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imagem: O Cantor Cego -
Goya, 1824-1828
Tal ceguinho era religioso por vocação e por necessidade. Gostava de assistir às missas, rezar pelos benfeitores, ouvir a palavra de Deus
orada do púlpito pelos melhores jesuítas e de adormecer à noite com as camândulas presas entre os dedos magros ― de tísico... A religião dava-lhe prazer e rendia-lhe
coroas. Vendo-o tão pio, as beatas ricas fartavam-no de esmolas e até lhe inventaram o vício de fumar para ele se entreter ― as santas criaturas.
Morava numa casa térrea ao rés do adro e tinha por costume sentar-se nos degraus de um cruzeiro levantado diante da igreja. Ali vivia ― preso àquelas pedras com mais amor do que ao buraco da casa. Dali espreitava tudo
― se é que os cegos espreitam. Não espreitava, mas, ouvia. Dava relação de quantos
passos feriam a testada do templo. Passos apressados de homens que não tiram o chapéu a ninguém ― menos a uma cruz. Passos frívolos de senhorinhas que fazem vénia, mas
ligeira, a Nossa Senhora. Passos doentios de senhoras de idade, cuja reverência ao Santíssimo é meiga e prolongada. Passinhos de criança sobre o saibro, tic, tic, davam
ao ceguinho a impressão do primeiro granizo que pinga na areia.
Afeito àqueles ruídos, conhecia-os todos, identificava-os, sabia o nome
aos pés que os produziam. Tinha que fazer, contando-os e nomeando-os, porque o adro era aberto e
muita gente o atravessava para ir mais depressa à sua vida.
O cego não pedia esmola. Cumprimentava e recebia. Quando, no meio daquele
perpassar de pés e pernas, reconhecia amigo ou devota, dizia:
― Senhor F., o dia está bonito.
Ou:
― Minha Senhora! A missinha amanhã é mais cedo. A Senhora sabe... Disse o Senhor Abade...
Estas frases
eram a salva estendida à mão caritativa. Caíam nela moedas de prata e de cobre, que o cego apartava em saquitéis. Era muito metódico.
O
trato devoto com senhoras e senhores finos dera ao ceguinho modos adamados.
― Por este não vem mal ao mundo, dizia um fidalgote pálido
que tomava o Senhor todos os dias.
Tinha o ceguinho voz monocórdica e não fazia gestos violentos como pessoa ordinária. Era comedido,
quase amputado no que representasse força, ousadia, sinal de vida.
― Por este não vem mal ao mundo, anuíam baixinho, dando topetadas,
as beatas velhas.
Não, pelo ceguinho não vinha mal ao mundo. Todavia, ele não era insensível à aproximação da carne feminina,
principalmente a carne perfumada. Distinguia as senhoras, não só pelo passo leve e curto, mas também pelo cheiro. Havia uma, cujo aroma o inebriava. Mal vinha à esquina
do templo, já a sentia como perdigueiro que dá tento de caça. Dilatava as narinas, mas... imediatamente as coçava, disfarçando, e dispunha-se a falar à aparecida com
unção.
― Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.
― Já sei, Fernando. Pega lá, olha,
para rebuçados.
A senhora afastava-se, e ele seguia-lhe o rasto com a ponta do nariz afilada para o
aroma.
Dentro da igreja, identificava os perfumes com as vozes.
― Aquela, a que canta alto, é a que cheira a cravo.
― A de voz rouca espalha um cheiro grosso que me
enjoa.
― Esta, sim, tem voz de pintainho, mas é desenjoada. Cheira às ervas do monte.
Os pecados do
ceguinho, como se vê, eram latentes, ocultos. No entanto, mordia às vezes os lábios para os não revelar.
― Ah! Minha Senhora, que
lin... Sim, minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.
― Obrigado a Vossa Excelência. O ceguinho nunca se esquece de pedir
a Nosso Senhor pela saudinha de Vossa Excelência. Que lin...
Seguia-a com o nariz como de costume. Olfacto terrível!
Mas, não só o olfacto. O ouvido também... Era de um apuro! Cativava-se de todo o som, próximo ou longínquo, e guardava de memória para
sempre o som harmonioso.
― Muito bem cantou o Veni aquela que cheira à erva do monte! Parece impossível!
Dizia isto no degrau do cruzeiro quando recordava passos de festividade. Mas, dizia-o sem falar. Mexendo os beiços, mal articulava as
sílabas. Não descobria o peito.
Um dia, sem mais nem menos, pediu a um irmão, com quem vivia, que lhe comprasse uma guitarra até cem
mil réis.
― Pago-ta às migalhinhas... Vê se ma compras. Se ma comprares, és bom irmão. Se ma não comprares, mereces ser ajudado de
Deus, mas é à moda... Oxalá que todos os cegos do mundo te amaldiçoem entre a Hóstia e o Cálice.
― Carago! És mau como as cobras...
― Agora sou! Sou ceguinho.
Dias depois, tinha a guitarra. Não se sabe como o irmão se houve para a conseguir. Era pobre como Job. Comprou-a por milagre para evitar a praga rogada entre a Hóstia e o Cálice.
Com a guitarra nas unhas, o cego desforrou-se da tristeza e humilhação a que votara corpo e alma durante uns poucos de anos. Rompeu a capa
que o cobria ― capa feita do aniquilamento de todas as vontades. Pôs-se a tocar pedaços de amor musical, notas quentes trazidas pelo vento desde a cidade ruidosa até o
adro silencioso.
― Não deves tocar isso, dizia-lhe uma senhora.
Ele porém não a ouvia. Erguia-se do
sopé da cruz, metia-se no cardenho e iluminava-o todo com um zangarrear feito de sol.
― A guitarra
deu cabo do ceguinho. Oxalá não seja a sua perdição, temia outra senhora.
Como de facto. A guitarra deu cabo do ceguinho. Deu-lhe cabo
da compostura, do arranjo com que se sentava nas escadas da cruz, e até lhe deu cabo da voz monocórdica. Era com altos e baixos que proferia:
― Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo. Disse o Senhor Abade.
― Está bem, está bem.
As senhoras, estranhando-lhe o modo novo de pronunciar a frase, fugiam dele. Davam à fuga, endireitando o busto, o tom particular da ira
amordaçada. Só elas sabem como se faz isto.
A escarcela do cego, outrora pingue de coroas, começava a ressentir-se da metamorfose do
dono. Passava dias sem se estrear com um tostão.
― Paciência. Não matei a cabra. Mato-a amanhã.
O
homenzinho, que tinha sido anjo no âmbito da igreja, passara a falar calão de motorista. Adquirira desenvoltura feia em cego. Parecia maluco. Tinha febre e tosse.
Muito magrinho, cada vez mais
magrinho, começou a ficar pela cama dias seguidos. Para se entreter, pedia à cunhada o favor de lhe chegar a guitarra e tocava. E até cantava!
― Bossemecê está doido de todo. Rais me parta se lhe torno a chegar às unhas esse diabo dessa biola.
O
cego ria-se como perdido. Fazia-lhe cócegas a zanga pitoresca de Tomásia ― sua cunhada.
― Ai, Tomasinha, a menina é um anjo. Fazia lá
essa desfeita a um cego!
― Um cego que não tem juízo... Sabe que está um chato? Bom tempo, em que as coroas luziam nesta casa.
― Hão-de tornar a luzir, Tomasinha!
― Quando?
― Sabe o que me
lembrou, Tomasinha? Arranjar um rapaz que cante e ir ver mundo, tocar por aí fora.
― Habia de fazê-las frescas, tísico de todo...
O cego amuou, mas, daí a pouco, em voz meio sumida, confusa, como se estivesse a sonhar, ia dizendo:
― A
Tomasinha é um anjo. Parece a senhora que canta mal e cheira às ervinhas do monte.
― Doido assim!, exclamou a cunhada.
O cego estava a morrer ou fingia que estava a morrer. Não tocava guitarra, nem pegava em comida. Mas, lembrando-lhe a cunhada o dever de
se reconciliar com Deus, disse que era cedo.
― Quando for altura, concluiu.
― Quando for altura,
está bossemecê a contas. Lembre-se que já daí se não alebanta.
O cego respondeu como se a não ouvisse:
― A menina é um anjo...
Passaram-se dias sem que o cego pegasse em comida ou pedisse a guitarra para
zangarrear. Até que uma tarde, quando o sol lhe varria a cama com um rebotalho de luz amarela, o
cego implorou:
― Deixe-ma ver agora. Quero despedir-me dela para sempre.
A cunhada aproximou-se do
leito condoída.
― Está aqui, tataranha! Aqui!
Neste momento, o cego subjugou os pulsos da mulher e
beijou-lhe à pressa as mãos, a face e os cabelos.
― De vossemecê foi que eu me quis despedir. A guitarra? Que a leve o Diabo!
― Seu porco, seu ladrão! O Quim há-de sabê-lo!
No dia seguinte, o Quim, a escumar pelos cantos
da boca, intimou o ceguinho a sair de casa.
― Perdoa-me, Quim. Foi o Demónio que me atentou.
― Bai-te embora. Cego seja eu como tu se te não mato. Ou te mato ou te amaldiçoo entre a Hóstia e o Cálice. A ti e a todos os cegos do
mundo. Oubiste, alicréu?
― Mata-me, que eu não saio daqui. Chama o Senhor Abade. Quero-me confessar. Por alma da nossa mãe, perdoa-me.
Foi o Demónio que me atentou.
― O Demónio dou-to eu. Confessa-te na igreja, bíbora! Aqui tens as calças. Ou as enfias ou te corto o
pescoço.
Daí a menos de um ai, o ceguinho estava na rua com a guitarra suspensa do pescoço.
Não se
soube mais dele. Ou anda de terra em terra, tocando e cantando novos desesperos, ou, tísico no fim, o vento lhe deu no peito e o levou até um valo como faz às folhas
mortas.
FIM
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João de Araújo Correia
[1899-1985]
"Em 1912, fiz exames singulares de Francês e Inglês, quinto ano ou quinta classe, numa
airosa sala do liceu de Vila Real. com estas habilitações, consegui frequentar e concluir, em três anos, o curso dos liceus.
Frequentei-o na Escola Académica do Porto, donde saí, aos dezasseis anos, para me matricular na Universidade. Frequentava eu o terceiro ano de Medicina, antes de cumprir
os meus vinte anos, quando adoeci gravemente. Obrigado a interromper o curso, por falta de saúde e mais alguma razão, sobrevinda à convalescença, concluí-o em Outubro de
1927. Perdi seis anos de frequência escolar. Mas, não os perdi de todo...
Passei-os em Canelas sem inacção mental e sem prejuízo do meu
tratamento.
Quando me formei, era homem de razoável cultura e muita reflexão, própria de quem foi doente meia dúzia de anos. Durante a
convalescença, publiquei prosa e verso nos jornais da Régua. Mas, de regresso às aulas e após a formatura, já casado e com dois filhos, interrompi a lide literária para
me dedicar ao estudo e prática da Medicina. Entretanto, sem deixar de querer bem à arte de curar, que nunca abandonei, meteu-se comigo outra vez a vocação literária.
Publiquei, em 1938, o meu primeiro livro, que intitulei "Sem Método". Livro de breves notas, foi elogiado por grandes homens como grande revelação de homem votado à
produção literária. Teve de se cumprir a minha sina ― originada em factores ancestrais que mal alcanço. Apenas sei que meu pai, com estudos oficiais rudimentares, lia
e escrevia primorosamente. De minha mãe, delicado espírito, devo ter herdado uma boa dose de sensibilidade. Bastarão estes dados para se
interpretar a minha alma de artista? Sei que nasci escritor em casa de lavoura, situada à beira de uma fonte, na antiga vila de Canelas do Douro". in
Terra Ingrata [contracapa]
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O CEGUINHO E O DEMÓNIO
João de Araújo Correia
in
Terra Ingrata
Contos
Editorial Estampa, 3.ª Edição
Lisboa, 1984
13.Mai.2013
Publicado por
MJA
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