
Tem cerca de 5 anos. Chega à biblioteca do seu jardim-de-infância para escolher
um livro. Avança, no entusiasmo, de quem vai aprender, fantasiar e imaginar
outros mundos, através de um recurso que os adultos dizem ser preciso. Depois de
escolhido o “dito” livro, senta-se na manta de pernas à chinês. Está
expectante…inquieto(a)… Pega-lhe, sente o seu cheiro, começa a saborear a
fantasia, antecipando o que poderá surgir a cada folha… Abre-o…
Apercebe-se que o “dito” livro não passa de um amontoado de folhas em branco.
Hoje, dezenas de crianças com cegueira de idades precoces (0-6 anos), em todo o
território nacional, têm um acesso muito restrito a um dos meios mais
prodigiosos para a educação, cultura e desenvolvimento pessoal do ser humano: o
livro. Se nos reportarmos ao impacto que o livro teve na nossa infância ou tem
na vida das nossas crianças mais próximas (normovisuais), talvez, consigamos
perceber o real impacto desta privação.
Enquanto serviço que presta apoio a crianças com cegueira, experienciamos uma
grave lacuna ao nível dos recursos, para que estas crianças desenvolvam uma
importante componente da alfabetização e de um desenvolvimento harmonioso – a
literacia emergente.
1. A LEITURA DO MUNDO E A LEITURA DA PALAVRA
“A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta
implica a continuidade da leitura daquele. (…) este movimento do mundo à palavra
e da palavra ao mundo está sempre presente” (Freire, 1989, p. 13).
Esta citação revela a ideia de um movimento bidirecional entre a experiência no
mundo e a leitura, movimento bidirecional que os profissionais que trabalham com
crianças com cegueira experimentam diariamente. No caso destas crianças, um dos
grandes desafios que atravessam a prática educativa, prende-se com a forma como,
a priori, se poderá facilitar o conhecimento do mundo através de outros canais
sensoriais que não a visão. Os caminhos que nos levam às respostas são um
desafio, que se acentua quando consideramos que captamos 80% a 90% de informação
através da visão (Kastrup, Carijó & Almeida, 2009). Surge, assim, a necessidade
da criança ter acesso a um conjunto de experiências significativas que lhe
permitam viver e conhecer o mundo, através da mediação de outros sentidos, que
podem igualmente produzir experiências ricas.

Ilustração de Mariana Ruiz Johnson em “Mamã”
Mas não serão também os livros uma ferramenta de conhecimento para que as
crianças sejam capazes de ler o mundo?
Yunes, na sua comunicação nos “Caminhos da Leitura”, em Junho de 2015, em
Pombal, dizia que a linguagem literária abre horizontes, transportando
possibilidades, ultrapassando o espaço, o tempo, outras vidas e culturas, sendo
a dimensão poderosa da linguagem, capaz de nos trazer o que está no mundo: “À
leitura corresponde tal alargamento de mundo, uma ampliação tão potente da
linguagem, primeiro linguística e logo semiótica (pela transposição do modo de
construção de significados e sentidos de uma esfera para outra), que ler passa à
condição sine qua non para partilhar ideias e reflexões que, de alguma maneira,
movem o universo humano” (Yunes, 2014, p. 130). A leitura é, assim, uma
experiência de se ver o mundo e nos posicionarmos enquanto seres no mundo, nas
palavras de Yunes: uma “espécie de upgrade da interpretação do estar no mundo
para uma condição do ser no mundo” (Yunes, 2014, p. 131).
10 PRINCÍPIOS PARA LER EM VOZ ALTA
-
Escolha o livro certo
-
Faça da leitura uma tradição familiar
-
Não tenha pressa
-
Antes de ler cada página, descreva as imagens
-
Narre a história com expressividade vocal
-
Descreva e modele as expressões faciais com a linguagem corporal
-
Faça perguntas simples que despoletem respostas e fomentem empatia
-
Use objetos táteis enquanto lê – brinquedos, objetos de casa, materiais
encontrados no exterior
-
Deixe que a criança conte a história consigo
-
Depois de ler a história, converse sobre a mesma com a criança.

Ilustração de Bernardo P. Carvalho em “Pê de pai”
2. “SEIS PONTOS A DANÇAR, CONTOS VÃO CONTAR”
Ponto de Honra nº1: Literacia como direito e como oportunidade para o sucesso
das aprendizagens
Hoje é consensual que a literacia é um processo que se inicia desde o nascimento
e que a oportunidade de construir uma base forte para a literacia é um direito
de todas as crianças (Wright, 1991, p. xi). Acreditamos que práticas precoces no
processo de leitura e escrita aumentarão o sucesso nas aprendizagens
relacionadas com este domínio.
Ponto de Honra nº 2: A importância do contacto com a palavra escrita
“A criança motivada a ler irá exercitar as competências recém-adquiridas de
leitura, lendo (ou tentando ler), às vezes compulsivamente, o impresso que a
rodeia. Lendo mais, lerá melhor”.(Viana, Cruz & Cadime, 2014, p. 18)
Ponto de Honra nº 3: Encorajar para a leitura
Não basta ter livros, é preciso um trabalho de motivação para a leitura.
“É preciso que os adultos (nomeadamente pais, educadores e professores)
apresentem os livros às crianças, os levem até elas, as incentivem a
descobri-los”. (Viana, Cruz & Cadime, 2014, p. 18)
Ponto de Honra nº 4: Acesso e oportunidade
É crucial permitir que crianças com cegueira ou deficiência visual grave tenham
formação/treino ao nível do uso de material tátil e oportunidades regulares para
experimentá-los. (Theurel, Witt, Claudet, Hatwell & Gentaz, 2013)
Ponto de Honra nº5: Acessibilidade
Acreditamos que é importante criar livros adequados ao contexto percetivo da
criança com cegueira. Acreditamos de igual forma, que isso significa procurar
modelos de ilustração tátil que se afastem da cultura visual e se aproximem de
experiências multissensoriais, propriocetivas e cinestésicas (modelo háptico).
Trata-se da apropriação do objeto ilustrado de maneira sensorial, interativa e
lúdica.
Valorizamos de igual forma, formatos alternativos para mediar histórias: áudio,
caixa de histórias, jogos corporais, dramatização…
Procuramos que o livro e, toda e qualquer forma de mediação de leitura, sejam
uma janela para o mundo.
E para terminar…
Ponto de Honra nº6: Livros para Todos
Um livro deve ser apelativo, deve conquistar a atenção da criança e a sua
vontade para o abrir e explorar. Procuramos, dentro do possível, que os livros
que disponibilizamos sejam esteticamente apelativos para todas as crianças.
A negro e a braille, com ilustrações táteis e visuais, estes são livros para
todas as crianças! Livros para ler com as mãos, com os olhos, mas principalmente
com os 5 sentidos.
3. ESTRATÉGIAS E RECURSOS
O Nabo Gigante, um conto original russo, recolhido por Alexis Tolstoi no séc.
XIX, tem os ingredientes de um conto popular verdadeiramente hilariante,
acompanhando a aventura de um simpático casal de velhinhos, que se desdobram em
esforços para colher um nabo… um nabo GIGANTE!

Elementos da Caixa de histórias
Este conto viajou até um jardim-de-infância da zona centro do país e as crianças
adoraram.
A adaptação contemplou:
-
Livro com texto em braille (optámos por colocar o braille em folha acetato
sobre o texto do livro original);
-
Caixa de histórias (levámos connosco a velhinha, o carro de mão, os legumes da
horta, as etiquetas dos legumes);
-
Dramatização (puxamos e içamos e sacudimos e puxamos com mais força. Mas o nabo
continuava a não se mexer.)
-
Visita à horta (onde cruzamos fantasia e realidade).
A caixa de histórias, a possibilidade de experimentar a história com o corpo
(através da dramatização) e o contacto com a realidade, facilitaram a
compreensão da narrativa e a construção de significados por parte da criança com
cegueira.
ϟ
Em 2014, o Prémio BPI Capacitar possibilitou a criação da OLEC – Oficina
de Literacia Emergente para a Cegueira -“6 Pontos a Dançar, Contos vão Contar”.
fonte do texto e imagens:
OLEC - Oficina de Literacia Emergente
para a Cegueira
CAIPdv -
Centro de
Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual
Escola 1.º CEB de Carvalhosas -
Bairro da Escola, 33 | Carvalhosas
3030-088 Coimbra |
tel. 239 928126
email: caipdv@gmail.com
Δ
16.Dez.2015
publicado
por
MJA
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