invariável?
- Às vezes dá bons resultados, com pessoas como ela. Os duros
reagem sempre à lisonja.
- Sim, ela ronronou como um gato a que dessem um pires de leite...
Infelizmente, não revelou nada de interesse.
- Não?
Colin olhou-o, atento, e perguntou:
- Em que está a pensar?
- Num pormenor muito pequeno e possivelmente sem importância.
Miss Pebmarsh saiu para ir aos Correios e às compras e virou para a
esquerda, em vez de virar para a direita... e o telefonema, segundo declarou
Miss Martindale, foi feito cerca das duas menos dez.
- Continua a pensar que, apesar da sua negação, ela telefonou? Foi
muito positiva...
- Pois foi, foi muito positiva - concordou o inspector,
inexpressivamente.
- Mas, se foi ela que telefonou, porquê? - Oh, são tudo porquês! -
resmungou Hardcastle, impaciente. - Porquê? Porquê toda esta história?
Se Miss Pebmarsh fez o telefonema, para que precisava da pequena?
Se foi outra pessoa que telefonou, para que quis envolver Miss Pebmarsh
no assunto?
Ainda não sabemos nada. Se a Martindale conhecesse Miss
Pebmarsh pessoalmente, saberia se fora a voz dela ou não ou, pelo menos,
se era parecida... Enfim, não conseguimos muito no número dezoito.
Vejamos se temos mais sorte no número vinte.
Além do número 20, a morada tinha um nome: Diana Lodge. A
cancela tinha arames no interior, para impedir a entrada de intrusos, e havia
loureiros mal aparados, que dificultavam igualmente a passagem.
- Se jamais houve uma casa que merecesse o nome de Loureiros, foi
esta - observou Colin Lamb.Por que diabo se chamará Diana Lodge?
Olhou à sua volta, com interesse. Diana Lodge não primava pelo
asseio nem tinha canteiros de flores. Imperavam os arbustos densos e mal
tratados e um cheiro forte a amoníaco... A casa parecia em muito
mau estado, precisava de reparações, o que contrastava com a porta da
frente, recentemente pintada de um azul muito forte, que realçava ainda
mais o abandono a que tinham sido votados a habitação e o jardim. Em vez
de campainha eléctrica havia uma espécie de manípulo, visivelmente
destinado a ser puxado. O inspector puxou-o e ouviu-se um tilintar abafado
e distante.
Passados momentos, ouviram sons no interior. Sons curiosos, aliás.
Uma espécie de lengalenga, meio cantada, meio falada.
- Que demónio... - começou Hardcastle.
À medida que a pessoa se aproximava da porta, as palavras
tornavam-se mais inteligíveis.
- Não querida, queridinha. Ali, meu amor. Cuidado com o rabinho,
Xá-Xá-Mimi, Cleo... Cleópatra... Ai os mauzões!
Fecharam-se portas e, finalmente, a da frente abriu-se. Diante dos
dois homens apareceu uma senhora de vestido de veludo verde-musgo
muito coçado, com o cabelo branco, esfarripado, subido num penteado que
estivera em moda uns trinta anos atrás.
Usava à roda do pescoço uma gola de pele cor de laranja.
- Mistress Hemming? - perguntou o inspector, duvidoso.
- Sim, sou Mistress Hemming... Devagarinho, Raio de Sol,
devagarinho...
Só então o inspector compreendeu que a gola de pele era, na
realidade... um gato. Mas não era o único. Apareceram outros três, no
vestíbulo, dois deles a miar. Não tardaram a ocupar o seu lugar à roda
das saias da dona, enquanto olhavam para os visitantes.
Ao mesmo tempo, um cheiro forte, a gatos, atormentou as narinas
dos dois homens.
- Sou o detective-inspector Hardcastle...
- Suponho que me vem visitar por causa daquele homem antipático
da Liga Protectora dos Animais. Que vergonha! Escrevi uma carta a fazer
queixa dele.
Dizer que os meus gatos viviam de maneira prejudicial à sua saúde e
felicidade! Eu vivo para os meus bichanos, inspector, eles são a minha
única alegria, o meu único prazer na vida! Faço tudo por eles! Aí não,
Xá-Xá-Mimi!
Mas Xá-Xá-Mimi não quis saber da mão estendida da dona e saltou
para a mesinha do vestíbulo, a lavar o focinho e a observar os
desconhecidos.
- Entrem - convidou Mrs. Hemming. - Oh, não, para aí, não!
Esquecera-me...
Abriu uma porta, à esquerda. A atmosfera ainda era mais
penetrante...
- Entrem, meus lindos, entrem...
No aposento, espalhados por cadeiras e mesas, encontravam-se vários
pentes e escovas, com pêlos de gato. Viam-se diversas almofadas
desbotadas e sujas e, pelo menos, mais seis bichanos.
- Vivo para os meus queridos - afirmou Mrs. Hemming. - Eles
compreendem todas as minhas palavras.
O inspector Hardcastle entrou, corajosamente. Por pouca sorte, era
uma daquelas pessoas alérgicas aos gatos e, como acontece em tais
circunstâncias, os bichanos dirigiram-se logo para ele. Um saltou-lhe para
os joelhos e outro roçou-se-lhe afectuosamente pelas calças. Mas o
inspector Hardcastle, que era um homem valente, cerrou os lábios e
resignou-se.
- Desejava fazer-lhe, algumas perguntas acerca...
- Pergunte o que quiser - interrompeu-o a velhota. - Não tenho nada
que esconder. Posso mostrar-lhes a comida dos gatos e as suas caminhas,
cinco no meu quarto e sete aqui... Só lhes dou o peixe mais fresco que
existe, cozinhado por mim própria.
- O assunto não tem nada a ver com os gatos - esclareceu Hardcastle,
em voz mais forte. - Vim por causa do infeliz acontecimento da casa ao
lado. Provavelmente já ouviu falar...
- Da casa ao lado? Refere-se ao cão de Mister Josaiah?
- Não. Refiro-me ao número dezanove, onde ontem foi encontrado
um homem assassinado.
- Sim? - perguntou Mrs. Hemming, mas apenas por delicadeza; os
seus olhos não se afastavam da gataria.
- Permite que lhe pergunte se ontem à tarde esteve em casa? Entre a
uma e meia e as três e meia?
- Estive, sim. Geralmente faço as compras de manhã cedo, para ter
tempo de preparar o almoço dos meus amorzinhos e de os escovar e
arranjar.
- Não notou nenhuma actividade aqui ao lado? Carros da Polícia,
ambulância?...
- Bem, não estive à janela da frente. Estive no quintal das traseiras,
porque a Arabela desaparecera. E uma gatinha nova e trepara para uma das
árvores, e eu receava que não fosse capaz de descer. Experimentei tentá-la
com um prato de peixe, mas ela estava assustada, coitadinha! Acabei por
desistir e voltar para dentro. Imaginem que, mal entrei, desceu da árvore e
entrou atrás de mim! Até custa a acreditar! - Olhou de um homem para o
outro, como se avaliasse a sua credulidade.
- Não me custa nada a acreditar - afirmou Colin, incapaz de continuar
calado mais tempo.
- Como? - perguntou Mrs. Hemming, a fitá-lo um pouco assustada.
- Gosto muito de gatos e tenho estudado a sua natureza. O que a
senhora disse ilustra perfeitamente o padrão do comportamento dos gatos e
as regras que para si próprios estabeleceram. Pelo mesmo motivo, os seus
gatos estão todos reunidos à volta do meu amigo, que não gosta,
francamente, de bichanos, e não me ligam importância nenhuma a mim,
nem ligarão por muito que os afague.
Se Mrs. Hemming pensou que Colin não estava a falar como um
sargento da Polícia, o seu rosto não o denunciou. Limitou-se a murmurar,
vagamente:
- Eles sabem sempre, os amorzinhos, não sabem?
Um belo gato persa cinzento apoiou duas patas nos joelhos do
inspector Hardcastle, fitou-o extasiado de prazer e cravou as garras, como
se Hardcastle fosse uma almofada de espetar alfmetes. Incapaz de suportar
aquele tormento durante mais tempo, o inspector levantou-se.
- Posso ver o seu quintal das traseiras, minha senhora? Colin sorriu.
- Oh, com certeza! Tudo quanto quiser.
Mrs. Hemming levantou-se e o gato cor de laranja saltou-lhe do
pescoço e ela substituiu-o, distraidamente, pelo persa cinzento. Saiu da
sala, seguida pelos dois homens.
- Já nos víramos - disse Colin ao gato alaranjado. - E tu és uma
beleza, não és? - perguntou a outro persa cinzento, que estava em cima de
uma mesa, ao lado de um candeeiro chinês, a dar ao rabo. Colin fez-lhe
cócegas atrás das orelhas e ele condescendeu em ronronar.
- Façam o favor de fechar a porta, quando saírem - pediu Mrs.
Hemming, do vestíbulo. - Hoje está vento e eu não quero que os meus
lindos se constipem. Além disso, há aqueles horríveis rapazes... Não é
seguro deixar os queridinhos andar à solta no quintal.
Encaminhou-se para o fundo do vestíbulo e abriu uma porta lateral.
- A que rapazes horríveis se referiu? - perguntou Hardcastle.
- Aos dois filhos de Mistress Ramsay. Moram na parte sul do
crescente e as traseiras dos nossos quintais são mais ou menos contíguas.
São dois jovens rufiões! Têm uma fisga... ou tinham. Insisti para que lha
confiscassem, mas tenho as minhas dúvidas... Fazem emboscadas,
escondem-se, no Verão atiram maças...
- Vergonhoso - sentenciou Colin.
O quintal era como o jardim, mas pior. Tinha alguma relva que
crescia em inteira liberdade, arbustos virgens de tesoura e amontoados,
quase pegados uns aos outros, e mais loureiros. Na opinião de Colin,
estavam ali a perder tempo. Através daquela sólida barreira de loureiros,
árvores e arbustos não se podia ver nada do quintal de Miss Pebmarsh.
Diana Lodge era uma casa absolutamente isolada. Do ponto de vista dos
seus habitantes, era como se não tivesse vizinhos.
- Falou do número dezanove, não foi? - perguntou Mrs. Hemming,
parada, hesitante, no meio do quintal. - Julgava que só lá vivia uma
pessoa, uma mulher cega...
- O homem assassinado não morava lá em casa - explicou o inspector.
- Ah, compreendo! - exclamou a velhota, distraidamente. - Foi lá para
ser assassinado. Que estranho!
"Eis uma excelentíssima definição", pensou Colin para consigo.
Meteram-se no automóvel, percorreram Wilbraham Crescent,
viraram à direita, subiram a Albany Road, viraram de novo à direita e
encontraram-se na continuação de Wilbraham Crescent.
- É, na realidade, simples - comentou Hardcastle.
- Depois de se saber - admitiu Colin.
- O sessenta e um dá para as traseiras da casa de Mistress Hemming,
mas como uma esquina toca no dezanove, podemos tentar. Você terá,
assim, oportunidade de ver o seu Mister Bland. A propósito, ele não tem
nenhuma empregada estrangeira.
- Lá se vai uma bonita teoria.
O carro parou e os dois homens apearam-se.
- Bonito jardim, sim senhor! - elogiou Colin.
Tratava-se, de facto, de um modelo de perfeição suburbana, embora
em pequena escala. Havia canteiros de gerânios, com bordaduras de
lobélias, grandes begónias carnudas e uma abundância de ornamentos de
jardim: rãs, cogumelos, gnomos cómicos e elfos.
- Estou certo de que Mister Bland deve ser um homem muito
simpático e muito digno - comentou Colin, a fingir um calafrio. - Não teria
estas horríveis ideias se o não fosse. - E acrescentou, quando Hardcastle
tocou à campainha: - Espera que ele esteja em casa a esta hora?
- Telefonei-lhe a perguntar se podíamos vir.
Nesse instante, chegou um carro pequeno e elegante, que entrou na
garagem, a qual era, sem dúvida, uma adição recente à moradia. Mr.
Josaiah Bland apeou-se, bateu com a porta e foi ao encontro dos dois
visitantes. Era um homem de estatura mediana, cabeça calva e olhos azuis
muito pequenos. Tinha um ar muito cordial.
- Inspector Hardcastle? Façam favor de entrar.
Conduziu-os à sala, que evidenciava várias provas
de prosperidade. Candeeiros caros e muito cheios de adornos; uma
escrivaninha Império; um jogo de ornamentos coruscantemente dourados,
na prateleira da chaminé; um armário marchetado, e uma floreira
ornamental, cheia de flores, na janela. As poltronas eram modernas e
ricamente estofadas.
- Sentem-se - convidou, cordial, Mr. Bland.Um cigarro? Ou não
podem fumar quando estão de serviço?
- Não, obrigado - redarguiu Hardcastle.
- Suponho que também não bebem? Bem, talvez seja melhor para
todos. De que se trata? Daquela história do número dezanove, creio? As
esquinas dos nossos quintais tocam-se, mas não vemos muito do quintal
desse número, a não ser das janelas do andar de cima. Extraordinário
acontecimento, pelo menos a julgar pelo que li no jornal da manhã. Fiquei
encantado quando me telefonou, pois assim teria ensejo de falar com
alguém que estava dentro do assunto. Não faz ideia dos boatos que correm
por aí! A minha mulher ficou muito nervosa, ao saber que andava um
assassino à solta. É um perigo darem alta a todos esses chalados dos
manicómios, como fazem hoje em dia. Mandam-nos para casa
condicionalmente, ou lá como lhe chamam, depois os tipos fazem qualquer
asneira e apanham-nos outra vez... Mas voltando aos boatos. Ficariam
surpreendidos se ouvissem o que disseram a nossa mulher-a-dias, o leiteiro,
o rapaz dos jornais... Uns dizem que o estrangularam com um arame,
outros que foi apunhalado, outros ainda que lhe deram uma pancada na
cabeça... O que é certo, segundo parece, é que a vítima foi um homem, não
foi? Quero dizer, não foi a velhota que liquidaram, pois não? Os jornais
referem-se a um homem desconhecido.
Mr. Bland calou-se, finalmente.
Hardcastle sorriu e disse, em tom um pouco desdenhoso:
- Bem, quanto a ser um desconhecido, ele tinha na algibeira um
cartão com um endereço.
- Portanto, esse aspecto está resolvido - sentenciou Bland. - Palavra
que não sei como as pessoas conseguem inventar tantas coisas!
- Já que estamos a falar da vítima, talvez não se importe de ver isto -
disse Hardcastle, e mostrou novamente a fotografia tirada pela Polícia.
- É ele, hem? Parece um tipo absolutamente vulgar, não parece?
Quero dizer, vulgar como o senhor e eu, por exemplo. Suponho que não
devo perguntar se havia algum motivo especial para o assassinarem?
- Ainda é cedo para falar nisso. O que me interessa saber, Mister
Bland, é se alguma vez viu esse homem.
- Não, tenho a certeza que não vi. Sou muito previsto, como se
costuma dizer. Quando vejo uma cara, não a esqueço.
- Ele não lhe bateu à porta com qualquer intenção? Angariar seguros,
vender aspiradores, máquinas de lavar, qualquer coisa desse género?
- Não, estou certo que não.
- Talvez fosse melhor perguntarmos à sua mulher. No fim de contas,
se ele batesse à porta, seria a sua mulher que o atenderia.
- Sim, isso é verdade. No entanto, não sei... Valerie não está bem de
saúde e eu não gostaria de a perturbar. Enfim, sempre é uma fotografia
tirada com ele morto, não é?
- É, mas não tem nada de impressionante.
- Não tem, realmente, trata-se de um bom trabalho. O tipo parece que
está a dormir.
- Estavas a falar de mim, Josaiah?
Uma porta de comunicação abriu-se e entrou na sala uma mulher de
meia-idade. Hardcastle teve a certeza de que ela estivera a escutar à porta
com toda a atenção.
- Julguei que estivesses a descansar, minha querida. Minha mulher, o
detective- inspector Hardcastle.
- Aquele horrível assassínio - murmurou Mrs. Bland. - Arrepio-me
toda, só de pensar...
Sentou-se no sofá e soltou um suspirozinho.
- Levanta os pés, querida, para descansares melhor.
Mrs. Bland obedeceu. Era uma mulher de cabelo alourado e voz fraca
e lamurienta. Parecia anémica e tinha todo o ar de uma doente crónica, que
aceita a sua invalidez com certa dose de prazer. O inspector teve a
impressão de que ela lhe lembrava alguém conhecido, mas não foi capaz de
saber quem, por muito que pensasse. "
A voz lamurienta prosseguiu:
- Como não sou muito saudável, o meu marido tenta, naturalmente,
evitar-me abalos e preocupações. Sou muito sensível... Estavam a falar de
uma fotografia do... do assassinado. Meu Deus, que horror! Não sei se terei
coragem para a ver...
"Mas estás mortinha por a ver", pensou Hardcastle, que redarguiu,
com certa malícia:
- Nesse caso, talvez seja melhor não lhe pedir que a veja, Mistress
Bland. Pensei apenas que nos poderia ajudar, se acaso o homem tivesse
batido alguma vez à sua porta.
- Devo cumprir o meu dever, não devo? - perguntou Mrs. Bland, de
mão estendida e com um leve sorriso corajoso.
- Não compreendes que te transtornará, Val!
- Não sejas pateta, Josaiah. Claro que devo ver a fotografia.
Observou-a com muito interesse e, na opinião do inspector, um
bocadinho decepcionada.
- Parece... quero dizer, nem parece morto! Não tem nada o ar de ter
sido assassinado! Foi... não pode ter sido estrangulado, pois não?
- Foi apunhalado - esclareceu o inspector.
Mrs. Bland fechou os olhos e estremeceu.
- Meu Deus, que horror!
- Acha que o terá visto alguma vez, Mistress Bland?
- Não - respondeu a interpelada, com evidente relutância. - Não, não.
Era desses homens que andam de porta em porta, a vender coisas?
- Parece que era agente de seguros - respondeu Hardcastle, cauteloso.
- Compreendo. Tenho a certeza de que não nos bateu à porta
nenhuma pessoa dessas. Não te lembras de eu mencionar nada do género,
pois não, Josaiah?
- Não, não me lembro.
- Era algum parente ou conhecido de Miss Pebmarsh?
- Não, Mistress Bland. Era um perfeito desconhecido para ela.
- Muito estranho.
- A senhora conhece Miss Pebmarsh?
- Oh, sim! Quero dizer, conhecemo-la como vizinha. Às vezes pede
conselhos ao meu marido, acerca do jardim.
- É um jardineiro muito entusiasta, suponho? perguntou o inspector.
- Nem por isso, nem por isso - respondeu Bland, modestamente. -
Falta-me tempo, compreende? Claro que percebo do assunto, mas não
tenho tempo, como disse. Vem aí um tipo excelente, duas vezes por
semana, para manter tudo limpo e em ordem.
Creio que nenhum jardim das imediações leva a palma ao nosso, mas
não sou um desses jardineiros fanáticos como o meu vizinho.
- Mister Ramsay? - perguntou Hardcastle, um pouco surpreendido.
- Não, não. O do sessenta e três, Mister McNaughton. Esse só vive
para o jardim. Passa lá o dia inteiro e tem a mania do adubo composto. Por
sinal é um grande maçador, quando começa a falar de adubo... Mas
não creio que tenha sido para falar destas coisas que o inspector nos
visitou.
- Não, de facto. Pensei apenas se alguém cá de casa, o senhor ou a
sua esposa, por exemplo, teria estado
no jardim, ontem. No fim de contas, como o senhor disse, as traseiras
do seu jardim tocam na esquina do de Miss Pebmarsh, e talvez tivessem
visto ou ouvido algo interessante...
- Foi ao meio-dia, não foi? Quero dizer, quando se deu o crime?
- O espaço de tempo importante vai da uma às três horas da tarde.
- Nesse caso, não podíamos ter visto nada. Estava em casa, com
minha mulher, mas estávamos a almoçar, e a nossa sala de jantar dá para o
lado da rua. Não podíamos ver nada que se passasse no jardim.
- A que horas almoçam?
- Cerca da uma hora. Às vezes à uma e meia.
- E depois não foram ao jardim?
Bland abanou a cabeça.
- A minha mulher vai sempre descansar lá para cima, depois de
almoçar, e eu, se não tenho muito que fazer, também passo pelas brasas, ali
naquela cadeira.
Calculo que saí de casa por volta... das duas e quarenta e cinco,
talvez. Mas, infelizmente, não fui ao jardim.
- Paciência - murmurou Hardcastle, a suspirar. - Temos de perguntar
a toda a gente.
- Evidentemente. Lamento não ter podido ajudar mais.
- Tem uma bonita casa - elogiou o inspector.Não se poupou a
despesas, se me permite que o diga.
Bland riu-se, jovial.
- Oh, gostamos de coisas bonitas! Minha mulher tem muito gosto e, o
ano passado, tivemos uma sorte inesperada: ela herdou algum dinheiro de
um tio que não via há vinte e cinco anos! Foi uma grande surpresa, claro, e
garanto-lhe que fez muito jeito. Podemos viver melhor e estou a pensar em
irmos num desses cruzeiros, lá mais para o fim do ano. Suponho que são
muito instrutivos. Grécia e tudo o mais... Vão muitos professores, que
fazem conferências. Não escondo que sou um autodidacta, que devo a mim
próprio o que sou e não tenho tido muito tempo para me instruir, mas essas
coisas interessam-me. O tipo que descobriu as ruínas de Tróia era
merceeiro, segundo me parece. Muito romântico. Confesso que gosto
muito de ir ao estrangeiro, embora por enquanto só me tenha sido possível
passar um ou outro fim-de-semana na alegre Paris. Ando a pensar em
vender tudo aqui e ir viver em Espanha, ou Portugal, ou até nas
Índias Ocidentais, como tantos outros. Os impostos são menores e tudo o
mais. Mas a ideia não agrada à minha mulher.
- Gosto de viajar, mas não desejaria viver fora da Inglaterra -
declarou Mrs. Bland. - Temos cá todos os nossos amigos... a minha irmã
vive aqui e toda a gente nos conhece. Se fôssemos para o estrangeiro,
seríamos autênticos desconhecidos. Além disso, temos um excelente
médico, que compreende o meu estado de saúde. Não gostaria de ter um
médico estrangeiro, não teria confiança nele...
- Veremos - disse Mr. Bland, alegremente.Faremos o nosso
cruzeiro... e talvez te apaixones por uma ilha grega.
Mrs. Bland fez uma cara de quem achava a possibilidade muito
remota.
- Suponho que haverá a bordo um médico inglês decente? -
perguntou, duvidosa.
- Oh, com certeza! - garantiu-lhe o marido.
Acompanhou Hardcastle e Colin à porta e repetiu lamentar não lhes
poder ser mais útil.
- Que pensa dele? - perguntou o inspector ao amigo, quando se
encontraram sós.
- Não o encarregaria de construir uma casa para mim... Mas não é um
pequeno construtor civil aldrabão que procuro; o que me interessa é um
homem dedicado a uma causa. Quanto ao seu assassino, também não se
ajusta ao tipo. Se Bland desse arsénico à mulher ou a empurrasse para o
Egeu a fim de herdar o seu dinheiro
e casar com uma loura espampanante, seria outra ordem de ideias...
- Trataremos disso quando acontecer, temos de investigar este
assassínio.
***
No número 62 de Wilbraham Crescent, Mrs. Ramsay dizia para
consigo, encorajadoramente: "Só mais dois dias... Só mais dois dias..."
Afastou uma madeixa de cabelo húmido da testa.
No mesmo instante, soou na cozinha um grande estrondo. Mrs.
Ramsay sentiu-se muito pouco inclinada a ir ver o que se passava. Se ao
menos pudesse fmgir que não houvera estrondo nenhum... Ora, eram só
mais dois dias! Atravessou o vestíbulo, abriu a porta da cozinha e
perguntou, em tom muito menos agressivo do que teria usado três semanas
antes:
- Que fizeram vocês agora?
- Desculpe, mãe - redarguiu Bill. - Estávamos a jogar bowling com
estas latas e, não sei como, chocaram com o fundo do armário da louça.
- Nós não atirámos de propósito - afirmou Ted, o mais novo.
- Bem, apanhem essas coisas, arrumem-nas no armário, varram os
cacos do que se partiu e deitem-nos na lata do lixo.
- Oh, mãe, agora não!
- Agora sim.
- Então o Ted que trate disso.
- Pois, tenho de ser sempre eu! Não apanharei nada se não apanhares
também.
- Aposto que apanhas.
- Aposto que não apanho.
- Obrigo-te.
- Ai!
Os dois rapazes desataram à pancada, furiosamente, Ted chocou com
a mesa da cozinha e uma taça de ovos estremeceu, perigosamente...
- Saiam da cozinha! - Mrs. Ramsay empurrou os dois rapazes pela
porta fora, fechou-a e começou a apanhar as latas e a varrer os cacos.
"Daqui a dois dias estarão de novo na escola!", pensou. "Que
maravilhoso, que celestial pensamento para uma mãe!"
Recordou vagamente um comentário cínico de uma jornalista
qualquer: Para uma mulher, só há seis dias felizes no ano: os primeiros e os
últimos dias das férias.
"Nunca se disse nada tão certo", pensou Mrs. Ramsay, enquanto
varria os cacos de uma parte do seu melhor serviço de jantar. Com que
prazer, com que alegria, aguardara a vinda dos seus filhos, havia apenas
cinco semanas! E agora? "Amanhã", repetiu mentalmente, "amanhã o Bill e
o Ted voltarão para a escola.
Até me custa a acreditar! Mal posso esperar!"
Como se sentira feliz quando os fora esperar à estação, havia cinco
semanas! Que alegria lhe causara o modo tempestuoso e terno como eles
tinham corrido para ela, o alvoroço com que tinham percorrido a casa toda
e o jardim! Um bolo especial, para o chá... E agora... Que desejava ela
agora? Um dia de paz completa! Não ter de preparar refeições colossais, de
andar sempre a arrumar o que eles desarrumavam...
Claro que gostava dos seus filhos. Eles eram excelentes rapazes, não
lhe restavam dúvidas nenhumas a esse respeito, e causavam-lhe orgulho.
Mas também eram extenuantes. O seu apetite, a sua vitalidade, o
barulho que faziam...
Uma grande gritaria fê-la virar a cabeça, assustada.
Não havia novidade, tinham ido apenas para o jardim.
Assim era melhor, no jardim tinham muito mais espaço.
Provavelmente, no entanto, aborreceriam a vizinhança. Oxalá deixassem os
gatos de Mrs. Hemming em paz! Não pelos gatos em si, a verdade acima
de tudo, mas porque a cerca de arame que protegia o quintal
de Mrs. Hemming lhes rasgaria os calções. Lançou um olhar rápido à
farmácia portátil, que estava à mão.
Claro que não a preocupavam muito os acidentes naturais resultantes
das brincadeiras de rapazes vigorosos... Na realidade, a primeira coisa que
costumava dizer era: "Não te disse centenas de vezes que não viesses a
sangrar para a sala? Quando acontecer uma coisa destas, vai direito à
cozinha, pois o sangue limpa-se bem do linóleo."
Um grande grito, vindo do exterior, pareceu morrer a meio. Seguiuse
um silêncio tão profundo que Mrs. Ramsay sentiu uma ferroada de medo
no coração.
Aquele silêncio não era natural... Parou, hesitante, com a pá cheia de
cacos na mão. A porta da cozinha abriu-se e Bill estacou à entrada, com
uma expressão extasiada, muito rara no seu rosto vivo de saudável rapaz de
onze anos.
- Mãe, está aqui um detective-inspector e mais outro homem.
- Que deseja ele, querido? - perguntou Mrs. Ramsay, aliviada.
- Perguntou por si, mas creio que deve ser por causa do assassínio.
Daquilo que se passou ontem em casa de Miss Pebmarsh, lembra-se?
- Não compreendo por que motivo precisará de falar comigo...
A vida só era feita de complicações, umas atrás das outras. Como
havia de preparar as batatas para o guisado se um detective-inspector se
lembrava de a visitar a hora tão imprópria?
- Bem, parece-me melhor ir ver o que se passa - resignou-se, a
suspirar.
Deitou os cacos na lata do lixo, lavou as mãos, endireitou
maquinalmente o cabelo e seguiu Bill, que dizia, impaciente:
- Despache-se, mãe!
Mrs. Ramsay entrou na sala, seguida de perto por Bill, e encontrou lá
dois homens, de pé. Ted, o mais novo dos filhos, observava-os de olhos
muito abertos.
- Mistress Ramsay?
- Bons dias.
- Espero que os seus homenzinhos lhe tenham dito que sou o
detective-inspector Hardcastle.
- Vem a uma hora muito má, muito má - protestou Mrs. Ramsay. -
Tenho tanto que fazer esta manhã! Demorará muito tempo?
- Quase nenhum - tranquilizou-a o inspector.Podemo-nos sentar?
- Claro, façam favor.
Mrs. Ramsay sentou-se numa cadeira de espaldar direito e olhou-os
cheia de impaciência. Desconfiava que não ia levar tão pouco tempo como
isso...
- Vocês não precisam de ficar - disse Hardcastle, a sorrir.
- Não nos vamos embora - afirmou Bill.
- Não nos vamos embora - repetiu Ted.
- Queremos ouvir tudo.
- Claro, tudo.
- Havia muito sangue? - quis saber Bill.
- Era um ladrão? - perguntou Ted.
- Calem-se, meninos - ordenou Mrs. Ramsay.Não ouviram Mister...
Mister Hardcastle dizer que não os queria aqui?
- Não saímos - afirmou Bill. - Queremos ouvir tudo.
Hardcastle foi abrir a porta, olhou para os rapazes e disse:
- Saiam.
Foi uma palavra apenas, dita calmamente, mas com autoridade. Os
miúdos levantaram-se, sem tugir nem mugir, e saíram a arrastar os pés.
"Que maravilha!", pensou Mrs. Ramsay, encantada. "Porque não
consigo eu ser assim?" Era a mãe deles, claro... Sabia, pelo que ouvia
dizer, que as crianças, quando saíam, se portavam de modo muito diferente
do adoptado em casa. As mães é que tinham sempre de suportar o pior.
Mas talvez fosse
preferível assim. Seria pior, muito pior, se, em casa, fossem
sossegados e corteses e, fora de casa, se portassem como verdadeiros
rufiões e causassem má impressão. Lembrou-se do que pretendiam dela
quando o inspector voltou a sentar-se.
- Se veio por causa do que se passou no número dezanove, creio que
não lhe posso dizer nada, inspector - declarou nervosamente. - Não sei
nada, nem sequer conheço as pessoas que lá moram.
- Mora lá apenas Miss Pebmarsh, uma senhora cega que trabalha no
Instituto Aaronberg.
- Ah! Não conheço praticamente ninguém do outro lado do crescente.
- Esteve em casa, ontem, entre o meio-dia e meia e as três horas?
- Estive, sim. Tinha de adiantar o jantar e tudo o mais... No entanto,
saí antes das três horas. Levei os pequenos ao cinema.
O inspector tirou a fotografia da algibeira e estendeu-lha.
- Agradecia que me dissesse se alguma vez viu este homem.
Mrs. Ramsay observou a fotografia com um bocadinho mais de
interesse.
- Creio que não. No entanto, não garanto que me lembrasse, se o
tivesse visto.
- Ele nunca lhe bateu à porta, a tentar angariar seguros ou vender
qualquer coisa?
Mrs. Ramsay abanou a cabeça, com maior segurança.
- Não, disso tenho a certeza.
- Supomos que o seu nome é Curry, Mister R. Curry.
O inspector olhou-a interrogadoramente, mas Mrs. Ramsay voltou a
abanar a cabeça.
- Sinto muito, mas praticamente não tenho tempo para reparar em
nada, durante as férias.
- É sempre um período muito atarefado, não é?
Tem ali dois mocetões, cheios de vitalidade... Às vezes, até, de
excessiva vitalidade, suponho?
Mrs. Ramsay sorriu pela primeira vez.
- Sim, às vezes tornam-se um bocadinho cansativos... Mas são bons
rapazes.
- Evidentemente. Devem ser muito inteligentes... Se não se importar,
conversarei um bocadinho com eles, antes de partir. As crianças reparam
em coisas que passam despercebidas às outras pessoas.
- Não vejo como possam ter reparado nalguma coisa. As casas não
ficam ao lado uma da outra...
- Mas as traseiras dos jardins dão uma para a outra.
- É verdade, embora haja muito espaço a separá-las.
- Conhece Mistress Hemming, do número vinte?
- Bem, de certo modo, conheço. Por causa dos gatos e de outras
pequenas coisas.
- Gosta de gatos?
- Oh, não, não se trata disso! Geralmente há queixas...
- Compreendo, queixas... Acerca de quê?
Mrs. Ramsay corou.
- Quando as pessoas têm gatos naquela quantidade catorze, nem
menos!, perdem por completo a cabeça acerca deles. É tudo uma grande
tolice. Gosto de gatos e nós próprios até tivemos um gato, um tigre que era
excelente caçador de ratos. Mas a maneira como aquela mulher procede,
meu Deus! Cozinha peixe especial, não deixa os pobres bichanos sair para
levarem a sua vida... Claro que os animais estão sempre a tentar fugir... eu
faria o mesmo, se fosse um dos gatos dela! Os meus filhos são bons
rapazes, incapazes de atormentar um gato seja em que sentido for... Os
gatos sabem muito bem olhar por eles, são animais inteligentes... desde que
os tratem como deve ser, evidentemente.
- Tem toda a razão. Deve ter muito trabalho para
manter os seus filhos bem alimentados e distraídos, durante as férias.
Quando voltam eles para a escola?
- Depois de amanhã.
- Desejo que possa descansar, então.
- Tenciono preguiçar o mais que puder!
O outro homem, que tomara notas, em silêncio, quase a assustou, ao
dizer inesperadamente:
- Devia arranjar uma daquelas raparigas estrangeiras. Creio que lhes
chamam au pair... Dão uma ajuda, em troca de lhes ensinarem inglês.
- Talvez ainda experimente qualquer coisa desse género... embora
tenha a impressão de que deve ser difícil aturar pessoas estrangeiras. O
meu marido ri-se de mim, mas é natural. Não tenho viajado tanto pelo
estrangeiro como ele.
- Ele agora está ausente, não está? - perguntou Hardcastle.
- Está. Teve de ir à Suécia, no princípio de Agosto. É engenheiro de
construções. Foi uma pena ter de partir logo no princípio das férias, pois
tem muita paciência com os pequenos. Gosta mais de brincar com
comboios eléctricos do que eles! Às vezes, as linhas e as estações enchem
o vestíbulo e chegam a entrar pelas outras casas! - Abanou a cabeça e
acrescentou, indulgente: - Os homens são tão crianças!
- Quando espera que ele volte, Mistress Ramsay?
- Nunca sei - respondeu, a suspirar. - Assim ainda é mais difícil. -
Colin reparou na tremura da sua voz e olhou-a com atenção.
- Não lhe roubamos mais tempo, Mistress Ramsay - disse Hardcastle,
ao mesmo tempo que se levantava. - Talvez os seus pequenos não se
importem de nos mostrar o jardim...
Bill e Ted, que esperavam no vestíbulo, não deixaram escapar a
oportunidade.
- Não é um jardim muito grande... - disse Bill, como quem se
desculpa.
Notava-se que tinham feito alguns esforços para manter o jardim de
Wilbraham Crescent, 62, num estado razoável. A um dos lados havia uma
bordadura de dálias e margaridas e, a seguir, um pequeno relvado, a
precisar de tesoura. Os caminhos precisavam de ser mondados e viam-se
aviões, astronaves e outros testemunhos da ciência moderna espalhados por
toda a parte e num estado um pouco lamentável. Ao fundo do jardim havia
uma macieira, carregada de tentadoras maçãs vermelhas, e ao lado uma
pereira. - Foi ali - disse Ted, a apontar para o espaço entre a macieira e a
pereira, através do qual se viam perfeitamente as traseiras da casa de Miss
Pebmarsh.Aquele é o número dezanove, onde cometeram o assassínio.
- Vêem bem a casa, hem? - perguntou o inspector. - Suponho que
ainda a devem ver melhor das janelas do primeiro andar.
- Pois vemos - concordou Bill. - Se ontem lá tivéssemos estado,
talvez víssemos alguma coisa, mas não estivemos.
- Fomos ao cinema - explicou Ted.
- Encontraram impressões digitais? - perguntou Bill.
- Encontrámos, mas não ajudaram muito. Ontem estiveram no
jardim?
- Sim, de vez em quando... Olhe, estivemos toda a manhã. Mas não
ouvimos nem vimos nada.
- Se cá tivéssemos estado de tarde - acrescentou Ted, pesaroso -,
talvez ouvíssemos gritos...
- Conhecem, de vista, Miss Pebmarsh, a senhora que lá mora?
Os rapazes entreolharam-se e acenaram afirmativamente.
- É cega, mas anda muito bem pelo jardim, disse Ted. - Não precisa de
andar com uma bengala nem nada dessas coisas. Uma vez, devolveu-nos
uma bola que caiu lá. Foi muito simpática.
- Ontem não a viram?
Abanaram os dois a cabeça e Bill explicou:
- Nunca a vimos de manhã, porque sai todos os dias. Geralmente vem
para o jardim depois do chá.
Colin observava uma mangueira que estava ligada a uma torneira,
dentro de casa, e ia ter a um canto, perto da pereira.
- Nunca me constou que as pereiras necessitassem de ser regadas -
comentou.
- Hum... - murmurou Bill, um bocadinho em baraçado.
- Por outro lado - prosseguiu Colin -, se trepassem a esta árvore... -
olhou para os rapazes e sorriu, de súbito - ... poderiam ver um belo
esguicho de água a banhar um gato, não poderiam?
Os dois miúdos começaram a raspar o saibro, com os pés, e olharam
para todos os lados menos para Colin.
- É o que vocês fazem, não é? - perguntou.
- Bem, não os aleija... - murmurou Bill, e acrescentou, com um ar
muito virtuoso: - Não é como uma fisga.
- Creio que, em certa altura, se serviram de uma fisga...
- Mal e porcamente, pois nunca conseguíamos acertar em nada -
desabafou Ted.
- Seja como for, divertem-se com a mangueira e, por isso, Mistress
Hemming queixa-se.
- Ela está sempre a queixar-se - resmungou Bill.
- Alguma vez transpuseram a vedação?
- Nunca passámos aqui pelo arame - apressou-se a responder Ted,
desprevenido.
- Mas às vezes entram no jardim dela, não entram? Como o
conseguem?
- Bem, podemos passar pela cerca que dá para o jardim de Miss
Pebmarsh... e depois, mais abaixo, à direita, entrar no jardim de Mistress
Hemming. O arame tem um buraco.
- Não te sabes calar, idiota? - perguntou Bill.
- Desconfio que têm andado a procurar pistas, desde que souberam
do assassínio... - insinuou Hardcastle.
Os rapazes entreolharam-se.
- Aposto que, quando regressaram do cinema e souberam o que
acontecera, passaram pela cerca para o jardim do número dezanove e se
divertiram à grande, a procurar...
- Bem... - Bill calou-se, cauteloso.
- Não me admiraria se tivessem encontrado alguma coisa que nos
escapou a nós - acrescentou o inspector, muito sério. - Se encontraram
alguma coisa, ficaria muito agradecido se ma mostrassem.
Bill decidiu-se:
- Vai buscá-las.
Ted partiu, a correr.
- Não temos nada de especial... - confessou Bill. - Só... fingimos.
Olhou ansiosamente para Hardcastle, que declarou:
- Compreendo muito bem. A maior parte do trabalho policial também
é assim. Temos muitas decepções.
Bill pareceu aliviado.
Ted voltou, também a correr, e entregou um lenço sujo e atado, cujo
conteúdo tilintava. Hardcastle desatou-o, com um miúdo de cada lado, e
estudou os achados...
Encontrou a asa de uma chávena, um fragmento de porcelana com
um desenho de salgueiros, um sacho partido, um garfo ferrugento, uma
moeda, uma mola de roupa, um bocado de vidro colorido e metade de uma
tesoura.
- Interessante colecção - comentou, gravemente.
Depois compadeceu-se das caras ávidas dos miúdos e pegou no
bocado de vidro.
- Levo isto. Talvez se relacione com qualquer coisa.
Colin pegou na moeda e examinou-a.
- Não é inglesa - disse Ted.
- Pois não, não é inglesa. - Colin olhou inspector e acrescentou: -
Talvez seja melhor também.
- Não digam uma palavra a ninguém, a este respeito - recomendou
Hardcastle, em tom confidente.
- Ramsay... - murmurou Colin, pensativo.
- Que tem ele de especial?
- Agrada-me, apenas. Parte para o estrangeiro, de um momento para
o outro... A mulher diz que é engenheiro de construções, mas parece não
saber mais nada a seu respeito.
- É uma mulher simpática.
- Pois é... e pouco feliz.
- Cansada, apenas. Os miúdos são cansativos.
- Há mais do que isso, suponho.
- O tipo de pessoa que procura não estaria, com certeza,
sobrecarregado com mulher e dois filhoslembrou Hardcastle, céptico.
- Nunca se sabe. Ficaria surpreendido se soubesse o que alguns tipos
inventam, como disfarce. Uma viúva sem recursos e com dois filhos podia
muito bem estar disposta a fazer um acordo...
- Não me deu a impressão de ser uma mulher dessas - resmungou
Hardcastle, muito puritano.
- Não me referia a viver em pecado, meu caro. Queria somente dizer
que ela aceitaria ser Mistress Ramsay, a fim de lhe proporcionar um
passado. Naturalmente ele ter-lhe-ia impingido uma história convincente:
tinha um trabalho de espionagem para o nosso lado, tudo muito patriótico...
Hardcastle abanou a cabeça.
- Vocês vivem num mundo estranho, Colin.
- Pois vivemos. Creio que, um dia, terei de o abandonar... A certa
altura começamos a esquecer como são as coisas e as pessoas. Metade
daquela gente trabalha para os dois lados e, no fim, nem sabe de que lado
está, na realidade. Perde-se a noção dos valores...
Bem, mas continuemos a trabalhar.
- Parece-me melhor tentarmos também os McNaughton - decidiu
Hardcastle, parado junto da cancela do 63. - Uma parte do jardim deles
toca no do dezanove, como o dos Bland.
- Que sabe acerca dos McNaughton?
- Pouco. Vieram para cá há cerca de um ano e são idosos. Creio que
ele é professor reformado e se entretém a trabalhar no jardim.
O jardim da frente tinha roseiras e um canteiro de açafrão outonal,
debaixo das janelas.
Uma jovem alegre, de bata florida, abriu-lhes a porta e perguntou:
- Que desejam?
- A empregada estrangeira, finalmente! - murmurou Hardcastle, e
mostrou o seu cartão.
- Polícia! - exclamou a jovem e recuou alguns passos, a olhar para o
inspector como se ele fosse um demónio em pessoa.
- Mistress McNaughton? - perguntou Hardcastle.
- Mistress McNaughton mora aqui.
A rapariga levou-os para a sala, que dava para o jardim das traseiras e
estava deserta.
- Deve estar lá em cima - murmurou a empregada, já sem alegria,
enquanto ia ao vestíbulo e chamava: - Mistress McNaughton... Mistress
McNaughton...
- Que se passa, Gretel? - perguntou uma voz que a distância abafava.
- É a Polícia... Dois polícias. Levei-os para a sala.
Ouviu-se um ruído de passos, no andar de cima, e as palavras:
- Meu Deus, que mais teremos?
Soaram passos na escada e, passados instantes, Mrs. McNaughton
entrou na sala, com um ar preocupado. Hardcastle não tardaria a notar que
Mrs. McNaughton apresentava quase sempre esse ar de preocupação.
- Meu Deus, meu Deus... - repetiu. - Inspector... ah, sim, Hardcastle.
Porque nos veio visitar? Não sabemos nada do assunto. Suponho que se
trata do assassínio... Não é por causa da licença do televisor, pois não?
Hardcastle tranquilizou-a a esse respeito.
- Parece tudo tão extraordinário! - exclamou a dona da casa, mais
animada. - E logo por volta do meio-dia! Uma hora muito esquisita para
entrar na residência alheia, pois as pessoas costumam estar em casa para o
almoço... Mas, nos tempos que correm, os jornais andam cheios de coisas
horrorosas desse género, que acontecem em pleno dia. Uns amigos nossos
saíram para almoçar fora, chegou uma camioneta de mudanças, os homens
arrombaram a porta e levaram a mobília toda! A rua inteira assistiu, mas,
naturalmente, não pensou que fosse um roubo. Ontem tive a impressão de
ouvir alguém gritar, mas o meu marido, Angus, disse que deviam ser
aqueles insuportáveis pequenos de Mistress Ramsay. Correm pelo jardim a
fazer ruídos como astronaves, foguetões, bombas atómicas... Às vezes
metem medo.
Hardcastle voltou a mostrar a fotografia:
- Alguma vez viu este homem, Mistress McNaughton?
A mulher observou-a, com avidez.
- Tenho quase a certeza de que vi. Sim, sim, tenho
praticamente a certeza. Ora deixe ver onde foi... Terá sido o homem
que veio perguntar se queria comprar uma enciclopédia nova, em catorze
volumes? Ou o que veio com um novo modelo de aspirador? Despachei-o,
mas ele foi atormentar o meu marido, no jardim da frente. Angus estava a
plantar uns bolbos e não queria que o interrompessem, mas o homem
começou a explicar as coisas que o aparelho fazia, como limpava
cortinados, degraus, almofadas, etc. Contou a história toda, toda! No fim,
Angus levantou a cabeça e perguntou: "Serve para plantar bolbos?" Não
pude conter o riso, pois o homem ficou aparvalhado e foi-se logo embora.
- E parece-lhe que esse homem era o desta fotografia?
- Não, creio que não. Agora me lembro que era muito mais novo. No
entanto, tenho a impressão de já ter visto esta cara... Sim, quanto mais olho
para a fotografia, mais me convenço de que esse homem veio cá tentar
vender-me qualquer coisa.
- Angariar seguros, talvez?
- Não, seguros não. Isso é o meu marido que atende. Temos todos os
seguros devidos. Mas quanto mais olho para a fotografia...
Hardcastle não se mostrou muito entusiasmado. A sua experiência
permitia-lhe colocar Mrs. McNaughton na categoria de pessoas desejosas
de terem visto alguém relacionado com um assassínio. Quanto mais
olhasse para a fotografia, mais se convenceria de que se lembrava de
alguém parecido.
Suspirou, desanimado, mas a interlocutora prosseguiu:
- Creio que conduzia uma furgoneta, mas não me consigo lembrar
quando foi. Uma furgoneta de padeiro, suponho.
- Não o viu ontem, pois não, Mistress McNaughton?
O rosto da mulher entristeceu um pouco e ela afastou da testa o
cabelo grisalho, ondulado e um pouco rebelde.
- Não, ontem não o vi. Pelo menos... pelo menos creio que não. -
Animou-se um bocadinho e acrescentou: - Talvez o meu marido se lembre!
- Ele está em casa?
- Está lá fora, no jardim. - Apontou para a janela e o inspector viu um
homem idoso a empurrar um carrinho de mão.
- Vamos até lá falar com ele.
Mrs. McNaughton levou-os ao jardim por uma porta lateral. O
marido estava todo suado.
- Estes senhores são da Polícia, Angus - anunciou a mulher, ofegante.
- Vieram por causa do assassínio verificado em casa de Miss Pebmarsh e
trazem uma fotografia da vítima. Sabes, tenho a impressão de já o ter visto
em qualquer lado... Não será o que veio cá a semana passada, perguntar se
tínhamos antiguidades para vender?
- Deixe-me ver - pediu Mr. McNaughton ao inspector. - Mas segure o
senhor na fotografia, pois eu tenho as mãos todas sujas de terra.
Lançou-lhe um olhar breve e afirmou:
- Nunca o vi na minha vida.
- Disseram-me que gostava muito de jardinagem - observou
Hardcastle.
- Quem? Não foi, com certeza, Mistress Ramsay?
- Não. Foi Mister Bland.
- Bland não sabe o que é jardinagem - rosnou o velho. - Só sabe fazer
canteiros. Plantar begónias e gerânios e bordaduras de lobélias. Não é a
isso que eu chamo jardinagem. Lembra-me um jardim público... Interessa-se
por arbustos, inspector? Claro que a época do ano não é apropriada, mas
tenho aqui um ou dois arbustos que o surpreenderão. Dizem que só se dão
no Devon e na Cornualha...
- Infelizmente, não posso dizer que perceba de jardinagem...
McNaughton olhou-o, como um artista olha para uma pessoa que diz
não perceber nada de arte, mas saber do que gosta.
- Trouxe-me cá um assunto muito menos agradável - prosseguiu o
inspector.
- Sem dúvida, essa história de ontem. Eu estava no jardim, quando
aconteceu.
- Sim?
- Quero dizer, estava aqui quando a pequena desatou aos gritos.
- Que fez?
- Bem... não fiz nada - confessou Mr. McNaughton, um pouco
envergonhado. - Pensei que fossem aqueles malditos fedelhos dos Ramsay,
que passam a vida a gritar como danados.
- Mas os gritos não vinham da mesma direcção...
- Isso teria algum significado se os tratantes não saíssem do seu
jardim, mas eles saem, passam pelas vedações dos outros... Perseguem os
estupores dos gatos de Mistress Hemming por todo o lado. O mal é não
terem ninguém com mão firme para os dominar. A mãe é fraca como
água... Quando não há um homem em casa, as crianças tornam-se
indisciplinadas...
- Consta-me que Mister Ramsay passa muito tempo no estrangeiro.
- Sim, ouvi dizer que é engenheiro - concordou o velho, vagamente. -
Está sempre a ausentar-se. Parece que constrói represas... ou oleodutos, ou
lá o que é. Não sei ao certo. Há um mês, teve de partir de repente para a
Suécia. A mãe dos pequenos ficou cheia de trabalho, coitada. Cozinhar,
fazer a lida da casa, mais isto e mais aquilo... Claro, eles apanharam-se à
solta e parecem dois demónios. Não são maus pequenos, note, mas
precisam de disciplina.
- O senhor não viu nada? Só ouviu os gritos? A propósito, quando foi
isso?
- Não faço ideia. Tiro sempre o relógio, quando venho cá para fora.
Outro dia molhei-o, com a mangueira, e depois foi um sarilho para o
consertar.Voltou-se para a mulher e perguntou-lhe: - Que horas eram,
minha querida? Tu também ouviste, não ouviste?
- Talvez fossem umas duas e meia... Pelo menos foi meia hora depois
de acabarmos de almoçar.
- A que horas almoçam?
- À uma e meia... se estamos em maré de sorte - respondeu Mr.
McNaughton. - A nossa empregada dinamarquesa não tem noção nenhuma
do tempo.
- E depois do almoço, costuma dormir uma sesta?
- Às vezes. Ontem não dormi; queria acabar o que estava a fazer.
Precisava de arrancar umas coisas, para pôr no monte de adubo composto...
- É uma coisa maravilhosa, o adubo composto - sentenciou
Hardcastle.
- Não há nada que se lhe compare! - concordou o velhote,
entusiasmado. - Não imagina a quantidade de pessoas que tenho
convertido! Usavam aqueles adubos químicos, que são um verdadeiro
suicídio! Venha cá, eu mostro-lhe.
Puxou o inspector por um braço e, ao mesmo tempo que empurrava o
carrinho de mão, levou-o junto da cerca que separava o seu jardim do do
número dezanove.
O monte de adubo composto lá estava em toda a sua glória, no meio
de uma moita de lilases. Mr. McNaughton meteu o carro num pequeno
barracão, onde tinha diversas ferramentas bem arrumadas.
- Tem tudo muito ordenado - elogiou o inspector.
- Devemos cuidar bem das nossas ferramentas.
Hardcastle olhou pensativamente para o número 19. Do outro lado da
cerca havia uma pérgola de roseiras, que seguia até um dos lados da casa.
- Não viu ninguém no jardim do número dezanove, nem a espreitar
pela janela, ou qualquer coisa desse género, enquanto esteve a trabalhar no
adubo?
- Não vi absolutamente nada. Lamento não o poder ajudar, inspector.
- Sabes, Angus, tenho a impressão de que vi um vulto, no jardim do
dezanove...
- Não creio que tenhas visto, minha querida - afirmou o marido, com
firmeza. - Eu também não vi.
- Aquela mulher seria capaz de dizer que viu tudo! - resmungou
Hardcastle, quando voltaram para o automóvel.
- Não acredita que ela tenha reconhecido a fotografia?
- Duvido muito. Só quer pensar que viu o tipo. Conheço bem de
mais, por meu mal, este género de testemunhas. Quando insisti, não foi
capaz de dar meia para a caixa, pois não?
- Não.
- Claro que pode ter viajado defronte dele num autocarro ou coisa
parecida. Até aí, admito. Mas, se quer a minha opinião franca, não passa
tudo de fantasia, do que ela desejava que fosse. E você, que pensa?
- O mesmo.
- Não obtivemos grandes resultados. - Hardcastle suspirou. - Há,
evidentemente, pormenores que se afiguram esquisitos... Por exemplo,
parece quase impossível que Mistress Hemming, apesar da sua obsessão
pelos gatos, saiba tão pouco acerca da vizinha, Miss Pebmarsh, como diz.
Igualmente me pareceu estranho que ela se mostrasse tão vaga e tão
desinteressada pelo assassínio.
- Ela é uma mulher vaga.
- Ausente - resmungou o inspector. - Quando se encontra uma mulher
assim, podem haver incêndios, roubos e assassínios à sua volta sem elas
darem por isso.
- Está muito protegida com todas aquelas cercas de arame e os
arbustos vitorianos não deixam ver grande coisa.
Chegaram à esquadra. Hardcastle sorriu ao amigo e disse-lhe:
- Bem, sargento Lamb, por hoje dispenso-o do serviço.
- Não há mais visitas a fazer?
- De momento, não. Talvez faça outra, mais tarde, mas não o levarei.
- Bem, obrigado pela boleia da manhã. Pode mandar dactilografar
estes apontamentos que tomei? - Estendeu a agenda ao inspector e
perguntou: - O inquérito sempre é depois de amanhã, como disse? A que
horas?
- Às onze.
- Voltarei a tempo.
- Vai-se embora?
- Tenho de ir a Londres amanhã, apresentar o meu relatório.
- Calculo a quem.
- Não devia calcular.
- Dê saudades minhas ao velhote - pediu Hardcastle, a rir.
- Talvez vá, também, consultar um especialista.
- Um especialista? De quê? Há alguma coisa que não funciona bem?
- A cabeça: estupidez pura e simples. Não me referia a especialistas
médicos e, sim, a um especialista da sua profissão.
- Scotland Yard?
- Não. Um detective particular, amigo do meu pai e meu. Esta sua
fantástica história será um pratinho para ele! Adorará e sentir-se-á mais
animado... e eu tenho a impressão de que ele precisa de que o animem.
- Como se chama?
- Hercule Poirot.
- Já tenho ouvido falar dele, mas pensava que morrera.
- Não morreu, mas tenho a impressão de que se sente entediado, o
que é pior do que estar morto.
Hardcastle olhou-o, com curiosidade, e comentou:
- Você é um tipo esquisito, Colin. Arranja amigos tão estranhos!
- Incluindo você - respondeu Colin, a sorrir.
Depois de se despedir de Colin, o inspector Hardcastle olhou para a
morada escrita na sua agenda e acenou com a cabeça. Guardou a agenda e
começou a despachar os vários assuntos rotineiros que se tinham
acumulado.
Foi um dia muito atarefado para ele. Mandou vir café e sanduíches e
recebeu relatórios do sargento Cray: não surgira nenhuma pista relevante.
Ninguém reconhecera a fotografia de Mr. Curry na estação de caminhos-de-ferro nem na dos autocarros, e os relatórios do laboratório também não
ajudavam nada. O fato fora feito por um bom alfaiate, mas a etiqueta com o
seu nome tinha sido tirada. Desejo de anonimato da parte de Mr. Curry? Ou
da parte do seu assassino?
Foram enviados pormenores acerca dos seus dentes a diversos lados e
talvez se encontrassem aí as melhores pistas. Era uma coisa que demorava
um bocadinho, mas costumava dar resultado. A não ser, claro, que Mr.
Curry fosse estrangeiro... O inspector Hardcastle encarou tal possibilidade.
Talvez o morto fosse francês... No entanto, o seu vestuário não tinha nada
de francês. Por enquanto, também não tinham encontrado marcas de
lavandaria.
Hardcastle não estava, porém, impaciente. A identificação costumava
ser uma tarefa demorada, mas no fim aparecia sempre alguém que resolvia
o problema.
Uma lavandaria, um dentista, um médico, uma pessoa de família,
geralmente a mulher ou a mãe, ou uma senhoria. A fotografia do morto
seria distribuída pelas esquadras e publicada nos jornais. Mais cedo ou
mais tarde, conhecer-se-ia a verdadeira identidade de Mr. Curry.
Entretanto, era preciso trabalhar, e não apenas no caso Curry.
Hardcastle trabalhou sem descanso até às
cinco e meia. A essa hora olhou para o relógio e achou que chegara o
momento de fazer a visita que tinha em mente.
O sargento Cray informara-o de que Sheila Webb recomeçara a
trabalhar no gabinete Cavendish e às cinco horas iria ao Curlew Hotel
estenografar uns apontamentos do professor Purdy. O mais provável seria
não se despachar antes das seis horas.
Como se chamava a tia da pequena?... Lawton, Mrs. Lawton. A
morada era Palmerston Road, 14. Em vez de pedir um carro da Polícia,
Hardcastle preferiu percorrer a pé a curta distância.
Palmerston Road era uma rua sombria que, como se costuma dizer,
conhecera melhores dias. Hardcastle notou que as casas tinham sido quase
todas convertidas em apartamentos. Quando o inspector dobrou a esquina,
uma rapariga que caminhava na sua direcção hesitou momentaneamente.
Distraído, o inspector julgou que ela lhe ia perguntar o caminho para
qualquer lado, mas se era essa a sua intenção desistiu e passou por ele sem
parar. Hardcastle perguntou a si mesmo por que motivo lhe teria acudido
ao espírito, inesperadamente, a ideia de sapatos. Sapatos... Não, um sapato.
A cara da jovem era-lhe, também, familiar...
Quem seria? Alguém que vira ultimamente? Talvez ela o tivesse
reconhecido, também, e hesitasse sem saber se lhe deveria falar.
Parou e olhou para trás. A rapariga ia a andar muito depressa. A
dificuldade residia no facto de ela ter um daqueles rostos indistintos e
difíceis de reconhecer, a não ser que existisse alguma razão especial.
Olhos azuis, pele clara, boca ligeiramente aberta... Boca. Isso
também lhe recordava qualquer coisa. Qualquer coisa que a vira fazer com
a boca? Falar? Pintar os lábios? Não. Sentiu-se um bocadinho irritado
consigo próprio. Hardcastle gabava-se de ser previsto, de fixar rostos.
Costumava dizer que nunca esquecia uma cara que visse no banco dos réus
ou no das testemunhas... Mas, no fim de contas, havia outros lugares para
ver pessoas. Não reconheceria, por exemplo, as inúmeras criadas de
restaurantes que o tinham servido. Nem as condutoras de autocarros...
Afastou o assunto do pensamento.
Chegou ao número 14. A porta estava entreaberta e havia quatro
botões de campainha, com os nomes dos respectivos inquilinos em baixo.
Mrs. Lawton morava no rés-do-chão. Entrou na escada e tocou à
campainha da porta do lado esquerdo do vestíbulo. Só passados momentos
ouviu passos, dentro de casa.
Abriu-lhe, finalmente, a porta uma mulher alta, de cabelo escuro
despenteado e avental. Estava um pouco ofegante. Do interior, sem dúvida
da cozinha, vinha um cheiro acentuado a cebolas.
- Mistress Lawton?
- Sim - respondeu, desconfiada e um bocadinho aborrecida.
O inspector calculou que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos e
achou-lhe um aspecto vagamente aciganado.
- Que deseja?
- Ficar-lhe-ia grato se me pudesse dispensar uns minutos.
- Para quê? Neste momento estou muito atarefada. - E perguntou,
irritada: - Não é repórter, pois não?
- Calculo que tenham sido muito incomodadas pelos repórteres -
observou Hardcastle, em tom compreensivo.
- Se temos! Todo o dia a baterem à porta, a tocarem à campainha e a
fazerem as perguntas mais estúpidas que se possa imaginar!
- Concordo que é muito aborrecido e desejaria poder poupar-lhe
todas essas maçadas, Mistress Lawton. Sou o detective-inspector
Hardcastle e estou encarregado de investigar o caso acerca do qual os
repórteres a têm atormentado. Se pudéssemos, teríamos evitado esses
contratempos, mas como sabe não podemos. A imprensa tem os seus
direitos...
- É uma vergonha incomodarem particulares da maneira que
incomodam, a pretexto de que precisam de notícias para dar ao público!
Quanto a mim, a única coisa que tenho notado nas notícias que publicam é
que são uma teia de mentiras, do princípio ao fim. São capazes de inventar
tudo! Mas queira entrar.
A mulher desviou-se para o lado e o inspector entrou e fechou a
porta. Mrs. Lawton baixou-se para apanhar umas cartas que tinham caído
no tapete, mas, delicadamente, Hardcastle adiantou-se-lhe e apanhou-as.
Os seus olhos ercorreram-nas durante meio segundo, enquanto as
entregava, com os endereços para cima.
- Obrigada. - Mrs. Lawton colocou-as em cima da mesa do vestíbulo.
- Entre para a sala, sim? É por essa porta. Tem de me dar licença por um
momento, pois parece-me que está qualquer coisa a ferver.
Mrs. Lawton correu para a cozinha e o inspector lançou um último
olhar deliberado às cartas. Uma estava dirigida a Mrs. Lawton e as outras
duas a Miss R. S. Webb. Entrou, então, no aposento indicado. Era uma sala
pequena e desarrumada, pobremente mobilada, mas aqui e ali tinha uma
mancha de cor ou algum objecto fora do vulgar. Uma bonita, e
provavelmente cara, peça de vidro veneziano, de cores suaves e forma
abstracta; duas almofadas de veludo de cores vivas; uma travessa de
cerâmica estrangeira, com conchas...
Ou a tia ou a sobrinha tinham uma certa tendência para a
originalidade.
Mrs. Lawton voltou, um pouco mais ofegante do que anteriormente.
- Creio que podemos conversar, agora - declarou, embora em tom
pouco convincente.
- Peço desculpa de ter vindo a uma hora inconveniente, mas
encontrava-me perto e precisava de averiguar mais alguns pormenores
acerca deste caso em que a sua sobrinha teve a pouca sorte de ser
envolvida. Espero que ela já se tenha refeito do grande abalo que sofreu. ..
- Sim, Sheila chegou a casa num estado lastimoso. Mas esta manhã já
estava boa e voltou para o trabalho.
- Bem sei. Disseram-me, no entanto, que ela se encontrava com um
cliente, em qualquer lado, e como não quis interferir no seu trabalho pensei
que seria melhor vir até cá e falar-lhe na sua própria casa. Mas, pelo que
vejo, ainda não regressou, pois não?
- Provavelmente regressará tarde. Foi trabalhar para um tal professor
Purdy e, segundo Sheila diz, ele é um homem que não tem a mínima noção
do tempo.
Está sempre a dizer: "Como isto não levará mais do que dez minutos,
parece-me melhor irmos até ao fim." Mas os dez minutos arrastam-se quase
sempre e transformam-se em três quartos de hora ou uma hora. No entanto,
é uma pessoa muito simpática e correcta. Uma vez ou duas insistiu em que
ela ficasse para jantar com ele e pareceu muito preocupado por a ter retido
muito mais tempo do que supusera. Há alguma coisa que eu lhe possa
dizer, inspector? Sheila pode-se demorar muito...
- Não creio... Claro que, no outro dia, só tomámos nota dos principais
pormenores e eu nem sei se correctamente. - Consultou, de modo
ostensivo, o livro de apontamentos. - Ora deixe ver. Miss Sheila Webb. É
este o seu nome completo ou tem outro nome próprio? Como sabe,
precisamos de todos estes pormenores muito certos, para as actas do
inquérito.
- O inquérito é depois de amanhã, não é? Ela recebeu uma
convocação...
- Sim, mas escusa de se preocupar com isso. Terá apenas de explicar
como encontrou o corpo.
- Ainda não sabem quem era o homem?
- Não. Ainda é cedo para isso. Ele tinha um cartão na algibeira e nós
pensámos, ao princípio, que se tratasse de um agente de seguros. Parece,
agora, mais provável que o cartão lhe tenha sido dado por alguém. Talvez
ele próprio tencionasse fazer algum seguro.
- Compreendo - murmurou Mrs. Lawton, vagamente interessada.
- Vamos, então, confirmar os nomes... Creio que escrevi Miss Sheila
Webb ou Miss Sheila R. Webb, mas não me lembro a que se refere o "R".
É Rosalie?
- Rosemary. O seu nome de baptismo é Rosemary Sheila, mas ela
achou sempre o Rosemary piroso e diz chamar-se apenas Sheila.
- Compreendo.
Nada, no tom de voz de Hardcastle, demonstrava o seu
contentamento por uma das suas suspeitas ter batido certo. Reparou
também numa coisa: o nome de Rosemary não impressionava nada Mrs.
Lawton. Para ela, Rosemary era apenas um nome próprio que a sua
sobrinha não usava.
- Agora já está certo - continuou o inspector, a sorrir. - Suponho que
a sua sobrinha veio de Londres e trabalha no Gabinete Cavendish há cerca
de dez meses. Creio que não se lembra da data exacta?
- Sim, não me lembro. Sei que foi em Novembro passado, para o fim
do mês...
- Muito bem, não tem importância. Ela não morava consigo, aqui,
antes de aceitar emprego no Gabinete Cavendish?
- Não. Residia em Londres.
- Tem a sua morada em Londres?
- Tenho-a aí em qualquer lado... - Mrs. Lawton olhou à sua volta,
com a expressão vaga das pessoas habitualmente desarrumadas. - Tenho
uma memória péssima. Era qualquer coisa como Allington Grove, para os
lados de Fulham... Compartilhava um apartamento com duas outras
pequenas. Os quartos para raparigas são muito caros, em Londres.
- Lembra-se do nome da firma onde ela trabalhava?
- Lembro, sim. Hopgood & Trent. Eram agentes de propriedades na
Fulham Road.
- Obrigado. Bem, tudo isto parece muito claro. Creio que Miss Webb
é órfã? - É. - Mrs. Lawton mexeu-se, pouco à vontade, e olhou na direcção
da porta. - Importa-se que vá de novo à cozinha?
- Faça favor.
O inspector abriu a porta e ela saiu. Seria impressão sua, ou a última
pergunta que fizera perturbara Mrs. Lawton? Até então respondera
rapidamente, sem hesitar... Pensou no assunto até Mrs. Lawton regressar.
- Desculpe, mas cozinhar tem que se lhe diga... Agora está tudo a
andar bem. Deseja perguntar-me mais alguma coisa? A propósito, lembrei-me
de que a morada não era Allington Grove. Era Carrington Grove,
dezassete.
- Obrigado. Creio que lhe estava a perguntar se Miss Webb era órfã.
- É, sim. Os pais morreram.
- Há muito tempo?
- Quando ela era pequena.
Adivinhava-se no tom da sua voz uma espécie de desafio quase
imperceptível.
- Era filha de uma irmã sua ou de um irmão?
- De uma irmã.
- Qual era a profissão de Mister Webb?
Mrs. Lawton pensou um momento, a morder os lábios, e por fim
respondeu:
- Não sei.
- Não sabe?
- Quero dizer, não me lembro. Foi há tanto tempo...
Hardcastle aguardou, pois sabia que ela voltaria a falar. Não se
enganou.
- Posso perguntar que tem tudo isto a ver com o caso? Quero dizer,
que interessa quem eram os pais da minha sobrinha, o que fazia o pai dela,
etc.?
- Suponho que, na realidade, uma coisa não tem nada a ver com a
outra, do seu ponto de vista. Mas as circunstâncias são muito invulgares,
compreende?
- As circunstâncias são muito invulgares? Que quer dizer?
- Temos motivos para crer que Miss Webb foi àquela casa porque a
requisitaram especificamente, pelo nome, ao Gabinete Cavendish. Parece,
portanto, que alguém arranjou as coisas de propósito, para que ela lá
estivesse. Alguém, talvez... enfim, com qualquer ressentimento contra ela.
- Não acredito que alguém possa ter qualquer ressentimento contra
Sheila. É uma jóia de rapariga, simpática e dada...
- Sim, também foi essa a impressão que me causou.
- Não me agrada ouvir insinuar o contrárioafirmou Mrs. Lawton, com
certa agressividade.
- Decerto. - Hardcastle continuou a sorrir, apaziguador. - Mas deve
compreender, Mistress Lawton, que tudo indica ter a sua sobrinha sido
deliberadamente escolhida como vítima. Meteram-na de propósito em
sarilhos, como dizem nos filmes. Alguém arranjou maneira de ela entrar
numa casa onde estava um morto, um morto que fora assassinado havia
pouco tempo. Parece, pois, que se trata de um acto maldoso.
- Quer dizer... quer dizer que alguém tentou dar a impressão de que
foi Sheila que o matou? Oh, não, não posso acreditar!
- É, de facto, difícil de acreditar - concordou o inspector. - Mas
precisamos de esclarecer tudo, de ter a certeza. Haverá, por exemplo,
algum jovem, algum rapaz que se tenha apaixonado pela sua sobrinha e de
quem ela não goste? Os rapazes novos fazem, às
vezes, coisas muito cruéis e vingativas, sobretudo se são
desequilibrados.
- Não creio que se trate de nada desse género -murmurou Mrs. Lawton,
de olhos semicerrados e testa franzida, a pensar. - Sheila tem-se dado com
um ou dois rapazes, mas não é nada de sério.
- Talvez se tenha passado alguma coisa enquanto ela viveu em
Londres - sugeriu o inspector.É possível que a senhora não esteja muito
bem informada acerca dos amigos que ela lá teve.
- Sim, é possível... Mas a esse respeito terá de a interrogar a ela
própria, inspector Hardcastle. No entanto, nunca me constou que tivesse
qualquer aborrecimento dessa espécie.
- Também se poderá tratar de alguma rapariga... Não será possível
que uma das jovens com quem ela compartilhou o apartamento a invejasse
ou tivesse ciúmes dela?
- Não me admiraria que existisse uma rapariga que desejasse pregar-lhe
uma partida, mas certamente não iria ao ponto de envolver assassínio.
A observação era sensata e Hardcastle compreendeu que Mrs.
Lawton não tinha nada de tola. Apressou-se a dizer:
- Sei que parece muito improvável, mas a verdade é que todo este
caso é incrível.
- Deve ter sido algum doido...
- Mesmo na loucura há uma ideia definida a motivar as acções,
qualquer coisa que lhes dá origem. Foi por isso que lhe fiz perguntas acerca
do pai e da mãe de Sheila Webb. Ficaria surpreendida se soubesse como é
frequente os motivos terem raízes no passado. Como os pais de Miss
Webb morreram quando era pequena, ela não me saberá, naturalmente,
dizer nada acerca deles. Por isso recorri à senhora.
- Compreendo... sim, compreendo. Mas... bem...
O inspector notou que a perturbação e a incerteza tinham voltado à
sua voz.
- Eles morreram ao mesmo tempo, num acidente ou em qualquer
coisa desse género?
- Não, não houve nenhum acidente.
- Morreram ambos de causas naturais?
- Eu... bem, sim... quero dizer, não sei, francamente.
- Penso que deve saber um pouco mais do que diz, Mistress Lawton.
Eram divorciados, estavam separados?
- Não, não eram divorciados.
- Ora vamos, Mistress Lawton! Deve saber de que morreu a sua irmã.
- Não compreendo que... quero dizer, é muito difícil... É muito
melhor não remexer no passado...
Os seus olhos exprimiam uma perplexidade desesperada.
O inspector fitou-a, com atenção, e depois perguntou, docemente:
- Sheila Webb será... uma filha ilegítima?
No rosto de Mrs. Lawton estampou-se, imediatamente, um misto de
consternação e alívio.
- Ela não é minha filha.
- É filha ilegítima da sua irmã?
- É... mas ignora-o. Nunca lho disse. Disse-lhe que os pais morreram
novos e é por isso que... enfim, compreende.. .
- Compreendo, sim. E garanto-lhe que, a não ser que desse lado surja
qualquer necessidade imperiosa de investigação, não interrogarei Miss
Webb a tal respeito.
- Não precisará de lhe dizer?
- Só se tiver alguma importância para a solução do caso, o que,
confesso, me parece improvável. Mas preciso de tomar conhecimento de
todos os factos que a senhora sabe, embora prometendo-lhe que farei o
possível para que fique apenas entre nós o que me disser.
- Não é uma coisa agradável e eu confesso que fiquei muito
transtornada. A minha irmã fora sempre a mais inteligente da família, era
professora e muito respeitada. Enfim, a última pessoa que se julgaria capaz
de...
- Isso acontece muitas vezes - interrompeu o inspector, com tacto. -
Ela conheceu esse homem, esse Webb...
- Nunca sequer soube como ele se chamava - interveio Mrs. Lawton.
- Nunca o conheci. Mas ela procurou-me e disse-me o que sucedera, que
esperava um filho e que o homem não podia, ou não queria, nunca soube
ao certo, casar com ela. Minha irmã era ambiciosa e, se se descobrisse a
verdade, teria de desistir do seu trabalho. Por isso, naturalmente, eu...
eu disse que estava disposta a ajudar.
- Onde está agora a sua irmã, Mistress Lawton?
- Não faço a mínima ideia - declarou, com ênfase. - Absolutamente
nenhuma ideia.
- Mas vive?
- Suponho que sim.
- Não se mantiveram em contacto?
- Ela não quis. Achou melhor para a criança e para ela haver uma
separação total. Tínhamos ambas um pequeno rendimento, que a nossa mãe
nos deixara.
Ann passou a sua parte para o meu nome, para a manutenção da filha.
Disse que continuaria a desempenhar a sua profissão, mas mudaria de
escola. Suponho que tinha um plano qualquer de substituir um professor no
estrangeiro, durante um ano. Na Austrália ou em qualquer outro lado. É
tudo quanto sei, inspector Hardcastle, e tudo quanto lhe posso dizer.
Hardcastle fitou-a, pensativo. Seria, realmente, tudo quanto ela
sabia? Era difícil ter a certeza. O que era certo era não tencionar dizer-lhe
mais nada. No entanto, talvez não soubesse, de facto, mais do que dissera.
As poucas referências que fizera à irmã tinham bastado para dar a
impressão de que se tratava de uma personalidade imperiosa, severa e
implacável, de uma mulher decidida a não permitir que um erro lhe
estragasse a vida. Friamente, insensivelmente, providenciara para a
manutenção e presumível felicidade da filha, e a partir desse momento
afastara-se de vez, para recomeçar a vida sozinha. Era admissível que
sentisse assim em relação à filha. Mas e a irmã? - Parece estranho que ela
não tenha, ao menos, comunicado consigo por carta, que não tenha querido
saber como se desenvolvia a filha...
- Se conhecesse Ann não se admiraria. Foi sempre muito firme nas
suas decisões. Além disso, não éramos muito unidas. Eu era muito mais
nova... doze anos... Repito, nunca fomos muito unidas.
- Que pensou o seu marido da adopção?
- Eu era viúva. Casei nova e o meu marido foi morto na guerra. Nessa
altura, tinha uma pequena loja onde vendia doces.
- Onde foi isso? Não foi aqui em Crowdean, pois não?
- Não. Vivíamos no Lincolnshire. Vim aqui passar umas férias, uma
vez, e gostei tanto que trespassei a loja e mudei-me para cá. Mais tarde,
quando Sheila entrou para a escola, empreguei-me na firma Roscoe &
West, a grande loja de fanqueiro da terra. Ainda lá trabalho. São pessoas
muito simpáticas.
- Muito obrigado pela sua franqueza, Mistress Lawton - agradeceu
Hardcastle, enquanto se levantava.
- Não dirá nada a Sheila?
- Só se for indispensável, e só será indispensável se verificarmos que
certas circunstâncias do passado têm qualquer relação com este assassínio
de Wilbraham Crescent, dezanove. Parece-me improvável, como já lhe
disse. - Tirou da algibeira a fotografia que já mostrara a tanta gente e
estendeu-a a Mrs. Lawton.Não faz nenhuma ideia de quem possa ser este
homem?
- Já me mostraram a fotografia - respondeu a mulher, mas pegou-lhe
e observou-a com atenção.Não, tenho a certeza de que nunca o vi. Não
creio que seja destes lados, pois de contrário talvez me lembrasse de o ter
visto por aí. Claro... - Olhou de novo, atentamente, antes de acrescentar, de
modo inesperado: - Parece uma pessoa decente. Um cavalheiro, não acha?
Era uma expressão ligeiramente fora de moda, no âmbito da
experiência do inspector, mas não pareceu deslocada nos lábios de Mrs.
Lawton. "Criada na província...", disse para consigo. "Ainda pensam
assim."
Olhou por sua vez para a fotografia e verificou, surpreendido, que
pessoalmente não pensara no morto dessa maneira. Seria um homem
decente? Era singular, mas presumira exactamente o contrário. Presumira-o
inconscientemente, talvez, ou talvez influenciado pelo facto de o indivíduo
ter na algibeira um cartão com um nome e uma morada que tudo indicava
serem falsos. Era possível que a explicação que dera a Mrs. Lawton, pouco
antes, fosse verdadeira, que o cartão pertencesse a algum falso agente de
seguros e que este o tivesse dado ao morto... Isso tornaria tudo ainda mais
complicado. Aborrecido, viu as horas.
- Não a quero afastar por mais tempo dos seus cozinhados. Como a
sua sobrinha ainda não chegou...
Mrs. Lawton olhou também para o relógio da chaminé. "Graças a
Deus só há um relógio nesta sala!", pensou o inspector.
- Sim, ela está atrasada... muito atrasada. Ainda bem que a Edna não
esperou.
Ao ver a expressão um pouco intrigada do inspector, exglicou:
- É uma das pequenas do escritório. Veio cá, para conversar com a
Sheila, mas depois de esperar um bocado disse que não se podia demorar
mais e foi-se embora, pois tinha um encontro qualquer. Acrescentou que
falaria com a minha sobrinha amanhã ou qualquer outro dia.
Fez-se luz no espírito do inspector: a rapariga que se cruzara com ele
na rua! Já sabia por que motivo ela o fizera pensar em sapatos. Claro! Era a
jovem que o atendera, no Gabinete Cavendish, e que, quando ele saía,
segurava um sapato com o salto partido e perguntava às colegas como
havia de se arranjar para chegar a casa. Lembrava-se agora de que era uma
pequena banal, pouco atraente e que chupava uma guloseima qualquer,
enquanto falava. Ela reconhecera-o, ao encontrá-lo na rua, e hesitara, como
se pretendesse falar-lhe. Que lhe teria querido dizer? Pretenderia explicarlhe
porque visitara Sheila Webb ou pensaria que ele esperava que lhe
dissesse alguma coisa?
- É uma grande amiga da sua sobrinha?
- Nem por isso. Quero dizer, trabalham no mesmo escritório, mas
Edna é uma pequena enfadonha, pouco inteligente, e não são grandes
amigas. Por sinal, até me admirei de mostrar tanto interesse em falar com
Sheila esta noite. Disse-me que se tratava de uma coisa que não
compreendia e acerca da qual queria falar com a minha sobrinha.
- Mas não lhe explicou o que era?
- Não. Disse que podia esperar e que não tinha importância.
- Bem, vou andando.
- Admira-me a Sheila não ter telefonado... Geralmente telefona,
quando está atrasada, tanto mais que, às vezes, o professor a convida para
jantar. Enfim, deve chegar de um momento para o outro. As bichas para os
autocarros são enormes, a esta hora, e o Curlew Hotel ainda fica longe. Não
deseja deixar nenhum recado para ela?
- Suponho que não...
Quando ia a sair, perguntou:
- Já agora, diga-me uma coisa: quem escolheu os nomes próprios da
sua sobrinha, Rosemary e Sheila? A sua irmã ou a senhora?
- Sheila era o nome da nossa mãe. Rosemary foi
escolha da minha irmã. Confesso que me admirou. Trata-se de um
nome romanesco e a minha irmã não era nada romanesca nem sentimental.
- Bem, boas noites.
Quando chegou à rua, o inspector ia a pensar:
"Rosemary... hum... Terá escolhido Rosemary como recordação
romântica e perfumada... ou por qualquer outro motivo diferente?"
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Subi a Charing Cross Road e virei para o labirinto de ruas que abrem
sinuosamente caminho entre a New Oxford Street e Covent Garden. Havia
ali toda a sorte de estabelecimentos insuspeitos: lojas de antiguidades, um
hospital de bonecas, uma loja de sapatilhas de ballet, charcutarias de
especialidades estrangeiras, etc.
Resisti à tentação do hospital de bonecas, com os seus vários pares de
olhos de vidro azul e castanho, e cheguei, finalmente, ao meu destino: uma
livrariazinha modesta, numa transversal que não ficava muito longe do
Museu Britânico. No exterior, encontravam-se as habituais prateleiras de
livros: romances antigos, velhos livros de estudo, todo o género de leituras
com etiquetas de 3 d., 6 d.,1 x., e até alguns "aristocratas" com as páginas
quase todas e, ocasionalmente, as encadernações intactas.
Esgueirei-me pela porta dentro. Tive mesmo de me esgueirar, pois a
quantidade de livros, em equilíbrio precário, roubava cada vez mais espaço.
No interior,
havia-os por toda a parte, como se crescessem e se multiplicassem
num desenfreamento, sem a mão forte de alguém a dominá-los. O espaço
entre as estantes era tão pequeno que só com grande dificuldade
se conseguia passar. Havia rimas de livros em todas as prateleiras e em
todas as mesas. Sentado num banco, a um canto, verdadeiramente
emoldurado por livros, estava um velho de barrete e cara larga e
inexpressiva como um peixe embalsamado. Tinha o ar de quem desistira de
uma luta desigual. Tentara dominar os livros, mas era evidente que os
livros o tinham dominado a ele. Era uma espécie de rei Canuto do mundo
dos livros, a retirar perante o avanço da maré livreira... Se lhe ordenasse
que parasse, seria com a certeza absoluta e desesperada de não ser
obedecido. Tratava-se de Mr. Soloman, proprietário da loja. Quando me
reconheceu, acenou com a cabeça e o seu olhar de peixe suavizou-se um
momento.
- Tem alguma coisa da minha especialidade?
- Terá de ir ver lá acima, Mister Lamb. Continua interessado nas
algas e coisas parecidas?
- Continuo.
- Bem, sabe onde estão. Biologia marinha, fósseis, Antárctica:
segundo andar. Recebi uma encomenda nova, anteontem. Comecei a
desembrulhá-los, mas não acabei. Encontrá-los-á a um canto, lá em cima.
Acenei com a cabeça e continuei a esgueirar-me até ao fundo da loja,
donde partia uma escada pequena, pouco segura e muito suja. O primeiro
andar era reservado ao Oriente, a livros de arte e medicina e a clássicos
franceses. A sala tinha um canto muito interessante, separado por uma
cortina e desconhecido do público em geral, mas acessível aos peritos,
onde se encontravam os volumes chamados "estranhos" ou "curiosos".
Segui o meu caminho para o segundo andar.
Aí se encontravam, muito inadequadamente separados por categorias,
livros sobre arqueologia, história
natural e outras matérias respeitáveis. Abri caminho por entre
estudantes, coronéis idosos e sacerdotes, contornei o ângulo de uma
estante, passei por cima de vários embrulhos de livros, que se encontravam
no chão e tinham começado a ser abertos, e vi o meu progresso impedido
por dois estudantes de sexos opostos, perdidos para o mundo num abraço
muito apertado.
Balançavam-se de um lado para o outro, muito agarrados. "Com
licença", pedi e, firmemente, afastei-os para o lado, levantei uma cortina
que encobria uma porta, tirei uma chave da algibeira, introduzi-a na
fechadura e entrei. Encontrei-me, incongruentemente, numa espécie de
vestíbulo de paredes caiadas e limpas, das quais pendiam gravuras de gado
escocês. Dirigi-me a uma porta que tinha uma aldrava reluzente, bati
devagarinho e apareceu uma mulher idosa, de cabelo grisalho, óculos de
modelo muito antigo, saia preta e uma camisola às riscas verdes, que não
podia destoar mais do conjunto do que destoava.
- É você? - murmurou, sem qualquer outra forma de cumprimento. -
Ele perguntou por si, ontem. Não estava satisfeito. - Abanou a cabeça,
como uma velha ama a ralhar com uma criança decepcionante,
e acrescentou: - Tem de se esforçar para obter melhores resultados.
- Deixe-se disso, ama.
- Não me trate por ama! É preciso atrevimento! Já lhe tenho dito...
- A culpa é sua. Não deve falar comigo como se eu fosse um
rapazinho.
- Já era tempo de crescer, já... É melhor entrar e despachar-se. -
Carregou num botão, levantou o auscultador do telefone e anunciou: -
Mister Colin... Sim, vou mandá-lo entrar. - Repôs o auscultador e acenou-me
com a cabeça.
Transpus uma porta do fundo da sala e entrei noutro aposento, tão
cheio de fumo de charuto que quase não se via nada. Quando os meus
olhos, a arder, se habituaram ao ambiente, distingui as volumosas
proporções do meu chefe, recostado numa velha poltrona junto da qual se
encontrava uma mesinha assente numa base giratória.
O coronel Beck tirou os óculos, afastou a mesinha, em cima da qual
estava um grosso volume, e olhou-me de modo desaprovador.
- É você, finalmente?
- Sou, sim.
- Soube alguma coisa?
- Não, senhor.
- Ah! Bem, Colin, assim não vale. Assim não vale, ouviu?
Crescentes!
- Continuo a pensar o mesmo.
- Está bem, continua a pensar. Mas nós não podemos esperar
eternamente, enquanto você pensa.
- Admito que foi apenas um pressentimento...
- Não há mal nenhum nisso.
O coronel Beck era um homem cheio de contradições.
- Os melhores trabalhos que fiz foram inspirados por
pressentimentos, mas este seu pressentimento parece que não está a dar
resultado. Já acabou com os bares?
- Já. Como lhe disse, comecei por crescentes... quero dizer, casas em
crescentes...
- Também não supus que se referisse a padarias especializadas em
croissants... embora, afinal, não fosse nada de extraordinário. Alguns
desses estabelecimentos fazem ponto de honra em fabricar croissants
franceses que não são nada franceses. Congelam-nos, como a tudo o mais,
hoje em dia. É por isso que nada sabe, já, a nada.
Esperei que o velhote desenvolvesse o tópico, que era um dos seus
favoritos, mas ele percebeu e dominou-se.
- Já percorreu tudo?
- Quase tudo. Ainda falta um bocadinho.
- Quer mais tempo, não é?
- É, quero mais tempo. Mas, de momento, não estou interessado em
mudar de terra. Houve uma espécie de coincidência e pode, pode apenas,
significar alguma coisa.
- Não esteja com rodeios... Apresente-me factos.
- Local de investigação: Wilbraham Crescent.
- E falhou! Ou não?
- Não tenho a certeza.
- Esclareça, rapaz, esclareça.
- A coincidência reside no facto de terem assassinado um homem em
Wilbraham Crescent.
- Quem foi assassinado?
- Ainda não se sabe. Tinha na algibeira um cartão com um nome e
uma morada, mas era falso.
- Hum... é sugestivo. Tem alguma relação com o resto?
- Se tem ainda não a encontrei, mas, mesmo assim...
- Bem sei, bem sei. Mesmo assim... Mas, afinal, que veio cá fazer?
Pedir autorização para continuar a farejar em Wilbraham Crescent... onde
quer que isso seja?
- Fica numa terra chamada Crowdean, a dezasseis quilómetros de
Portlebury.
- Sim, sim, uma localidade muito boa. Mas para que está você aqui?
Não costuma pedir autorização, faz o que a sua cabeça teimosa lhe dita,
não é?
- Creio que é...
- Então de que se trata?
- Há umas pessoas que desejaria fossem investigadas.
O coronel Beck suspirou, puxou de novo a mesinha, tirou uma
esferográfica da algibeira e fitou-me.
- Então?
- Uma casa chamada Diana Lodge, Wilbraham Crescent, vinte. Vive
lá uma mulher, uma tal Mistress Hemming, e uns dezoito gatos.
- Diana? Hum... Deusa da Lua! Diana Lodge. Que faz essa Mistress
Hemming?
- Nada. Vive absorvida nos seus gatos.
- Excelente disfarce - comentou o coronel. Podia ser, pelo menos.
Mais nada?
- Há, também, um homem chamado Ramsay, que mora em
Wilbraham Crescent, sessenta e dois. Diz ser engenheiro de construções,
não sei bem o que seja... e viaja muito pelo estrangeiro.
- Esse agrada-me... agrada-me mesmo muito. Quer saber coisas
acerca dele, não é verdade? Muito bem.
- Tem mulher, uma senhora simpática, e dois barulhentíssimos
rapazes.
- Não me espanta. Há precedentes. Lembra-se do Pendleton?
Também tinha mulher e filhos. Uma mulher simpática e a mais estúpida
que jamais conheci. Nunca lhe passou pela cabeça que o marido não fosse
um pilar de respeitabilidade, um honrado negociante de livros orientais.
Agora que penso no assunto, o Pendleton também tinha uma mulher alemã
e duas filhas... assim como uma mulher suíça, na Suíça. Francamente, não
sei o que elas representavam, se excessos íntimos, se camuflagem, apenas.
Claro que ele diria que eram camuflagem... Mas, muito bem, você quer
saber coisas acerca de Mister Ramsay. Mais alguma coisa?
- Não sei bem... Há um casal no número sessenta e três. Ele é
professor reformado, chama-se McNaughton, é escocês e idoso. Passa o
tempo a trabalhar no jardim. Não há motivo nenhum para desconfiar dele e
da mulher, mas...
- Está bem, verificaremos. Passá-lo-emos pela máquina, para termos
a certeza. A propósito, que é toda esta gente?
- São pessoas cujos jardins são contíguos ou tocam no da casa onde
se deu o assassínio.
- Parece um jogo francês: Onde está o cadáver do meu tio? No
jardim do primo da minha tia... E a respeito do número dezanove?
- Mora lá uma mulher cega, antiga professora. Presentemente
trabalha num instituto para cegos e deficientes e está a ser investigada pela
Polícia.
- Vive sozinha?
- Vive.
- E qual é a sua ideia a respeito das outras pessoas?
- A minha ideia é que se uma dessas pessoas cometesse um
assassínio em qualquer dessas casas, seria fácil, embora arriscado,
transferir o cadáver para o número dezanove, a uma hora apropriada. Não
passa de uma simples possibilidade, claro. Já agora, gostaria de lhe
mostrar... isto.
- Um haller checo. Onde o achou?
- Não fui eu que o achei. Mas estava no jardim das traseiras do
número dezanove.
- Interessante. Afinal, talvez essa sua persistente ideia fixa das luas e
quartos crescentes tenha alguma razão de ser... Há um bar chamado Quarto
Crescente na rua a seguir a esta. Porque não vai lá tentar a sorte?
- Já lá fui.
- Tem resposta para tudo, não tem? Quer um charuto?
- Obrigado, mas hoje não tenho tempo.
- Volta para Crowdean?
- Volto. Há o inquérito.
- Será adiado, apenas. Tem a certeza de que não anda atrás de
nenhuma pequena, em Crowdean?
- Claro que tenho a certeza! - repliquei, secamente, e o coronel Beck
desatou a rir.
- Tenha cuidado, meu filho! O sexo a empinar a sua hedionda cabeça,
como de costume... Há quanto tempo a conhece?
- Não há nenhuma... Quero dizer, foi uma rapariga que descobriu o
cadáver.
- Que fez ela, quando o descobriu?
- Gritou.
- Muito apropriado. Correu para si, chorou no seu ombro e contou-lhe
tudo, não foi?
- Não sei de que está a falar - redargui, friamente. - Dê uma vista de
olhos a isto.
Estendi-lhe um jogo de fotografias.
- Quem é?
- O morto.
- Dez contra um em como essa rapariga que tanto lhe interessa o
matou! Toda essa história me parece muito suspeita...
- Como, se ainda não lha contei?
- Não preciso que ma conte. Vá ao seu inquérito, meu rapaz, e tenha
cuidado com essa pequena. Ela chama-se Diana, ou Ártemis, ou qualquer
coisa relacionada com luas ou crescentes?
- Não.
- Bem, não se esqueça de que pode haver sempre qualquer relação.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Havia muito tempo que não visitava Whitehaven Mansions. Alguns
anos atrás, fora um prédio imponente, de apartamentos modernos. Agora
erguiam-se de ambos os lados muitos outros ainda mais modernos e
imponentes. Notei que, no interior, sofrera reparações recentes e estava
pintado de tons suaves de amarelo e verde.
Subi no elevador e toquei à campainha do número 203. Abriu a porta
o impecável George, cujo rosto se iluminou num sorriso de boas-vindas.
- Mister Colin! Há quanto tempo não o víamos!
- É verdade. Como está, George?
- Estou bem de saúde, felizmente, senhor.
- E ele? - perguntei, mais baixo.
George baixou também a voz, embora não fosse praticamente
necessário, pois desde o princípio da nossa conversa que falava em tom
muito discreto.
- Creio que, às vezes, se sente um pouco deprimido.
Acenei com a cabeça, compreensivamente.
George pegou no meu chapéu e convidou:
- Por aqui, Mister Colin...
- Anuncie-me como Mister Colin Lamb, por favor.
- Muito bem. - Abriu uma porta e anunciou, em voz clara: - Mister
Colin Lamb deseja vê-lo. Recuou, para me deixar passar, e eu entrei no
aposento.
O meu amigo Hercule Poirot estava sentado na sua habitual poltrona
quadrada, defronte da lareira. Reparei que um dos elementos do irradiador
eléctrico rectangular estava ligado. Setembro ainda ia no princípio e estava
calor, mas Poirot era um dos primeiros homens a sentir o fresco do Outono
e precaver-se contra ele. No chão, de ambos os lados da poltrona,
estavam diversos livros, bem empilhados, e havia mais livros na mesa, à
sua esquerda. A sua direita encontrava-se uma chávena fumegante. Uma
tisana, supus. Gostava de tisanas e, às vezes, insistia comigo para que as
tomasse, também. Tinham um gosto enjoativo e um cheiro forte.
- Não se levante - pedi, mas Poirot já avançava para mim, de mãos
estendidas e sapatos de verniz a rebrilhar.
- Ah, é você, é você, meu amigo! O meu jovem amigo Colin! Mas
porque disse que se chamava Lamb*? Deixe-me pensar... Há um provérbio
qualquer, do carneiro vestido com a pele do cordeiro... Não, isso é o que se
costuma dizer das velhotas que querem passar por mais novas do que são.
* Lamb, em inglês, significa cordeiro. (N. da T.).
Claro que não se
aplica a si. Ah, já sei! É um lobo com pele de cordeiro, não é?
- Não. Pensei apenas que, na minha profissão, o meu verdadeiro
apelido podia ser prejudicial, podia ser facilmente relacionado com o do
meu pai. Por isso escolhi o de Lamb. Curto, simples, fácil de lembrar... e,
digo-o sem modéstia, de acordo com a minha personalidade.
- Oh, a esse respeito, não juraria! Como está o meu bom amigo e seu
pai?
- O velhote está óptimo. Muito atarefado com as suas malvas-rosas...
ou serão crisântemos? As estações passam tão depressa que nunca sei qual
é a flor do momento.
- Ele entretém-se, então, com a horticultura?
- Parece que toda a gente opta por isso, no fim.
- Eu não! Uma vez dediquei-me às abóboras, mas não voltei! Se uma
pessoa deseja ter as flores mais bonitas, porque não vai a uma florista?
Julguei que o bom superintendente fosse escrever as suas memórias.
- Ele começou, mas eram tantas as coisas que não podia contar que
chegou à conclusão de que o resto não valia a pena ser contado.
- É necessário ser discreto... É uma pena, pois o seu pai podia contar
algumas coisas muito interessantes. Admiro-o muito, sempre admirei.
Achava os seus métodos muito interessantes, sabe? Era uma pessoa que
avançava resolutamente em frente, que sabia utilizar o óbvio como mais
ninguém... Preparava uma armadilha, a armadilha mais óbvia possível, e as
pessoas que queria apanhar diziam: "É muito evidente, não pode ser
verdade..." E, zás, caíam nela!
Ri-me.
- Bem, hoje não é moda os filhos admirarem os pais. Muitos sentamse,
enchem as canetas de veneno, recordam todas as coisas desagradáveis e
feias e escrevem tudo com grande satisfação. Mas eu, pessoalmente, tenho
um enorme respeito pelo meu velhote. Só desejo vir a ser tão bom como
ele foi... embora não tenha exactamente a mesma profissão.
- Mas a que tem está estritamente relacionada com a dele, embora
você tenha de trabalhar nos bastidores de modo diferente do dele. - Tossiu
delicadamente. - Creio que o devo felicitar pelo seu recente e espectacular
êxito. O caso Larkin...
- Já se sabe muito, mas eu gostaria de saber muito mais, para
arredondar bem as contas... Não foi, no entanto, para falar disso que vim.
- Claro que não, claro que não... - Poirot indicou-me uma cadeira e
ofereceu-me uma tisana, que recusei imediatamente.
George entrou muito a propósito, com uma garrafa de uísque, um
copo e um sifão, que colocou junto de mim.
- E o senhor, que faz? - Olhei para os vários livros que o cercavam e
acrescentei: - Parece que se dedica a qualquer espécie de pesquisa...
- Pode chamar-lhe assim - admitiu Poirot, a suspirar. - Sim, talvez,
em certo sentido, seja isso. Ultimamente tenho sentido uma grande
necessidade de um problema qualquer. Disse para comigo que
não interessava a natureza do problema, que podia ser como o do bom
Sherlock Holmes: a que profundidade se enterrara a salsa na manteiga? O
que importava era que existisse um problema. Compreende, não são os
músculos que preciso exercitar e, sim, as células cerebrais.
- Compreendo. É tudo uma questão de se manter em forma.
- Exactamente. - Poirot suspirou de novo. Mas, mon cher, os
problemas não são fáceis de encontrar. É verdade que, na quinta-feira
passada, se me apresentou um: o indevido aparecimento de três bocados de
casca de laranja seca no receptáculo dos chapéus-de-chuva. Como tinham
lá ido parar? Como podiam lá ter ido parar? Eu não como laranjas e o
George
jamais poria cascas de laranja no receptáculo dos chapéus-de-chuva.
Também era pouco provável que uma visita trouxesse três bocados de
casca de laranja seca. Um problema complicado!
- Resolveu-o?
- Resolvi. - Explicou, com mais melancolia do que orgulho: - No fim,
nem sequer foi muito interessante. Um caso de substituição da habitual
mulher-a-dias. A substituta trouxe com ela, em absoluta desobediência às
ordens dadas, um dos seus filhos. Embora não pareça interessante, a
verdade é que exigiu uma firme penetração numa rede de mentiras,
disfarces e tudo o mais. Digamos que foi satisfatório, mas não importante.
- Decepcionante - sugeri.
- Enfin, eu sou modesto... Mas ninguém precisa de utilizar um florete
para cortar o cordel de um embrulho.
Abanei a cabeça, com um ar muito solene, e Poirot prosseguiu:
- Ultimamente, tenho-me entretido a ler vários mistérios da vida real,
que nunca foram decifrados. Aplico-lhes as minhas soluções.
- Refere-se a casos como o do Bravo, de Adelaide Bartlett e todos os
demais?
- Exactamente. Mas, em certo sentido, foi demasiado fácil. Não
restam quaisquer dúvidas no meu espírito quanto a quem assassinou
Charles Bravo. A dama de companhia talvez estivesse implicada, mas não
foi, com certeza, a alma danada do caso. Temos, também, o caso daquela
infeliz adolescente, Constance Kent. O verdadeiro motivo que a levou a
estrangular o irmãozinho, a quem sem dúvida amava, constituiu sempre um
quebra-cabeças. Mas deixou de o ser para mim assim que li a história.
Quanto a Lizzie Borden, só desejaria poder fazer certas perguntas
essenciais a várias pessoas. Tenho mais ou menos a certeza de quais seriam
as respostas. Mas, infelizmente, essas pessoas já devem ter morrido todas.
Pensei para comigo, como já me sucedera tantas vezes, que a
modéstia não era o forte de Hercule Poirot...
- E que fiz a seguir? - Calculei que não devia ter tido muito com
quem falar, nos últimos tempos, e que estava a gostar de ouvir a sua
própria voz. - Da vida real passei para a ficção. Como vê, tenho à minha
esquerda e à minha direita vários exemplos de ficção policial. Tenho estado
a trabalhar de trás para a frente... Olhe... - pegou no livro que pusera no
braço da poltrona, quando eu entrara - meu caro Colin, aqui tem 'O Caso
Leavenworth'.
- Deve ter recuado muito... Creio que o meu pai disse ter lido este
livro, quando era rapaz, e suponho que eu próprio também o li. Deve
parecer muito fora de moda, agora.
- É admirável! Uma pessoa saboreia a sua atmosfera coeva, o seu
melodrama estudado e deliberado, as deliciosas e exuberantes descrições
da beleza dourada de Eleanor e da beleza prateada de Mary...
- Tenho de o reler! Já não me lembro das passagens acerca de
raparigas bonitas.
- Há ainda aquela criada, Hannah, muito bem vista, e o assassino, que
constitui um excelente estudo psicológico.
Compreendi que me esperava um sermão e preparei-me para escutar.
- Temos, também, As Aventuras de Arsène Lupin. Quanta fantasia,
quanta irrealidade e, contudo, quanto vigor, quanta vitalidade, quanta vida
São absurdas, mas têm panache! E humor, também.
Largou As Aventuras de Arsène Lupin e pegou noutro livro.
- O Mistério do Quarto Amarelo... Este, ah, este é um verdadeiro
clássico! Merece a minha aprovação do princípio ao fim. Tão lógico!
Lembro-me de que algumas críticas o acusaram de desleal, meu caro Colin.
Não, não! Quase, talvez, mas quase, apenas. Tem a sua diferença. Há
verdade em todo ele, uma verdade porventura oculta pela cuidadosa e
inteligente escolha das palavras... Tudo devia estar perfeitamente claro no
momento supremo em que os homens se encontram no ângulo dos três
corredores. - Largou o livro, com reverência. - Uma verdadeira obra-prima...
e, suponho, quase esquecido, presentemente.
Poirot saltou por cima de cerca de vinte anos e começou a falar de
autores mais recentes.
- Também li algumas das primeiras obras de Mistress Ariadne Oliver.
Ela é uma pessoa minha amiga, e suponho que sua, mas eu não aprovo
inteiramente os seus trabalhos. Os acontecimentos descritos são
muito improváveis, usa e abusa da coincidência... e, em virtude de ser
muito jovem quando começou, cometeu a tolice de escolher um finlandês
para detective. Ora é evidente que ela não sabe nada acerca dos Finlandeses
nem da Finlândia, a não ser, talvez, as obras de Sibélius. No entanto, possui
uma mentalidade original, por vezes apresenta deduções inteligentes, e nos
últimos anos aprendeu muito acerca de coisas que anteriormente
desconhecia, como, por exemplo, o modo de agir da Polícia. Agora
também merece mais confiança no capítulo das armas de fogo e, essa
necessidade ainda se fazia sentir mais!, provavelmente arranjou um amigo
solicitador ou advogado que a esclareceu acerca de certos pormenores
jurídicos.
Pôs de parte Ariadne Oliver e pegou noutro livro.
- Mister Cyril Quain. Ah, Mister Quain é um mestre na arte do álibi!
- Se a memória não me atraiçoa, é um escritor muito enfadonho.
- É verdade que não acontece nos seus livros nada muito
emocionante... - admitiu Poirot. - Há um cadáver, evidentemente, e, de vez
em quando, até mais do que um... Mas o principal é sempre o álibi, o
horário dos comboios, o trajecto dos autocarros, o traçado das estradas.
Confesso que aprecio este intrincado emprego do álibi... e gosto de tentar
apanhar Mister Cyril Quain em falta.
- E, provavelmente, consegue-o sempre.
Poirot foi sincero:
- Nem sempre. Não, nem sempre... Claro que, ao fim de certo tempo,
compreendemos que um livro dele é quase igual a todos os outros... Os
álibis assemelham-se, embora não sejam exactamente os mesmos. Sabe,
mon cher Colin, imagino Cyril Quain sentado na sua sala, a fumar
cachimbo, como aparece nas fotografias, e rodeado pelo A. B. C., pelo
Bradshaw continental, por brochuras das companhias de aviação, por
horários de todas as espécies... Até por pautas dos movimentos dos
transatlânticos! Diga-se o que se disser, Colin, há ordem e método em
Mister Cyril Quain.
Largou o livro de Mr. Quain e pegou noutro.
- Agora temos aqui Mister Garry Gregson, um fecundíssimo autor de
romances policiais. Creio que escreveu pelo menos sessenta e quatro... É
quase o oposto perfeito de Mister Quain. Nos livros de Mister Quain
acontecem poucas coisas; nos de Garry Gregson acontecem demasiadas e
de modo implausível e confuso. E é tudo muito colorido, melodrama bem
explorado... Sangue, cadáveres, pistas, emoções, amontoa-se tudo numa
grande superabundância, é tudo muito sinistro e muito diferente da
realidade. Não é dos meus preferidos... Lembra um desses cocktails
americanos do tipo mais obscuro, cujos ingredientes são muito suspeitos.
Poirot fez uma pausa, antes de reatar a prelecção:
- Voltemo-nos agora para a América. - Pegou num livro da pilha da
esquerda. - Florence Elks. Aqui há ordem e método, muito colorido, mas
também muito acerto, alegria e vivacidade. Esta senhora tem talento,
embora, como acontece a tantos escritores americanos, pareça um pouco
obcecada pela bebida.
Eu sou, como sabe, um connaisseur de vinho. Agrada-me sempre
encontrar numa história um clarete ou um
borgonha, com a vintage e a data devidamente autenticadas. Mas a
quantidade exacta de uísque e Bourbon consumida em todas as páginas
pelo detective de um policial americano não me interessa nada. O facto
de ele beber um litro ou meio litro não me parece afectar de modo nenhum
a acção da história. Este motivo do álcool nos livros americanos
assemelha-se muito ao que a cabeça do rei Carlos foi para o pobre Mister
Dick, quando tentou escrever as suas memórias. É impossível afastá-lo.
- E quanto à escola dos duros?
Poirot afastou a escola dos duros com um gesto de mão, como se
afastasse um mosquito importuno.
- A violência pelo amor da violência? Desde quando é isso
interessante? Vi muita violência, nos meus primeiros tempos de oficial da
Polícia. Mais vale ler um livro de estudo de medicina! Tout de même, dou
à ficção policial americana, no seu conjunto, uma nota muito elevada.
Creio que é mais engenhosa, mais imaginativa do que a inglesa. É menos
atmosférica e menos sobrecarregada de ambiente do que a maioria da
ficção francesa. Veja Louisa O'Malley, por exemplo.Pegou noutro livro. -
O seu estilo literário é modelar e erudito, mas quantas emoções, quanta
apreensão crescente desperta nos leitores! Aquelas mansões de arenito de
Nova Iorque... Enfin, eu nunca soube o que era uma mansão de arenito...
Aqueles apartamentos luxuosos, aquele pretensiosismo aristocrata... e, no
fundo, filões insuspeitos de crime seguem os seus caminhos imprevistos.
Podia acontecer assim... e acontece assim. Louisa O'Malley é uma boa
escritora, muito boa, mesmo.
Suspirou, recostou-se na poltrona, abanou a cabeça e bebeu o resto da
tisana.
- E, depois, há sempre os antigos favoritos...Mais outro livro... - As
Aventuras de Sherlock Holmesmurmurou, docemente, e acrescentou, cheio
de reverência: - Maître!
- Sherlock Holmes?
- Ah, non, non! É o autor, Sir Arthur Conan Doyle, que saúdo, e não
Sherlock Holmes. Na realidade, estas histórias de Sherlock Holmes são
muito artificiais, estão cheias de sofismas e são muito forçadas. Mas a arte
de escrever... ah, isso é absolutamente diferente! O prazer da linguagem, a
criação, sobretudo, da magnífica personagem que é o doutor Watson... Ah,
isso foi, deveras, um triunfo!
Voltou a suspirar e a abanar a cabeça, e murmurou, inspirado, sem
dúvida, por uma natural associação de ideias:
- Há muito tempo que não tenho notícias do cher Hastings de quem
me tem ouvido falar tantas vezes. Foi uma ideia tão absurda ir-se enterrar
na América do Sul, onde há constantes revoluções!
- Não é só na América do Sul que tal acontece. Hoje em dia, há
revoluções em todo o mundo.
- Não falemos da bomba - pediu Poirot. - Se tiver de ser, será; mas
não discutamos o assunto.
- Para ser franco, vim com a intenção de discutir algo muito diferente
consigo.
- Ah! Vai-se casar? Estou encantado, mon cher encantado!
- Porque pensou em semelhante coisa? Não se trata disso!
- Acontece... acontece todos os dias. - Talvez, mas não a mim -
afirmei, com veemência. - Na realidade, vim-lhe contar que se me deparou
um interessante problema, no campo do assassínio.
- Deveras? Um interessante problema no campo do assassínio... e
veio apresentar-mo. Porquê?
- Bem... - senti-me levemente embaraçado.Pensei... pensei que
gostaria.
Poirot fitou-me, pensativo, e acariciou suavemente o bigode.
- O dono é muitas vezes bondoso com o seu cão - murmurou, por fim. -
Sai com ele, atira-lhe uma bola...
Mas o cão também é capaz de ser bondoso com o seu dono. Mata um
coelho ou um rato e deposita-o aos pés do dono. E que faz, nessas alturas?
Agita a cauda.
Não pude deixar de rir.
- Estou a agitar a cauda?
- Creio que está, meu amigo... sim, creio que está.
- Muito bem, e que diz o dono? Quer ver o rato do cãozinho? Quer
saber tudo a seu respeito?
- Naturalmente. Trata-se de um crime que, na sua opinião, me
interessará?
- O que me preocupa é que não faz sentido.
- Impossível. Tudo faz sentido. Tudo!
- Então tente encontrar o disto. Eu não consigo. Aliás, nem se trata de
nada relacionado comigo. Vi-me metido no assunto casualmente. Pode, até,
tornar-se tudo muito simples, quando o morto for identificado.
- Está a falar sem ordem nem método - observou Poirot, severamente.
- Peço-lhe que me conte os factos. Disse que se tratou de um assassínio,
não disse?
- Sim, foi um assassínio. Ora escute...
Descrevi-lhe, em pormenor, o que se passara em Wilbraham
Crescent, 19. Hercule Poirot recostou-se, fechou os olhos e tamborilou
docemente no braço da poltrona, enquanto eu falava. Quando acabei,
deixou passar um longo momento, antes de perguntar:
- Sans blague?
- Oh, absolutamente!
- Espantoso! - repetiu, sílaba por sílaba, como se saboreasse a
palavra: - Espan-to-so! - Depois continuou a tamborilar no braço da
poltrona e a acenar devagarinho com a cabeça.
- Então? - acabei por perguntar, impaciente. Que tem a dizer?
- Mas que quer que eu diga?
- Quero que me dê a solução. O senhor deu-me sempre a entender
que era perfeitamente possível recostar-se na cadeira, pensar no assunto e
apresentar uma solução, que era desnecessário andar a interrogar pessoas e
a procurar pistas.
- Foi essa, sempre, a mínha opinião.
- Bem, prove-o. Apresentei-lhe os factos e agora quero uma resposta.
- Assim sem mais nem menos, hem? Mas é preciso saber muito mais
coisas, mon ami. Estamos apenas no princípio dos factos, não é verdade?
- Continuo a querer que diga qualquer coisa.
- Compreendo. Uma coisa é certa: deve ser um crime muito simples:
- Simples?! - perguntei, estupefacto.
- Naturalmente.
- Deve ser simples, porquê?
- Porque parece muito complexo. Se tem de parecer,
necessariamente, complexo, deve ser simples. Compreende?
- Não juraria...
- O que me disse foi curioso - murmurou Poirot. - Creio... sim, há
algo que me é familiar, nessa história. Onde... quando... vi qualquer
coisa?...
- A sua memória deve ser um vasto arquivo de crimes. Mas não se
pode lembrar de todos, pois não?
- Infelizmente, não. Mas, de vez em quando, as minhas
reminiscências são úteis. Lembro-me de que, em Lieja, um fabricante de
sabões envenenou a mulher, a fin de casar com uma estenógrafa loura. O
crime formou, digamos, um padrão. Mais tarde, muito mais tarde, esse
padrão voltou a apresentar-se e eu reconheci-o. Desta vez tratava-se do
rapto de um pequinês, mas o padrão era o mesmo. Procurei o equivalente
do fabricante de sabões e da estenógrafa loura... e voilà! Agora voltei a
encontrar no que me contou a mesma sensação de reconhecimento.
- Relógios? - sugeri, esperançado. - Falsos agentes de seguros?
- Não, não...
- Cegas?
- Não, não, não. Não me confunda.
- Decepcionou-me, Poirot. Pensei que me daria logo a resposta...
- Mas, meu amigo, por enquanto ainda me apresentou, apenas, um
padrão. Há muito mais coisas a averiguar. Possivelmente o homem será
identificado, pois a Polícia é excelente, nessas coisas. Tem os seus
cadastros criminais, pode publicar a fotografia do indivíduo, tem acesso à
lista das pessoas desaparecidas, pode mandar examinar cientificamente o
vestuário do morto, etc., etc. Tem muitos outros métodos ao seu dispor. O
homem será, sem dúvida, identificado.
- Portanto, de momento, não há nada a fazer.
É isso que pensa?
- Há sempre qualquer coisa a fazer - afirmou Poirot, severamente.
- Como, por exemplo?
- Fale com os vizinhos - ordenou-me, de dedo enfaticamente
esticado.
- Já falei. Acompanhei Hardcastle, quando ele os interrogou. Não
sabem nada útil.
- Ora, ora! Isso é o que você pensa, mas eu garanto-lhe que não pode
ser assim. Pergunta-lhes se viram algo suspeito, eles respondem que não e
você pensa que está tudo dito. Não é a isso que me refiro quando digo que
fale com os vizinhos. Fale com eles e deixe-os falar consigo. Nas suas
conversas encontrará sempre uma pista, seja onde for. Podem falar dos seus
jardins, ou das suas mascotes, um dos seus cabeleireiros, ou dos seus
alfaiates, ou dos seus amigos, ou das comidas que apreciam... Mas há
sempre uma palavra que derrama luz. Disse-me que nessas conversas não
houve nada de útil, mas eu garanto-lhe que não é possível. Se as pudesse
repetir por palavra.
- Praticamente, posso, pois estenografei o que se disse, de acordo
com o meu papel de "sargento"... Mandei dactilografar tudo e trouxe-lhe
uma cópia.
Aqui está.
- Ah, mas é um bom rapaz, um excelente rapaz! Procedeu muitíssimo
bem, muitíssimo bem! "e vous remercie infiniment."
Senti-me deveras embaraçado.
- Tem mais algumas sugestões a fazer?
- Tenho sempre sugestões. Há a tal rapariga. Pode falar com ela.
Visite-a. Já são amigos, não são? Não a apertou nos braços quando ela
fugiu, aterrorizada, da casa onde se deu o crime?
- A leitura de Garry Gregson afectou-o - resmunguei. - Adoptou o
estilo melodramático.
- Talvez tenha razão... Costumamos deixar-nos contagiar pelo estilo
da obra que estamos a ler.
- Quanto à rapariga...
Poirot olhou-me interrogadoramente, quando me calei e pediu:
- Continue.
- Não gostaria... não quero...
- Ah, é isso! No fundo, crê que ela está de qualquer modo implicada
no caso.
- Não creio nada! O facto de ela estar presente deveu-se a absoluta e
pura coincidência.
- Não, mon ami, não foi pura coincidência! Sabe muito bem que não
foi, e até mo disse. Pediram-lhe pelo telefone que comparecesse,
mencionaram especificamente o seu nome.
- Mas ela não sabe porquê...
- Não pode ter a certeza de que ela não sabe porquê. É muito
provável que saiba e oculte o facto.
- Não creio - redargui, obstinado.
- É, até, possível que você descubra porquê, ao conversar com ela,
mesmo que a pequena não tenha consciência da verdade.
- Não vejo muito bem como... quero dizer, mal a conheço...
Poirot fechou de novo os olhos.
- Há um momento, no decorrer da atracção entre duas pessoas de
sexos opostos, em que essa afirmação
é verdadeira. Suponho que se trata de uma jovem atraente?
- Bem... sim. Muito atraente.
- Falará com ela, visto já serem amigos, e arranjará um pretexto
qualquer para voltar a visitar a cega e conversar com ela - ordenou-lhe
Poirot. - Vá, também, a esse tal gabinete de dactilografia, talvez com a
desculpa de querer um manuscrito dactilografado, e trave amizade com
uma das outras jovens empregadas.
Depois de conversar com toda essa gente, visite-me de novo e conteme
tudo quanto lhe disseram.
- Tenha dó!
- Não é caso para ter dó, pois você vai gostar.
- Parece esquecer que tenho o meu próprio trabalho...
- Trabalhará melhor se se distrair um pouco.
Levantei-me, a rir.
- Bem, o senhor é o médico! Tem mais alguns conselhos sensatos
para me dar? Por exemplo, que pensa da estranha história dos relógios?
Poirot recostou-se na cadeira, fechou os olhos e as palavras que
pronunciou foram absolutamente inesperadas:
-
"Chegou o momento, disse a Morsa,
De falar de muitas coisas:
De sapatos... e barcos... e lacre...
E couves... e reis...
E porque ferve o mar...
E se os porcos têm asas."
Abriu os olhos e acenou com a cabeça.
- Compreende? - perguntou-me. - Citação de "A Morsa e o
Carpinteiro", Alice do Outro Lado do Espelho.
- Exactamente. Neste momento, é o melhor que posso fazer por si,
mon cher. Medite no assunto.
***
Foi grande a afluência de público ao inquérito.
Emocionada por ter havido um assassínio no seu seio, Crowdean
compareceu com grandes esperanças de revelações sensacionais. No
entanto, os resultados não poderiam ser menos negativos. Sheila Webb
escusava de ter receado a provação que a esperava, pois em menos de dois
minutos estava despachada.
Tinham telefonado para o Gabinete Cavendish a mandá-la
apresentar-se em Wilbraham Crescent, 19;
ela apresentara-se e, de acordo com as instruções recebidas, entrara
na sala. Encontrara o morto e fugira da casa a gritar, para pedir auxílio.
Não houve perguntas nem especulações.
Miss Martindale, também
chamada a prestar declarações, despachou-se ainda mais depressa.
Recebera um telefonema supostamente feito por Miss Pebmarsh, a pedir
que mandasse uma estenodactilógrafa, de preferência Miss Sheila Webb, a
Wilbraham Crescent, 19, e a dar determinadas instruções. Ela tomara nota
da hora exacta do telefonema: 13.49 h.
Miss Pebmarsh, chamada a seguir, negou terminantemente que, no
dia em questão, tivesse telefonado ao Gabinete Cavendish a pedir que lhe
enviassem uma dactilógrafa.
As palavras do detective-inspector Hardcastle foram breves e
desprovidas de qualquer emoção: depois de receber um telefonema, fora a
Wilbraham Crescent, 19, onde encontrara o cadáver de um homem.
- Conseguiu identificar o morto? - perguntou-lhe o juiz de instrução.
- Ainda não, excelência. Por esse motivo, solicito que este inquérito
seja adiado.
- Muito bem.
Seguira-se o depoimento médico. O Dr. Rigg, cirurgião da Polícia,
identificou-se, apresentou as suas qualificações e descreveu a sua chegada
a Wilbraham Crescent, 19, e o exame que fizera ao morto.
- Pode indicar aproximadamente a hora da morte, doutor?
- Examinei-o às três e meia da tarde. Calculo que a morte se verificou
entre a uma e meia e as duas e meia.
- Não pode ser mais preciso?
- Prefiro não me arriscar. À primeira vista, a hora mais aproximada
seriam as duas horas, ou talvez antes, mas há muitos factores que devem
ser tomados em consideração: idade, estado de saúde, etc.
- Efectuou uma autópsia?
- Efectuei.
- Qual foi a causa da morte?
- O homem foi apunhalado com uma faca fina e afiada, algo do
género, talvez, uma faca de cozinha francesa, de lâmina cónica. A ponta da
faca penetrou... - O médico entrou em pormenores técnicos, ao explicar a
maneira exacta como a faca penetrara no coração.
- A morte terá sido instantânea?
- Deve ter ocorrido num espaço de muito poucos minutos.
- Seria possível o homem gritar ou debater-se?
- Nas circunstâncias em que foi apunhalado, não.
- Importa-se de nos explicar o que quer dizer com essa frase?
- Examinei certos órgãos e procedi a determinadas análises. É meu
parecer que, quando o mataram, se encontrava em estado de coma, devido
à administração de uma droga.
- Sabe-nos dizer de que droga se tratou?
- Sei. Hidrato de cloral.
- Sabe-nos dizer como foi administrada?
- Presumivelmente misturada com qualquer espécie de álcool. O
efeito do hidrato de cloral é muito rápido.
- Creio que é conhecido em certos meios por "Michey Finn" -
observou o juiz de instrução.
- É verdade. A vítima deve tê-lo bebido sem suspeitar e, passados
momentos, cambaleou e ficou inconsciente.
- E, na sua opinião, foi apunhalado enquanto estava inconsciente?
- É essa a minha convicção. Isso explicaria a ausência de indícios de
luta e o aspecto sereno da vítima.
- Quanto tempo depois de ficar inconsciente o mataram?
- Mais uma vez, não posso ser exacto, pois isso depende, também, da
idiossincrasia da vítima. Não despertaria antes de meia hora e poderia
permanecer inconsciente muito mais tempo.
- Obrigado, doutor Rigg. Tem alguma indicação quanto ao momento
em que o morto comera pela última vez?
- Sei que não almoçara. Havia pelo menos quatro horas que não
ingeria alimentos sólidos.
- Obrigado, doutor. Creio que não desejo mais nada.
O juiz de instrução olhou à roda da sala e anunciou:
- O inquérito fica adiado por quinze dias, até vin te oito de Setembro.
Concluída a audiência, as pessoas começaram a sair. Edna Brent, que
estivera presente com a maioria das outras empregadas do Gabinete
Cavendish, o qual fechara durante a manhã, hesitou, ao sair. Maureen
West, uma das suas colegas, perguntou-lhe:
- Que dizes, Edna? Vamos almoçar ao Bluebird? Temos muito
tempo... Pelo menos tu tens.
- Não tenho mais tempo do que tu - redargüiu Edna, ofendida. - A
Sandy Cat disse-me que apro veitasse o primeiro intervalo para almoçar. É
uma esganada! Eu a pensar que disporia de uma hora para fazer umas
compras...
- Não seria de esperar outra coisa dela. É, de facto, uma esganada.
Abrimos às duas e temos de estar todas presentes. Estás à espera de
alguém?
- Da Sheila, apenas. Não a vi sair.
- Saiu mais cedo, depois de prestar declarações - informou Maureen.
- Saiu com um rapaz novo, mas não vi quem ele era. Vens ou não?
Edna continuou hesitante.
- Vai andando... Preciso de comprar umas coisas.
Maureen afastou-se com outra rapariga. Edna deixou-se ficar e, por
fim, encheu-se de coragem e perguntou ao jovem polícia louro que se
encontrava à entrada:
- Posso entrar outra vez e falar ao... ao que foi ao escritório? Era um
inspector qualquer coisa...
- Inspector Hardcastle?
- Exactamente. Prestou declarações esta manhã.
- Bem... - O polícia olhou para dentro e viu o inspector muito
entretido a conversar com o juiz de instrução e o chefe de Polícia do
condado. - Ele parece ocupado, neste momento. Se passar mais tarde pela
esquadra, ou se me quiser dar algum recado para lhe transmitir... É alguma
coisa importante?
- Não, na realidade não é importante... Apenas... enfim, não
compreendo como pode ser verdade o que ela disse, porque eu...
Virou as costas, de testa franzida, e meteu, perplexa, pela High
Street. Esforçava-se por raciocinar, coisa que nunca fora o seu forte.
Quanto mais tentava recordar-se das coisas com clareza, maior era a
confusão do seu espírito.
A certa altura, murmurou, audivelmente:
- Não podia ter sido assim... Não podia ter sido como ela disse.
De súbito, como se acabasse de tomar uma decisão, passou da High
Street para a Albany Road e seguiu na direcção de Wilbraham Crescent.
Desde que os jornais tinham anunciado um assassínio em Wilbraham
Crescent, 19, juntavam-se todos os dias grandes multidões de curiosos,
para verem a casa fatídica. O fascínio que, em certas circunstâncias,
simples tijolos e argamassa exercem no espírito do público, é uma coisa
deveras misteriosa. Nas primeiras vinte e quatro horas fora necessário
destacar para lá um polícia, que mandava as pessoas dispersar, de modo
autoritário. Depois o interesse diminuíra, mas não cessara de todo. As
furgonetas dos distribuidores de produtos ao domicílio afrouxaram um
pouco a velocidade, ao passar; mulheres com carrinhos de bebé paravam
quatro ou cinco minutos no passeio fronteiro, de olhos postos na imaculada
residência de Miss Pebmarsh;
mulheres carregadas de cestos de compras paravam, de olhar ávido, e
tagarelavam umas com as outras...
- Foi naquela casa... naquela ali...
- O corpo estava na sala... Não, creio que a sala é a divisão da frente,
do lado esquerdo...
- O merceeiro disse-me que foi na do lado direito.
- Talvez. Estive no número dez, e lembro-me perfeitamente de que a
casa de jantar ficava do lado direito e a sala do esquerdo...
- Nem parece que a rapariga saiu a gritar desalmadamente...
- Dizem que ele entrou por uma janela das traseiras. Estava a meter
as pratas num saco quando a pequena entrou e o encontrou...
- A dona da casa é cega, coitada... Por isso, claro, não sabia o que se
estava a passar...
- Oh, mas ela não estava lá nessa altura!
- Julguei que estava. Julguei que estava no primeiro andar e o ouviu...
Oh, meu Deus, tenho de acabar de fazer as compras!
Ouviam-se a toda a hora conversas como estas, ou parecidas. Como
que atraídas por um magnate, chegavam a Wilbraham Crescent as pessoas
mais inesperadas, que paravam, olhavam e seguiam o seu caminho, depois
de satisfeita qualquer necessidade interior.
Foi aí que, ainda intrigada, Edna Brent se encontrou, a acotovelar um
pequeno grupo de cinco ou seis
pessoas entregues ao passatempo favorito de olhar para "a casa do
crime".
Sempre sugestionável, Edna, olhou, também.
Fora, então, ali! Bonitas cortinas nas janelas, um ar muito decente...
e, contudo, tinham lá assassinado um homem com uma faca de cozinha.
Uma vulgar faca de cozinha... Quase toda a gente tinha uma faca de
cozinha. ..
Fascinada pelo comportamento das pessoas que a cercavam, Edna
olhou, também, e deixou de pensar... Já quase esquecera o que a levara
ali...
Estremeceu, ao ouvir uma voz falar-lhe ao ouvido, e virou a cabeça,
surpreendida, ao reconhecer a voz.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Notei quando Sheila Webb saiu tranquilamente do tribunal. Depusera
muito bem, um bocadinho nervosa, mas sem exagero. Parecera, de facto,
muito natural. Que diria Beck? "Excelente desempenho!" Parecia-me ouvilo!
Ouvi, surpreendido, o fim do depoimento do Dr. Rigg, Dick
Hardcastle não me dissera nada, mas devia sabê-lo, e saí, atrás dela.
- Afinal não custou muito, pois não? - perguntei-lhe, quando a
alcancei.
- Não. Foi, até, fácil. O juiz de instrução foi muito simpático.
-
Hesitou, antes de perguntar: Que sucederá, a seguir?
- O inquérito será adiado, até se recolherem mais provas.
Possivelmente durante quinze dias ou até identificarem o morto.
- Pensa que o identificarão?
- Oh, sim! Não tenho dúvidas nenhumas a esse respeito. - Hoje está
frio - murmurou, com um pequeno calafrio.
Pessoalmente, parecia-me que estava, até, um pouco quente.
- Que diz a um almoço mais cedo do que o costume? - sugeri. - Não
tem de voltar para o escritório, pois não?
- Não. Está fechado até às duas horas.
- Então venha daí. Gosta de comida chinesa? Há um restaurantezinho
chinês ao fim da rua...
Sheila hesitou.
- Preciso de fazer umas compras...
- Pode fazê-las depois.
- Não posso, pois algumas das lojas fecham da uma às duas.
- Nesse caso, encontra-se comigo mais tarde? Daqui a meia hora, está
bem?
Respondeu que sim.
Fui até à beira-mar e sentei-me num abrigo. A brisa marinha batia-me
em cheio, de frente.
Precisava de pensar. É sempre irritante verificar que outras pessoas
sabem mais do que nós acerca de nós próprios, mas a verdade é que o
velho Beck, Hercule Poirot e Dick Hardcastle tinham visto claramente o
que me via, agora, forçado a admitir.
Interessava-me por aquela rapariga, interessava-me como nunca me
interessara por nenhuma.
Não era a sua beleza. Ela era bonita de um modo especial, mas
apenas bonita, mais nada. Também não era o seu sex appeal. Já encontrara
isso muitas vezes e estava imunizado.
Tratava-se, somente, do seguinte: reconhecera, quase mal a
conhecera, que era a minha pequena. E não sabia absolutamente nada a seu
respeito!
Passavam poucos minutos das duas horas quando entrei na esquadra
e perguntei por Dick. Encontrei-o
sentado à secretária, às voltas com a papelada. Levantou a cabeça e
perguntou-me o que pensava do inquérito.
Respondi-lhe que me parecera muito decente e cavalheiresco.
- Temos muito jeito para estas coisas, no nosso país - rematei.
- Que pensou do depoimento médico?
- Uma surpresa. Porque não me tinha dito?
- Você não estava cá. Consultou o seu especialista?
- Consultei.
- Creio que me lembro vagamente dele. Uns grandes bigodes...
- Grandíssimos. São o seu orgulho.
- Deve ser muito velho.
- É velho, mas não está gagá.
- Que motivo o levou, na realidade, a visitá-lo? Foi apenas por
generosidade humana?
- Tem uma mentalidade muito desconfiada, de polícia, Dick. Foi
principalmente por generosidade, mas confesso que também me inspirou
uma certa dose de curiosidade. Desejava ouvir o que tinha a dizer acerca do
nosso caso. Sempre afirmou, com o que me pareceu um grande
descaramento, ser fácil decifrar qualquer mistério criminal. Bastava
recostar-se na cadeira, juntar simetricamente as pontas dos dedos, fechar os
olhos e pensar. Quis pô-lo à prova.
- E então, ele recostou-se na cadeira, etc., etc.?
- Exactamente.
- E que disse? - inquiriu Dick, com certa curiosidade.
- Disse que devia ser um assassínio muito simples.
- Muito simples, meu Deus! - exclamou Hardcastle, indignado. -
Simples porquê?
- Tanto quanto me foi dado compreender, porque se apresentava de
modo tão complexo.
- Não percebo. - Dick abanou a cabeça. - Parece uma daquelas coisas
muito inteligentes que os jovens de Chelsea dizem, mas que eu não
percebo. Mais alguma coisa?
- Recomendou-me que falasse com os vizinhos e eu garanti-lhe que
já se fizera isso.
- Os vizinhos são, agora, ainda mais importantes, em virtude do
depoimento médico.
- Isso significa presumir-se que o tipo foi drogado em qualquer outro
lado e transferido para o número dezanove, a fim de ser assassinado? - As
palavras recordaram-me um pormenor: - Tem graça, isto foi, mais ou
menos, o que Mistress... a mulher dos gatos disse. Na altura pareceu-me
uma observação muito interessante.
- Oh, aquela gataria! - exclamou Dick, com um calafrio de
repugnância. - A propósito, ontem encontrámos a arma.
- Sim? Onde?
- Na gataria. Presumivelmente o assassino atirou-a para lá, depois do
crime.
- Não tinha impressões digitais, claro?
- Fora cuidadosamente limpa e podia pertencer a qualquer pessoa.
Um bocadinho usada e afiada há pouco tempo.
- Podemos supor, então, que ele foi drogado e depois levado para o
número dezanove... num automóvel? Ou como?
- Podia ter sido levado de uma das casas com jardim contíguo.
- Seria um bocadinho arriscado, não seria?
- Exigiria audácia e bom conhecimento dos hábitos da vizinhança.
Seria mais natural transportarem-no de carro.
- O que não deixaria, também, de ser arriscado. As pessoas
reparariam num automóvel.
- Ninguém reparou. Admito, no entanto, que o assassino não podia
adivinhar se reparariam ou não.
Qualquer transeunte poderia notar se, no dia em questão, estivesse
um carro parado defronte do número dezanove...
- Pergunto a mim mesmo se notaria. Está toda a gente tão habituada
aos automóveis! A não ser, evidentemente, que se tratasse de um carro
luxuoso e fora do vulgar, o que é pouco provável.
- Além disso, foi na hora do almoço. Já pensou, Colin, que Miss
Millicent Pebmarsh volta à cena? Pareceu descabido que uma cega pudesse
apunhalar um homem saudável, mas se ele estava drogado...
- Por outras palavras, case ele foi lá para ser "morto", como a nossa
Mistress Hemming disse, chegou sem qualquer suspeita, de acordo com
uma entrevista previamente marcada, aceitou um copo de xerez ou um
cocktail... o "Michey Finn" fez efeito e Miss Pebmarsh deitou mãos à obra.
Depois lavou o copo da droga, arranjou o corpo muito bem, no chão, atirou
a faca para o quintal da vizinha e saiu, como de costume.
- Telefonou, de caminho, ao Gabinete Cavendish...
- Mas para que faria semelhante coisa? E porque pediria,
especialmente, Sheila Webb?
- Quem me dera saber! Ela sabe? Refiro-me à pequena.
- Ela diz que não.
- Ela diz que não! - repetiu Hardcastle, irritado. - Pergunto-lhe o que
pensa você do assunto?
Fiquei calado, uns momentos. Que pensava? Tinha de decidir,
imediatamente, o meu curso de acção. A verdade descobrir-se-ia, no fim, e
Sheila não seria prejudicada, se era o que eu julgava.
Bruscamente, tirei um postal da algibeira e pu-lo em cima da
secretária.
- Sheila recebeu isto pelo correio.
Tratava-se de um postal ilustrado de uma série dedicada aos edifícios
de Londres e representava o Tribunal Criminal Central. Hardcastle virou-o.
Do lado direito estava o endereço, em letras de imprensa muito certinhas,
Miss R. S. Webb, Palmerston Road, 14, Crowdean, Sussex, e do lado
esquerdo, também em letras de imprensa, a palavra LEMBRE-SE! e, mais
abaixo, 4:13.
- Quatro e treze... - murmurou Hardcastle.Era a hora indicada pelos
relógios, naquele dia. O Old Bailey, a palavra "lembre-se!" e uma hora:
quatro e treze. Deve-se relacionar com qualquer coisa.
- Ela afirma não saber o que significa, e eu acredito.
Hardcastle acenou com a cabeça.
- Guardo isto. Talvez nos permita descobrir alguma coisa.
- Espero que sim. - Havia um certo embaraço, entre nós, e por isso
acrescentei, para tentar desanuviar a atmosfera: - Tem aí muita papelada.
- O costume. A maior parte não presta para nada. O morto não tinha
registo criminal e, portanto, as suas impressões digitais não estão
arquivadas. Praticamente, tudo isto foi enviado por gente que diz tê-lo
reconhecido.
Leu algumas passagens:
- "Caro senhor: Tenho quase a certeza de que a fotografia publicada
no jornal era de um homem que vi outro dia apanhar um comboio em
Willesden. Falava sozinho e parecia muito excitado. Mal o vi, pensei que
se passava qualquer coisa..." "Caro senhor: Creio que o homem se parece
muito com um primo do meu marido, chamado John. Emigrou para a
Africa do Sul, mas é possível que tenha regressado. Usava bigode, quando
partiu, mas, claro, podia tê-lo rapado..." "Caro senhor: Vi o homem da
fotografia numa composição do metropolitano, a noite passada. Pareceu-me,
nessa altura, haver nele algo estranho. .. " Para não falar, claro, de
todas as mulheres que reconhecem o
marido. Palavra, as mulheres parecem desconhecer o verdadeiro
aspecto dos maridos! Também há algumas mães que julgam reconhecer um
filho que não viam há vinte anos... Isto é uma lista de pessoas
desaparecidas, mas não contém nada que nos ajude. "George
Barlow, sessenta e cinco anos, desaparecido de casa. A mulher receia que
tenha perdido a memória. E uma nota, a seguir: "Deve muito dinheiro e
tem sido visto com uma viúva ruiva. É quase certo que fugiu
propositadamente." Outro: "Professor Hargraves, que devia proferir uma
conferência na terça-feira passada. Não compareceu nem mandou nenhum
telegrama nem carta de desculpas."
Hardcastle pareceu não ligar importância ao professor Hargraves.
- Deve ter pensado que a conferência era na semana anterior ou na
semana seguinte. Naturalmente julgou que disse à governanta aonde ia,
mas não disse.
Acontecem muitos casos assim.
O telefone tocou e Hardcastle atendeu:
- Sim... O quê?!... Quem o encontrou?... Disse o nome?...
Compreendo, continue.
Desligou e olhou para mim. O seu rosto modificara-se, estava muito
sério e exprimia uma fúria malcontida.
- Encontraram uma rapariga morta numa cabina telefónica de
Wilbraham Crescent - anunciou.
- Morta? Como?
- Estrangulada. Com o seu próprio lenço de pescoço!
Senti-me gelar subitamente.
- Que rapariga? Não é...
Hardcastle lançou-me um olhar frio e perscrutador, que não me
agradou, e respondeu:
- Tranquilize-se, não é a sua namorada. O polícia parece saber de
quem se trata, disse que era uma rapariga que trabalhava no mesmo
escritório de Sheila Webb e se chamava Edna Brent.
- Quem a encontrou? O polícia?
- Miss Waterhouse, a mulher do número dezoito.
Parece que foi à cabina para telefonar, em virtude de o seu telefone
estar avariado, e encontrou a pequena caída.
A porta abriu-se e um polícia informou:
- O doutor Rigg telefonou a dizer que ia a caminho, inspector.
Encontrar-se-á consigo em Wilbraham Crescent.
Hora e meia depois, o detective-inspector Hardcastle sentou-se à
secretária e aceitou, aliviado, uma chávena de chá. O seu rosto ainda
conservava a mesma expressão furiosa.
- Inspector, Pierce desejava falar-lhe.
- Pierce? Ah, sim, mande entrar!
Entrou um polícia novo e muito nervoso.
- Desculpe, senhor inspector, mas achei que seria melhor dizer-lhe...
- Dizer-me o quê?
- Depois do inquérito, eu estava de serviço à porta. A pequena... a
que mataram... falou comigo.
- Falou consigo, hem? E que lhe disse?
- Queria falar com o senhor inspector...
Hardcastle endireitou-se, subitamente interessado.
- Queria falar comigo? E explicou porquê?
- Não... Lamento, senhor inspector, se... se não fiz o que devia.
Perguntei-lhe se não me podia deixar qualquer recado ou... ou vir à
esquadra, mais tarde.
O senhor inspector estava a conversar com o chefe de Polícia e com o
juiz de instrução e eu pensei...
- Bolas! - interrompeu-o Hardcastle, entredentes. - Não lhe podia ter
dito que esperasse até eu estar livre?
- Peço desculpa, senhor inspector... - O jovem corou. - Se eu
adivinhasse, teria procedido assim, mas não pensei que fosse importante...
Creio que ela própria não pensava que fosse importante. Disse que se
tratava de qualquer coisa que a preocupava...
- Qualquer coisa que a preocupava? - repetiu o inspector, e ficou
calado, a recordar certos pormenores.
Tratava-se da rapariga que se cruzara com ele na rua, quando se
dirigia a casa de Mrs. Lawton, da rapariga que quisera falar com Sheila
Webb, que o reconhecera, ao passar por ele, e hesitara um momento, como
se não soubesse se o deveria deter ou não... Ela devia estar preocupada com
qualquer coisa e ele falhara, não compreendera com a rapidez necessária.
Absorto no seu objectivo de descobrir um pouco mais acerca dos
antecedentes de Sheila Webb, ignorara um indício que, pelos vistos, era
importante. A pequena estava preocupada... Porquê? Provavelmente nunca
o saberiam.
- Continue, Pierce, conte-me tudo quanto se lembrar. - E acrescentou
bondosamente, pois era um homem justo: - Você não podia adivinhar que
era importante.
Sabia que não valeria a pena descarregar a sua cólera e a sua
frustração no pobre do rapaz. Como podia ele ter adivinhado? Parte do
treino que recebera consistira precisamente em prepará-lo para saber
manter a disciplina, para se certificar de que os seus superiores só eram
incomodados em momentos e lugares convenientes e oportunos. Se a
pequena tivesse dito que era importante ou urgente, seria diferente. Mas ele
recordava-se da primeira vez que a vira, no escritório, e sabia que ela não
pertencia a esse género. Era uma criatura de raciocínio lento,
provavelmente sem confiança no seu próprio processo mental.
- Lembra-se do que se passou, exactamente, e do que ela lhe disse,
Pierce?
O moço fitou-o cheio de gratidão e respondeu:
- Bem, senhor inspector, ela aproximou-se, quando todos saíam,
hesitou um momento e olhou à sua volta, como se procurasse alguém. Mas
não creio que fosse o senhor inspector; devia ser qualquer outra pessoa.
Depois foi ter comigo e perguntou-me se podia falar com o inspector, com
o que prestara declarações.
Eu vi, como já disse, que o senhor inspector estava ocupado, com o
chefe de Polícia, e expliquei-lhe que, naquele momento, não a podia
atender. Mas perguntei-lhe se não me queria deixar nenhum recado ou se
não podia ir, mais tarde, à esquadra. Parece-me que ela disse que estava
bem. Perguntei-lhe se era alguma coisa importante...
- E ela? - perguntou Hardcastle, todo inclinado para a frente.
- Disse que não, que se tratava de uma coisa que não compreendia
como poderia ser como ela dissera.
- Não compreendia como o que ela dissera poderia ser assim? -
interpretou Hardcastle.
- Sim, senhor inspector. Não tenho a certeza das palavras exactas,
mas suponho que foram: "Não compreendo como o que ela disse pode ser
verdade." Estava de testa franzida e parecia intrigada. Mas eu perguntei-lhe
se era importante e ela respondeu que não.
A rapariga dissera que não era importante... a mesma rapariga que,
pouco depois, fora encontrada estrangulada, numa cabina telefónica...
- Estava alguém perto, quando ela falou consigo?
- Estavam muitas pessoas, que vinham a sair. Foi muita gente assistir
ao inquérito, pois o assassínio despertou muita curiosidade, sobretudo por
causa da maneira como os jornais se lhe referiram...
- Não se lembra de alguém em especial, que estivesse perto? Por
exemplo, alguma das pessoas que prestaram declarações?
- Infelizmente, não me lembro de ninguém em especial, senhor
inspector.
- Paciência. Está bem, Pierce, pode ir. Se se lembrar de mais alguma
coisa, informe-me imediatamente.
O inspector tentou dominar a sua cólera crescente, as culpas que
sentia. A pequena, aquela rapariga com cara de coelho, soubera alguma
coisa... Enfim, talvez não soubesse, mas vira ou ouvira qualquer coisa que
a preocupara. E a preocupação aumentara, depois de ter assistido ao
inquérito. Que seria? Algo relacionado com as declarações feitas? Algo
relacionado com as declarações de Sheila Webb, provavelmente... Fora a
casa de Mrs. Lawton, dois dias antes, a fim de falar com Sheila. Mas
porque não falara com ela no escritório? Porque desejara falar-lhe em
particular? Saberia alguma coisa acerca de Sheila que a intrigava?
Desejaria pedir a Sheila uma explicação, mas uma explicação particular,
sem ser à frente das outras colegas? Assim parecia. Sim, assim parecia...
Depois de mandar Pierce embora, deu algumas instruções ao sargento
Cray.
- Que terá a pequena ido fazer a Wilbraham Crescent? - perguntou-lhe
o sargento.
- Também tenho estado a pensar nisso. É possível, evidentemente,
que se tratasse de simples curiosidade, que quisesse ver a casa... É uma
reacção natural; metade da população de Crowdean parece sentir o mesmo.
- A quem o diz, inspector!
- Por outro lado, também pode ter ido visitar alguém que lá more...
Quando o sargento saiu, o inspector escreveu três números no seu
mata-borrão, cada um com um ponto de interrogação à frente: "20?" "19?"
"18?" A seguir escreveu os nomes correspondentes: Hemming, Pebmarsh,
Waterhouse. As três casas do crescente superior estavam fora de causa; se
quisesse visitar uma delas. Edna Brent não iria pela estrada inferior.
Hardcastle estudou as três possibilidades.
Começou pelo número 20. A faca utilizada no primeiro assassínio
fora lá encontrada. O mais provável parecia ser que tivesse sido atirada do
jardim do 19, mas não tinham a certeza a esse respeito. Podia ter sido
atirada para o meio dos arbustos pela própria moradora do número 20. Ao
ser interrogada, a única reacção de Mrs. Hemming, fora de indignação:
"Que maldade, atirarem uma faca tão afiada aos meus gatos!" Que relação
havia entre Mrs. Hemming e Edna Brent? Nenhuma.
O inspector considerou, a seguir, Miss Pebmarsh.
Edna Brent teria ido a Wilbraham Crescent a fim de visitar Miss
Pebmarsh? Esta prestara declarações, no inquérito... Teria dito alguma
coisa que despertara suspeitas a Edna? Mas a pequena já estava
preocupada antes do inquérito. Já saberia, então, alguma coisa acerca da
cega? Saberia, por exemplo, da existência de um laço qualquer entre
Millicent Pebmarsh e Sheila Webb? Isso coadunar-se-ia com as palavras
que dissera a Pierce: "Não compreendo como o que ela disse possa ser
verdade."
"Conjecturas, só conjecturas!", pensou, furioso.
E o número 18? Miss Waterhouse encontrara o cadáver. Por
deformação profissional, o inspector desconfiava das pessoas que
encontravam cadáveres.
Encontrar o cadáver evitava tantas dificuldades ao assassino!
Poupava as maçadas de arranjar um álibi; justificava o aparecimento de
quaisquer possíveis impressões digitais... De certo modo, era uma
excelente situação... desde que não existisse nenhum móbil evidente. Ora
aparentemente, não havia nenhum motivo para Miss Waterhouse desejar
matar Edna Brent, Miss Waterhouse não depusera no inquérito, mas talvez
tivesse assistido. "Teria Edna alguma razão para saber, ou supor, que fora
Miss Waterhouse que se fizera passar por Miss Pebmarsh e pedira,
telefonicamente, que mandassem uma estenodactilógrafa ao número
19?
Mais conjecturas!
Havia, evidentemente, a própria Sheila Webb...
Hardcastle estendeu a mão para o telefone e ligou para o hotel onde
Colin Lamb estava hospedado. Pouco depois, falava com o amigo.
- Hardcastle. Que horas eram quando almoçou com Sheila Webb?
Seguiu-se uma pausa, antes de Colin redarguir:
- Como sabe que almoçámos juntos?
- Desconfio. Almoçaram, não almoçaram?
- Porque não havia de almoçar com ela?
- Não se trata disso. Perguntei-lhe apenas a que horas foi. Foram
almoçar assim que terminou o inquérito?
- Não. Ela precisava de fazer umas compras e nós encontrámo-nos no
restaurante chinês da Market Street à uma hora.
- Hum... - Hardcastle consultou os seus apontamentos e verificou que
Edna Brent morrera entre o meio-dia e meia e a uma hora.
- Não quer saber o que comemos?
- Não se abespinhe. Só quis saber a hora exacta. É uma questão de
rotina.
- Compreendo.
Seguiu-se nova pausa. Por fim o inspector disse, a tentar aliviar a
tensão:
- Se não tem nada que fazer esta noite...
Mas o outro interrompeu-o:
- Vou-me embora. Estou a fazer as malas. Esperava-me uma ordem
de marcha para o estrangeiro.
- Quando volta?
- Sabe-se lá! Talvez daqui a uma semana, talvez mais tarde... talvez
nunca! Não tenho a certeza - respondeu Colin, e desligou.
Hardcastle chegou a Wilbraham Crescent, 19, precisamente quando
Miss Pebmarsh vinha a sair.
- Conceda-me um momento, Miss Pebmarsh.
- É... é o inspector Hardcastle, não é?
- Sou. Posso falar consigo?
- Não quero chegar tarde ao Instituto. Será demorado?
- Três ou quatro minutos, apenas.
A cega voltou para dentro e o inspector seguiu-a.
- Já ouviu contar o que sucedeu esta tarde?
- Sucedeu alguma coisa?
- Julguei que soubesse. Mataram uma rapariga na cabina telefónica
do fundo da estrada.
- Mataram? Quando?
- Há duas horas e três quartos - respondeu o inspector, ao olhar para o
relógio de pé.
- Não ouvi dizer nada. - Na voz de Miss Pebmarsh soou
momentaneamente uma espécie de cólera, como se a sua incapacidade se
fzesse sentir, de súbito, de uma maneira particularmente dolorosa. - Uma
rapariga assassinada! Quem foi?
- Chamava-se Edna Brent e trabalhava no Gabinete Cavendish.
- Outra rapariga de lá! Também fora mandada chamar, como essa
Sheila... não sei quê?
- Creio que não. Ela não a veio visitar, aqui a casa?
- Aqui? Evidentemente que não.
- Estaria cá, se ela tivesse vindo?
- Não tenho a certeza. A que horas disse que foi?
- Cerca do meio-dia e meia hora, ou um pouco mais tarde.
- Sim, a essa hora estaria em casa.
- Aonde foi, depois do inquérito?
- Vim direita a casa. - Deixou passar um
momento e perguntou, por sua vez: - Porque pensou que essa
pequena me podia ter visitado?
- Bem, esteve no inquérito, esta manhã, viu-a lá e deve ter tido
qualquer motivo para vir a Wilbraham Crescent. Que saibamos, não
conhecia ninguém desta rua.
- Mas por que motivo me viria visitar, só por me ter visto no
inquérito?
- Bem... - O inspector sorriu, mas ao compreender que Miss
Pebmarsh não o via tentou impregnar as palavras desse sorriso: - Nunca se
sabe do que as jovens são capazes. Talvez quisesse apenas um autógrafo,
ou qualquer coisa desse género.
- Um autógrafo! - exclamou a cega, com desdém. - Enfim, talvez a
ideia não seja tão despropositada como parece; essas coisas acontecem,
realmente.Abanou a cabeça e acrescentou: - Garanto-lhe no entanto,
inspector, que hoje não aconteceu. Ninguém veio a minha casa desde que
regressei do inquérito.
- Obrigado, Miss Pebmarsh. Achámos que devíamos averiguar todas
as possibilidades.
- Que idade tinha ela?
- Dezanove anos, suponho.
- Dezanove? Tão nova! - A sua voz modificou-se um pouco. - Tão
nova... Pobre criança! Mas quem desejaria matar uma rapariga dessa idade?
- Também são coisas que acontecem.
- Era bonita, atraente... sexy?
- Não. Gostaria de ser, creio, mas não era.
- Então não foi por isso - declarou Miss Pebmarsh, e abanou de novo
a cabeça. - Sinto muito... acredite que sinto muitíssimo não o poder ajudar,
inspector Hardcastle.
O inspector saiu, impressionado, como sempre, pela personalidade de
Miss Pebmarsh.
Miss Waterhouse também estava em casa. Fiel ao seu tipo, abriu a
porta com brusquidão, como se desejasse apanhar alguém a fazer o que não
devia.
- Respondeu, sem dúvida, a todas as nossas perguntas - admitiu
Hardcastle. - No entanto, não é possível fazê-las todas ao mesmo tempo...
Precisamos de averiguar mais alguns pormenores.
- Não compreendo porquê! Foi um choque tão desagradável! -
Olhou-o em ar de censura, como se considerasse que a culpa era só dele. -
Mas entre, entre; não pode ficar o dia todo no tapete. Entre, sente-se e
pergunte-me o que quiser... embora eu não faça ideia do que me poderá
perguntar mais. Como já expliquei, saí para telefonar, abri a porta da
cabina e deparou-se-me a rapariga. Nunca apanhei um susto tão grande na
minha vida! Fui a correr à procura de um polícia... e, depois, se lhe
interessa saber, voltei para casa e tomei uma dose medicinal de brande.
Medicinal! - frisou Miss Waterhouse, veementemente.
- Fez muito bem, minha senhora. Desejava perguntar-lhe se tinha a
certeza absoluta de que nunca vira, antes, a jovem?
- Posso tê-la visto uma dúzia de vezes e não me lembrar. Quero dizer,
ela pode-me ter servido no Woolworth's, pode-se ter sentado a meu lado
num autocarro, pode-me ter vendido bilhetes num cinema...
- Era estenodactilógrafa do Gabinete Cavendish.
- Creio que nunca precisei dos serviços de uma estenodactilógrafa.
Talvez ela trabalhasse no escritório do meu irmão, na firma Cainsford &
Swettenham...
É aí que quer chegar?
- Oh, não! Parece não haver nenhuma relação desse género. Enfim,
pensei se ela não teria vindo visitar esta manhã, antes de ser assassinada.
- Se não me teria vindo visitar? Claro que não! Para quê?
- Bem, não sei... Mas diria que, se alguém afirmasse tê-la visto
transpor a sua cancela, esta manhã, estaria enganado? - perguntou o
inspector, e fitou-a com o ar mais inocente deste mundo.
- Alguém a viu transpor a minha cancela? Tolice! - Miss Waterhouse
hesitou. - Pelo menos...
- Pelo menos?...
- Bem, é possível que tenha metido um prospecto por debaixo da
porta. Encontrei um no chão, à hora do almoço, qualquer coisa acerca de
uma concentração para exigir o desarmamento nuclear. Aparecem sempre
coisas dessas, todos os dias. Sim, é possível que ela tenha metido o papel
por debaixo da porta... mas não me podem censurar por isso, pois não?
- Claro que não. Agora quanto ao telefonema...
Disse que o seu telefone estava avariado, mas na estação informaram
que tal não sucedia...
- Ora, na estação dizem o que lhes apetece! Marquei um número,
ouvi um barulho muito estranho, não era o sinal de impedido!, e resolvi ir
telefonar à cabina.
Hardcastle levantou-se.
- Lamento tê-la incomodado desta maneira, Miss Waterhouse, mas
supõe-se que a pequena veio visitar alguém, no Crescent, e se dirigiu a uma
casa que não fica longe daqui.
- E, por isso, têm de incomodar toda a gente que mora no Crescent!
Creio que o mais provável seria ela ter ido aqui ao lado, a casa de Miss
Pebmarsh.
- Mais provável porquê?
- Disse que a pequena era estenodactilógrafa do Gabinete Cavendish.
Se a memória não me atraiçoa, constou que Miss Pebmarsh pediu que lhe
mandassem uma estenodactilógrafa a casa, no dia em que o homem foi
assassinado.
- Disse-se isso, de facto, mas ela nega-o.
- Embora ninguém ligue importância ao que digo, a não ser quando já
é demasiado tarde, tenho a impressão de que Miss Pebmarsh está um
bocado tarouca. Não me admiraria se telefonasse a pedir
estenodactilógrafas e depois se esquecesse. - Mas não crê que ela fosse
capaz de assassinar, pois não?
- Nunca falei em assassínio nem em nada parecido! Sei que mataram
um homem na casa dela, mas não insinuo, nem por um instante que seja,
que Miss Pebmarsh tenha tido alguma coisa a ver com o assunto. Pensei,
apenas, que ela podia ter uma daquelas curiosas manias que as pessoas às
vezes arranjam. Conheci uma mulher que passava a vida a telefonar para
uma pastelaria e a encomendar uma dúzia de merengues. Não os queria e
quando lhos levavam dizia que não os encomendara.
- Claro que tudo é possível - admitiu Hardcasde, e despediu-se de
Miss Waterhouse.
Parecia-lhe que a entrevistada não fizera justiça aos seus méritos ao
apresentar a última sugestão. Por outro lado, se pensava que a rapariga fora
vista a entrar em sua casa, e se isso sucedera, de facto, a sugestão de que
ela fora ao número 19 era, dadas as circunstâncias, inteligente.
Hardcastle viu as horas e achou que ainda tinha tempo de ir ao
Gabinete Cavendish, que reabrira às duas horas da tarde. Talvez as
pequenas lhe dessem alguma ajuda... e também lá encontraria Sheila Webb.
Uma das empregadas levantou-se imediatamente, mal o viu entrar.
- É o detective-inspector Hardcastle, não é? Miss Martindale esperao.
A jovem conduziu-o ao gabinete da directora, que se lançou logo ao
ataque:
- É vergonhoso, inspector Hardcastle, absolutamente vergonhoso!
Têm de resolver este assunto sem demora, sem perda de tempo! A Polícia
tem o dever de dar protecção, e é disso que precisamos neste escritório.
Protecção! Quero que as minhas raparigas sejam protegidas, e estou
disposta a consegui-lo, doa a quem doer!
- Estou certo, Miss Martindale, de que...
- Nega que duas das minhas empregadas, duas!, foram vítimas de
algum irresponsável que por aí anda
à solta? É evidente que se trata de alguém com qualquer espécie de...
de mania, de complexo acerca de estenodactilógrafas ou gabinetes de
secretariado! Estão a castigar-nos deliberadamente! Primeiro, mercê de
um estratagema cruel, atraíram Sheila a uma casa onde encontrou um
cadáver, o que bastaria para que uma rapariga nervosa perdesse a cabeça, e
agora aconteceu isto! Uma pobre rapariga decente e inofensiva assassinada
numa cabina telefónica! Tem de desvendar este mistério, inspector!
- Não há nada que deseje mais ardentemente, Miss Martindale. Vim
ver se me podia dar alguma ajuda.
- Ajuda! Que género de ajuda lhe poderei dar? Julga que se soubesse
alguma coisa susceptível de ajudar não teria ido a correr contar-lha? Tem
de descobrir quem matou a pobre Edna e quem pregou aquela incrível
partida a Sheila. Sou severa, inspector, obrigo-as a trabalhar com afinco e
não permito que cheguem atrasadas ou se desmazelem com o trabalho. Mas
também não consinto que as torturem ou assassinem. Tenciono defendêlas,
e tratarei de conseguir que as pessoas a quem o Estado paga para as
defender cumpram a sua obrigação! - Quando se calou e olhou para o
inspector, parecia mais um tigre em forma de gente do que uma mulher.
- Dê-nos tempo, Miss Martindale.
- Tempo? Lá porque a pateta da pequena morreu, julga que dispõe de
todo o tempo do mundo! Se não nos precatarmos, será assassinada outra
das minhas pequenas!
- Não creio que tenha razões para recear isso, Miss Martindale.
- Não pensou que esta pequena ia ser assassinada quando esta manhã
se levantou, pois não, inspector?
Se tivesse pensado, tomaria, comcerteza, determinadas precauções
para a proteger. - São igualmente surpreendentes os factos de terem
assassinado uma das minhas pequenas e colocado outra numa situação com
prometedora. Tudo quanto tem acontecido é extraordinário, louco! Sim,
porque tem de admitir que é um caso louco! Pelo menos a julgar pelo que
dizem os jornais. Todos aqueles relógios, por exemplo... Reparei, no
entanto, que não foram mencionados no inquérito, esta manhã.
- Esta manhã mencionou-se o menos possível. Pretendia-se apenas o
adiamento do inquérito.
- Repito, têm de fazer qualquer coisa! - exigiu Miss Martindale, e
voltou a fulminá-lo com o olhar.
- Não me sabe dizer nada, Edna não lhe contou nada que possa ser
significativo? Não pareceu preocupada, não a consultou acerca de qualquer
assunto?
- Não creio que me consultasse, se estivesse preocupada. Mas que
motivos tinha ela para estar preocupada?
O inspector também desejaria que lhe respondesse a essa pergunta,
mas compreendeu que não obteria a resposta de Miss Martindale.
Redarguiu, por isso:
- Gostaria de falar com o maior número possível de empregadas suas.
Compreendo que seria pouco provável Edna Brent falar-lhe dos seus
receios e preocupações, mas podia ter falado deles às colegas.
- Sim, é muito possível. Elas passam a vida a dar à língua. Mal
ouvem os meus passos no corredor, desatam todas a martelar as teclas das
máquinas de escrever. Mas que tinham estado a fazer antes? A tagarelar! -
Acalmou-se um pouco e prosseguiu: - Neste momento estão só três no
escritório. Quer falar com elas agora? As outras saíram, em serviço, mas eu
posso-lhe indicar os seus nomes e moradas, se desejar.
- Obrigada, Miss Martindale.
- Suponho que quererá falar com elas sozinhas. Não falariam tão à
vontade se eu estivesse presente, a ouvir, pois teriam de admitir que deram
à língua nas horas de serviço.
Levantou-se e abriu a porta que dava para o escritório.
- O detective-inspector Hardcastle deseja conversar com vocês.
Podem interromper o trabalho e tentem dizer-lhe tudo quanto saibam e que
seja susceptível de ajudar a descobrir quem matou Edna Brent.
Voltou para o gabinete e fechou a porta, com firmeza. Três rostos
agarotados e inquietos fitaram o inspector, que fez uma ideia rápida do que
poderia esperar de cada uma delas. Uma rapariga loura e forte, de óculos,
pareceu-lhe digna de confiança, mas não muito inteligente. Uma moreninha
de ar atrevido e penteado que dava a impressão de se ter atravessado no
caminho de um ciclone, tinha olhos de quem via as coisas, mas
provavelmente não mereceria muita confiança no capítulo de se lembrar
delas: retocaria tudo, segundo a sua fantasia. A terceira era uma daquelas
jovens que riem por tudo e por nada e concordaria, com certeza, com tudo
quanto se dissesse.
- Suponho que sabem todas o que aconteceu a Edna Brent, que
trabalhava aqui? - perguntou o inspector, calmamente e sem formalismos.
Três cabeças acenaram afirmativa e veementemente, ao mesmo
tempo.
- A propósito, como souberam?
Olharam umas para as outras, como se quisessem decidir quem seria
a porta-voz. A honra coube, por mútuo e tácito consentimento, à jovem
loura, que se chamava Janet.
- Edna não compareceu no escritório às duas horas, como deveria -
explicou a pequena. - E a Sandy Cat ficou muito aborrecida... - começou a
morena, Maureen, que se apressou a emendar: - Quero dizer, Miss
Martindale.
A terceira moça deu uma gargalhadinha e explicou:
- Sandy Cat é como nós lhe chamamos.
"A alcunha não está nada mal escolhida", pensou o inspector.
- É um autêntico terror, quando lhe apetece - prosseguiu Maureen. -
Atira-se positivamente a uma pessoa... Perguntou se Edna dissera alguma
coisa, acerca de não vir trabalhar de tarde, e afirmou que de veria, pelo
menos, ter apresentado uma justificação. - Disse a Miss Martindale que ela
estivera no inquérito, connosco, mas que não a voltáramos a ver de pois
nem sabíamos aonde fora - informou a loura.
- E isso era verdade, não era? Não faziam ideia aonde ela fora depois
de sair do inquérito?
- Eu convidei-a para almoçar comigo - disse Maureen -, mas ela
pareceu preocupada e respondeu que não sabia se iria almoçar. Talvez
comprasse qual quer coisa para comer no escritório.
- Isso significa, então, que tencionava voltar ao escritório?
- Oh, sim! Todas sabíamos que tínhamos de voltar.
- Alguma de vocês notou qualquer diferença em Edna, nos últimos
dias? Ela pareceu-lhes preocupada? Disse-lhes alguma coisa a esse
respeito? Se sabem seja o que for a esse respeito, mesmo que lhes pareça
insignificante, peço-lhes que me digam.
Olharam umas para as outras, mas de um modo que não tinha nada
de conspiracional.
- Ela andava sempre preocupada com qualquer coisa - disse Maureen.
- Tinha tendência para confundir as coisas e cometer erros... era de
compreensão um pouco lenta. - Parecia que estavam sempre a acontecer
coisas à Edna - disse a das risadinhas. - Lembram-se quan do o salto lhe
caiu do sapato, outro dia? Era uma da quelas coisas que tinham de
acontecer à Edna.
- Eu lembro-me - murmurou o inspector, e recordou-se do modo
triste como a pobre pequena olhara para o sapato que tinha na mão. - Tive
um pressentimento de que sucedera algo terrível à Edna, quando não a vi
aparecer às duas horas - observou Janet, a acenar solenemente com a
cabeça.
Hardcastle fitou-a com certa antipatia. Desagradavam-lhe
as pessoas que se mostravam sempre muito sabichonas, depois de as
coisas acontecerem. Tinha a certeza de que a rapariga não pensara tal coisa.
O mais provável seria ter pensado: "A Edna ouvirá a Sandy Cat, quando
voltar."
- Quando souberam o que sucedera?
Voltaram a entreolhar-se e a das gargalhadinhas corou e olhou de
soslaio para a porta do gabinete de Miss Martindale.
- Bem, eu... eu saí um bocadinho. Precisava de comprar uns pastéis,
para levar para casa, e sabia que quando saísse já não haveria nenhuns. Ao
chegar à loja, fica à esquina e conhecem-me lá bem, a empregada
perguntou-me: "Ela trabalhava no seu escritório, não trabalhava?"
Perguntei a quem se referia e ela respondeu: "A pequena que encontraram
morta na cabina telefónica." Nem sei como fiquei! Voltei a correr, disse às
outras e, no fim, achámos que devíamos informar Miss Martindale. Foi
nesse momento que ela saiu do escritório, como uma fúria, e gritou: "Que
estão a fazer? Nem uma máquina a trabalhar!"
A loura reatou a história nesse ponto:
- E eu respondi-lhe: "A culpa não é nossa. Soubemos uma coisa
terrível, acerca da Edna, Miss Martindale."
- E que disse ou fez Miss Martindale?
- Bem, ao princípio não quis acreditar - redarguiu a morena. -
Respondeu: "Tolices! Deram ouvidos a mexericos estúpidos, numa loja.
Deve tratar-se de outra rapariga qualquer. Porque havia de ser a Edna?"
Voltou para o gabinete, telefonou para a esquadra... e soube que era
verdade.
- Mas eu não compreendo... - murmurou Janet, em tom quase
sonhador - ... não compreendo por que motivo alguém queria matar a Edna!
- Ela não tinha namorado, nem nada... - acrescentou a morena.
Olharam as três para o inspector, esperançadas, como se ele lhes
pudesse dar a solução do problema.
Hardcastle suspirou. Não havia ali nada para ele. Talvez uma das
outras pequenas o ajudasse mais...
E havia, também, Sheila Webb.
- Sheila Webb e Edna Brent eram amigas?
Entreolharam-se, vagamente.
- Não havia nenhuma amizade especial entre elas...
- A propósito, onde está Miss Webb?
Responderam-lhe que estava no Curlew Hotel, a trabalhar para o
professor Purdy.
O professor Purdy irritou-se quando teve de interromper o ditado
para atender o telefone.
- Quem?... O quê? Quer dizer que está cá, agora?... Bem, diga-lhe
que volte amanhã... Pronto, está bem, mande-o subir.
Desligou, a resmungar:
- Acontece sempre qualquer coisa. Como pode uma pessoa fazer
algum trabalho sério com estas constantes interrupções? - Olhou para
Sheila Webb com leve ressentimento e perguntou-lhe: - Onde íamos,
minha querida?
Sheila ia a responder quando bateram à porta.
O professor Purdy teve certa dificuldade em se arrancar às
complicações cronológicas de cerca de três milénios atrás...
- Entre! - ordenou, amuado. - De que se trata? Recomendei
especialmente que não me incomodassem, esta tarde...
- Lamento muito professor, mas foi-me impossível respeitar os seus
desejos. Boas tardes, Miss Webb.
Sheila Webb levantara-se e afastara o livro de apontamentos.
Hardcastle perguntou a si mesmo se fora
imaginação sua ou se os olhos da jovem tinham denunciado uma
súbita apreensão.
- De que se trata? - repetiu o professor, no mesmo tom irritado.
- Sou o detective-inspector Hardcastle, como Miss Webb poderá
confirmar.
- Muito bem. Muito bem.
- Precisava de trocar algumas palavras com Miss Webb.
- Não pode esperar? Neste momento causa muito transtorno.
Estávamos num ponto crítico... Miss Webb estará livre daqui a cerca de um
quarto de hora... ou talvez meia hora. Mas... meu Deus, já são seis horas?
- Lamento muito, professor Purdy - redargüiu Hardcastle, em tom
firme.
- Está bem, está bem. De que se trata? De alguma violação das leis
do trânsito, não? Os polícias de trânsito são muito intransigentes. Outro
dia, um teimou comigo que eu deixara o meu carro quatro horas e meia
junto de um contador de estacionamento... Tenho a certeza de que não
podia ter sido tanto tempo.
- Desta vez é mais grave do que uma violação das leis do trânsito.
- Ah! E Miss Webb não tem carro, pois não, minha querida? - Olhou
distraidamente para a rapariga. - Agora me lembro, vem de autocarro. Bem,
inspector, de que se trata?
- Trata-se de uma jovem chamada Edna Brent.Virou-se para Sheila
Webb e acrescentou: - Creio que já ouviu falar do assunto?
Ela fitou-o. Olhos bonitos, cor de centáurea-azul. Lembravam-lhe
alguém.
- Edna Brent? - Sheila arqueou as sobrancelhas.Conheço-a,
evidentemente. Que se passa com ela?
- Vejo que ainda não tem conhecimento... Onde almoçou, Miss
Webb?
A rapariga corou.
- Almocei com um amigo no restaurante Ho Tung, se... se isso é da
sua conta.
- Depois não foi ao escritório?
- Ao Gabinete Cavendish? Quando cheguei, disseram-me que devia
encontrar-me com o professor Purdy às duas e meia.
- Exactamente - confirmou o professor, a acenar com a cabeça. - Às
duas e meia. Ainda não paramos de trabalhar. Agora me lembro, devia ter
pedido que servissem o chá! Peço muita desculpa, Miss Webb. Devia terme
lembrado...
- Não tem importância nenhuma, professor Purdy.
- Foi uma grande falta da minha parte, uma grande falta... Mas,
pronto, não interrompo mais, visto o inspector querer fazer perguntas.
- Não sabe, então, o que sucedeu a Edna Brent?
- O que lhe sucedeu? - perguntou Sheila, em voz mais alta. - Que
quer dizer? Foi vítima de algum acidente? Atropelada? - Toda esta
velocidade é muito perigosa... - intrometeu-se o professor.
- Aconteceu-lhe uma coisa, sim... - Hardcastle fez uma pausa, antes
de acrescentar, o mais brutalmente possível: - Foi estrangulada cerca do
meio-dia e meia hora numa cabina telefónica.
- Numa cabina telefónica? - repetiu o professor, com algum interesse.
Sheila Webb não disse nada. Ficou a fitá-lo, de boca ligeiramente
aberta e olhos arregalados. "Ou ainda não sabias nada, ou és uma excelente
actriz", pensou Hardcastle.
- Meu Deus, estrangulada numa cabina telefónica! - exclamou o
professor. - Parece muito extraordinário. Não é o sítio que eu escolheria...
enfim, se resolvesse cometer semelhante acto. Oh, não! Pobre pequena!
Que pouca sorte a dela!
- Edna... assassinada! Mas porquê?
- Sabia, Miss Webb, que Edna Brent teve muito
interesse em falar consigo anteontem, que foi a casa da sua tia e
esperou algum tempo pelo seu regresso?
- Mais uma vez por minha culpa - murmurou o professor cheio de
remorsos. - Lembro-me de que, nessa noite, demorei Miss Webb até muito
tarde...
Deve lembrar-me sempre do tempo, minha querida...
- A minha tia contou-me, mas não pensei que se tratasse de alguma
coisa especial. Tratava? A Edna estava metida nalgum sarilho?
- Não sabemos... e provavelmente nunca saberemos. A não ser que
nos possa esclarecer?
- Eu? Como poderei saber?
- Talvez faça alguma ideia do que Edna Brent lhe queria dizer...
- Mas não, não faço a mínima ideia.
- Ela não insinuou nada, não falou consigo, no escritório, acerca do
que a preocupava?
- Não, não me disse nada. Nem podia, de resto, pois ontem não estive
no escritório todo o dia. Tive de ir a Landis Bay, onde passei o dia inteiro a
trabalhar com um dos nossos escritores.
- Não a achou preocupada, ultimamente?
- Bem, a Edna parecia sempre preocupada ou intrigada. Tinha uma
mentalidade muito... como hei-de dizer?... muito hesitante, muito lenta.
Nunca tinha a certeza se estava certo ou não o que pretendia fazer. Uma
vez, escaparam-lhe duas folhas inteiras, ao dactilografar um livro de
Armand Levine, e andou preocupadíssima sem saber que fazer, por só ter
dado pelo engano depois de lhe mandar o livro.
- Compreendo. E ela costumava pedir conselhos a todas as colegas,
acerca do que devia fazer?
- Costumava. Aconselhei-a a escrever imediatamente um bilhete ao
escritor, porque geralmente as pessoas não começam logo a ler os
trabalhos, para os corrigirem. Disse-lhe que lhe explicasse o que sucedera e
lhe pedisse que não se queixasse a Miss Martindale, mas a ideia não lhe
agradou.
- Ela costumava, então, pedir conselhos, quando surgia um desses
problemas?
- Sempre! O pior é que nem sempre estávamos todas de acordo
quanto ao que devia fazer, e isso ainda a deixava mais indecisa.
- Seria, portanto, natural ela procurar uma de vocês se tivesse um
problema? Acontecia com frequência?
- Acontecia, sim.
- Parece-lhe que desta vez se trataria de alguma coisa mais grave?
- Não creio. Que coisa mais grave poderia ser?
Sheila Webb sentir-se-ia tão à vontade como parecia?
- Não sei acerca de que me desejava falar - prosseguiu, mais depressa
e um bocadinho ofegante.Não faço a mínima ideia. Não imagino, também,
porque teria ido a casa da minha tia, para falar lá comigo.
- Dir-se-ia que se tratava de qualquer coisa acerca da qual não lhe
queria falar no Gabinete Cavendish, não acha? Digamos, diante das outras
colegas... Alguma coisa que lhe parecesse só dever ser tratada entre as
duas, particularmente. Poderia ser isso?
- Parece-me muito pouco provável, não creio que fosse nada desse
género...
- Não me pode, então, ajudar, Miss Webb?
- Lamento, mas não posso. Sinto muito o que aconteceu à Edna, mas
não sei nada que o possa ajudar.
- Seria alguma coisa que tivesse qualquer relação com o que sucedeu
no dia nove de Setembro?
- Refere-se àquele homem... àquele homem de Wilbraham Crescent?
- Refiro.
- Como poderia ser isso? Que poderia a Edna saber a esse respeito?
- Nada de importante, talvez, mas alguma coisa... E tudo me ajudaria,
por muito insignificante que
parecesse. - Fez nova pausa, antes de acrescentar:A cabina telefónica
onde a mataram fica em Wilbraham Crescent. Isso não lhe sugere nada,
Miss Webb?
- Absolutamente nada.
- Esteve hoje em Wilbraham Crescent?
- Não, não estive! - afirmou, em tom firme.Não me aproximei,
sequer, de lá. Quem me dera, até, nunca lá ter ido, não me ter visto
envolvida em tudo isto! Porque me mandaram chamar, porque me
quiseram especialmente a mim, naquele dia? Porque teve a Edna de ser
morta perto desse lugar? Tem de descobrir tudo isto, inspector, tem de o
descobrir!
- Tenciono descobri-lo, Miss Webb - afirmou o inspector e terminou,
em voz lentamente ameaçadora: - Garanto-lhe!
- Está a tremer, minha querida - disse o professor Purdy. - Acho que
precisa de tomar um cálice de xerez.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Apresentei-me ao coronel Beck assim que cheguei a Londres.
- No fim de contas, talvez tenha alguma razão de ser aquela sua
idiótica ideia dos crescentes - admitiu, depois de me cumprimentar com um
aceno do charuto.
- Descobriu, finalmente, alguma coisa?
- Não direi tanto... mas talvez, sim, talvez. O nosso engenheiro
construtor, Mister Ramsay, de Wilbraham Crescent, sessenta e dois, não é
exactamente o que parece. Nos últimos tempos, tem aceitado uns trabalhos
muito curiosos. São firmas autênticas, as que o contratam, mas sem muito
passado. A pouca história que têm é muito peculiar. Há cerca de cinco
semanas, Ramsay partiu de um momento para o outro para a Roménia.
- Não foi isso que disse à mulher.
- Talvez não, mas foi esse o seu destino, e é lá que se encontra.
Gostaríamos de saber um pouco mais a respeito dele e, por isso, prepare-se
meu rapaz. Tenho todos os vistos arranjados para si e um belo passaporte
novo. Desta vez será Nigel Trench. Reveja os seus conhecimentos de
plantas raras, dos Balcãs, pois será botânico.
- Algumas instruções especiais?
- Não. Indicar-lhe-emos o seu contacto quando receber os
documentos. Descubra tudo quanto puder acerca do nosso Mister Ramsay...
- Olhou-me, com atenção, e observou: - Não parece tão satisfeito como
seria de esperar.
- É sempre agradável quando um pressentimento dá resultado -
redargui, evasivo.
- Crescente certo, número errado. No número sessenta e um mora um
construtor civil sem mácula absolutamente nenhuma, do nosso ponto de
vista, evidentemente. O pobre Hanbury errou no número, mas não andou
muito longe da verdade.
- Investigou os outros? Ou apenas o Ramsay?
- Diana Lodge parece tão pura como Diana. Uma longa história de
gatos... O McNaughton é ligeiramente interessante. E professor reformado,
como sabe.
Ensinava matemática e parece que era brilhante. Retirou-se
subitamente, a pretexto de falta de saúde. Talvez seja verdade, mas ele
parece saudável e robusto. Isolou-se de todos os seus antigos amigos, o que
parece muito estranho.
- O nosso mal é chegarmos a um ponto em que pensamos que tudo
quanto toda a gente faz é muitíssimo suspeito.
- Talvez tenha razão. Há ocasiões, em que até
desconfio de que você, Colin, se passou para o outro lado... e outras
em que desconfio de que eu próprio passei para o outro lado e depois voltei
para este! Uma grande salsada.
O meu avião partia às dez horas da noite e, por isso, resolvi ir visitar,
primeiro, Hercule Poirot. Desta vez estava a beber um sirop de cassis
(xarope de groselha-preta, para mim e para os não-iniciados). Ofereceu-me,
recusei e George serviu-me uísque. Como de costume.
- Parece deprimido - observou Poirot.
- De modo nenhum. Vou apenas, para o estrangeiro.
Olhou para mim e eu acenei com a cabeça.
- É, então, isso?
- É, é isso.
- Desejo-lhe todo o êxito possível.
- Obrigado. E o senhor, como vai andando com o trabalho de casa?
- Pardon?
- Que me diz ao Assassínio dos Relógios? Recostou-se na cadeira,
fechou os olhos e encontrou todas as soluções?
- Li com muito interesse o que me deixou cá.
- Não tem muito onde se pegue, pois não? Eu disse-lhe que os
vizinhos não tinham dado nada...
- Pelo contrário! Pelo menos duas pessoas fizeram observações muito
esclarecedoras.
- Quais? E quais foram as observações?
Poirot respondeu-me, irritantemente, que devia reler as minhas notas
com cuidado.
- Verá por si próprio, então, pois salta aos olhos. O que resta fazer,
agora, é falar com mais alguns vizinhos.
- Não há mais.
- Deve haver. Alguém vê sempre qualquer coisa. É um axioma.
- Será um axioma, mas não o é neste caso. E tenho novidades para si:
houve outro assassínio.
- Sim? Tão cedo? É interessante. Conte-me.
Contei-lhe e ele interrogou-me implacavelmente, até me arrancar
todos os pormenores. Falei-lhe, também do postal ilustrado que entregara a
Hardcastle.
- Lembre-se... Quatro, um, três ou quatro e treze - repetiu. - Sim, é o
mesmo padrão.
- Que quer dizer?
Poirot fechou os olhos, ao responder:
- Nesse postal só falta uma coisa: uma impressão digital
ensanguentada.
Olhei-o, desconfiado, e perguntei:
- Que pensa realmente do caso?
- Cada vez se torna mais claro. Como de costume, o assassino não
pôde deixar as coisas como estavam.
- Mas quem é o assassino?
Manhosamente, Poirot não respondeu.
- Posso proceder a algumas investigações, enquanto estiver ausente?
- De que género?
- Amanhã, pedirei à minha secretária, Miss Lemon, que escreva a um
velho advogado meu amigo, Mister Enderby, a solicitar-lhe que consulte os
registos de casamentos de Somerset House. Miss Lemon expedirá,
também, um certo telegrama para o estrangeiro.
- Não sei se isso será leal - observei. - Não se limitará a estar sentado
a pensar...
- Limitar-me-ei, sim senhor! Miss Lemon conferirá, apenas, as
soluções que já encontrei. Não peço informações e, sim, confirmação.
- Não acredito que saiba seja o que for, Poirot! É tudo bluff. Ainda
ninguém sabe quem é o morto...
- Eu sei.
- Como se chama?
- Não faço ideia. O seu nome não é importante. Talvez compreenda
melhor se lhe disser que sei o que é e não quem ele é.
- Um chantagista.
Poirot fechou os olhos.
- Um detective particular. - Poirot abriu os olhos. - Far-lhe-ei uma
citaçãozinha, como da última vez, e depois não lhe direi mais nada.
Recitou, com a máxima solenidade:
- Dilly, dilly, dilly. Vem para seres morto.
O detective-inspector Hardcastle olhou para o calendário que tinha na
secretária. 20 de Setembro. Mais de dez dias, já. Não tinham progredido
tanto como supusera porque a dificuldade inicial continuava a peá-los: a
identificação de um cadáver. Levara mais tempo do que julgara possível,
todas as pistas pareciam ter falhado. O exame laboratorial do vestuário não
revelara nada que os ajudasse, as roupas não tinham proporcionado
nenhuma pista. Eram de boa qualidade, de exportação, e embora não
fossem novas estavam bem tratadas. Nem dentistas, nem lavandarias, nem
tinturarias tinham ajudado. O morto continuava a ser "o homem
misterioso". E, contudo, Hardcastle tinha a impressão de que ele não tinha
nada de misterioso.
Não havia nele nada de espectacular nem de dramático, era apenas
um homem que ninguém reconhecera.
Hardcastle suspirou ao lembrar-se dos telefonemas e das cartas que
tinham chegado depois da publicação pelos jornais da fotografia, com a
legenda: CONHECE ESTE HOMEM? Era surpreendente o número de
pessoas que tinham julgado conhecê-lo. Filhas que escreviam, com certa
esperança, acerca de um pai que não viam havia anos; uma velha de
noventa anos convencida de que a fotografia era do seu filho, que saíra de
casa ia para trinta anos; inúmeras mulheres convictas de que se tratava de
um marido desaparecido... Houvera menos irmãs a alegar que se tratava de
um irmão. Talvez as irmãs fossem mais pessimistas... Não tinham
faltado, também, as inúmeras pessoas que o tinham visto no Lincolnshire,
em Newcastle, no Devon, em Londres, no metropolitano, no autocarro,
num cais, com ar sinistro à esquina de uma rua, a tentar ocultar o rosto ao
sair de um cinema... Centenas de pistas, as mais prometedoras das quais
tinham sido inutilmente investigadas.
Mas naquele dia o inspector sentia-se um bocadinho mais
esperançado. Olhou, de novo, para a carta que tinha na secretária. Merlina
Rival... Não gostava muito do nome próprio. Parecia-lhe que ninguém no
seu juízo perfeito chamaria Merlina a uma filha. Devia tratar-se de um
nome de fantasia, adoptado pela própria signatária. No entanto, gostava do
tom da carta.
Não era extravagante nem exprimia excessiva confiança. Dizia
apenas que a signatária julgava possível que o homem em questão fosse o
seu marido, de quem se separara havia vários anos.
O inspector esperava-a naquela manhã. Premiu a campainha, a
chamar o sargento Cray.
- Mistress Rival já chegou?
- Acaba de chegar, inspector. Vinha dizer-lhe.
- Como é ela?
- Tem um ar um pouco teatral... Muita pintura, mas mal aplicada. No
conjunto, parece uma mulher razoavelmente digna de confiança.
- Pareceu-lhe transtornada?
- Não. Se está, disfarça bem.
- Mande-a entrar.
Cray partiu e, pouco depois, voltou e anunciou:
- Mistress Rival, inspector.
O inspector levantou-se e apertou a mão à mulher.
Calculou que deveria andar pelos cinquenta anos, embora de longe,
de muito longe... talvez parecesse andar pelos trinta. Perto, o resultado da
pintura aplicada à toa fazia-a aparentar muito mais de cinquenta anos,
mas, no conjunto, Hardcastle optou pelo meio século.
Cabelo escuro, muito pintado, altura e estatura medianas, casaco e
saia escuros, blusa branca e uma grande mala de tecido escocês. Não usava
chapéu. Uma ou duas pulseiras, que chocalhavam a cada movimento,
e vários anéis. No conjunto, e baseado na sua experiência, o inspector
considerou-a boa mulher. Não seria talvez, excessivamente escrupulosa,
mas devia ser razoavelmente generosa, bondosa, até, e uma pessoa com
quem seria fácil viver. Mereceria confiança? Aí é que batia o ponto. Não
contaria muito com isso, aliás, nunca podia contar muito com isso.
- Agrada-me muito a sua visita, Mistress Rival, e tenho esperanças de
que nos possa ajudar.
- Claro que não tenho a certeza, mas pareceu-me o Harry - redarguiu
Mrs. Rival. - Pareceu-me muito... Não me surpreenderei se verificar que
não é e só desejo não lhe roubar o seu tempo para nada.
- Não se deve preocupar com isso. Precisamos muito de ajuda, neste
caso.
- Compreendo. Só espero poder ter a certeza, pois há muito tempo
que não o vejo.
- Comecemos por esclarecer alguns factos, sim? Quando viu o seu
marido pela última vez?
- Durante toda a viagem de comboio tentei chegar a uma conclusão a
esse respeito. É terrível verificar como a memória nos falha, quando se
trata de tempo! Creio que na minha carta me referi a cerca de dez anos, mas
foi há mais tempo. Suponho que já lá vão quase quinze. O tempo passa tão
depressa! Suponho que temos tendência para julgar que se passaram menos
anos porque assim nos sentimos mais novos, não acha?
- É possível, sim. No entanto, calcula que viu pela última vez o seu
marido há aproximadamente quinze anos, não é verdade? Quando se
casaram?
- Uns três anos antes disso, suponho.
- Onde vivia, então?
- Numa terra chamada Shipton Bois, em Suffolk. Uma terra bonita,
de mercado, mas pequena.
- Que fazia o seu marido?
- Era agente de seguros. Pelo menos... - fez uma pausa. - Pelo menos
era o que dizia.
O inspector levantou a cabeça, interessado, e inquiriu:
- A senhora descobriu que não era verdade?
- Bem, não foi exactamente isso... pelo menos na altura. Só mais
tarde é que comecei a pensar que talvez não fosse verdade. Seria fácil um
homem dizer que era agente de seguros e ninguém desconfiar, não seria?
- Creio que sim, em certas circunstâncias. - Quero dizer, dá a um
homem um pretexto para se ausentar muito de casa.
- E o seu marido ausentava-se muito de casa, Mistress Rival?
- Ausentava. Ao princípio, não liguei muita importância... - Mas
mais tarde?...
Mrs. Rival deixou passar um momento sem responder. Por fim,
inquiriu:
- E se resolvêssemos o assunto? No fim de contas, se não for o
Harry...
O inspector perguntou a si mesmo em que estaria ela a pensar. A sua
voz tornara-se tensa. Comoção, talvez? Não tinha a certeza.
- Compreendo que queira despachar o assunto. Vamos.
Levantou-se e levou-a ao carro que os esperava.
O nervosismo de Mrs. Rival, quando chegaram, era igual ao das
outras pessoas que já lá conduzira. Ele proferiu, também, as palavras
tranquilizadoras habituais.
- Não tenha medo, o aspecto não impressiona. Levará apenas um
minuto ou dois.
Trouxeram a maca, o empregado levantou o lençol e ela olhou
durante alguns momentos, a respirar mais
aceleradamente. Depois virou-se, com brusquidão, e disse:
- É o Harry. Sim, muito mais velho, diferente... mas é ele, é o Harry.
O inspector fez um sinal ao empregado, com a cabeça, segurou no
braço de Mrs. Rival e conduziu-a de novo para o automóvel. Voltaram à
esquadra. Durante o trajecto, não disse nada, deixou-a serenar. Quando se
encontravam novamente no seu gabinete, um polícia trouxe um tabuleiro
com chá.
- Beba uma chávena de chá para se refazer, Mistress Rival. Depois
falaremos.
- Obrigada.
Adoçou o chá, com muita generosidade, e bebeu-o quase de um
trago.
- Já me sinto melhor - confessou. - Não é que me custe, realmente...
mas... dá uma certa volta às pessoas, não dá?
- Tem a certeza de que o homem é o seu marido?
- Tenho. Claro que está muito mais velho, mas não mudou por aí
além. Pareceu sempre... bem, impecável, com classe.
Hardcastle achou a descrição muito boa. Com classe.
Presumivelmente, Harry aparentara muito mais classe do que tinha.
Acontecia isso a alguns homens, o que os ajudava nos seus propósitos
especiais.
- Ele foi sempre muito meticuloso acerca da sua roupa e do seu
aspecto. Creio que era por isso que se deixavam apanhar tão facilmente,
sem suspeitarem de nada.
- Quem é que se deixava apanhar, Mistress Rival? - perguntou
Hardcastle, em tom suave e compreensivo.
- As mulheres. Era com mulheres que ele passava a maior parte do
tempo.
- Compreendo. E a senhora acabou por saber...
- Bem... suspeitei. Ele estava tanto tempo ausente! Claro que eu sabia
como os homens são e pensava que talvez houvesse uma pequena, de
tempos a tempos. Mas não vale a pena interrogar os homens a tal respeito,
eles mentem com todo o descaramento e pronto. No entanto, eu não sabia...
não podia imaginar que ele fazia disso um negócio.
- E fazia?
- Suponho que sim.
- Como descobriu?
- Um dia regressou de uma viagem que fizera. A Newcastle, dissera.
Regressou e avisou-me de que tinha de se safar depressa, de que o jogo
fora descoberto. Arranjara sarilhos com uma mulher, uma professora, e era
possível que houvesse escândalo. Interroguei-o, então, e ele não se fez
rogado e respondeu-me. Provavelmente pensou que eu sabia mais do que
na realidade sabia... Elas deixavam-se prender facilmente por ele, como
acontecera comigo. Arranjava uma mulher, oferecia-lhe um anel e ficavam
noivos. Depois ele dizia que investira dinheiro em nome de ambos... e elas
não hesitavam em lhe passar a importância para as unhas.
- Tentara a mesma coisa consigo?
- Tentara, de facto, mas sem resultado.
- Porquê? Já então não confiava nele?
- Bem, eu não era das que confiavam. Já tinha uma certa experiência
dos homens, das suas espertezas e do lado mais feio das coisas. Fosse
como fosse, não quis que ele investisse o meu dinheiro. O que tinha,
investi-lo-ia eu própria. Conserva sempre o teu dinheiro nas tuas próprias
mãos, pois assim terás a certeza de o possuir! Tenho visto muitas raparigas
e mulheres armarem em idiotas.
- Quando quis ele investir dinheiro? Antes ou depois de casarem?
- Creio que sugeriu qualquer coisa desse gênero antes, mas eu fiz-me
lucas e ele mudou imediatamente de assunto. Depois de casarmos, faloume
de uma oportunidade maravilhosa que lhe surgira, mas eu respondi-lhe:
"Nada feito." Não se tratava apenas de não
confiar nele; sabia de muitos homens que afirmavam ter descoberto
uma coisa maravilhosa e às duas por três verificavam que os tinham
comido por trouxas.
- O seu marido alguma vez tivera aborrecimentos com a Polícia?
- Não havia perigo disso. As mulheres não gostam que toda a gente
saiba que foram intrujadas. Mas daquela vez as coisas pareciam diferentes.
A rapariga, ou a mulher, era instruída, não seria tão fácil de enganar como
as outras.
- E ia ter um filho?
- Sim.
- Isso já acontecera noutras ocasiões?
- Suponho que sim... Confesso francamente que não sei o que o
tentava, ao princípio. Se era apenas o dinheiro, um modo de vida, digamos,
ou se era daqueles homens que têm de ter várias mulheres e não via
motivos nenhuns para não serem elas a pagar as despesas dos seus
prazeres. - A voz de Mrs. Rival tornara-se amargurada.
- Gostava dele, Mistress Rival? - perguntou Hardcastle, suavemente.
- Para lhe ser franca, não sei. Suponho que gostava, de certo modo,
pois de contrário não teria casado com ele...
- Desculpe... era casada com ele?
- Nem disso tenho a certeza - confessou Mrs. Rival, francamente. -
Nós casámos, de facto, e numa igreja e tudo, mas eu não sei se ele não teria
casado também com outras, usando um nome diferente. Chamava-se
Castleton, quando casou comigo, embora eu duvide que esse fosse o seu
verdadeiro nome.
- Harry Castleton?
- Sim.
- E durante quanto tempo viveram, como marido e mulher, em
Shipton Bois?
- Estivemos lá cerca de dois anos. Antes disso vivêramos perto de
Doncaster. Não posso dizer que tenha ficado surpreendida quando
regressou, naquele dia, e me contou tudo. Suponho que já sabia, havia
algum tempo, que ele não prestava. Custava apenas a crer porque parecia
sempre tão respeitável, tão cavalheiro.
- E que sucedeu, então?
- Ele disse que tinha de sair dali imediatamente e eu respondi-lhe que
lhe desejava boa viagem, que não estava disposta a tolerar aquilo. -
Acrescentou, pensativa: - Dei-lhe dez libras. Era tudo quanto tinha em casa
e ele disse que precisava de dinheiro... Nunca mais o vi nem ouvi falar
dele. Até hoje, até ver o seu retrato no jornal.
- Ele não tinha nenhuns sinais particulares? Cicatrizes? Uma
operação, uma fractura, qualquer coisa desse género?
- Creio que não.
- Alguma vez usou o nome de Curiy?
- Curry? Não, suponho que não. Pelo menos que eu saiba...
- Isto estava na sua algibeira - disse Hardcastle, e estendeu-lhe o
cartão.
- Continuava a dizer que era agente de seguros...
Creio que deve ter usado muitos nomes diferentes.
- Disse que nunca mais teve notícias dele nos últimos quinze anos,
não foi?
- Nunca me mandou, sequer, um cartão de boas-festas! - exclamou
Mrs. Rival, com certo humor.Aliás, não devia saber onde eu estava. Depois
de nos separarmos, voltei a trabalhar uns tempos no palco, sobretudo em
tournées. Não era grande vida... Além disso, abandonei o apelido de
Castleton e voltei a ser Merlina Rival.
- Suponho que Merlina... enfim, não é o seu verdadeiro nome?
Abanou a cabeça e esboçou um leve sorriso.
- Fui eu que o inventei. Fora do vulgar. O meu verdadeiro nome é
Flossie Gapp. Suponho que o
meu nome de baptismo deve ser Florence, mas toda a gente me
tratou, sempre, por Flossie ou Flo. Flossie Gapp... Pouco romântico, não é?
- Que faz agora? Ainda representa, Mistress Rival?
- Ocasionalmente - respondeu, com certa reticência. - Uma vez por
outra.
- Compreendo - redarguiu Hardcastle, com tacto.
- Faço uns trabalhos aqui e ali, dou uma ajuda em festas, sirvo de
anfitriã, etc. Não é uma vida má. Pelo menos conheço pessoas. Mas, de vez
em quando, as coisas tornam-se feias...
- Desde que se separaram, não voltou a ter notícias de Harry
Castleton nem a ouvir falar dele?
- Nem uma palavra. Pensei que tivesse ido para o estrangeiro... ou
tivesse morrido.
- Faz alguma ideia, Mistress Rival, dos motivos que poderiam trazer
Harry Castleton a estas imediações?
- Nenhuma, absolutamente nenhuma. Nem sequer sei o que ele fez,
durante todos estes anos.
- Seria possível que tivesse vendido seguros falsos, qualquer coisa
desse género?
- Confesso que não sei, mas não me parece muito possível. Quero
dizer, o Harry foi sempre muito cuidadoso consigo próprio, não se
arriscava nem fazia nada que lhe pudesse arranjar cadastro. Inclino-me
mais para que se tenha governado a explorar mulheres.
- Alguma forma de chantagem, por exemplo?
- Não sei... mas talvez fosse possível. Qualquer mulher que não
quisesse que se soubesse alguma passagem do seu passado... Suponho que
ele se sentiria em segurança, nesse aspecto. Note, não garanto que
se dedicasse a isso, mas parece-me possível. Não acho que exigisse muito
dinheiro, que fosse capaz de levar alguém ao desespero, mas podia ir
"cobrando" em pequena escala. - Acenou com a cabeça e concluiu:Não me
surpreenderia.
- As mulheres gostavam dele, não gostavam?
- Sim, deixavam-se sempre prender facilmente por ele. Sobretudo,
creio, por aparentar sempre tanta classe, por parecer tão respeitável.
Sentiam-se orgulhosas por terem conquistado um homem assim,
convenciam-se de que as esperava um belo e agradável futuro com ele... é,
pelo menos, esta a minha opinião. E com conhecimento de causa, pois senti
o mesmo.
- Só mais uma coisa... - Hardcastle voltou-se para o sargento e pediulhe:
- Traga os relógios, sim?
Trouxeram os relógios num tabuleiro, cobertos por um pano que
Hardcastle levantou. Mrs. Rival observou-os com sincero interesse e
aprovação.
- São bonitos, não são? Gosto deste - declarou ela, e tocou no relógio
francês.
- Já alguma vez os vira? Significam alguma coisa para si?
- Acho que não. Deviam significar?
- Lembra-se de alguma relação possível entre o seu marido e o nome
de Rosemary?
- Rosemary? Deixe ver... Havia uma ruiva... Não, essa chamava-se
Rosalie. Não me lembro de ninguém com esse nome. É natural, não acha?
O Harry guardava segredo dos seus romances.
- Se visse um relógio cujos ponteiros marcassem quatro horas e
treze...
- Pensaria que eram quase horas do chá! - interrompeu-o Mrs. Rival,
a rir.
Hardcastle suspirou.
- Bem, Mistress Rival, estamos-lhe muito gratos. O inquérito será,
como lhe disse, depois de amanhã.
Não se importa de declarar que identificou o corpo, pois não?
- Não, evidentemente. Terei apenas de dizer quem ele era, não é
verdade? Não terei de entrar em pormenores, de falar do seu modo de vida,
etc.?
- Isso não será necessário, por enquanto. Terá apenas de jurar que se
trata de Harry Castleton, com
quem foi casada. A data exacta deve estar registada em Somerset
House. Lembra-se onde se casou?
- Numa terra chamada Donbrook. Creio que foi na Igreja de São
Miguel. Espero que não tenha sido há mais de vinte anos. Se fosse, sentirme-
ia com um pé na sepultura.
Levantou-se e estendeu a mão ao inspector, que se despediu.
Hardcastle sentou-se à secretária, em cujo tampo começou a
tamborilar, com um lápis. Pouco depois, o sargento Cray voltou e
perguntou-lhe:
- Satisfatório?
- Parece que sim. O nome de Harry Castleton talvez seja falso...
Temos de ver o que conseguimos averiguar acerca do tipo. Parece provável
que várias mulheres tivessem motivos para se quererem vingar dele.
- No entanto, tem um ar tão respeitável...
- Esse deve ter sido o principal capital do seu negócio.
O inspector pensou de novo no relógio com o nome de "Rosemary".
Seria uma recordação?
NARRATIVA DE COLIN LAMB
- Voltou, então - observou Hercule Poirot, ao mesmo tempo que,
cuidadosamente, colocava uma marca no livro que estava a ler.
Desta vez tinha em cima da mesa uma chávena de chocolate quente.
Poirot devia ter um gosto muito especial, no capítulo de bebidas. Para
variar, não me ofereceu chocolate.
- Como está? - perguntei-lhe.
- Incomodado. Muito incomodado. Andam a fazer renovações,
redecorações e até modificações estruturais nestes apartamentos.
- Mas isso não os melhorará?
- Melhorará, de facto, mas incomoda-me muito. Cheirará a tinta... -
Olhou-me, indignado, mas afastou os aborrecimentos com um aceno de
mão e indagou: - Foi bem sucedido?
- Não sei - respondi, devagar.
- Ah!
- Descobri o que me mandaram descobrir, mas não encontrei o
homem. Pessoalmente, não sei o que pretendiam. Informações ou um
cadáver?
- Por falar em cadáveres, li o relatório do inquérito de Crowdean.
Homicídio voluntário, por pessoa ou pessoas desconhecidas. E o seu
cadáver recebeu, finalmente, um nome. - Harry Castleton...
- Identificado pela mulher. Esteve em Crowdean?
- Não. Tenciono ir lá amanhã.
- Tem tempo livre?
- Ainda não; continuo com a missão e é por isso que lá vou... Não
estou muito ao corrente do que se passou enquanto estive no estrangeiro.
Que pensa do mero facto da identificação?
- Era de esperar - redarguiu Poirot, com um encolher de ombros.
- Sim, a Polícia é muito experiente...
- E as esposas muito prestáveis.
- Mistress Merlina Rival! Que nome!
- Lembra-me qualquer coisa - murmurou Poirot. - Mas que me
lembra?
Fitou-me, pensativo, mas não o pude ajudar. Conhecendo Poirot
como conhecia, sabia que o nome lhe poderia lembrar tudo.
- Uma visita a um amigo... numa casa de campo... - O detective
abanou a cabeça. - Não... já foi há muito tempo.
- Quando regressar a Londres, virei dizer-lhe tudo quanto conseguir
arrancar ao Hardcastle acerca de Mistress Merlina Rival.
- Não é necessário.
- Quer dizer que, mesmo sem lhe dizerem, já sabe tudo acerca dela?
- Não. Quero dizer que não estou interessado nela.
- Não está interessado... Mas porquê? Não percebo.
- Devemo-nos concentrar nos pontos essenciais.
Fale-me antes da jovem Edna, assassinada na cabina telefónica de
Wilbraham Crescent.
- Não lhe posso dizer mais do que já disse. Não sei nada acerca da
pequena.
- Tudo quanto sabe - redarguiu Poirot, acusador -, ou tudo quanto me
pode dizer, é que a rapariga era uma coelhinha que viu num escritório de
dactilógrafas; que arrancara um salto do sapato num ralo... A propósito,
onde ficava esse ralo?
- Francamente, Poirot, como quer que saiba?
- Poderia saber, se tivesse perguntado. Como espera saber alguma
coisa se não faz as perguntas devidas?
- Mas que importância pode ter o lugar onde o salto se partiu?
- Pode não importar. No entanto, se soubéssemos onde foi,
saberíamos que a rapariga estivera em determinado lugar e isso poderia
relacionar-se com uma pessoa que lá a tivesse visto... ou com qualquer
evento lá ocorrido.
- Está a forçar um bocado a nota. No entanto, sei que foi perto do
trabalho, porque ela o disse e acrescentou que comprara um bolo e
regressara, descalça, para o comer no escritório. Disse, também, como
demónio iria regressar a casa assim.
- E como regressou a casa? - indagou Poirot, interessado.
- Não faço a mínima ideia.
- Parece impossível essa sua tendência para nunca fazer as perguntas
devidas! Como consequência disso, não sabe nada do que é importante.
- Seria melhor ir a Crowdean e fazer o senhor as perguntas - redargui,
abespinhado.
- É impossível, neste momento. Há um interessante leilão de
manuscritos de escritores, para a semana...
- Continua a dedicar-se ao seu passatempo?
- Certamente! - Os seus olhos brilharam. - Veja as obras de John
Dickson Carter ou Carter Dickson, como por vezes também se chama...
Pretextei um encontro urgente e escapei-me antes de ele se
entusiasmar. Não estava com disposição para ouvir dissertar acerca dos
velhos mestres da arte da ficção policial.
Levantei-me do degrau da casa de Hardcastle e tentei dominar o meu
desânimo, quando o vi chegar, na noite seguinte.
- É você, Colin? - perguntou o inspector.Apareceu outra vez de
surpresa, hem? Há quanto tempo está aí sentado, no degrau da minha
porta?
- Há cerca de meia hora.
- Lamento que não tenha podido entrar.
- Podia ter entrado com toda a facilidade! - afirmei, indignado. - Não
imagina como somos bem treinados !
- Então porque não entrou?
- Não desejaria diminuir, em sentido nenhum, o seu prestígio. Um
detective-inspector ficaria numa situação muito ridícula se lhe entrassem
em casa com a maior facilidade.
Hardcastle tirou a chave da algibeira e abriu a porta.
- Entre e não diga tolices - convidou.
Conduziu-me à sala e começou a encher os copos.
- Diga quando chegar - pediu-me. Disse, mas só passado um bocado,
e sentámo-nos cada um com o seu copo.
- As coisas começam, finalmente, a andar. Identificámos o nosso
cadáver.
- Bem sei. Li no jornal. Quem era Harry Castleton?
- Um homem aparentemente muito respeitável, mas que vivia de
casamentos fictícios ou, pelo menos, de noivados com mulheres crédulas e
financeiramente desafogadas. Confiavam-lhe as economias,
impressionadas pelos seus conhecimentos de finanças, e pouco depois ele
desaparecia calmamente da cena.
- Não tinha ar de pertencer a esse tipo - comentei, ao recordar o
assassinado.
- Era esse o seu melhor trunfo.
- Nunca foi acusado?
- Não. Procedemos a consultas, mas não é fácil obter informações,
tanto mais que ele mudava frequentemente de nome. Embora, na Yard,
pensassem que Harry Castleton, Raymond Blair, Lawrence Dalton e Roger
Byron eram uma e a mesma pessoa, nunca o conseguiram provar.
Compreende, as mulheres não falavam, preferiam perder o dinheiro. O
indivíduo era, na realidade, mais um nome do que outra coisa. Aparecia
aqui e ali, procedia sempre de conformidade com o mesmo padrão, mas era
esquivo como uma enguia. Por exemplo, Roger Byron desaparecia de
Southend e um homem chamado Lawrence Dalton começava a operar em
Newcastle on Tyne... Não gostava de ser fotografado e esquivava-se a que
as suas amigas lhe tirassem o retrato... Tudo isto foi há muito tempo.
Uns quinze ou vinte anos. Mais ou menos nessa altura, ele pareceu
desaparecer, de facto, e correu o boato de que morrera. Mas houve quem
dissesse que fora para o estrangeiro.
- Pelo menos, nada constou a seu respeito até ser encontrado, morto,
na carpete da sala de Miss Pebmarsh?
- Exactamente.
- Apresenta, de facto, possibilidades. - Sem dúvida.
- Uma mulher desdenhada que nunca perdoou? - sugeri.
- Às vezes acontece, como sabe. Há mulheres com muito boa
memória, que não esquecem...
- E se uma mulher dessas cegasse... Um desgosto em cima do outro...
- Enfim, tudo isto são conjecturas. Ainda não há nada que o confirme.
- Como era a mulher? Mistress?... Merlina Rival não era? Que nome!
Não pode ser verdadeiro.
- Não é. Ela chama-se, de facto, Flossie Gapp, mas inventou o outro
nome por lhe parecer mais apro priado para a sua vida.
- Que é ela? Uma prostituta?
- Sê-lo-á, mas não profissional.
- Aquilo a que se chamava, eufemisticamente, uma senhora de
virtude fácil?
- Eu diria antes que se trata de uma mulher benévola, sempre disposta
a fazer um favor a um amigo. Disse que era uma ex-actriz e que,
ocasionalmente fazia trabalho de "anfitriã". Simpática. - Digna de
confìança?
- Tão digna de confiança como a maioria das pessoas. O seu
reconhecimento foi positivo, sem hesitações.
- Isso é uma bênção.
- Sim, para quem começava a desesperar, como eu. A quantidade de
candidatas a viúvas que recebi! Comecei a pensar que eram poucas as
mulheres que conheciam realmente os maridos... Note, no entanto, que,
quanto a mim, Mistress Rival podia saber um pouco mais acerca do marido
do que diz.
- Ela esteve alguma vez pessoalmente envolvida em actividades
criminosas?
- Não há nada registado. Suponho, contudo, que
teve, e talvez ainda tenha, alguns amigos suspeitos. Nada de grave,
porém. Umas ninharias.
- E quanto aos relógios?
- Não significaram nada para ela. Creio que falou verdade. Já
averiguámos donde vieram: Mercado de Portobello. Quero dizer, o relógio
dourado e o de porcelana de Dresda. Mas pouco ajuda. Sabe como são as
coisas por lá, ao sábado... O dono da barraca disse que foi uma senhora
americana que os comprou, mas talvez dissesse isso porque o Mercado de
Portobello é muito frequentado por turistas americanas. A mulher do tipo,
pelo seu lado, afirma que foi um homem quem os comprou, mas não se
lembra do seu aspecto. Quanto ao de prata, foi comprado numa joalharia de
Bournemouth por uma senhora alta, que queria uma prenda para a filha. A
empregada só se lembra de que a cliente usava um chapéu verde.
- E o quarto relógio? O que desapareceu?
- Não faço comentários.
Percebi exactamente o que ele queria dizer.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
O hotel em que me instalara era um estabelecimento modesto e
pequeno, perto da estação. Servia uns grelhados decentes, mas ficava-se
por aí. E era económico, claro.
Às dez horas da manhã seguinte, telefonei ao Gabinete Cavendish e
disse que desejava uma estenodactilógrafa para estenografar algumas cartas
e passar um contrato comercial à máquina. Declarei chamar-me Douglas
Weatherby e que estava instalado no Clarendon Hotel (os hotéis pelintras
têm sempre nomes imponentes). Miss Sheila Webb estava disponível? Um
amigo meu achara-a muito eficiente.
Encontrava-me em maré de sorte, pois Sheila podia apresentar-se
imediatamente. No entanto, já tinha um trabalho para o meio-dia...
Redargui que contava terminar muito antes; também tinha um
compromisso.
Esperava à porta do Clarendon quando Sheila apareceu. Avancei e
apresentei-me:
- Mister Douglas Weatherby, ao seu serviço.
- Foi você que telefonou?
- Fui.
- Não deve proceder assim! - exclamou, escandalizada.
- Porquê? Estou disposto a pagar os seus serviços ao Gabinete
Cavendish. Que importa à sua directora se passarmos o seu valioso e
dispendioso tempo no Buttercup Café, ali defronte, em vez de a ditar cartas
enfadonhas, que começam por "Amigos e Senhores", etc.? Venha daí,
vamos beber café num sítio sossegado.
O Buttercup Café era violenta e agressivamente amarelo: tampos de
fórmica, almofadas de plástico e pires e chávenas tudo cor de canário.
Pedi café e scones para dois. Como era cedo, estávamos praticamente
sozinhos.
Quando a criada se afastou, depois de lhe dar a encomenda, olhámonos,
através da mesa.
- Está bem, Sheila?
- Que quer dizer?
Os seus olhos tinham umas olheiras tão escuras que pareciam mais
violeta do que azuis.
- Tem passado um mau bocado?
- Sim... não... Não sei. Pensava que se tinha ido embora.
- Fui, mas voltei.
- Porquê?
- Você sabe porquê.
Baixou os olhos e murmurou, passado pelo menos um minuto:
- Tenho medo dele.
- De quem?
- Do seu amigo, do inspector. Ele pensa... pensa que matei o homem
e a Edna, também.
- Oh, isso é apenas a sua maneira de ser! Procede sempre como se
suspeitasse de toda a gente.
- Não, Colin, não se trata disso. Não vale a pena dizer coisas só para
me animar. Ele pensou desde o princípio que eu estava implicada no caso.
- Minha querida pequena, não existe nenhuma prova contra si. Lá
porque estava presente naquele dia, porque alguém a chamou lá...
- Ele pensa que fui eu própria que arranjei maneira de lá estar e que a
Edna o sabia, ignoro como. Julga que ela reconheceu a minha voz, ao
telefone, a fingir que era Miss Pebmarsh.
- Era a sua voz?
- Claro que não! Não fiz semelhante telefonema, como sempre lhe
disse.
- Escute, Sheila, seja o que for que tenha dito ou diga aos outros, a
mim tem de me dizer a verdade.
- Não acredita, então, no que eu digo!
- Acredito. Você podia ter feito o telefonema, naquele dia, por
qualquer motivo inocente. Talvez alguém lho pedisse, a pretexto de que se
tratava de uma brincadeira... Depois você assustou-se, mentiu e teve de
continuar a mentir. Foi isso?
- Não, não, não! Quantas vezes preciso de lho dizer?
- Tudo isso está muito bem, Sheila, mas há uma coisa que não me
disse. Quero que confie em mim. Se Hardcastle tem qualquer coisa contra
si, qualquer coisa de que não me falou...
- Espera que ele lhe diga tudo? - interrompeu-me.
- Não há motivo nenhum para não me dizer. Somos, mais ou menos,
oficiais do mesmo ofício.
A criada serviu-nos. O café, coitado, estava muito fraquinho...
- Não sabia que tinha alguma coisa a ver com a Polícia - observou
Sheila, a mexer, devagar, o seu café.
- Não se trata exactamente da Polícia e, sim, de um ramo totalmente
diferente. Mas o que eu estava a dizer era que, se o Dick não me diz
algumas coisas que porventura sabe a seu respeito, isso se deve a um
motivo especial: pensa que me interesso por si. E é verdade, Sheila,
interesso-me por si. Mais do que isso, até. Estou do seu lado, seja o que for
que tenha feito. Sei que, naquele dia, saiu daquela casa morta de medo e
que não estava a representar. Não podia ter fingido tão bem.
- Claro que estava assustada. Estava aterrorizada.
- Foi só o facto de encontrar o cadáver que a assustou? Ou houve
mais alguma coisa?
- Que mais poderia haver?
Enchi-me de coragem e perguntei:
- Por que motivo roubou o relógio que tinha o nome "Rosemary"
escrito a um canto?
- Que quer dizer? Porque o roubei?
- Foi o que lhe perguntei.
- Não lhe toquei, sequer.
- Voltou à sala porque, segundo pretextou, se esquecera lá das luvas,
mas nesse dia não usava luvas. Estava um bonito dia de Setembro. Aliás,
nunca a vi usar luvas. Portanto, voltou à sala e apoderou-se do relógio. Não
me minta a esse respeito. Foi isso que fez, não foi?
Ficou silenciosa, durante alguns momentos, a esfarelar os scones do
seu prato.
- Está bem - murmurou, em voz quase inaudível -, está bem, foi.
Peguei no relógio, meti-o na mala e saí.
- Porque fez isso?
- Por causa do nome... Chamo-me Rosemary.
- Chama-se Rosemary e não Sheila?
- As duas coisas: Rosemary Sheila.
- E isso bastou para a decidir? Bastou-lhe o facto de ter o mesmo
nome que estava gravado num dos relógios?
Apercebeu-se da minha incredulidade, mas insistiu:
- Já lhe disse que estava aterrorizada.
Fitei-a. Sheila era a minha pequena, a rapariga que eu queria, e que
queria para sempre. Mas seria inútil ter ilusões a seu respeito. Sheila era
uma mentirosa e provavelmente sê-lo-ia sempre. Era essa a sua maneira de
lutar pela sobrevivência: a negação rápida, fácil, natural. Tratava-se de uma
arma infantil, de uma arma que talvez nunca deixasse de usar. Se eu queria
Sheila, tinha de a aceitar como ela era, de estar à mão para amparar os
pontos fracos. Todos nós temos pontos fracos. Os meus eram diferentes
dos de Sheila, mas existiam.
Decidi-me a atacar. Era a única, solução.
- O relógio era seu, não era? Pertencia-lhe?
Abriu a boca, surpresa.
- Como... como soube?
- Conte-me.
A história irrompeu-lhe, então, dos lábios, numa grande confusão de
palavras. Tivera o relógio quase toda a sua vida. Até à idade dos seis anos,
mais ou menos, todos a tinham tratado por Rosemary, mas ela detestava o
nome e insistira em que a tratassem por Sheila. Ultimamente, o relógio
começara a funcionar mal e ela levara-o, para o deixar num relojoeiro das
imediações do escritório. Mas esquecera-se dele em qualquer lado. No
autocarro ou numa leitaria onde estivera a comer uma sanduíche, à hora do
almoço.
- Quanto tempo antes do assassínio de Wilbraham Crescent foi isso?
Cerca de uma semana, parecia-lhe. Não se preocupara muito, pois o
relógio era velho, andava constantemente a avariar-se e talvez fosse
preferível comprar um novo.
E depois:
- Ao princípio não reparei nele, quando entrei na sala. Subitamente,
deparei com o morto e fiquei paralisada. Levantei-me, depois de lhe tocar,
fiquei de olhos fixos... e o meu relógio estava ali, na minha frente, numa
mesinha junto da lareira. O meu relógio estava ali e eu tinha a mão suja de
sangue... De repente, ela entrou e eu esqueci tudo o mais, porque ela ia
pisá-lo. Por isso... por isso fugi. Só queria desaparecer dali para fora.
- E mais tarde?
- Comecei a pensar. Ela dissera que não telefonara a chamar-me.
Então quem me chamara... quem me atraíra ali e pusera lá o meu relógio?
Disse... disse aquilo acerca das luvas e fui buscá-lo. Creio que foi...
estupidez da minha parte.
- Não podia ter cometido maior tolice - admiti. - Em certos sentidos,
Sheila, não tem senso nenhum.
- A verdade é que alguém tenta implicar-me no assunto. O postal... É
evidente que foi enviado por uma pessoa que sabe que tirei o relógio. E o
próprio postal, a representar o Old Bailey... Se o meu pai fosse um
criminoso...
- Que sabe acerca dos seus pais?
- Morreram num acidente, quando eu era pequenina. É o que a minha
tia me tem dito sempre, mas ela nunca fala deles, nunca diz nada a seu
respeito. Algumas vezes, quando a interrogo, diz-me coisas que não
coincidem com outras que me disse anteriormente. Por isso soube sempre
que havia algo errado...
- Continue.
- Penso que o meu pai talvez fosse um criminoso, ou até um
assassino. Ou talvez fosse a minha mãe...
As pessoas não dizem a uma rapariga que os pais morreram e não
sabem ou não querem dizer nada a seu respeito, a não ser que a verdadeira
razão seja de molde a causar grande desgosto à interessada.
- Por isso tem-se preocupado com esse assunto. Provavelmente a
explicação é muito simples. Pode ser, apenas, uma filha ilegítima.
- Também pensei nisso. Às vezes as pessoas tentam ocultar essas
coisas às crianças. É muito estúpido, pois seria melhor dizerem-lhes a
verdade.
Hoje em dia, já não tem grande importância. Mas o principal é que eu
não sei. Não sei o que está atrás de tudo isto. Porque me deram o nome de
Rosemary? Não é um nome de família... Significa recordação,
não significa?
- O que pode ser um significado agradável - salientei.
- Pois pode... mas não creio que seja. Seja como for, depois de o
inspector me interrogar, naquele dia, comecei a pensar. Porque pretendera
alguém atrair-me ali? Para me colocar na presença de um desconhecido que
estava morto? Ou fora o morto que quisera que me encontrasse com ele
naquela casa? Tratar-se-ia, porventura, do meu pai e desejaria que eu lhe
fizesse alguma coisa? Mas, entretanto, chegara alguém que o matara... Ou
teria alguém pretendido, desde o princípio, dar a impressão de que fora eu
que o matara? Oh, senti-me muito confusa e muito assustada! Dava a
impressão de que tudo me apontava. Atraírem-me ali, o morto e o meu
nome, Rosemary, no meu próprio relógio, que não tinha nada que estar
naquela casa. O pânico apoderou-se de mim e eu cometi uma grande tolice,
como você mesmo disse.
- Tem andado a ler ou a dactilografar muitos romances policiais -
observei, acusadoramente. - E a respeito da Edna? Não faz nenhuma ideia
do que ela teria na cabeça a seu respeito? Porque se deu ao trabalho de ir a
sua casa, se a via todos os dias no escritório?
- Não sei. Ela não podia ter pensado que eu tinha fosse o que fosse a
ver com o assassínio. Não podia!
- Terá ouvido qualquer coisa e adquirido uma ideia errada?
- Já lhe disse que não houve nada. Nada!
Não pude deixar de duvidar. Apesar de tudo, não sabia se Sheila
dizia a verdade.
- Tem alguns inimigos pessoais? Rapazes decepcionados, raparigas
ciumentas, alguém um pouco desequilibrado que lhe queira mal?
As minhas próprias palavras pareceram-me pouco convincentes.
- Claro que não.
Continuava na dúvida acerca do relógio. Era uma história fantástica.
4.13. Que significavam estes algarismos? Porque os escreveria alguém num
postal, juntamente com a palavra "Lembre-se!, a não ser que significassem
qualquer coisa para a pessoa que receberia o postal?
Suspirei, paguei a conta e levantei-me.
- Não se preocupe - recomendei, sem dúvida a frase mais oca da
língua inglesa ou de qualquer outra. O "Serviço Pessoal Colin Lamb"
investiga. Nada lhe acontecerá, casaremos e viveremos muito felizes, com
um ordenado insignificante... A propósito - acrescentei, incapaz de me
dominar, embora consciente de que teria sido muito melhor separarmo-nos
numa nota romântica; mas a "Curiosidade Pessoal Colin Lamb" foi mais
forte... -, que fez ao relógio? Escondeu-o na gaveta das meias?
Deixou passar um momento, antes de responder:
- Meti-o no caixote do lixo da casa ao lado.
Fiquei impressionado. Fora simples e, provavelmente, eficaz. Fora
inteligente da sua parte ter semelhante ideia. Talvez tivesse subestimado
Sheila.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Quando Sheila partiu, fui ao Clarendon, fiz a mala e deixei-a no
porteiro. Tratava-se de um daqueles hotéis onde faziam questão de que os
clientes saíssem antes do meio-dia.
Comecei a andar. Como o meu caminho passava pela esquadra,
hesitei um momento e entrei. Encontrei Hardcastle a ler uma carta, de testa
franzida.
- Parto outra vez esta noite, Dick. Volto para Londres.
Levantou a cabeça e fitou-me, preocupado.
- Aceita um conselho?
- Não - respondi imediatamente.
Não fez caso do "não". As pessoas nunca fazem, quando querem dar
conselhos.
- Se sabe o que lhe convém, vá-se embora e não volte.
- Ninguém pode julgar o que é conveniente para outra pessoa.
- Duvido.
- Vou-lhe dizer uma coisa, Dick. Quando deslindar a minha missão
actual, demito-me. Pelo menos é essa a minha intenção.
- Porquê?
- Sou como um antiquado sacerdote vitoriano: tenho dúvidas.
- Não se precipite.
Não compreendi bem o que queria dizer e perguntei-lhe porque
estava com um ar tão preocupado.
- Leia isto - respondeu, e estendeu-me a carta que estava a ler.
-
"Caro senhor:
Acabo de me lembrar de um pormenor. Perguntou-me
se o meu marido tinha alguns sinais identificativos e eu respondi que não,
mas enganei-me.
Na realidade, ele tem uma espécie de cicatriz atrás da orelha
esquerda. Cortou-se com uma navalha, quando um cão que tínhamos se
atirou a ele, e o golpe teve de ser suturado. É uma coisa tão pequena e
insignificante que, outro dia, não me lembrei dela.
-
Sinceramente,
Merlina Rival".
- A caligrafia é bonita e ousada, embora eu nunca tenha gostado
muito de tinta cor de púrpura - comentei. - O defunto tem uma cicatriz?
- Tem, precisamente onde ela diz.
- E ela não a viu, quando lhe mostraram o cadáver?
- A orelha encobre-a. É preciso dobrar a orelha para a frente, para se
ver.
- Tem, portanto, uma bela corroboração. Porque está preocupado?
Hardcastle respondeu-me, carrancudo, que o caso era um inferno, e
perguntou-me se tencionava visitar, em Londres, o meu amigo belga ou
francês.
- Provavelmente. Porquê?
- Falei dele ao chefe de Polícia, que disse recordá-lo muito bem
daquele caso do assassínio da pequena escuteira. Aconselhou-me a recebêlo
muito cordialmente, se ele resolvesse vir até cá.
- Tire daí o sentido. Aquele homem é praticamente uma lapa.
Era meio-dia e um quarto quando toquei à campainha da casa de
Wilbraham Crescent, 62. Mrs. Ramsay abriu a porta e mal levantou os
olhos para mim.
- Que deseja?
- Posso falar consigo durante alguns momentos? Estive cá há cerca
de dez dias. Talvez não se lembre de mim...
Olhou-me, então, e franziu um pouco a testa.
- Veio... veio com aquele inspector da Polícia, não foi?
- Exactamente, Mistress Ramsay. Posso entrar?
- Se deseja... Não se recusa a entrada à Polícia, pois isso causaria
muito má impressão.
Conduziu-me à sala, apontou-me uma cadeira, com um gesto brusco,
e sentou-se diante de mim. A sua voz exprimira uma certa rispidez, mas
depois a sua atitude adquirira uma indiferença que não lhe notara da última
vez.
- Isto hoje está muito sossegado... Suponho que os seus filhos
voltaram para a escola?
- Voltaram. Faz a sua diferença... Creio que vem fazer mais
perguntas acerca do último assassínio, da pequena que mataram na cabina
telefónica?
- Não se trata disso. Na realidade, não estou ligado à Polícia.
Pareceu um pouco surpreendida.
- Julguei que fosse o sargento... Lamb, não era?
- Chamo-me Lamb, de facto, mas trabalho num departamento
diferente.
A indiferença desapareceu da atitude de Mrs. Ramsay. Olhou-me de
modo directo e firme.
- Ah! Que departamento?
- O seu marido ainda está no estrangeiro?
- Ainda.
- Tem-se demorado muito tempo, e foi para muito longe, não foi,
Mistress Ramsay?
- Que sabe acerca disso?
- Passou a Cortina de Ferro, não passou?
Ficou calada, uns momentos, e por fim respondeu, em voz serena e
inexpressiva:
- Sim, é verdade.
- Sabia que ele ia para lá?
- Mais ou menos. - Fez nova pausa. - Queria que eu fosse ter com ele.
- O seu marido já pensava no assunto havia algum tempo?
- Suponho que sim, mas só me disse ultimamente.
- Não concorda com as suas opiniões?
- Concordei, em tempos... Mas o senhor já deve saber isso.
Investigam essas coisas muito minuciosamente, não investigam? Rebuscam
no passado, descobrem quem foi simpatizante, quem foi membro do
partido, tudo isso.
- Talvez nos possa dar informações susceptíveis de nos serem muito
úteis.
Abanou a cabeça.
- Não, não posso. Digo que não posso e não que não quero. Ele nunca
me disse nada definido; eu não queria saber. Estava farta, saturada de tudo
aquilo!
Quando Michael me disse que ia deixar o país e seguir para
Moscovo, não me surpreendeu. Tive de decidir, então, o que eu queria
fazer.
- E chegou à conclusão de que não simpatizava muito com os
objectivos do seu marido?
- Não o diria desse modo. A minha opinião é inteiramente pessoal...
creio que, no fim, acontece sempre assim, com as mulheres, a não ser que
se seja uma fanática. Sei que as mulheres podem ser muito fanáticas, mas
eu não o sou. Nunca fui mais do que levemente esquerdista.
- O seu marido esteve implicado no caso Larkin?
- Não sei, mas suponho que talvez estivesse. No entanto, nunca me
disse nada nem falou do assunto.Olhou-me, de súbito, com mais interesse e
acrescentou: - Acho melhor sermos claros, Mister Lamb... ou lá como se
chama. Eu amava o meu marido, talvez lhe quisesse o suficiente para ir
com ele para Moscovo, quer concordasse, quer não, com a sua política.
Mas ele queria que levasse os pequenos e eu não concordei. Foi tão simples
como isto. Decidi, portanto, ficar com eles. Não sei se voltarei a ver
Michael. Ele tem de escolher a sua vida e eu tenho de escolher a minha.
Mas acerca de uma coisa não tenho dúvidas: quero que os pequenos sejam
educados aqui, no seu país. Eles são ingleses e eu quero que sejam
educados como vulgares rapazes ingleses.
- Compreendo.
- E creio que é tudo - disse Mrs. Ramsay, e levantou-se.
A sua atitude tornara-se decidida e firme.
- Deve ter sido uma decisão dolorosa - murmurei, compreensivo. -
Sinto muito por si.
E sentia, de facto. Talvez a minha voz exprimisse a sinceridade dos
meus sentimentos e a comovesse, pois ela sorriu tristemente e murmurou:
- Talvez esteja a dizer a verdade... Creio que, na sua profissão, têm de
tentar infiltrar-se, mais ou menos, sob a pele das pessoas, saber o que
pensam e o que sentem. Foi tudo um grande golpe para mim, mas o pior já
lá vai. Agora preciso de fazer planos... Que farei, para onde irei, se deverei
ficar aqui ou ir para qualquer outro lado... Terei de arranjar um emprego.
Fui secretária, em tempos... Talvez me inscreva num curso de revisão
de estenodactilografia...
- Não vá trabalhar para o Gabinete Cavendish.
- Porquê?
- As raparigas que lá trabalham parecem ter tendência para serem
vítimas de coisas muito desagradáveis.
- Se julga que sei alguma coisa a esse respeito, está enganado. Não
sei nada.
Desejei-lhe felicidades e saí. Não ficara a saber nada de novo, através
dela... nem esperara ficar, na realidade. Mas devemos sempre tentar tudo,
não deixar pontas soltas.
Ao sair, quase choquei com Mrs. McNaughton, que transportava um
saco de compras e parecia pouco firme nas pernas.
- Dê-me licença... - Ao ver que tentava tirar-lhe o saco, agarrou-o
com mais força, mas depois inclinou a cabeça, olhou-me melhor e largouo.
- É aquele jovem da Polícia... Não o reconheci.
Levei-lhe o saco até à porta e ela seguiu a meu lado. O saco pesava
mais do que poderia parecer. Que transportaria? Quilos de batatas?
- Não toque. A porta não está fechada à chave.
As portas de Wilbraham Crescent pareciam nunca estar fechadas à
chave!
- Como vão as coisas? - perguntou-me, tagarela e curiosa. - Parece
que ele casou com uma mulher muito abaixo da sua categoria...
Fiquei sem saber a quem ela se referia.
- Quem? Tenho estado ausente...
- Ah, compreendo! Andou a seguir alguém, naturalmente... Referiame
a Mistress Rival. Estive no inquérito e achei-a com um aspecto muito
ordinário. Também não pareceu nada transtornada com a morte do marido.
- Não o via há quinze anos...
- Angus e eu somos casados há vinte anos.Suspirou. - É muito tempo.
E ele, agora que não está na universidade, não faz outra coisa senão
trabalhar no jardim... Uma pessoa nem sabe com que se entreter.
Nesse momento, Mr. McNaughton surgiu da esquina da casa, de
enxada na mão.
- Ah, minha querida, já voltaste! Eu levo-te o saco...
- Ponha-o na cozinha - disse-me Mrs. McNaughton, muito depressa,
e deu-me uma cotovelada. Trouxe só os flocos de aveia, os ovos e um
melão - acrescentou, dirigindo-se ao marido, toda sorridente.
Pus o saco em cima da mesa da cozinha e senti tilintar.
Flocos de aveia uma fava! Deixei os meus instintos de espião levar a
melhor... Debaixo de uma camuflagem de folhas de gelatina, estavam três
garrafas de uísque.
Compreendi por que motivo Mrs. McNaughton se mostrava, por
vezes, tão animada e tagarela e, também, um pouco cambaleante. Talvez
tivesse sido por isso que McNaughton desistira da sua carreira de
professor.
Naquela manhã parecia que toda a vizinhança andava na rua.
Encontrei Mr. Bland, quando seguia pelo crescente na direcção da Albany
Road. Mr. Bland parecia em excelente forma e reconheceu-me
imediatamente.
- Como está? E como vão os crimes? Sei que conseguiram identificar
o cadáver... O patife parece que tratou a mulher muito mal... Desculpe, mas
você não faz parte da Polícia local, pois não?
Respondi, evasivamente, que viera de Londres.
- Quer dizer que a Scotland Yard está interessada, hem?
- Bem... - redargui, de novo evasivamente, e fiquei-me por aí.
- Compreendo, compreendo. Não se devem contar histórias fora da
escola. Não o vi no inquérito...
Respondi-lhe que estivera no estrangeiro.
- Também eu, meu rapaz, também eu! - Piscou-me o olho.
- Alegre Paris? - indaguei, mas não retribuí a piscadela de olho.
- Pena tenho de não ter sido. Não, fiz apenas uma viagem de um dia a
Bolonha. - Deu-me uma cotovelada, tal e qual como Mrs. McNaughton!, e
acrescentou: - Não levei a patroa. Emparelhei com uma miúda loura, uma
autêntica brasa.
- Viagem de negócios? - perguntei, e rimo-nos ambos, como homens
do mundo.
Ele seguiu na direcção do número 61 e eu segui o meu caminho para
a Albany Road.
Sentia-me descontente comigo próprio. Como Poirot dissera, os
vizinhos poderiam, com certeza, dizer mais coisas. Não era, de facto,
natural que ninguém tivesse visto nada. Talvez Hardcastle não tivesse feito
as perguntas adequadas... Mas lembrar-me-ia, acaso, de algumas mais
apropriadas? Quando cheguei à Albany Road, elaborei mentalmente uma
lista de perguntas. Era mais ou menos deste teor:
-
Mr. Curry (Castleton) fora drogado. Como?
-
Mr. Curry (Castleton) fora morto. Quando?
-
Mr. Curry (Castleton) fora levado para o n.º 19.
Como?
-
Alguém devia ter visto qualquer coisa! Quem?
-
Alguém devia ter visto qualquer coisa! O quê?
Virei de novo à esquerda e segui ao longo de Wilbraham Crescent,
tal como acontecera no dia 9 de Setembro. Deveria visitar Miss Pebmarsh
Tocar à campainha e dizer... Dizer o quê?
E se visitasse Miss Waterhouse? Mas que diabo lhe poderia dizer?Mrs. , talvez? A essa pouco importaria o que dissesse. Não
prestaria grande atenção, mas o que dissesse, embora irrelevante e casual,
talvez conduzisse a qualquer coisa.
Continuei a andar e a deduzir mentalmente os números, como
anteriormente. Mr. Curry também per correra aquele caminho, a olhar para
os números, até encontrar o da casa que tencionava visitar?
Wilbraham Crescent nunca parecera tão requintadamente burguês.
Quase dei comigo a exclamar, em estilo muito vitoriano: "Ah, se estas
pedras falassem!..." Parecia ter sido uma frase favorita daqueles tempos.
Mas as pedras não falam, assim como não falam os tijolos e a argamassa
nem, tão-pouco, o gesso e o estuque. Wilbraham Crescent manteve-se
silencioso.
Antiquado, reservado, pelintra e pouco dado a conversas.
Desaprovador, tive a certeza, de transeuntes ocasionais, que nem sequer
sabiam o que procuravam.
Via-se pouca gente. Passaram dois rapazes de bicicleta e duas
mulheres com sacos de compras. As casas, em si, pareciam embalsamadas
como múmias, tão raros eram os sinais de vida que envidenciavam. Com
preendi porquê. Aproximava-se a uma hora da tarde, a hora santificada
pelas tradições inglesas para a refeição chamada do meio-dia. Numa ou
duas casas vi, através
das janelas sem cortinas, algumas pessoas sentadas à mesa. Mas até
isso era raro, pois ou as janelas tinham cortinas de nylon, a versão moderna
da em tempos popular renda de Nottingham, ou, e isso era muito
mais provável, quem estava em casa almoçava na cozinha "moderna", de
acordo com o costume da década de 1960.
Era, pensei, uma hora perfeita para um assassínio.
Teria o assassino pensado o mesmo? Aquelas circunstâncias
peculiares teriam feito parte do seu plano
Cheguei, finalmente, ao número 19.
Parei a olhar, como acontecera a tantos outros mórbidos membros da
comunidade. Naquela altura, porém, não estava mais ninguém à vista.
"Nenhuns vizinhos", pensei tristemente. "Nenhuns curiosos inteligentes."
Senti uma dor aguda no ombro. Enganara-me. Estava ali um vizinho,
um vizinho que seria muito útil se pudesse falar... Encostara-me ao pilar da
cancela do número 20, onde se encontrava o mesmo gatarrão amarelado
que vira da primeira vez. Libertei o meu ombro das suas garras e disse-lhe
umas palavras...
- Se os gatos pudessem falar...
O gato amarelo abriu a boca e soltou um miau alto e melodioso.
- Sei que podes, sei que podes falar tão bem como eu. Mas não falas
a minha língua... Estavas aqui sentado, no outro dia? Viste quem entrou
naquela casa ou saiu dela? Sabes tudo quanto aconteceu? Não me
admiraria nada, bichano.
O gato não gostou dos meus comentários, virou-me as costas e
começou a agitar a cauda.
- Peço perdão, majestade.
Lançou-me um olhar frio, por cima do lombo, e começou a lavar-se
cuidadosamente. Não havia dúvida que Wilbraham Crescent não sabia o
que eram verdadeiros vizinhos. O que eu queria e o que Hardcastle também
queria era uma velhota simpática, bisbilhoteira e mexeriqueira, a quem
sobrasse tempo, uma velhota sempre em ânsias por vir até à rua presenciar
al gum escândalo. Mas, infelizmente, esse género de velhas parecia uma
espécie extinta. Agora as velhinhas sentam-se todas em grupinhos, em lares
para senhoras idosas onde não faltam os confortos indispensáveis à velhice,
ou enchem os hospitais, cujas camas são ur gentemente necessárias para
aqueles que estão de facto doentes. Os coxos, os aleijados e os velhos já
não vivem nas suas próprias casas, entregues aos cuidados de uma serviçal
fiel ou de algum parente pobre e apatetado, grato por ter, assim, um lar.
Isso constituía um grave transtorno para a investigação criminal.
Olhei para o outro lado da rua. Porque não haveria vizinhos daquele
lado? Porque não havia uma série de casas simpáticas, viradas para mim,
em vez daquele grande monstro de cimento armado, de aspecto tão
desumano? Era, sem dúvida, uma espécie de colméia humana, habitada por
abelhas obreiras que passavam todo o dia fora de casa e só regressavam à
noitinha, para lavarem a roupa interior ou retocarem a cara e irem ter com
os namorados. Graças ao contraste com a desumanidade daquele prédio
imenso, comecei a sentir uma espécie de ternura pela burguesia fanada de
Wilbraham Crescent.
Bateu-me nos olhos um clarão de luz, vindo mais ou menos do meio
do prédio. Fiquei intrigado e olhei para cima. O clarão repetiu-se. Estava
uma janela aberta e alguém a olhar para a rua, um rosto parcialmente
obliterado por qualquer coisa contra ele com primida. O clarão de luz
repetiu-se mais uma vez.
Levei a mão à algibeira. Trazia muitas coisas nas algibeiras, coisas
que podiam ser úteis - nem imaginam com que frequência! Um rolinho de
adesivo; alguns instrumentos de aspecto inofensivo, capazes de abrir a
maioria das portas fechadas à chave; uma latinha de pó cinzento, com um
rótulo a dizer que continha o que não continha, e mais um ou dois objectos
que a maioria das pessoas não saberia identificar. Entre outras
coisas, tinha, também, um pequeno óculo de observar pássaros. Não
era muito potente, mas às vezes fazia jeito. Tirei-o e assestei-o.
Estava uma criança à janela. Vi uma trança comprida caída sobre um
ombro. A garota tinha um binóculo pequeno, de teatro, e observava-me
com uma atenção que se podia qualificar de lisonjeadora. No entanto, como
não havia mais nada ali que pudesse observar, talvez não fosse tão
lisonjeadora como parecia... De súbito, porém, surgiu outra distracção
inesperada em Wilbraham Crescent.
Um Rolls-Royce muito velho apareceu na estrada, impante de
dignidade e conduzido por um motorista que também já não devia nada à
juventude e que, embora de aspecto respeitável, parecia muito aborrecido
com a vida. Passou por mim com a solenidade de todo um cortejo de
carros. Reparei que a minha jovem observadora assestara o seu binóculo no
Rolls-Royce...
Deixei-me ficar onde estava, a pensar.
Tenho a convicção de que, quando se espera o tempo suficiente,
acaba-se sempre por ser bafejado pela sorte. Acontece sempre qualquer
coisa com que não contávamos, em que nem sequer pensávamos. Iria ser
assim, daquela vez? Olhei de novo para o grande prédio e localizei, com
cuidado, a janela que me interessava, a contar dos lados e do rés-do-chão
para cima. Terceiro andar. Segui pela rua acima até chegar à entrada do
prédio. Tinha uma passagem larga, para carros, que dava para as traseiras
do edifício, onde havia canteiros de flores, muito certinhos, no meio da
relva.
Acho sempre conveniente proceder a todos os movimentos
necessários para dar a ilusão de que sucedeu qualquer coisa. Por isso saí do
caminho de carros, aproximei-me do prédio, olhei para cima, como se
me tivesse assustado, baixei-me e fingi procurar qualquer coisa. Por fim
endireitei-me, ao mesmo tempo que fingia transferir um objecto da mão
para a algibeira.
A seguir contornei o prédio, até chegar de novo à entrada.
Suponho que, durante quase todo o dia, se devia encontrar lá um
porteiro, mas na hora sagrada da uma às duas o átrio estava deserto. Havia
uma campainha com o letreiro de PORTEIRO, em que não toquei. Meti-me
no elevador e carreguei no botão do terceiro andar. Quando cheguei, tive de
proceder com cuidado.
Do exterior, parece simples localizar determinado aposento mas o
interior de um prédio causa confusão.
No entanto, eu tivera oportunidade de adquirir muita prática daquelas
coisas e estava convencido de que sabia qual a porta que me interessava. O
número que a identificava era, para o melhor ou para o pior, o 77...
Bem, o sete é um número de sorte... Lá vou eu!
Premi o botão da campainha e recuei, a aguardar os acontecimentos.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Esperei apenas um ou dois minutos, antes de a porta se abrir.
Uma robusta rapariga nórdica, de rosto corado e vestido alegremente
colorido, olhou-me com ar interrogador. Lavara as mãos, à pressa, mas
ainda conservavam vestígios de farinha e tinha um salpico de massa no
nariz. Não me custou, por isso, a adivinhar o que estivera a fazer.
- Desculpe, mas mora aqui uma garotinha, não mora? Deixou cair
uma coisa da janela...
Sorriu-me, encorajadoramente. O inglês ainda não era o seu forte.
- Desculpe... Que disse?
- Uma criança, aqui uma menina.
- Sim, sim.
- Deixou cair uma coisa da janela. - Recorri aos gestos, para me fazer
entender melhor. - Apanhei-a e trouxe-a cá acima.
Abri a mão, na qual tinha uma faca de fruta, de prata. A rapariga
olhou-a, sem a reconhecer.
- Não creio... Não vi...
- Está atarefada a cozinhar - observei, com um sorriso de
compreensão.
- Sim, sim, eu cozinhar - concordou, a acenar vigorosamente com a
cabeça.
- Não a quero incomodar. Se me deixar ir levar-lha...
- Perdão?
Por fim pareceu compreender-me, deixou-me entrar e levou-me a
uma saleta agradável. Junto da janela estava um sofá e, nele, uma garota de
nove ou dez anos, com uma perna metida num aparelho de gesso.
- Este senhor disse que... que deixar cair...
Felizmente, nesse instante veio da cozinha um forte cheiro a
queimado e a rapariga soltou uma exclamação de desagrado.
- Dê-me licença, por favor.
- Vá, eu cá me arranjo - respondi-lhe.
Afastou-se a correr e eu entrei na sala, fechei a porta e aproximei-me
do sofá.
- Como passa?
- Bem, e o senhor? - redarguiu a pequenita, e observou-me com um
olhar prolongado e penetrante, que quase me fez perder a coragem.
Era uma garota feiota, de cabelo escorrido, acastanhado, preso em
duas tranças. Tinha fronte abaulada, queixo pontiagudo e olhos cinzentos
muito inteligentes.
- Sou Colin Lamb - apresentei-me. - Como te chamas?
- Geralmente Mary Alexandra Brown - respondeu sem hesitar.
- Meu Deus, que grande nome! Como te tratam?
- Por Geraldine. As vezes chamam-me Gerry, mas eu não gosto.
Além disso,o meu pai não aprova os diminutivos.
Uma das grandes vantagens de lidar com crianças é o facto de elas
possuírem a sua lógica própria. Qualquer pessoa adulta ter-me-ia
perguntado imediatamente o que queria, mas Geraldine estava disposta a
entabular conversação sem recorrer a perguntas tolas.
Estava sozinha e aborrecida e o aparecimento de uma visita, fosse de
que tipo fosse, era uma novidade agra dável. Enquanto eu não
demonstrasse ser um tipo enfadonho e sem interesse, conversaria comigo
de bom grado.
- Suponho que o teu pai não está em casa?
Respondeu com a mesma prontidão e riqueza de pormenores de que
dera provas anteriormente:
- Está a trabalhar na Cartinghaver Engineering Works, em
Beaverbridge. Fica exactamente a vinte e quatro quilómetros daqui.
- E a tua mãe?
- A minha mãe morreu - respondeu Geraldine, com o mesmo
desembaraço.- Morreu quando eu tinha dois meses. Vinha de França, num
avião que caiu.
Morreram todos.
Falava com certa satisfação e eu compreendi que, para uma criança,o
facto de a mãe ter morrido num acidente impressionante se revestia de uma
certa glória.
- Compreendo. Por isso tens... - Olhei na direcção da porta.
- Ingrid. É da Noruega e só veio há duas semanas. Ainda não sabe
inglês que chegue para falar. Eu estou a ensiná-la.
- E ela ensina-te norueguês?
- Poucochinho.
- Gostas dela?
- Gosto. Mas os seus cozinhados são, às vezes, esquisitos. Gosta de
comer peixe cru, veja lá!
- Também comi peixe cru na Noruega. Às vezes é muito bom.
Geraldine pareceu duvidar muito.
- Hoje está a ver se consegue fazer uma tarte de mel.
- Isso parece bom.
- E é. Eu gosto de tarte de mel. - Perguntou, delicadamente: - Veio cá
almoçar?
- Não. Ia a passar, lá em baixo, e pareceu-me que deixaste cair
qualquer coisa da janela.
- Eu?
- Sim.
Estendi-lhe a faca de prata. Geraldine olhou-a, primeiro com
desconfiança, e por fim com sinais de aprovação.
- É bonita - comentou. - O que é?
- Uma faca de fruta.
Abri-a, para a ver melhor.
- Pode-se descascar maçãs e coisas assim com ela, não pode?
- Pode.
- Não é minha - confessou Geraldine, a suspirar. - Não a deixei cair.
Porque pensou que fui eu?
- Bem, estavas à janela e...
- Passo a maior parte do tempo à janela. Caí e parti a perna...
- Pouca sorte.
- Pois foi. Além disso, não a parti de maneira interessante. Ia a descer
do autocarro, ele arrancou bruscamente... Ao princípio doeu-me muito, mas
agora já não dói.
- Deve ser muito aborrecido para ti.
- Pois é. O meu pai traz-me coisas: plasticina, livros, lápis de cor,
quebra-cabeças e coisas assim... Mas uma pessoa cansa-se dessas
brincadeiras e é por isso que passo muito tempo a espreitar pela janela com
isto!
Mostrou-me o binóculo, cheia de orgulho.
- Posso ver? - Peguei no binóculo, levei-o aos olhos e espreitei pela
janela. - É um bom!
Era, de facto, excelente. Se fora o pai que lho dera, não olhara a
despesas. Via-se o número 19 de Wil, braham Crescent e as casas vizinhas
com uma nitidez extraordinária.
- É excelente - elogiei. - De primeira classe.
- É a sério - explicou Geraldine, vaidosa. Não é como os de brincar,
para crianças.
- Ah, pois não!
- Tenho um livrinho - mostrou-mo -, onde escrevo coisas e horas. É
como o jogo dos comboios. Tenho um primo chamado Dick que se
entretém com isso. Também registamos números de automóveis.
Começamos por um e vemos quantos conseguimos, percebe?
- Deve ser engraçado.
- Pois é. Infelizmente não passam muitos carros por esta rua e, por
isso, tive de desistir, por agora.
- Suponho que sabes tudo acerca daquelas casas. Quem lá mora...
Deitei o barro à parede com um ar muito casual, mas Geraldine
pegou-me logo na palavra:
- Oh, pois sei! Claro que não sei os nomes verdadeiros, mas inventoos.
- Deve ser divertido.
- Ali, mora a marquesa de Carrabás, naquela casa que tem as árvores
maltratadas. Lembra-se de O Gato das Botas? Ela tem montes de gatos!
- Estive a falar com um deles, há bocado. Um amarelado.
- Eu vi.
- Deves ser muito esperta. Creio que não te escapa nada...
Geraldine sorriu, satisfeita. No mesmo instante, Ingrid abriu a porta e
entrou, ofegante.
- Está bem, sim?
- Estamos muito bem - respondeu Geraldine,
com firmeza. - Não se preocupe, Ingrid. - Acenou com a cabeça e fez
gestos com as mãos. - Volte, vá cozinhar.
- Muito bem, vou. Ainda bem que tem uma visita.
- Ela enerva-se quando cozinha - explicou Geraldine. - Sobretudo
quando está a experimentar uma coisa nova. Às vezes comemos muito
tarde, por causa disso. Ainda bem que o senhor veio. É bom ter alguém
para me distrair, pois assim não penso na fome.
- Diz-me mais coisas daquelas casas e do que vês. Quem mora na
casa seguinte, naquela arranjada?
- Uma mulher cega. Não vê nada, mas caminha como se visse. Foi o
porteiro que me disse. Chama-se Harry e é muito simpático, conta-me
muitas coisas.
Falou-me do assassínio.
- Do assassínio? - perguntei, a fingir-me adequadamente
surpreendido.
Geraldine acenou com a cabeça e os seus olhos brilharam. A
informação que se preparava para me dar fazia-a sentir-se importante.
- Houve um assassínio naquela casa e eu vi-o, praticamente.
- Que interessante!
- E não é? Nunca tinha visto um assassínio... Quero dizer, uma casa
onde houve um assassínio.
- Mas que viste, afinal?
- Bem, não se passavam muitas coisas, naquela ocasião. É um
período do dia muito parado. Mas de repente saiu uma pessoa da casa, a
gritar, e eu compreendi que devia ter acontecido alguma coisa.
- Quem é que gritava?
- Uma mulher. Era nova e bonita, por sinal. Saiu pela porta fora, aos
gritos... Vinha um homem na rua e ela transpôs a cancela e agarrou-se a
ele... assim.Estendeu os braços e, de súbito, fitou-me. - Ele parecia-se
muito consigo.
- Devo ter um sósia! - exclamei, em tom de brincadeira. - Que se
passou depois? Isso é muito emocionante!
- Bem, ele sentou-a no chão, sem cerimónias, e correu para dentro de
casa. O imperador, é o gato amarelo; chamo-lhe Imperador por ele ser tão
orgulhoso, parou de se lavar e pareceu muito surpreendido. Depois Miss
Espeto saiu de casa, é aquela, do número dezoito, e parou nos degraus, a
olhar.
- Miss Espeto?
- Chamo-lhe assim por ela ser tão feia. Tem um irmão e manda nele.
- Continua - pedi, interessado.
- A seguir aconteceram muitas coisas. O homem saiu de casa... Tem a
certeza de que não era você?
- Sou um tipo muito vulgar - respondi, modestamente. - Há muitos
como eu.
- Sim, isso é verdade - admitiu Geraldine, nada lisonjeadora. - Bem,
o homem correu pela rua abaixo e foi telefonar à cabina. Pouco depois,
começou a chegar a Polícia. - Os olhos da miúda cintilavam.Montes de
polícias! Levaram o morto numa espécie de ambulância. Claro que,
entretanto, juntara-se muita gente, a olhar. Também lá vi Harry, o porteiro.
Ele contou-me tudo, depois.
- Disse-te quem foi assassinado?
- Disse que tinha sido um homem. Ninguém sabia o seu nome.
- Isso tudo é muito interessante.
Pedi fervorosamente aos céus que Ingrid não voltasse naquele
momento com uma deliciosa tarte de mel ou qualquer outra guloseima.
- Mas volta um bocadinho atrás, sim? Viste o homem... o homem que
assassinaram, chegar àquela casa?
- Não. Suponho que esteve lá sempre.
- Queres dizer que morava lá?
- Oh, não! Naquela casa só mora Miss Pebmarsh.
- Sabes, então, como ela se chama?
- Vinha nos jornais, com a notícia do crime. E a rapariga que gritou
chama-se Sheila Webb. Harry disse-me que o homem que mataram se
chamava Mister Curry. É um nome muito esquisito, não é? Há uma comida
com o mesmo nome. Mas também houve outro assassínio sabe? Não foi no
mesmo dia, foi depois... na cabina telefónica. Vejo-a daqui, mas para isso
tenho de me debruçar toda e virar a cabeça. Se soubesse que ia haver um
crime, ter-me-ia debruçado e teria visto, assim, não vi. Nessa manhã,
estava muita gente lá em baixo, na rua, a olhar para a casa defronte. É
estúpido não acha?
- Acho. É muito estúpido.
Ingrid voltou:
- Venho daqui a bocadinho. Falta pouco - anunciou.
- Não precisamos dela - disse Geraldine, quando a rapariga saiu. -
Enerva-se com as refeições, embora só tenha de preparar esta, além do
pequeno-almoço.
À noite o meu pai vai lá abaixo, ao restaurante, e manda trazerem-me
qualquer coisa. Peixe ou qualquer coisa... Não é comer a sério - lamentou-se,
tristemente.
- A que horas costumas almoçar, Geraldine?
- Jantar, quer dizer? Agora é o meu jantar; à noite não janto, ceio.
Bem, janto quando a Ingrid acaba de cozinhar, a qualquer hora. Ela é muito
cómica, com as horas. O pequeno-almoço tem que o ter pronto a tempo,
porque o meu pai zanga-se, mas o jantar... às vezes é ao meio-dia, outras
tenho de esperar até às duas horas... Ela diz que não é preciso comer a
horas certas; come-se quando a comida está feita.
- Isso é uma ideia muito prática. A que horas almoçaste... quero
dizer, jantaste, no dia do crime?
- Foi um dos dias em que calhou ao meio-dia. É o dia de saída da
Ingrid, percebe? Ela vai ao cinema ou arranjar o cabelo e Mistress Perry
vem-me fazer companhia. É terrível. Dá palmadinhas.
- Dá palmadinhas? - perguntei, um pouco intrigado.
- Sim, na cabeça. E diz coisas como: "Querida pequenita"... Não é
uma pessoa com quem se possa conversar como deve ser... mas traz-me
doces e coisas assim.
- Que idade tens, Geraldine?
- Dez anos. Dez anos e três meses.
- Sabes conversar muito bem, com muita inteligência - elogiei.
- Isso é porque tenho de conversar muito com o meu pai - explicou,
com toda a seriedade.
- Portanto, jantaste cedo, no dia do crime?
- Sim, para a Ingrid poder lavar a louça e sair antes da uma hora.
- Nessa manhã estiveste à janela, a observar as pessoas.. .
- Sim, parte do tempo. Cerca das dez horas estive entretida a fazer
palavras cruzadas.
- Tenho estado a pensar se não terias visto Mister Curry chegar
àquela casa...
- Não vi. Concordo que é estranho.
- Bem, talvez ele tenha chegado muito cedo.
- Não foi à porta da frente e não tocou à campainha. Se fosse, tê-lo-ia
visto.
- Se calhar entrou pelo jardim... quero dizer, pelo outro lado da casa.
- Oh, não! Dá para outras casas e as pessoas não deixariam ninguém
passar pelos seus jardins.
- Suponho que não.
- Gostava de saber como ele era...
- Bem, era velho, tinha cerca de sessenta anos. Usava a cara rapada e
vestia um fato cinzento-escuro.
- Parece muito vulgar - comentou Geraldine, desaprovadora.
- Acho que deves ter dificuldade em distinguir uns dias dos outros,
visto estares aqui imobilizada e sempre a olhar lá para fora.
- Não é nada difícil! - afirmou, sem perder a deixa. - Sei-lhe dizer
tudo acerca dessa manhã. Até sei quando Mistress Caranguejo chegou e
quando saiu.
- Mistress Caranguejo? É a mulher-a-dias?
- É. Arrasta-se mesmo como um caranguejo! Tem um filho, que às
vezes vem com ela. Mas nesse dia não veio. Miss Pebmarsh sai cerca das
dez horas, para ensinar crianças numa escola de cegos. Mistress
Caranguejo sai por volta do meio-dia e, às vezes, leva um embrulho que
não trazia à chegada. Bocados de manteiga e de queijo, naturalmente...
Como Miss Pebmarsh não vê... Sei muito bem o que aconteceu nesse dia
porque a Ingrid e eu estávamos zangadas e ela não queria falar comigo.
Ando a ensinar-lhe inglês e ela queria saber como se diz "até à vista". Teve
de mo dizer em alemão: Auf Wiedersehen. Sei que é assim porque uma vez
estive na Suíça e as pessoas diziam-no. Também diziam Grüss Gott. É feio
dizer isso em inglês.
- Então que ensinaste a Ingrid a dizer?
Geraldine desatou a rir, maliciosamente, e teve dificuldade em falar.
Por fim, lá conseguiu:
- Ensinei-a a dizer: "Suma-se daqui para fora!"
Ela disse-o a Miss Bulstrode, que mora aqui ao lado, e Miss
Bulstrode ficou furiosa! Ingrid descobriu e ficou muito zangada comigo. Só
fizemos as pazes à hora do chá do dia seguinte.
Digeri a informação...
- Por isso entretiveste-te com o teu binóculo...
Geraldine acenou com a cabeça.
- E por isso sei que Mister Curry não entrou pela porta da frente.
Penso que talvez tenha entrado de noite e se tenha escondido no sótão.
Acha possível?
- Acho que tudo é possível, mas não me parece muito provável.
- Pois não. Ele teria fome, não teria? E não poderia pedir a Miss
Pebmarsh o pequeno-almoço, se estava escondido dela.
- E ninguém foi lá a casa? Absolutamente ninguém? Alguém que
viesse num automóvel... um vendedor...
- O merceeiro vem às segundas e às quintas-feiras e o leiteiro às oito
e meia da manhã.
A garota era uma autêntica enciclopédia!
- A hortaliça e coisas assim é Miss Pebmarsh que compra. Não veio
ninguém, a não ser da lavandaria.
Por sinal era uma lavandaria nova.
- Uma lavandaria nova?
- Sim. Costumava ser a Southern Down Laundry, que é a lavandaria
da maioria das pessoas daqui. Mas naquele dia foi a Snowflake Laundry.
Nunca a tinha visto. Deve ser nova.
Esforcei-me por não atraiçoar, pela voz, o enorme interesse que
sentia. Não queria que ela começasse a fantasiar.
- Veio trazer ou buscar a roupa?
- Trazer. O cesto até era muito grande, muito maior do que é
costume.
- Foi Miss Pebmarsh que o recebeu?
- Claro que não. Ela tinha saído outra vez.
- A que horas foi isso, Geraldine?
- À uma e trinta e cinco, exactamente. Tomei nota - respondeu,
orgulhosamente.
Pegou num livrinho, abriu-o e apontou um registo, com o indicador
um bocado sujo: Vieram da lavandaria à 1.35 h.
- Devias ir para
a Scotland Yard!
- Têm mulheres-detectives? Gostaria imenso! Mulher-polícia, não.
Acho as mulheres-polícias ridículas.
- Ainda não me disseste o que aconteceu quando vieram da
lavandaria.
- Não aconteceu nada. O motorista apeou-se, abriu a porta de trás,
tirou o cesto e carregou-o, com dificuldade, para as traseiras da casa.
Suponho que não pôde
entrar, por a porta estar fechada à chave, e deixou o cesto no patamar.
- Como era ele?
- Vulgar.
- Como eu?
- Oh, não! Era muito mais velho. Mas não o vi bem porque ele
aproximou-se da casa por este lado - apontou para a direita. - Parou defronte
do número dezanove, embora estivesse fora da sua mão... mas isso não tem
importância, numa rua como esta. Depois entrou, todo dobrado debaixo do
cesto, e só lhe vi as costas. Quando voltou, vinha a esfregar a cara.
Naturalmente estava cansado e com calor por ter transportado o cesto.
- E partiu?
- Partiu. Porque lhe parece tão interessante?
- Bem, não sei... Pensei que talvez ele tivesse visto alguma coisa com
interesse.
Ingrid abriu a porta e entrou a empurrar uma mesinha com rodas.
- Agora vamos jantar! - anunciou, alegremente.
- Óptimo! - exclamou Geraldine. - Estou esfaimada. - Tenho de ir
andando - disse, e levantei-me. Adeus, Geraldine.
- Adeus. E isto? - pegou na faca de fruta. Não é minha... tenho pena.
- Parece que não é de ninguém em especial, pois não?
- Pode ser tesouro achado, ou como se diz?...
- Acho que sim... Creio que podes ficar com ela, até alguém a
reclamar... mas não creio que alguém a reclame.
- Dê-me uma maçã, Ingrid.
- Maçã?
- Pomme! Apfell!
Não ia nada mal em linguística...
***
Mrs. Rival empurrou a porta do Peacock's Arms e avançou, com
pouca segurança, para o balcão. Falava em voz baixa e via-se que não era
desconhecida na casa. O empregado saudou-a afectuosamente.
- Como vai, Flo?
- Não vai muito bem. Não está certo. Sei do que estou a falar, Fred, e
digo que não está certo.
- Claro que não está certo - concordou Fred, apaziguador. - Que
deseja? O costume?
Mrs. Rival acenou afirmativamente, pagou e começou a sorver a
bebida. Fred afastou-se, para atender outro cliente. A bebida animou um
bocadinho Mrs. Rival.
Continuava a falar entredentes, mas com uma expressão mais
animada. Quando Fred voltou, ela falou-lhe, em tom mais suave:
- Mesmo assim, não tolerarei semelhante coisa! Não posso suportar a
falsidade, nunca pude!
- Pois claro, Flo. - Fred observou-a com olhar entendido, e comentou:
- Já bebeu uns copitos...E pensou, para consigo: "Mas ainda aguenta mais
uns dois. Qualquer coisa a transtornou..."
- Falsidade - repetiu Mrs. Rival. - Prevari... prevari... Bem, você sabe
que palavra quero dizer.
- Pois sei, Flo.
Fred foi atender outro cliente, falaram de cães e Mrs. Rival continuou
a resmungar.
- Não me agrada e não permitirei. Hei-de dizê-lo. Têm de se
convencer de que não me podem tratar desta maneira. Oh, não, não podem!
Não está certo, e se uma pessoa não se defende, quem a defenderá? Dê-me
mais outra, queridinho - pediu, em voz mais alta, e Fred fez-lhe a vontade.
- No seu lugar, ia para casa depois de beber essa.
Que teria transtornado tanto a velhota? Geralmente mostrava-se bemdisposta,
uma boa alma sempre pronta a rir.
- Acabarão por me meter em maus lençóis, Fred. Quando alguém nos
pede que façamos uma coisa, deve dizer-nos tudo a esse respeito, deve
dizer-nos o que significa e o que pretende fazer. Mentirosos. Imundos
mentirosos! Mas eu não permitirei.
- Acho melhor ir para casa - insistiu Fred, ao ver uma lágrima prestes
a rolar pelo esplendor da pintura. - Vai chover, e chover muito, e a chuva
estragará o seu bonito chapéu.
Mrs. Rival esboçou um leve sorriso de aprovação.
- Sempre gostei de centáureas azuis. Meu Deus, não sei que fazer!
- Vá para casa e durma um bom sono, Flo aconselhou Fred,
bondosamente.
- Talvez, mas...
- Então? Com certeza não quer estragar esse chapéu. ..
- Lá isso é verdade... Sim, é muito verdade. É uma prof... profunda...
não, não é isso que quero dizer. Que quero eu dizer, Fred?
- Profunda observação.
- Muito obrigada.
- Não tem de quê, Flo.
Mrs. Rival escorregou do banco e encaminhou-se para a porta, um
bocadinho cambaleante, mas não muito.
- Parece que a velha Flo está um pouco transtornada, esta noite -
observou um dos clientes.
- Geralmente é muito alegre, mas todos temos os nossos altos e
baixos - disse um indivíduo de ar tristonho.
- Se alguém me tivesse dito - prosseguiu o primeiro homem - que
Herry Vranger chegaria em quinto lugar, atrás da Queen Caroline, não
acreditaria! Deve ter havido batota. As corridas, hoje em dia, não são leais.
Drogam os cavalos, todos eles...
Mrs. Rival saíra do Peacock's Arms. Olhou para o céu, hesitante.
Sim, talvez fosse chover... Meteu pela rua fora, estugou um pouco o passo,
virou à esquerda e depois à direita e, por fim, parou diante de uma casa
muito modesta. Quando tirou a chave e subiu os primeiros degraus, uma
cabeça espreitou pela porta e uma voz informou-a:
- Está um cavalheiro à sua espera lá em cima.
- À minha espera? - perguntou Mrs. Rival, um pouco surpreendida.
- Bem, pode-se chamar-lhe um cavalheiro... está bem vestido e tudo o
mais, mas não chega aos calcanhares de Lorde Algernon Vere de Vere...
Mrs. Rival conseguiu encontrar o buraco da fechadura, introduzir a
chave e abrir a porta.
A casa cheirava a couves, peixe e eucalipto. O último cheiro era
quase permanente naquele átrio. A senhoria de Mrs. Rival tinha muito
cuidado com o peito, no Inverno, e começava a prevenir-se em meados de
Setembro... Mrs. Rival subiu a escada, apoiada ao corrimão, empurrou a
porta do primeiro andar e entrou. De súbito, porém, estancou e, a seguir,
recuou um passo.
O detective-inspector Hardcastle levantou-se da cadeira onde estava
sentado.
- Boas noites, Mistress Rival.
- Que deseja? - perguntou a mulher, com menos delicadeza do que
era habitual nela.
- Bem, precisei de vir a Londres, em serviço, e como desejava
esclarecer uns pormenores consigo, vim até cá, na esperança de a
encontrar. A... a mulher lá de baixo enganou-se, ao dizer que a senhora não
se deveria demorar muito.
- Bem, mas não compreendo...
O inspector puxou uma cadeira e convidou, delicadamente:
- Sente-se, por favor.
Dir-se-ia que era ele o dono da casa e ela a visita.
Mrs. Rival sentou-se e olhou-o fixamente.
- De que pormenores se trata?
- Coisas sem importância, que surgiram. - Acerca... acerca do Harry?
- Sim. - Bem... - A mulher hesitou, um momento. - Escute... - Mrs.
Rival falou com uma certa agressividade e as narinas do inspector captaram
o cheiro a álcool do seu hálito. - Escute, o Harry acabou-se e não quero
pensar mais nele. Apresentei-me quando vi o retrato no jornal, não
apresentei? Apresentei-me e disse-lhe tudo a respeito dele. Já passou muito
tempo e não quero recordar o que aconteceu. Não lhe posso dizer mais
nada, disse-lhe tudo quanto sabia e não quero ouvir falar mais do assunto.
- Trata-se de uma coisa sem importância - insistiu o inspector, em
tom suave e pesaroso.
- Pois sim, já que tem de ser. De que se trata? Acabemos com isso.
- Reconheceu o indivíduo como seu marido, ou como o homem com
o qual efectuou uma cerimónia de casamento, há cerca de quinze anos. Foi
isto, não foi?
- Julgava que já tivesse tido tempo de saber exactamente há quantos
anos foi.
"Mais esperta do que eu julgava", pensou o inspector.
- Tem razão, procedemos a investigações a esse respeito. Casaram no
dia quinze de Maio de mil novecentos e quarenta e oito.
- Dizem que ser noiva de Maio dá azar... A mim não me deu sorte.
- Apesar dos anos que passaram, identificou o seu marido com muita
facilidade.
- Ele não envelheceu muito - redarguiu Mrs. Rival, pouco à vontade.
- Teve sempre muito cuidado consigo.
- Além disso, deu-nos ainda uma informação que ajudou a corroborar
a identificação. Escreveu-me acerca de uma cicatriz...
- Sim, atrás da orelha esquerda. Aqui... - Mrs. Rival levantou a mão e
apontou o ponto exacto.
- Atrás da orelha esquerda dele? - insistiu Hard castle.
Sim, creio que sim. Sim, tenho a certeza. Claro que, numa pressa,
nunca distinguimos a esquerda da direita, pois não? Mas era do lado
esquerdo do pescoço de le. Aqui. - Voltou a colocar a mão no mesmo
ponto.
- E ele cortou-se ao barbear-se, não foi o que disse?
- Foi. O cão saltou para ele... Tínhamos um cão muito traquinas,
nessa altura, muito meigo... Atirava-se a nós, para nos demonstrar o seu
carinho... O Harry tinha a navalha na mão e a lâmina enterrou-se
profundamente. Sangrou muito. Sarou, mas a cicatriz nunca desapareceu. -
Recomeçara a falar com muito mais segurança.
É um pormenor muito importante, Mistress Rival. Os homens às
vezes parecem-se muito, sobretudo quando passamos muitos anos sem os
ver. Mas encontrar um homem parecido com o seu marido e, ainda por
cima, com uma cicatriz no mesmo sítio da que ele tinha... Enfim, a
identificação assim torna-se mais segura. Parece-me que temos, agora, por
onde começar.
- Ainda bem que está satisfeito.
- A propósito, esse acidente com a navalha... quando sucedeu?
Mrs. Rival pensou, um momento.
- Deve ter sido... uns seis meses depois de casarmos. Exactamente.
Lembro-me de que arranjámos o cão nesse Verão.
- Portanto, ele cortou-se em Outubro ou Novembro de mil
novecentos e quarenta e oito?
- Isso mesmo.
- E depois de o seu marido a deixar, em mil no vecentos e cinquenta
e um.. .
- Não foi ele que me deixou; eu é que corri com ele - emendou Mrs.
Rival, com dignidade.
- Pois claro, como quiser. Depois de correr com o
seu marido, em mil novecentos e cinquenta e um, nunca mais o
voltou a ver, até deparar com a sua fotografia no jornal?
- Já lhe disse que não.
- Tem a certeza absoluta a esse respeito, Mistress Rival?
- Claro que tenho a certeza. Nunca mais voltei a pôr os olhos em
Harry Castleton até ao dia em que o vi morto.
- É estranho, sabe? É muito estranho...
- Porquê? Que quer dizer?
- O tecido cicatricial é uma coisa muito curiosa. Claro que, para si ou
para mim, uma cicatriz é uma cicatriz... Mas os médicos são capazes de
descobrir muitas coisas, ao examinarem uma cicatriz. Podem, por exemplo,
avaliar mais ou menos há quanto tempo um homem tem determinada
cicatriz.
- Não percebo aonde quer chegar.
- Quero chegar simplesmente a isto, Mistress Rival: segundo o
médico da Polícia e outro médico que consultámos, a cicatriz que o seu
marido apresenta atrás da orelha indica claramente que o ferimento que a
causou foi feito há cinco ou seis anos, no máximo.
- Tolice! Não acredito. Eu... ninguém pode saber uma coisa dessas.
Pelo menos não foi nessa altura que...
- Portanto - prosseguiu Hardcastle, suavemente -, se aquela cicatriz
resulta de um ferimento de há cinco ou seis anos, isso significa que, se o
indivíduo foi seu marido, não tinha cicatriz nenhuma quando a deixou em
mil novecentos e cinquenta e um.
- Talvez não tivesse. Mas, de qualquer maneira, trata-se do Harry.
- Mas a senhora afirma que não o voltou a ver desde que se
separaram. Ora se não o voltou a ver, como poderia saber que ele arranjou
uma cicatriz há cinco ou seis anos?
- Está a confundir-me! - protestou Mrs. Rival.Está a confundir-me
muito. Talvez não tivéssemos casado há tanto tempo, talvez não fosse em
mil novecentos e quarenta e oito... Uma pessoa não se pode lembrar de
tudo. O que interessa é que o Harry tinha aquela cicatriz e eu sabia-o.
- Compreendo - murmurou o inspector, e levantou-se. - Aconselho-a
a reflectir muito bem nas declarações que prestou, Mistress Rival. Não
deseja, com certeza, arranjar sarilhos.
- Arranjar sarilhos? Que quer dizer?
- Bem... perjúrio - respondeu Hardcastle, quase em tom de quem se
desculpa.
- Perjúrio! Perjúrio, eu!
- Sim. É um crime muito grave, aos olhos da lei... Poderia, até, ser
presa... Claro que não prestou juramento, ao depor no inquérito, mas talvez
tenha de o prestar, um dia, num tribunal competente. Por isso... enfim,
gostaria que pensasse bem, Mistress Rival. Talvez alguém lhe sugerisse
que nos falasse na cicatriz?
Mrs. Rival levantou-se e ficou muito direita e de olhos coruscantes.
Naquele momento, parecia quase majestosa.
- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida! Resolvi cumprir o meu
dever, apresentei-me e ajudei-o, disse-lhe aquilo de que me lembrei... Se
cometi um erro qualquer, acho natural. No fim de contas tenho muitos...
enfim, muitos cavalheiros amigos e, às vezes, é possível fazermos
confusão. Mas não creio que me tenha enganado. Aquele homem era o
Harry e o Harry tinha uma cicatriz atrás da orelha esquerda. Tenho a
certeza disso! E agora, inspector Hardcastle, talvez seja melhor ir-se
embora, em vez de continuar a insinuar que lhe menti.
- Boas noites, Mistress Rival - despediu-se imediatamente o
inspector. - Pense bem.
Assim que Hardcastle saiu, a atitude de desafio da mulher modificou-se
por completo. Pareceu assustada e preocupada.
- Meterem-me nisto... - murmurou. - Meterem-me nisto... Não
continuarei... Não me meterei em sarilhos seja lá por causa de quem for!
Dizerem-me coisas, mentirem-me, enganarem-me! É monstruoso!
Monstruoso!
Começou a andar nervosamente de um lado para o outro e, por fim,
pareceu tomar uma decisão. Pegou num chapéu-de-chuva e voltou a sair.
Foi até ao fim da rua, hesitou junto de uma cabina telefónica e depois
encaminhou-se para o posto dos Correios. Entrou, pediu que lhe trocassem
dinheiro e meteu-se numa das cabinas. Ligou para as informações por
moradas, pediu um número e aguardou que fizessem a chamada.
- Está ligado o número que deseja - informou a telefonista.
- Está?... Ah, és tu! Aqui, Flo... Bem sei que me disseste que não
telefonasse, mas não o pude evitar. Não foste leal comigo, não me disseste
em que me ia meter. Disseste apenas que seria desagradável e embaraçoso
para ti se o indivíduo fosse identificado. Não me passou sequer pela cabeça
que me veria metida num assassínio... Claro, já esperava que me
dissesses isso. Mas não foi o que me explicaste... Sim, penso. Penso que
tens a ver com o caso, seja lá em que sentido for... Não, não permitirei... Há
uma questão de ser cum... tu sabes a palavra... cúmplice ou coisa parecida.
Estou assustada, garanto-te. Essa ideia de me mandares escrever acerca da
cicatriz foi estúpida. Agora parece que ele só tinha a cicatriz há um ou dois
anos, e eu jurei que já a tinha quando me deixou... É perjúrio e posso ir
parar à cadeia por causa disso!
É inútil tentares convencer-me... Não... Fazer um favor é uma coisa...
Bem sei, bem sei que me pagaste. Mas não foi muito, também... Está bem,
eu escuto, mas já te digo que não... Está bem, está bem, eu calo-me... Que
disseste?... Quanto?... Isso é muito dinheiro. Como sei que o tens mesmo
que... Bem, sim, claro, isso seria diferente. Juras que não tiveste nada a ver
com o assunto?... Quero dizer, que não participaste na morte de ninguém...
Não... enfim, tenho a certeza de que não farias. Claro que compreendo...
Às vezes aliamo-nos a certas pessoas que vão mais longe do que nós
iríamos, acontecem coisas e a culpa não é nossa, mas... Na tua boca as
coisas parecem sempre tão plausíveis... Foste sempre assim... Está bem,
pen sarei no assunto. Mas terá de ser depressa... Amanhã... A que horas?...
Sim, sim, irei. Mas nada de cheques, podiam descobrir... Não sei,
francamente, se deverei continuar, mesmo que... Está bem, se tu o dizes...
Não queria ser desagradável, acredita... Pronto, combinado.
Saiu do posto dos Correios a cambalear de extremo a extremo do
passeio e a sorrir para consigo.
Valia a pena arriscar-se a umas complicaçõezitas com a Polícia por
aquela quantia. Fazia-lhe muito jei to. E, bem vistas as coisas, os riscos não
eram muito grandes. Bastar-lhe-ia dizer que não sabia ou não se lembrava.
Havia muitas mulheres que não se lembravam de coisas sucedidas havia
apenas um ano... Diria que fazia confusão entre o Harry e outro homem.
Oh, a lembrava-se de muitas coisas que poderia dizer!
Mrs. Rival possuía um temperamento naturalmente mercurial. Sentiase,
naquele momento, tão eufórica quanto se sentira deprimida pouco antes.
Começou a pensar a sério nas primeiras coisas que compraria com o
dinheiro...
NARRATIVA DE COLIN LAMB
- Não parece ter sabido grande coisa por intermédio dessa Mistress
Ramsay - queixou-se o coronel Beck.
- Não havia muito que saber.
- Tem a certeza?
- Tenho.
- Ela não é parte activa?
- Não.
- Satisfeito? - perguntou-me o velho, a observar-me com atenção.
- Não de todo.
- Esperava mais?
- A lacuna continua a existir.
- Teremos de procurar noutro lado qualquer. Desistiu dos crescentes,
hem?
- Sim.
- Está muito monossilábico. Apanhou alguma bebedeira?
- Não presto para este trabalho.
- Quer que o coloque na pista e diga "Ali, ali"?
Não pude deixar de rir.
- Assim já está melhor! De que se trata, Colin? Sarilho de saias,
creio?
- Comecei a sentir isto há algum tempo - respondi, a abanar a cabeça.
- Para ser sincero, dei por isso - declarou Beck, inesperadamente. - O
mundo está num estado de grande confusão, as coisas não são tão claras
como costumavam ser. Quando o desencorajamento se instala, é como o
caruncho. Grandes cogumelos a irromper pelas paredes. Se é isso que se
passa, perdeu a utilidade para nós. Fez alguns trabalhos de primeira
categoria, rapaz, dê-se por feliz com isso e volte para as suas malditas
algas. - E após uma pausa: - Gosta realmente dessa porcaria, não gosta?
- Acho o assunto apaixonadamente interessante.
- Eu achá-lo-ia repugnante. Os gostos são uma extraordinária variante
da natureza... Como vai o seu assassínio? Aposto que foi a sua pequena
que o cometeu.
- Está enganado.
Beck acenou-me com um dedo, de modo paternal e admonitório.
- Só lhe digo o seguinte: "Esteja preparado." E não me refiro ao mote
dos escuteiros.
Desci a Charing Cross Road e comprei um jornal.
Uma notícia informava que uma mulher, que se supunha ter tido um
colapso na Estação de Vitória, na hora de ponta, fora levada para o
hospital. Ao chegar, porém, verificara-se que fora apunhalada. Morrera
sem recuperar os sentidos.
Chamava-se Mrs. Merlina Rival.
Telefonei a Hardcastle.
- É verdade, aconteceu como noticiam - confirmou, em voz dura e
irritada. - Visitei-a, na noite de anteontem, e disse-lhe que a sua história
acerca da cicatriz não batia certo, pois o tecido cicatricial era relativamente
recente. É singular como as pessoas escorregam, precisamente por tentarem
compor demasiado as coisas. Alguém lhe pagou para ela identificar o
cadáver como sendo o do marido, que a abandonou há anos. Muito bem,
ela identificou-o e eu acreditei-a. Mas, depois, quem quer que esteja por
detrás de tudo isto, tentou ser esperto. Se ela se lembrasse daquela
insignificante cicatriz mais tarde, depois de falar comigo, esse pormenor
acrescentaria convicção às suas declarações e não restariam dúvidas quanto
à identificação. Se ela tivesse falado na cicatriz, logo ao ver a vítima, talvez
parecesse excessivamente preciso...
- Portanto, Merlina Rival estava metida no assunto até ao pescoço?
- Confesso-lhe que duvido disso. Suponha que um velho amigo ou
conhecido a procurava e lhe dizia: "Olha, estou metido num aborrecimento.
Um tipo com quem tive uns negócios foi assassinado, e se o identificarem e
as nossas transacções se tornarem conhecidas, será uma tragédia para mim.
Mas se tu te apresentasses e dissesses que se tratava do teu marido, Harry
Castleton, que te deixou a ver navios há anos, o caso morreria e eu não
teria nada a recear..."
- Mas ela recusaria, certamente, diria que era demasiado arriscado?
- Se dissesse, a tal pessoa redarguir-lhe-ia: "Arriscado porquê? Na
pior das hipóteses, dirias que te enganaras. Qualquer mulher se pode
enganar ao fim de quinze anos." E, provavelmente, prometeram-lhe uma
contazinha calada e ela disse que sim, que faria o jeito. E fez.
- Sem suspeitar?
- Não era uma mulher desconfiada. Lembre-se, Colin, que quando
um assassino é apanhado, há sempre gente que o conheceu bem e não pode
acreditar que ele fosse capaz de fazer semelhante coisa!
- Que aconteceu quando a visitou?
- Meti-lhe um susto. Quando saí, ela fez o que eu esperava que
fizesse: tentou comunicar com o homem ou com a mulher que a metera na
encrenca. Mandei-a seguir, claro. Entrou num posto dos Correios e fez uma
chamada, de uma cabina automática. Infelizmente, não se tratava da cabina
que eu calculara que utilizaria, ao fim da sua própria rua... Precisou de
trocar dinheiro. Saiu da cabina, depois de telefonar, com o ar de quem se
sentia muito contente consigo própria. Mantivemo-la sob observação, mas
não sucedeu nada de interessante até ontem à noite. Foi à Estação de
Vitória e comprou um bilhete para Crowdean. Passava das seis e meia, a
hora de ponta. Ela estava desprevenida, tranquila, julgava que se iria
encontrar com a pessoa em questão, em Crowdean. Mas esse demônio de
astúcia andava mais depressa do que ela. Não há nada mais fácil do que
chegar atrás de uma pessoa, numa multidão, e cravar-lhe uma faca... Creio
que ela nem compreendeu que fora apunhalada. As pessoas não se
apercebem, como sabe. Lembra-se do Barton, daquele caso do roubo da
quadrilha Levitti? Percorreu a pé uma rua inteira, antes de cair morto.
Sente-se apenas uma dor súbita e fina... e depois julga-se que tudo passou.
Mas não passou, fica-se morto em pé
sem o saber. - E concluiu: - Raios partam! Raios partam! Raios
partam!
- Investigou... alguém? - Não pude deixar de fazer a pergunta.
A sua resposta foi rápida e incisiva:
- A Pebmarsh esteve em Londres, ontem. Tratou de uns assuntos
relacionados com o Instituto e regressou a Crowdean no comboio das sete e
quarenta., Fez uma pausa. - Quanto a Sheila Webb, foi a Londres levar um
trabalho dactilográfico a um escritor estrangeiro, que partia para Nova
Iorque. Saiu do Ritz Hotel cerca das cinco e meia, aproximadamente, e foi
ao cinema, sozinha, antes de regressar.
- Escute, Hardcastle, tenho uma informação para si, dada por uma
testemunha ocular. Uma furgoneta de uma lavandaria parou defronte de
Wilbraham Crescent, dezanove, à uma hora e trinta e cinco minutos, do dia
nove de Setembro. O homem que conduzia o veículo entregou um grande
cesto de roupa, na porta das traseiras. Tratava-se de um cesto muito grande.
- Lavandaria? Que lavandaria?
- Snowflake Laundry. Conhece?
- Assim de repente, não. Estão sempre a aparecer novas lavandarias.
É um nome vulgar, para uma lavandaria...
- Investigue. Era um homem que conduzia a furgoneta, e foi ele que
levou o cesto para dentro de casa...
Hardcastle interrompeu-me, subitamente desconfiado:
- Ouça lá, Colin, está a inventar isso?
- Não. Já lhe disse que tenho uma testemunha ocular. Investigue,
Dick, despache-se.
Desliguei, antes que ele dissesse mais alguma coisa.
Saí da cabina e vi as horas. Tinha muito que fazer e queria estar fora
do alcance de Hardcastle enquanto o fazia. Tinha de organizar a minha vida
futura.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Cheguei a Crowdean às onze horas da noite, cinco dias depois.
Dirigi-me ao Clarendon Hotel, aluguei um quarto e deitei-me. Como estava
fatigado, dormi mais do que a conta e só acordei às dez horas menos um
quarto.
Pedi que me levassem café, uma tosta e o jornal.
Juntamente, entregaram-me um sobrescrito grande e quadrado, com o
meu nome e as palavras (<POR MÃO PRÓPRIA>) no canto superior
esquerdo.
Examinei-o com certa surpresa, pois não o esperava. O papel era
grosso e luxuoso e as palavras estavam muito bem escritas em letra de
imprensa.
Depois de o virar e revirar, acabei por o abrir. Encontrei uma folha de
papel, com os seguintes dizeres, em grandes letras de imprensa:
-
CURLEW HOTEL 11.3O.
-
Quarto 413
-
(Bata três vezes)
Fiquei a olhar para o papel e a virá-lo. Que vinha a ser aquilo?
Reparei no número do quarto: 413. Os mesmos algarismos dos
relógios. Uma coincidência? Ou não?
Pensei em telefonar para o Curlew Hotel e, até, em telefonar a Dick
Hardcastle, mas não fiz uma coisa nem outra.
A letargia deixara-me. Levantei-me, vesti-me e segui para o Curlew
Hotel, aonde cheguei à hora marcada.
A época de Verão estava acabada e, por isso, não se encontrava muita
gente no hotel.
Não perguntei nada na recepção. Meti-me no elevador até ao quarto
andar, saí e segui pelo corredor, até ao número 413.
Parei um momento e por fim, com a consciência de que estava a ser
um perfeito idiota, bati três vezes...
- Entre - ordenou uma voz.
Girei o puxador, entrei... e estaquei.
Tinha na minha frente a última pessoa que esperaria encontrar ali:
Hercule Poirot, que me sorria, encantado.
- Une petite surprise, n'est-ce pas? Mas uma surpresa agradável,
espero.
- Poirot, velha raposa! Como veio aqui parar?
- Muito confortavelmente, numa limusina Daimler.
- Mas que faz aqui?
- Foi muito desagradável. Insistiram, teimaram positivamente, em
redecorar o meu apartamento. Imagine a dificuldade! Que fazer? Para onde
ir?
- Não lhe faltavam lugares - respondi friamente.
- É verdade que não, mas o meu médico disse-me que o ar do mar me
faria bem.
- Trata-se de um desses médicos sabidos que, depois de saberem
aonde o doente quer ir, lhe aconselham precisamente esse lugar! Foi você
que me mandou isto? - perguntei, a brandir o bilhete.
- Naturalmente. Quem havia de ser?
- É por coincidência que o número do seu quarto é o quatrocentos e
treze?
- Não. Fui eu próprio que o pedi.
- Porquê?
Poirot sorriu e respondeu:
- Pareceu-me apropriado.
- E esta história de bater três vezes?
- Não pude resistir! Se tivesse podido juntar um raminho de alecrim*,
ainda seria melhor.
* Em inglês, rosemary. (N. da T. ).
Pensei em cortar um dedo e pôr uma dedada
ensanguentada na
porta... Mas tudo se quer na sua conta e eu arriscava-me a arranjar
alguma infecção.
- Suponho que se trata da segunda infância. Esta tarde hei-de
comprar-lhe um balão e um coelho de pano.
- Creio que não lhe agradou a minha surpresa. Não manifesta
nenhuma alegria, nenhum contentamento por me ver...
- Esperava que manifestasse?
- Pourquoi pas? Mas falemos a sério, agora que já me diverti um
bocadinho. Espero poder ser útil. Visitei o chefe de Polícia, que foi
amabilíssimo, e estou à espera do seu amigo, detective-inspector
Hardcastle.
- E que lhe vai dizer?
- É minha intenção conversarmos os três.
Olhei-o e desatei a rir. Ele podia dizer "conversarmos", mas eu sabia
muito bem quem ia falar: Hercule Poirot!
Hardcastle chegara, procedera-se às apresentações e aos
cumprimentos. Estávamos sentados como camaradas, mas, de vez em
quando, Dick olhava sub-repticiamente para Poirot, com o ar de um
homem que, no jardim zoológico, visse uma nova e surpreendente
aquisição.
Por fim, respeitadas as amenidades e as cortesias, Hardcastle
pigarreou e falou, cautelosamente:
- Suponho, Monsieur Poirot, que desejará ver... bem, todo o cenário?
Não será muito fácil... - Hesitou. - O chefe de Polícia recomendou-me que
fizesse tudo quanto pudesse para lhe ser agradável, mas, como deve
compreender, há dificuldades, pedidos a fazer, objecções... No entanto,
como veio cá especialmente...
- Eu vim porque o meu apartamento de Londres está a ser
redecorado.
Dei uma grande gargalhada e Poirot lançou-me um olhar de censura.
- Monsieur Poirot não precisa de ir ver nada afirmei. - Ele insistiu,
sempre, que se pode fazer tu do sentado numa poltrona... Mas não é bem
assim, pois não, Poirot? Se fosse, para que teria vindo cá?
- Eu disse que não era necessário ser o caçador de raposas, o sabujo,
o cão de caça, sempre a correr à procura da pista - redarguiu Poirot, com
dignidade. Admito, no entanto, que é necessário um cão para a caça, um
bom cão para trazer a presa, meu amigo.
Voltou-se para o inspector e torceu o bigode.
- Deixe-me dizer-lhe que não sou um obcecado pelos cães como os
Ingleses. Pessoalmente, posso viver sem um cão. No entanto, aceito o
vosso ideal canino. O homem ama e respeita o seu cão, enche-o de mimos
e vangloria-se, perante os amigos, da inteligência e sagacidade do animal.
Mas imagine que o oposto também pode acontecer! O cão gosta do dono,
satisfaz-lhe os caprichos, vangloria-se da sua inteligência e da sua
sagacidade. Assim como o homem faz um esforço, quando não lhe apetece,
e sai com o seu cão, por saber que ele gosta do passeio, assim o cão tenta
proporcionar ao dono o que ele deseja. Foi o que sucedeu com o meu
jovem e amável amigo, Colin. Procurou-me não para me solicitar que o
ajudasse a solucionar o seu problema, pois tinha confiança em que o
saberia resolver sozinho, e creio que resolveu, mas, sim, por recear que eu
me sentisse inactivo e solitário. Levou-me, por isso, um problema que
supunha capaz de me interessar e distrair. Ao mesmo tempo, apresentoume
um desafio, desafiou-me a fazer o que tantas vezes lhe afirmei ser
possível: ficar sentado na minha cadeira e decifrar o mistério. Desconfio,
ou melhor, tenho quase a certeza, de que, atrás desse desafio, havia um
bocadinho de malícia, uma maldadezinha inofensiva. Queria, digamos,
provar-me que não era tão fácil fazer como dizer... Mais oui, mon ami, é
verdade! Queria troçar de mim, troçar só um bocadinho! Não o censuro. Só
lhe digo que não conhece Hercule Poirot.
Encheu o peito de ar e retorceu o bigode, enquanto eu lhe sorria
afectuosamente.
- Muito bem, dê-nos a solução do problema... se a encontrou -
desafiei.
- Mas claro que a encontrei!
Hardcastle fitou-o, incrédulo, e perguntou:
- Quer dizer que sabe quem matou o homem em Wilbraham
Crescent, dezanove?
- Certamente.
- E também quem matou Edna Brent?
- Claro.
- Sabe a identidade do morto?
- Sei quem deve ser.
A expressão de Hardcastle era muito duvidosa, mas, em atenção ao
que o chefe de Polícia lhe recomendara, manteve-se cortês. No entanto, não
pôde evitar uma certa nota de cepticismo, ao perguntar:
- Desculpe, Monsieur Poirot, mas alega saber quem matou três
pessoas e porquê?
- Exactamente.
- Tem um caso estanque?
- Não direi tanto.
- Então o que quer dizer é que tem um pressentimento - observei,
pouco amável.
- Não discutirei consigo por causa de uma palavra, mon cher Colin.
Digo, apenas, que sei!
- Mas, Monsieur Poirot, eu preciso de ter provas! - lembrou
Hardcastle, a suspirar.
- Naturalmente. Mas, com os recursos de que dispõe, suponho que
não terá dificuldade em obter as provas indispensáveis.
- Não estou muito certo disso.
- Ora essa, inspector! Quando se sabe, quando se sabe realmente, não
se pode partir daí?
- Nem sempre - redarguiu o inspector, e voltou a suspirar. - Andam à
solta homens que deviam estar na cadeia. Eles sabem-no e nós também.
- Mas trata-se de uma percentagem muito pequena, não trata?
- Está bem, está bem! - interrompi. - O senhor sabe; pois vamos lá a
ver se ficamos também a saber.
- Noto que continua céptico. Antes de mais nada, deixem-me
esclarecer uma coisa: ter a certeza significa que, quando se encontra a
verdadeira solução, tudo encaixa no seu lugar. Compreende-se que as
coisas não podiam acontecer de nenhuma outra maneira.
- Com a breca, desembuche! - explodi, impaciente. - Admito tudo
quanto disse até agora.
Poirot recostou-se confortavelmente na poltrona e fez sinal ao
inspector para voltar a encher o seu copo.
- Há uma coisa, mes amis, que deve ser claramente entendida: para
resolver qualquer problema precisamos de conhecer os factos. Para isso é
necessário o cão, o cão que vai buscar a presa, que traz as peças uma por
uma e as deposita...
- Aos pés do dono - concluí. - De acordo.
- Sentada numa cadeira, uma pessoa não pode resolver um problema
baseada apenas naquilo que lê nos jornais. Tem necessidade de conhecer os
factos com exactidão, e os jornais raramente ou nunca são exactos, a esse
respeito. Dizem que uma coisa aconteceu às quatro horas, quando na
realidade foi às quatro e um quarto; dizem que um homem tinha uma irmã
chamada Elizabeth, quando na realidade ele tinha uma cunhada chamada
Alexandra, etc. Mas eu encontrei, aqui no Colin, um cão de extraordinária
perícia, devo dizê-lo, que o levou longe, na sua profissão. Ele sempre teve
uma memória notável, é capaz de repetir, passados dias, conversas a que
assistiu ou em que participou, mas repete-as com exactidão, quero dizer,
não as adapta, como acontece com tanta gente, à impressão que lhe
causaram. Para dar um exemplo: ele não diria: "E o correio chegou às onze
e vinte." Não, ele descrevia as coisas tal qual se passaram, começando por
uma pancada na porta da frente e alguém a entrar com as cartas na mão.
Tudo isto é muito importante,
pois significa que ele ouviu o que eu teria ouvido, se estivesse
presente, e viu o que eu teria visto. - Mas o pobre cão não soube fazer as
deduções necessárias, hem?
- Tanto quanto é possível, estou, pois, de posse dos factos, tenho
conhecimento do quadro... É uma frase que vocês costumam usar, não é? A
coisa que primeiro me chamou a atenção, quando Colin me contou a
história, foi o seu carácter excessivamente fantástico. Quatro relógios,
todos eles cerca de uma hora adiantados em relação à hora certa e todos
eles introduzidos na casa sem conhecimento da locatária, ou, pelo menos,
assim ela o afirmou. Sim, porque nós nunca devemos acreditar no que nos
dizem enquanto não confirmarmos cuidadosamente as declarações, não é
verdade?
- Pensa como eu - redarguiu Hardcastle.
- No chão jazia um homem, um indivíduo idoso e de aspecto
respeitável. Ninguém sabia quem ele era (ou, mais uma vez, diziam que
não sabiam). Na algibeira, tinha um cartão com o nome, Mister R. H.
Curry, uma morada, Denvers Street, sete, e o nome de uma companhia de
seguros, Metropolis Insurance Company. Mas não existe nenhuma
Metropolis Insurance Company, nenhuma Denvers Street e, segundo
parece, nenhum Mister Curry. Isto são factos negativos, mas são factos.
Prossigamos. Aparentemente, cerca das duas menos dez da tarde,
telefonaram para uma agência de secretárias e uma tal Miss Pebmarsh
pediu que enviassem uma estenógrafa ao número dezanove de Wilbraham
Crescent, às três horas. Miss Pebmarsh pediu, especialmente, que lhe
mandassem Miss Sheila Webb. Esta foi mandada à morada em questão,
chegou poucos minutos antes das três e, segundo as instruções recebidas,
entrou na sala, encontrou um morto no chão, saiu de casa aos gritos e caiu
nos braços de um jovem...
Poirot fez uma pausa e olhou para mim.
- Entra o nosso herói - disse, e inclinei a cabeça.
- Como vê, nem você resiste a um tom de farsa melodramática,
quando fala do assunto. Todo o caso é melodramático, fantástico e
absolutamente irreal, é uma daquelas coisas susceptíveis de acontecer nos
livros de autores como, por exemplo, Garry Gregson. Por sinal, quando o
meu jovem amigo me visitou e contou o sucedido, eu dedicava-me a um
estudo de ficcionistas policiais dos últimos sessenta anos. Muito
interessante. Quase chegamos a encarar os crimes autênticos, reais, à luz da
ficção. Quero dizer, se reparo que um cão não ladrou quando deveria
ladrar, digo para comigo: "Ah, um crime tipo Sherlock Holmes!"
Do mesmo modo, se o cadáver aparece numa sala fechada, penso,
naturalmente: "Ah, um caso à Dickson Carr!" Há, também, a minha amiga,
Mistress Olive. Se eu encontrasse... mas não, não direi mais nada.
Perceberam o que quero dizer? Apresentam-nos um crime revestido de
características e circunstâncias tão improváveis, tão incríveis, que não
podemos deixar de pensar, acto contínuo: "Este livro não está de acordo
com a vida, tudo isto é falso, irreal". Mas, ai de nós!, neste caso é
realidade, aconteceu. Sentimo-nos impelidos a meditar, a meditar
furiosamente, não acham?
Hardcastle não se teria exprimido assim, mas concordava em
absoluto com a ideia. Poirot prosseguiu:
- Trata-se, por assim dizer, do oposto do exemplo de Chesterton:
"Onde esconderias uma folha? Numa floresta. Onde esconderias um seixo?
Numa praia."
Neste caso há excessos, fantasia, melodrama! Quando pergunto a
mim mesmo, a parafrasear Chesterton, "onde esconde uma mulher de meiaidade
a sua beleza fanada?", não respondo, como ele responderia, "entre
outras belezas fanadas de meia-idade". De modo nenhum. Ela esconde-a
debaixo da pintura, sob rouge e máscara, bem aninhada em peles e com
pedras preciosas à volta do pescoço e pendentes das orelhas. Estão a seguir
o meu raciocínio?
- Bem... - murmurou o inspector.
- Assim, as pessoas olharão para as peles e para as jóias, para o
penteado e para a haute couture, e nem repararão como a mulher
propriamente dita é. Por isso disse para comigo, e disse-o também ao meu
amigo Colin: como este assassínio se apresenta com tantas aderências
fantásticas, para despistar, deve ser, na realidade, muito simples. Não é
verdade que disse?
- Disse. Mas continuo a não compreender como poderá ter razão.
- Espere, tenha paciência. Portanto, despimos o crime dos enfeites e
observamos o essencial. Mataram um homem. Porque o mataram? E quem
é ele? A resposta à primeira pergunta depende, obviamente, da resposta à
segunda. Enquanto não obtivermos a resposta certa a estas duas perguntas,
não poderemos, por certo, avançar. Ele poderia ser um chantagista, ou um
vigarista, ou um marido cuja existência fosse desagradável ou perigosa
para a mulher. Poderia ser uma dúzia de coisas diversas. Quanto mais ouvi
falar do assunto, mais se me afigurou que ele parecia a todos um banal
homem idoso, de aspecto respeitável e bem cuidado. E, de súbito, pensei:
"Disseste que se devia tratar de um crime simples? Muito bem, encara-o
assim mesmo. Admite que a vítima é exactamente o que parece: um
homem idoso, de aspecto respeitável e bem cuidado." - Olhou para o
inspector e perguntou-lhe: Está a compreender?
- Bem... - repetiu Hardcastle, e calou-se, delicadamente.
- Tínhamos, portanto, alguém, um vulgar e agradável homem idoso,
cujo desaparecimento devia ter sido necessário a qualquer pessoa. A quem?
Neste aspecto, pelo menos, o campo das conjecturas não é muito vasto.
Existe conhecimento local de Miss Pebmarsh e dos seus hábitos, do
Gabinete Cavendish e de uma rapariga que lá trabalha e se chama Sheila
Webb. Por isso disse ao meu amigo Colin: "Os vizinhos. Converse com
eles, saiba coisas a seu respeito, acerca dos seus antecedentes... Mas,
sobretudo, estabeleça conversa." Numa conversa não obtemos apenas
respostas às perguntas que fazemos; numa conversa natural, há coisas que
escapam naturalmente. As pessoas estão na defensiva, quando o assunto
pode ser perigoso para elas, mas se se envereda por uma conversa banal,
tranquilizam-se, deixam-se vencer pelo alívio que representa dizer a
verdade, o que é sempre muito mais fácil do que mentir. E, muitas vezes,
deixam escapar um pormenorzito insignificante que, sem que o saibam, faz
muita diferença.
- Uma teoria admirável - comentei. - Infelizmente, neste caso não se
verificou.
- Mas, mon cher, verificou! Uma frasezinha de inestimável
importância!
- Qual? Quem a disse? Quem?
- A seu tempo, mon cher Colin, a seu tempo.
- Dizia, Monsieur
Poirot... - interveio o inspector, desejoso de que ele reatasse o fio da
conversa.
- Se traçarem um círculo à roda do número dezanove, todas as
pessoas que ficam no seu interior poderiam ter matado Mister Curry.
Mistress Hemming, os Bland, os McNaughton e Miss Waterhouse. Mas há
ainda, e principalmente, as pessoas directamente envolvidas, as que se
encontravam, por assim dizer, no centro do círculo: Miss Pebmarsh, que o
podia ter assassinado antes de sair, cerca da uma e trinta e cinco, e Miss
Webb, que podia ter arranjado maneira de lá se encontrar com ele e matá-lo
antes de sair de casa e dar o alarme.
- Ah, agora está a tocar na ferida!
Poirot virou-se para mim e acrescentou:
- E, evidentemente, você, meu querido Colin. Também lá estava,
andava a procurar um número alto do lado dos números baixos...
- Essa é boa! - exclamei, indignado. - Que será capaz de dizer a
seguir?
- Serei capaz de dizer tudo! - afirmou, impante.
- E pensar que fui eu que lhe contei tudo!
- Os assassinos são, muitas vezes, vaidosos - lembrou Poirot. - Além
disso, podia tê-lo divertido rir-se à minha custa.
- Se continuar a falar assim, acabará por me convencer! Palavra,
começava a sentir-me constrangido!
Mas Poirot voltou-se de novo para o inspector:
- Deve tratar-se de um crime essencialmente simples, disse para
comigo. A presença sem significado dos relógios, uma hora adiantados: os
preparativos tão complicada e deliberadamente feitos para a descoberta do
cadáver, tudo isso devia ser posto de parte, para começar. Eram, como se
diz na vossa imortal Alice, "sapatos e barcos e lacre e cera e couves e reis".
O ponto essencial, vital, era que um vulgar homem idoso morrera e que
alguém quisera que ele morresse. Se soubéssemos quem a vítima era,
teríamos uma pista que nos indicaria o seu assassino. Se se tratasse de um
chantagista conhecido, deveríamos procurar uma pessoa susceptível de ser
vítima de chantagem. Se se tratasse de um detective, deveríamos procurar
alguém com um segredo criminoso. Se se tratasse de um homem rico,
deveríamos procurar o assassino entre os seus herdeiros... mas como não
sabíamos quem o homem era, restava-nos a difícil tarefa de procurar, entre
os do círculo circundante, alguém que tivesse uma razão para o matar.
Pondo de parte Miss Pebmarsh e Sheila Webb, quem existia nesse círculo
susceptível de não ser o que parecia? A resposta foi decepcionante. Com
excepção de Mister Ramsay, que segundo me consta, não era o que parecia
- Poirot olhou-me interrogadoramente e eu acenei com a cabeça -, todos os
outros pareciam autênticos. Bland era um conhecido construtor civil;
McNaughton, regera uma cadeira em Cantabrígia;
Mistress Hemming era viúva de um leiloeiro local; os Waterhouse
eram respeitáveis e antigos locatários...
Voltemos a Mister Curry. Donde viera? Que o levara a Wilbraham
Crescent, dezanove? E, a este respeito, uma das vizinhas, Mistress
Hemming, fez uma observação muito preciosa. Quando lhe disseram que o
morto não morava no número dezanove, ela redarguiu: "Ah, compreendo!
Foi lá para ser assassinado. Que estranho!" Ela, como acontece com tanta
frequência àqueles que estão tão absortos nos seus pensamentos que não
prestam atenção ao que os outros dizem, teve o dom de penetrar no âmago
do problema. Resumiu, numas breves palavras, todo o crime: Mister Curry
foi a Wilbraham Crescent, dezanove, para ser assassinado. Era tão simples
como isto. - De facto, essa observação dela impressionou-me - confessei,
mas Poirot não me ligou importância.
- Dilly, dilly, dilly. Vem para seres morto. Mister Curry foi... e foi
morto. Mas isso não era tudo. Convinha muito que ele não fosse
identificado. Não tinha carteira nem documentos e o nome do alfaiate fora
retirado do seu vestuário. Mas isso não chegaria. O cartão impresso de
Curry, agente de seguros, constituía apenas uma providência temporária. A
fim de que a identidade do indivíduo fosse oculta para sempre, era
necessário atribuir-lhe uma falsa identidade. Não me restaram dúvidas de
que, mais cedo ou mais tarde, apareceria alguém que o reconheceria
positivamente e, então, estaria tudo acabado. Um irmão, uma irmã, uma
esposa... Foi uma esposa: Mistress Rival... Só o nome dela deveria ter
levantado suspeitas. Há no Somerset uma aldeia, estive lá perto com uns
amigos, há uma aldeia chamada Curry Rival. Inconscientemente, sem se
saber como, estes dois nomes insinuaram-se, foram escolhidos. Mister
Curry... Mistress Rival.
Até agora, o plano parece óbvio. Mas o que me intrigava era o facto
de o nosso assassino parecer absolutamente certo de que não haveria
nenhuma identificação
genuína. Mesmo que o homem não tivesse família, seria natural que
tivesse uma senhoria, criados, pessoas com quem negociasse... Isto levoume
à dedução seguinte: ignorava-se o desaparecimento do indivíduo.
Logicamente tive de deduzir, depois, que ele não era inglês, que se
encontrava neste país apenas de visita. Confirmava-o o facto de o trabalho
protésico dos seus dentes não ter sido identificado cá. "Comecei a fazer
uma vaga ideia da vítima e do assassino. Uma vaga ideia, apenas. O crime
fora bem planeado e inteligentemente cometido... Mas eis que surgiu um
factor de pura sorte, uma daquelas coisas que nenhum assassino pode
prever...
- O quê? - perguntou Hardcastle.
Inesperadamente, Poirot declamou, de modo teatral:
Por falta de um prego perdeu-se a ferradura, Por falta de uma
ferradura perdeu-se o cavalo, Por falta de um cavalo perdeu-se o cavaleiro,
Por falta de um cavaleiro perdeu-se a batalha, Por falta de uma batalha
perdeu-se o reino...
E tudo por falta de um prego numa ferradura!
Inclinou-se para a frente e afirmou:
- Muitas pessoas podiam ter assassinado Mister Curry; mas só uma
pessoa podia ter assassinado, ou podia ter razão para assassinar, Edna.
Fitámo-lo ambos, embasbacados.
- Consideremos o Gabinete Cavendish. Trabalham lá oito raparigas.
No dia nove de Setembro, quatro delas estavam ausentes, em serviço a
certa distância, e por isso almoçaram com os clientes. Essas raparigas eram
as quatro que geralmente almoçavam na primeira hora de almoço, isto é, do
meio-dia e meia hora à uma e meia. As restantes quatro, Sheila Webb,
Edna Brent, Janec e Maureen, almoçavam no segundo período, ou seja, da
uma e meia às duas e meia. Mas nesse dia Edna Brent teve um pequeno
acidente, pouco depois de sair do escritório: partiu um salto do sapato, num
ralo. Como não podia andar assim, comprou uns bolos e regressou ao
escritório.
Poirot acenou-nos com um dedo, enfaticamente, e continuou:
- Disseram-nos que Edna Brent andava preocupada com qualquer
coisa, que tentara, em vão, falar com Sheila Webb fora do escritório.
Presumiu-se que o motivo da sua preocupação se relacionava com a própria
Sheila Webb, mas não existem nenhumas provas disso. Ela podia desejar,
apenas, consultar Miss Webb acerca de qualquer coisa que a intrigava...
Mas, se disso se tratava, uma coisa salta à vista: queria falar com Sheila
fora do escritório. As palavras que disse ao polícia, no inquérito, são a
única pista de que dispomos quanto à natureza do que a preocupava. Disse
qualquer coisa deste género: "Não compreendo como o que ela disse pode
ser verdade." Tinham sido três as mulheres que haviam prestado
declarações, nessa manhã. Portanto, Edna podia querer referir-se a Miss
Pebmarsh ou, como se presumiu, a Sheila Webb... Mas existe uma terceira
possibilidade, em que ninguém pensou: podia referir-se a Miss Martindale.
- Miss Martindale? Mas as declarações dela foram muito breves,
duraram escassos minutos...
- Exactamente. Relacionaram-se apenas com o telefonema que
recebera, supostamente, de Miss Pebmarsh.
- Quer dizer que Edna sabia que não fora Miss Pebmarsh...
- Suponho que era ainda mais simples, suponho que não houve
telefonema nenhum. O salto do sapato de Edna partiu-se a pouca distância
do escritório e ela regressou ao Gabinete Cavendish. Mas Miss Martindale,
no seu gabinete particular, não soube que Edna regressara, continuou
convencida de que se encontrava sozinha... Bastou-lhe dizer que recebera
um telefonema
à uma e quarenta e nove. Ao princípio, Edna não teve consciência do
que sabia. Sheila foi chamada ao gabinete de Miss Martindale e recebeu
ordem para sair, em serviço. Ninguém disse a Edna como nem quando a
entrevista fora combinada. Depois chegou a notícia do crime e, pouco a
pouco, a história tornou-se mais definida. Miss Pebmarsh telefonou a pedir
que lhe mandassem Sheila Webb... Mas Miss Pebmarsh nega que tenha
telefonado. Diz-se que o telefonema foi feito às dez para as duas... Mas
Edna sabe que isso não pode ser verdade. Não chegou nenhum telefonema
a essa hora. Miss Martindale devia-se ter enganado... Mas Miss Martindale
não é pessoa que se engane.
Quanto mais Edna pensa no assunto, mais intrigante lhe parece.
Decide contar a Sheila, perguntar-lhe. Ela deve saber...
"Depois chega o dia do inquérito e as raparigas vão todas assistir.
Miss Martindale repete a sua história do telefonema e Edna compreende,
finalmente, que as declarações prestadas por Miss Martindale com tanta
clareza e com tanta precisão quanto à hora exacta não são verdadeiras.
Pergunta então a um polícia se pode falar com o inspector. Suponho que,
ao sair do tribunal juntamente com outras pessoas, Miss Martindale ouviu a
pergunta. Talvez, entretanto, já tivesse ouvido as pequenas troçar de Edna,
por causa do percalço do sapato, sem compreender todo o seu alcance...
Fosse como fosse, seguiu a jovem a Wilbraham Crescent. Porque terá Edna
ido para esses lados?
- Só para ver o sítio onde o caso se passara, suponho - explicou
Hardcastle, a suspirar. - As pessoas costumam fazer isso.
- Sim, é verdade. Talvez Miss Martindale falasse lá com ela, seguisse
com Edna pela estrada abaixo e a pequena lhe fizesse, de repente, a
pergunta que a intrigava. Miss Martindale resolveu agir depressa e, como
estavam perto da cabina telefónica, disse: "Isso é muito importante, deve
telefonar à Polícia imediatamente. O número da esquadra é este assim
assim. Telefone e diga que vamos as duas para lá." Edna nascera para fazer
o que lhe mandavam, isso era uma espécie de segunda natureza. Entrou na
cabina, levantou o auscultador... e Miss Martindale entrou atrás dela,
puxou-lhe o lenço do pescoço e estrangulou-a.
- E ninguém viu?
- Alguém podia ter visto, mas ninguém viu. Era uma hora da tarde, a
hora do almoço... As pessoas que porventura se encontravam na
Wilbraham Crescent estavam entretidas a olhar para o número dezanove.
Foi um risco temerário, corrido por uma mulher temerária e sem
escrúpulos.
Hardcastle abanava a cabeça, duvidoso.
- Miss Martindale? Não compreendo como poderá estar metida no
assunto...
- Não, ao princípio não se compreende. Mas como Miss Martindale
matou, indubitavelmente, Edna, oh, sim, só ela pode ter assassinado a
pequena!, como matou Edna, tem de estar metida no assunto. Começo a
pensar que em Miss Martindale temos a Lady Macbeth do crime, uma
mulher implacável e sem imaginação.
- Sem imaginação? - admirou-se o inspector.
- Oh, sim, sem imaginação! Mas muito eficiente. Uma boa
planeadora.
- Mas porquê? Qual o móbil?
Hercule Poirot olhou para mim e esticou o dedo.
- A conversa dos vizinhos não lhes serviu, então, de nada, hem? Pois
eu encontrei nela uma frase muito esclarecedora. Lembram-se de que,
depois de falar em viver no estrangeiro, Mistress Bland disse que gostava
de viver em Crowdean "porque tenho aqui uma irmã". Mas Mistress Bland
não devia ter uma irmã. Herdara uma grande fortuna, o ano passado, de um
tio-avô canadiano, porque era o único membro sobrevivente da família.
Hardcastle endireitou-se, alerta.
- Pensa, então...
Poirot recostou-se na cadeira, uniu as pontas dos dedos, semicerrou
os olhos e falou em tom sonhador:
- Suponha que é um homem, um homem muito insignificante, pouco
escrupuloso e com dificuldades financeiras. Um dia, chega uma carta de
uma firma de advogados a informar que a sua mulher herdou uma grande
fortuna, deixada por um tio-avô do Canadá. A carta vem dirigida a Mistress
Bland, e a única dificuldade reside no facto de a Mistress Bland que a
recebe não ser a Mistress Bland certa, ser a segunda esposa de Mister
Bland e não a primeira... Imagine o desgosto, a contrariedade, a fúria. E,
depois, surge uma ideia. Quem sabe que a Mistress Bland existente não é a
Mistress Bland em questão? Em Crowdean ninguém sabe que Bland já foi
casado anteriormente. O seu primeiro casamento, há muitos anos, efectuouse
durante a guerra, quando ele estava fora do país. É possível que a sua
primeira mulher tenha morrido pouco depois e ele haja voltado a casar
quase a seguir. Ele tinha a carta de casamento, vários documentos
de família, fotografias de parentes canadianos já falecidos... Seria tudo um
mar de rosas. Pelo menos valia a pena arriscar. Arriscam e são bemsucedidos.
As formalidades legais cumprem-se e os Bland ficam ricos e
prósperos, com todas as dificuldades financeiras resolvidas... Mas eis que,
um ano depois, acontece algo... O quê? Suponho que alguém informou que
vinha do Canadá a este país, alguém que conhecera bem a primeira
Mistress Bland e, portanto, não se deixaria enganar pela segunda. Talvez
fosse um antigo advogado da família ou um amigo íntimo. Fosse quem
fosse, era alguém que saberia, que perceberia a fraude. É possível que
tenham pensado nalgumas maneiras de evitar o encontro. Mistress Bland
poderia ir para o estrangeiro, a pretexto de doença... Mas qualquer solução
desse género era susceptível de levantar suspeitas. O visitante insistiria em
ver a mulher que viera procurar... - E, daí, o assassínio?
- Sim. Creio que a irmã de Mistress Bland deve ter sido a alma
danada da conspiração, quem planeou tudo.
- Parte do princípio de que Miss Martindale e Mistress Bland são
irmãs?
- Só assim as coisas fazem sentido.
- Mistress Bland lembrou-me alguém conhecido, quando a vi... -
murmurou Hardcastle. - São muito diferentes na maneira de ser, mas é
verdade, existe uma semelhança. No entanto, como puderam pensar que
seriam bem sucedidos? Acabariam por dar por falta do homem, por
proceder a investigações...
- Se o indivíduo andava pelo estrangeiro em viagem de recreio e não
de negócios, o seu itinerário talvez fosse vago. Uma carta de um lado, um
postal ilustrado de outro... Só passado algum tempo as pessoas começariam
a estranhar não receber notícias dele. Nessa altura, quem se lembraria de
relacionar um homem identificado e sepultado como Harry Castleton, com
um rico visitante canadiano, que nunca sequer fora visto para estes lados?
Se eu fosse o assassino, faria uma viagem de um dia à França ou à Bélgica
e livrar-me-ia do passaporte do indivíduo num comboio ou num autocarro,
para que as investigações, se efectuassem noutro país.
Mexi-me, involuntariamente, e os olhos de Poirot fitaram-me, acto
contínuo.
- Que se passa, Colin?
- Bland disse-me que, recentemente, fizera uma viagem de um dia a
Bolonha... com uma loura. - O que pareceria muito natural, pois
provavelmente é um dos seus hábitos. - Tudo isto são conjecturas -
protestou Hardcastle. - Mas pode-se investigar.
Poirot tirou uma folha de papel de cima da mesa e estendeu-a a
Hardcastle.
- Escreva a Mister Enderby, Ennismore Gardens, dez; ele prometeume
proceder a certas averiguações, no Canadá. É um advogado
internacional muito conhecido.
- E a história dos relógios?
- Ah, os relógios, os famosos relógios! - exclamou Poirot, a sorrir. -
Creio que descobrirão que foi ideia de Miss Martindale. Como o crime era
simples, como já disse, disfarçaram-no de fantástico... Aquele relógio com
o nome de Rosemary, que Sheila trouxe de casa para ser consertado, não
terá sido perdido no Gabinete Cavendish? Tê-lo-á Miss Martindale
aproveitado como alicerce da sua grande produção e terá sido em parte por
causa desse relógio que escolheu Sheila para descobrir o corpo?
- E ainda o senhor diz que essa mulher não tem imaginação! -
explodiu Hardcastle. - Ela, que congeminou tudo isso, não tem
imaginação?
- Mas não foi ela que o congeminou! Aí é que está todo o interesse.
Estava tudo preparado, à espera dela. Desde o princípio, notei a existência
de um padrão, de um padrão que conhecia e de que me recordava bem
porque acabara de o ler, com diversas variantes. Fui muito afortunado.
Como o Colin lhe confirmará, esta semana estive num leilão de
manuscritos de escritores. Entre eles, havia alguns de Garry Gregson. Mal
ousei ter esperança, mas a sorte estava do meu lado... - Como um
prestidigitador, tirou dois modestos cadernos de uma gaveta da secretária. -
Está tudo aqui! É um dos muitos enredos de livros que ele planeara
escrever. Não chegou a escrever este, mas Miss Martindale, que foi sua
secretária, estava ao corrente da sua existência. Limitou-se a adaptá-los aos
seus fins.
- Mas os relógios devem ter significado alguma coisa... no enredo de
Gregson, claro.
- Oh, sem dúvida! Os relógios dele estavam parados nas cinco e um,
nas cinco e quatro e nas cinco e sete, e formavam, em conjunto, a
combinação de um cofre: quinhentos e quinze mil, quatrocentos e cinquenta e sete. O cofre estava oculto atrás de uma reprodução da Mona Lisa,
e dentro do cofre - prosseguiu Poirot, com uma careta de desagrado -
estavam as jóias da coroa da família real russa. Um acervo de tolices, tudo
aquilo. E, claro, havia uma historiazita de uma rapariga perseguida. Muito
a propósito para a Martindale. Ela limitou-se a escolher as suas
personagens e a adaptar-lhes a história. Todas aquelas pistas que
conduziam... aonde? A nada! Uma mulher eficiente, sem dúvida. É caso
para pensar... O escritor deixou-lhe um legado, não deixou? Como e de
quê , morreu ele, hem?
Mas Hardcastle recusou-se a interessar-se por história passada. Pegou
nos cadernos e tirou-me da mão a folha de papel timbrado do hotel, para a
qual eu estivera a olhar, como que fascinado. O inspector garatujara o
endereço de Enderby sem se dar ao trabalho de virar o papel de modo que o
timbre do hotel ficasse para cima: o nome e a morada do Curlew Hotel
estavam de pernas para o ar, no canto inferior esquerdo. Ao olhar para
aquela folha de papel, compreendi como fora idiota.
- Obrigado, Monsieur Poirot - agradeceu Dick. Deu-nos, sem dúvida,
que pensar. Se resultará ou não...
- Sinto-me muito satisfeito por ter sido útil - interrompeu Poirot,
modestamente.
- Terei de investigar várias coisas...
- Naturalmente, naturalmente...
Hardcastle despediu-se e partiu, e Poirot olhou para mim, de
sobrancelhas arqueadas.
- Eh bien, que bicho lhe mordeu? Parece um homem que viu
fantasmas!
- Vi quanto fui parvo.
- Ah, isso acontece muitas vezes!
Mas, provavelmente, nunca acontecera a Hercule Poirot! Apeteciame
atacá-lo.
- Diga-me uma coisa, Poirot. Se, como afirmou,
podia ter feito tudo isto sentado na sua cadeira, em Londres, e nos
podia ter lá mandado chamar, ao Hardcastle e a mim, por que diabo veio
cá?
- Já lhe disse que estão a arranjar o apartamento.
- Emprestar-lhe-iam outro, se quisesse. Ou, então, poderia ter ido
para o Ritz, onde estaria mais confortavelmente instalado do que neste
hotel.
- Sem dúvida. O café, aqui... mon dieu, o café!
- Então, porquê?
Hercule Poirot enfureceu-se.
- Eh bien, já que é tão estúpido que não compreende, dir-lho-ei! Sou
humano, não sou? Posso ser uma máquina, quando é preciso, posso
recostar-me a pensar, resolver assim os problemas... Mas também sou
humano! E os problemas dizem respeito a seres humanos.
- E então?
- A explicação é tão simples como o assassínio. Vim aqui trazido por
curiosidade humana - afirmou Hercule Poirot, a esforçar-se por falar com a
maior dignidade.
NARRATIVA DE COLIN LAMB
Encontrava-me de novo em Wilbraham Crescent, na direcção do
oeste. Parei diante da cancela do número 19, mas desta vez não saiu
ninguém a correr de casa. Havia sossego e tranquilidade.
Dirigi-me à porta principal e toquei à campainha.
Miss Millicent Pebmarsh abriu a porta.
- Sou Colin Lamb. Posso entrar e falar consigo?
- Com certeza. - Conduziu-me à sala. - Parece passar aqui muito
tempo, Mister Lamb. Constou-me que não pertence à Polícia local...
- Pois não. Suponho, até, que soube exactamente quem eu era, a
partir da primeira vez que falou comigo.
- Julgo não compreender o que quer dizer.
- Fui muitíssimo estúpido, Miss Pebmarsh. Vim a esta terra à sua
procura, encontrei-a logo no primeiro dia... e não me apercebi disso!
- Possivelmente o assassínio perturbou-lhe o espírito.
- É possível, sim. Cometi, também, a estupidez de olhar para um
bocado de papel de pernas para o ar.
- Que pretende com toda essa conversa?
- Informá-la de que o jogo acabou, Miss Pebmarsh. Encontrei o
quartel-general, onde se traçam os planos. Todos os registos necessários
são conservados por si, em braille, num microponto. As informações que
Larkin obtinha em Portlebury eram-lhe comunicadas e, daqui, seguiam para
o seu destino, por intermédio de Ramsay. Quando era preciso, ele vinha à
sua casa, à noite, através dos jardins. Um dia, deixou cair uma moeda
checa, no seu jardim.
- Foi muito descuidado.
- Todos nós somos descuidados, numa ocasião ou noutra. O seu
disfarce é muito bom. É cega, trabalha num instituto de crianças
deficientes, tem em casa, como é natural, livros infantis, em braille... é uma
mulher de invulgar inteligência e personalidade. Não sei qual é a sua força
impulsionadora...
- Digamos, se quiser, que sou dedicada.
- Sim, pensei que se tratava disso. - Porque me está a dizer essas
coisas? Não parece natural.
Olhei para o relógio, antes de responder:
- Tem duas horas, Miss Pebmarsh. Daqui a duas horas, chegarão
membros do Departamento Especial...
- Não o compreendo. Porque veio à frente dos seus colegas, para me
dar o que parece um aviso...
- Vim, de facto, avisá-la. Ficarei aqui até os meus colegas chegarem,
para ter a certeza de que nada dei xará esta casa... nada, excepto a senhora.
A senhora tem duas horas de avanço, se as quiser aproveitar.
- Mas porquê? Porquê?
- Porque creio que existe a possibilidade de se tornar, em breve,
minha sogra... Talvez me engane...
Millicent Pebmarsh levantou-se, em silêncio, e aproximou-se da
janela. Não desviei os olhos dela, pois não tinha ilusões a seu respeito. Não
confiava absolutamente nada na criatura. Era cega, mas até uma cega pode
apanhar um tipo, se ele está desprevenido.
A cegueira não a prejudicaria se tivesse ensejo de me encostar uma
automática à espinha...
- Não lhe direi se está certo ou errado - disse, devagar. - Porque pensa
que... que está certo?
- Por causa dos olhos.
- Mas não somos parecidas no carácter.
- Pois não.
Afirmou, quase num desafio:
- Fiz o melhor que pude por ela.
- Isso é uma questão de opinião. Para si, uma causa está primeiro.
- Assim é que deve ser.
- Discordo. Soube quem ela era... naquele dia?
- Só quando ouvi o seu nome... Mantive-me informada a seu
respeito... sempre.
- Nunca foi tão desumana como gostaria de ser.
- Não diga tolices.
Olhei mais uma vez para o relógio.
- O tempo passa...
Afastou-se da janela e aproximou-se da secretária.
- Tenho aqui uma fotografia dela... em pequena...
Encontrava-me atrás dela quando abriu a gaveta.
Não era uma automática: era uma faca pequena, mas muito afiada...
A minha mão cerrou-se sobre a sua e afastou-a.
- Poderei ser brando, mas não sou parvo.
Tacteou, à procura de uma cadeira, e sentou-se, sem denunciar a
mínima emoção.
- Não aproveito a sua oferta. Ficarei aqui até chegarem. Há sempre
oportunidades... até na prisão.
- Oportunidades de doutrinação?
- Se lhe agrada o termo...
Continuámos sentados, hostis, mas a compreender-nos.
- Demiti-me do Serviço - informei. - Volto para a minha profissão:
biologia marítima. Há um lugar, numa universidade australiana.
- Acho que faz bem. Não tem o que é preciso para este género de
trabalho. É como o pai da Rosemary. Ele também não compreendia a frase
de Lenine: "Fora com a brandura."
Lembrei-me das palavras de Poirot e redargui:
- Contento-me com ser humano.
Continuámos sentados em silêncio, cada um convencido de que o
ponto de vista do outro estava errado.
Carta do detective-inspector Hardcastle
a Monsieur Hercule Poirot
-
Caro M. Poirot:
Estamos agora de posse de certos factos que talvez lhe agrade
conhecer.
Há cerca de quatro semanas, partiu do Canadá para a Europa um tal
Mr. Quentin Duguesclin, do Quebeque. Não tinha parentes chegados e os
seus planos de regresso eram vagos. O seu passaporte foi encontrado pelo
proprietário de um pequeno restaurante de Bolonha, que o entregou à
Polícia. Ainda ninguém o reclamou.
Mr. Duguesclin era um velho amigo da família Montresor, do
Quebeque. O chefe dessa familia, Mr. Henry Montresor, morreu há dezoito
meses e deixou a sua considerável fortuna à sua única parente viva, a sua
sobrinha-neta Valerie, descrita como mulher de Josaiah Bland, de
Portlebury, Inglaterra. Uma respeitável firma de advogados londrinos
actuou como procuradora dos executores testamentários canadianos. As
relações de Mrs. Bland com a sua família do Canadá cessaram por
completo aquando do seu casamento, que não mereceu a aprovação
familiar. Mr. Duguesclin disse a um amigo que tencionava visitar os Bland,
enquanto estivesse em Inglaterra, pois fora sempre muito amigo de Valerie.
O cadáver supostamente identificado como sendo o de Harry
Castleton foi agora definitivamente identificado como o de Quentin
Duguesclin. Foram encontradas algumas tábuas arrumadas a um canto de
um lote onde Bland está a construir. Embora tivessem sido apressadamente
apagadas, as palavras Snowflake Laundry puderam ler-se com nitidez,
depois de os peritos lhes aplicarem o devido tratamento.
Não o incomodarei com pormenores de somenos, mas sempre lhe
digo que o acusador público acha possível passar um mandado de captura
de Josaiah Bland.
Miss Martindale e Mrs. Bland são, como conjecturou, irmãs, mas,
embora eu concorde consigo quanto à participação da primeira nos crimes,
será difícil obter as provas necessárias. Ela é, sem dúvida, uma
mulher muito astuta. No entanto, Mrs. Bland dá-me esperanças. Pertence
ao tipo de mulher que se vai abaixo e fala.
A morte da primeira Mrs. Bland, em consequência da acção do
inimigo em França, e o casamento de Bland com Hilda Martindale (que
pertencia à NAAFI*) também em França, podem ser, suponho, facilmente
comprovados, embora muitos registos tenham sido destruídos, nesse
tempo. *Sigla de Navy Army and Force Institute, que se pode traduzir por
"Organização do Éxército, da Marinha e da Força Aérea." (N. da T.).
-
Foi um grande prazer para mim conhecê-lo, naquele dia, e agradeçolhe
as utilíssimas sugestões que apresentou. Espero que as obras e a
decoração do seu apartamento londrino tenham ficado a seu gosto.
-
Sinceramente,
Richard Hardcastle
Nova carta de RH a HP
-
Boas notícias!
-
Mrs. Bland foi-se abaixo! Confessou tudo! Atira as
culpas para cima da irmã e do marido. Só compreendeu quando já era
tarde de mais o q pretendiam fazer Pensou que tencionavam apenas drogá-lo,
para que não a reconhecesse! Uma história incrível. No entanto,
acredito que não foi ela a
incitadora do crime.
-
No Mercado de Ponobello identificaram Miss Martindale como a
"americana" que comprou dois dos relógios.
-
Mrs. McNaughton diz, agora, que viu Duguesclin
na furgoneta do Bland, a entrar na garagem deste. Tê-lo-á, realmente,
visto?
-
O nosso amigo Colin casou com a pequena. Se quer que lhe diga, é
doido.
-
As maiores felicidades.
-
Richard Hardcastle"
FIM
ϟ
O Autor e a Obra

Agatha Christie, romancista e autora dramática inglesa, de seu nome
completo, Agatha Mary Clarissa Miller Christie, nasceu em Torquay, a 15 de
Setembro de 1891. Filha de mãe inglesa e pai americano fez os seus estudos em
casa, educada por professores.
Durante a Primeira Guerra Mundial alistou-se na Cruz Vermelha para
acompanhar o seu primeiro marido, o coronel Archibald Christie, de quem
tomou o célebre apelido, que manteve apesar da separação em 1926. A sua
experiência com venenos nos hospitais onde trabalhou está na origem do
profundo conhecimento sobre a matéria, utilizado em muitos dos seus
romances. Foi nesta época que escreveu A Primeira Investigação de Poirot
(1920), com que deu início à sua
longa e brilhante carreira de escritora de livros policiais. Coincidiu a
obra com a apresentação da personagem Hercule Poirot, o detective belga
que se ornaria quase tão conhecido como a sua autora e que na resolução
dos enigmas policiais será concorrente da amável Miss Jane Marple, a
personagem favorita de Agatha Christie.
Depois do segundo casamento, em 1930, com o arqueólogo Max
Mallowan, a escritora, apaixonada por viagens, passou a dividir o tempo
entre a "estruturação dos crimes" e as escavações arqueológicas.
Célebre, desde a publicação em 1926 de O Assassinato de Roger
Ackroyd, Agatha Christie manteve ao longo da sua vasta obra - mais de
oitenta volumes as características que identificariam o seu estilo: a
investigação racional e a psicologia; o mistério denso e a variedade de
personagens e ambientes; o emaranhado de indícios e a solução imprevista.
Os seus livros encontram-se traduzidos em cerca de cem línguas e os
exemplares vendidos ascendem às centenas de milhão. No entanto, não
foram só os livros policiais a proporcionar-lhe a admiração do público, pois
Agatha Christie também é autora de peças de teatro - refere-se A Ratoeira
(1951), mantida em cena
durante vinte e cinco anos -, histórias para crianças e romances
psicológicos publicados sob o pseudônimo de Mary Westmacott.
Membro da Real Sociedade de Literatura e distinguida com um grau
honorífico em Letras, atribuído pela Universidade de Exeter, recebeu, em
1956, o título de Dama do Império Britânico, pelo conjunto da sua obra.
Agatha Christie morreu em Wallingforg, Oxford, a 12 de Janeiro de
1976.

texto integral de:
Poirot e os Quatro Relógios
Agatha Christie (1963)
título original: The Clocks
tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
edição: Livros do Brasil, 1971
Δ
8.Abr.2018
publicado
por
MJA
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