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 Sobre a Deficiência Visual

Actividades Corporais no Processo de Alfabetização da Criança Cega

Lúcia Maria Filgueiras da Silva Monteiro

Crianças cegas de nascença - fotografia de August Sander, 1930-31
Crianças cegas de nascença foto de August Sander, 1930-31

 

RESUMO: Este artigo pretende instigar nos docentes o interesse pela proposta da educação pelo movimento, através de actividades lúdico-criativas, no intuito de colaborar com o sucesso de alfabetização de crianças cegas. Para tal, aborda o papel da família em sua educação, e analisa o sistema Braille no que tange ao início de seu ensino em classes de alfabetização infantil. Sugere algumas actividades corporais que podem servir como meio facilitador da aprendizagem do sistema Braille, as quais podem ser executadas nas aulas de Educação Física, numa abordagem interdisciplinar entre o professor alfabetizador e outros profissionais que trabalhem com actividades físicas.

INTRODUÇÃO

A criança cega é, desde a mais tenra idade, privada de vivenciar muitas experiências que seriam necessárias ao seu pleno desenvolvimento psicomotor. Isto ocorre, fundamentalmente, pela falta de estímulos visuais capazes de motivá-la a deslocar-se e a descobrir seu mundo. Quando a família não é orientada a estimulá-la, a conduta cautelosa, não só de seus familiares, mas de todos que lidam com ela, no intuito de protegê-la de possíveis quedas ou colisões, concorre, também, para limitar sua movimentação e, conseqüentemente, contribui para retardar seu desenvolvimento psicomotor.

“Esses comportamentos inibidores de sua movimentação freqüentemente acarretam na criança cega, que não foi adequadamente estimulada, uma desfasagem psicomotora, se comparada a criança de mesma idade, que não seja portadora de deficiência” (MEC/CENESP, 1984, p. 12).

Segundo Kirk e Gallagher “as crianças cegas precisam desenvolver uma série de habilidades para compensar os seus problemas de comunicação e espaciais” (1987, p. 207). Pode-se supor que talvez esta desfasagem advenha de uma educação baseada no “mundo da visão” e por conta deste enfoque, que não leva em consideração abordagens educativas voltadas para a cinestesia, tal desfasagem se aprofunde.

Segundo Amiralian (1997, p.99) pode-se pensar que este fato tenha outras causas: “será que a educação especializada para o ensino dos cegos é tão precária e insuficiente em nosso meio, que a maioria deles não recebe o atendimento necessário? Será a informação aos pais das crianças cegas tão inconsistente e inadequada que eles não sabem da existência de recursos para a educação de seus filhos cegos? Ou será que os cegos realmente apresentam atrasos e dificuldades insuperáveis de desenvolvimento e aprendizagem, sendo este quadro característico da sua situação de cegueira?”

- Este trabalho não investigará tais afirmações, pretende apenas propor estratégias no intuito de diminuir, ao máximo, estas possíveis defasagens e propiciar à criança cega condições favoráveis ao seu desenvolvimento e, futuramente à sua alfabetização.

Será analisado como as actividades fisicas poderão contribuir, favoravelmente, no processo inicial do aprendizado de sua leitura e escrita pelo sistema Braille.

Este sistema é baseado num código universal de leitura tátil e de escrita, que se fundamenta na combinação de pontos em relevo, em diferentes posições, as quais determinam letras, números, sinais matemáticos, musicais etc. Tanto a leitura como a escrita neste sistema dependem de movimento e de coordenação motora eficientes. Além disso, para sua perfeita compreensão, a criança cega deve saber usar eficientemente os movimentos de suas mãos.

Assim, um trabalho voltado para o conhecimento do corpo e o posicionamento deste no espaço, pode facilitar a aprendizagem da criança cega no momento de sua alfabetização. Pode também ajudar no entendimento das noções de posição as quais serão necessárias para o perfeito domínio das posições gráficas dos caracteres do sistema Braille (Monteiro, 1992).

Para qualquer criança as noções de esquema corporal, lateralidade, e coordenação espaço-temporal, são base para sua alfabetização. Todavia a criança que enxerga, pode utilizar-se da visão para minimizar suas dificuldades, o que não é possível para a criança cega. Assim, quando esta criança se depara, na sua alfabetização, com um alfabeto e uma escrita baseados fundamentalmente na lateralidade, estes pré-requisitos, se não foram suficientemente incorporados ao seu processo de desenvolvimento, acarretam freqüentemente maiores dificuldades na sua alfabetização.

Este estudo pretende, analisando o sistema Braille, ajudar a alfabetizadores e alfabetizandos a utilizar o corpo como mediador deste processo de aprendizagem.

Para nortear esta análise foram formulados os seguintes objetivos:

  • analisar a relação espacial do corpo com a forma de escrita do alfabeto Braille;

  • propor actividades corporais que auxiliem a criança cega no processo de compreensão da escrita e da leitura do alfabeto Braille; e

  • identificar as actividades metodológicas que podem contribuir para minimizar a desfasagem motora da criança cega, no seu processo de alfabetização.

A fim de atingir estes objetivos foram propostas as questões enunciadas a seguir:

  • Como o trabalho corporal pode auxiliar na alfabetização da criança cega?

  • Que recursos didáticos podem ser criados para integrar o trabalho corporal e as actividades de sala de aula voltadas para a alfabetização?

  • Como pode ser feita uma relação entre as posições do corpo e as posições dos pontos que formam as letras do alfabeto Braille?

Para avaliar o apoio que o trabalho corporal pode proporcionar à alfabetização da criança cega, inicia-se este estudo pela análise do sistema Braille; em seguida, aborda-se a pesquisa dos fatores que envolvem a movimentação da criança cega, em termos de mobilidade, lateralidade, orientação corporal e espacial, postura e equilíbrio físico, dinâmico e estático. 1

A escolha deste tema deveu-se à preocupação da pesquisadora com os caminhos que direcionam a Educação Física nas classes de jardim de infância e alfabetização - os quais muitas vezes não se voltam para uma integração com as demais disciplinas - no intuito de apoiar e facilitar os aprendizados futuros e proporcionar através da ludicidade a aquisição de pré-requisitos importantes tanto para a criança que enxerga como, particularmente neste estudo, para a criança cega, em relação ao seu processo de alfabetização.

Algumas dificuldades encontradas pela autora deste trabalho quando aprendeu o sistema Braille levaram-na a pensar em como a Educação Física, mais precisamente o trabalho corporal lúdico-criativo, poderia ajudar na superação se não de todas, de pelo menos algumas situações problemáticas que são afetas à alfabetização de crianças cegas.

A pesquisa empregada foi a do tipo bibliográfico, abrangendo as publicações sobre os deficientes visuais, a alfabetização, e de Educação Física para o trabalho com deficientes.

É importante ressaltar que a escassez da bibliografia publicada, na área considerada, ou seja, pesquisas de campo sobre o processo de alfabetização de crianças cegas, constitui significativa limitação à fundamentação deste trabalho. Para amenizá-la, publicações com mais de dez anos foram consideradas válidas, juntamente com a experiência da autora que, há vinte e quatro anos atua na área de educação especial de deficientes visuais, no Instituto Benjamin Constant, com ênfase nas cadeiras de Educação Física, Estimulação Precoce e Orientação e Mobilidade.


DESCRIÇÃO E BREVE ANÁLISE DO SISTEMA BRAILLE

O Braille é o sistema gráfico que as pessoas cegas utilizam para ler e escrever. Criado em 1825 por Louis Braille, um cego francês, a partir de um sistema utilizado por militares para se comunicarem no escuro, durante seus exercícios de simulação de combate. São usados caracteres em relevo, utilizando-se seis pontos que, combinados entre si, formam códigos para cada letra do alfabeto, números, sinais matemáticos etc. Esses seis pontos estão dispostos em duas colunas de três pontos lado a lado.

Alfabeto Braille

Cada letra forma um desenho diferente utilizando, as vezes, apenas um dos pontos, dois ou três deles e, algumas vezes, os seis pontos. Estas combinações formam, então, os sessenta e três caracteres que compõem o alfabeto Braille.

Para a leitura, o cego emprega o tato da ponta dos dedos que, passados sobre os pontos em relevo, percebe o desenho formado e, assim, identifica cada letra.

A leitura é desenvolvida da esquerda para a direita, e a escrita é feita ao contrário, ou seja, da direita para a esquerda.

A complexidade na memorização do sistema e a sua forma de escrita e leitura, através do tato, faz com que se exija da criança cega mais do que é exigido da criança que enxerga.

Não se pode esquecer que a criança que enxerga é familiarizada com os caracteres de sua alfabetização, muito antes que esta aconteça, por meio de revistas, jornais, placas, embalagens de alimentos, etc.

Assim sendo, a familiarização é feita, incidentalmente, proporcionando maior facilidade quando chega a hora de sua alfabetização. Muitas letras ou mesmo palavras já estão por ela memorizadas.

A criança cega, no entanto, só se familiariza com os caracteres de sua escrita e leitura, quando estes lhe são apresentados, formalmente, na escola, na maioria dos casos por volta dos sete anos, (dados da Secretaria do IBC, 2002). Somente a partir desta idade, inicia-se seu contato com os caracteres do alfabeto Braille, já com o propósito do aprendizado da leitura e da escrita.

Naturalmente, a criança realiza todo um treinamento específico, com o objetivo de discriminar e identificar tais caracteres, antes que se inicie sua alfabetização; porém, este já é um trabalho formalizado, na classe de alfabetização, sem o qual tornar-se-ia impossível a continuidade do processo. Percebe-se que, realmente, as exigências para o aluno cego são bem maiores, já que este não tem oportunidades naturais de familiarizar-se com letras, números ou desenhos, antes de entrar para a escola.

Como diz Kirk e Gallagher (1987), a escrita Braille é um outro acréscimo ao currículo das crianças cegas; pode-se pensar que esta assertiva seja um tanto exagerada, mas compreende-se, vivenciando a prática da alfabetização de crianças cegas, que este comentário enfoca a falta de oportunidades que esta criança tem de apropriar-se antes de sua escolarização de pré-requisitos necessários ao domínio do seu sistema gráfico.


DOMÍNIO DA LEITURA E DA ESCRITA: ALGUMAS DIFICULDADES

Para o domínio da leitura e escrita no sistema Braille é imprescindível que o cego utilize bem os movimentos das mãos e que sua coordenação motora fina seja estimulada, precoce e incessantemente. Neste sentido, o contato com os objetos que são utilizados no dia-a-dia da criança são os primeiros que devem ser indicados para as manipulações. O treinamento de sua coordenação motora fina e de seu tato são fundamentais para que esta criança adquira a noção das formas dos objetos e, mais tarde, para discriminação e identificação dos caracteres do alfabeto Braille.

“Os objetos, testemunhos concretos, proporcionam informações, desde as mais elementares, de forma, tamanho, peso e textura dos materiais” (Ocampo, 1987, p. 29).

Não se pode esquecer que, para se chegar a uma movimentação perfeita de um segmento de nosso corpo, é necessário que ele já tenha sido anteriormente exercitado como um todo, para que se possam dissociar, aos poucos, os pequenos movimentos.

Portanto, exercícios globais (que movimentam todo o corpo),e instintivamente naturais, tais como andar, correr, quadrupedar, rolar, engatinhar, devem ser privilegiados em detrimento de exercícios que envolvam aprendizagem específica tais como nadar, dar cambalhotas, zigue-zaguear etc. Isto porque desta forma não se limitará a livre expressão corporal da criança, ela usará seu corpo à sua maneira para experienciar o seu em torno, sem limitações ou imposições de técnicas específicas (Monteiro, 1992).

Isto não quer dizer que actividades em meio líquido não sejam adequadas, o que se quer ressaltar é que estas só são apropriadas depois que a criança já se familiarizou com este meio o suficiente para estar “relaxada” e poder exercitar-se de forma segura e natural.

Portanto não se pode perder este “tempo motor” 2. É necessário, o quanto antes, que esta criança use o chão (tatame, colchonetes) para que perceba seu corpo e possa experimentá-lo em total liberdade e sem medo.

Segundo MEC/CENESP (1984, p.14) a criança cega apresenta dificuldades na realização de movimentos coordenados, com o corpo inteiro, e, também, nas actividades em que há emprego específico das mãos.

Essas dificuldades apresentam-se por meio de:

  • movimentos inadequados ou incompletos;

  • dificuldade de movimentos alternados;

  • dificuldade de movimentos simultâneos;

  • dificuldade de movimentos dissociados; e

  • dificuldade de perceber o alvo dos movimentos.

O trabalho corporal desenvolvido desde o primeiro ano de vida pode permitir à criança cega a execução de movimentos simples que têm como finalidade superar essas dificuldades, já descritas. Essa intervenção poderá propiciar um processo de desenvolvimento motor de melhor qualidade, facilitando sua futura alfabetização.

A importância do contato corporal da família com esta criança é primordial. Basta lembrar que o simples tirar e colocar a mamadeira da boca e entregá-la para a mãe, ora com uma das mãos, ora com a outra, já é um bom começo para o aperfeiçoamento dos movimentos alternados.

Além da estimulação direta que a mãe pode proporcionar ao bebê, por intermédio de seu contato físico com ele, o bebê cego deverá ser incentivado, por estímulos sonoros, a encontrar os objetos de que gosta. Portanto, na fase inicial da aprendizagem, sinais sonoros devem ser associados aos objetos, para que a criança perceba, pelo som, onde tais objetos se encontram. Assim, a percepção do alvo dos movimentos poderá melhorar. lniciar-se-á, desse modo, a mobilidade, propriamente dita, da criança cega.

Apesar deste trabalho enfatizar o desenvolvimento motor, por ser o cerne do tema abordado, é importante ressaltar os benefícios cognitivos que advém das actividades motoras para a criança cega. Ela é muito receptiva a qualquer assunto que lhe traga informações. Se não apresentar nenhum outro problema, além da cegueira, será, em princípio uma criança interessada e capaz de muitos questionamentos, que possam contribuir para seu entendimento do mundo e das coisas que a cercam. É, enfim, uma criança ativa intelectualmente e que gosta de estar bem informada.


TRABALHO DE LATERALIDADE

Kirk e Gallagher (1987, p. 250) ao citar Cratty, estudaram aspectos da resposta de crianças cegas e verificou que a lateralidade, ou o uso preferencial de um dos lados do corpo, não é tão bem estabelecida nas crianças congenitamente cegas. Pela afirmação destes autores e pelo conjunto de observações feitas por Monteiro (1992), percebe-se a necessidade de estimulação planejada, assim que possível, para o desenvolvimento adequado das habilidades motoras das crianças cegas e conseqüentemente de sua lateralidade. Este tipo de trabalho, chamado de estimulação precoce, deverá fazer parte da vida da criança cega primordialmente em seu lar, feito pelos seus pais, que deverão ser orientados para tal fim. Sem este esclarecimento a criança cega se tiver a sorte de nascer em uma família que naturalmente promova estas actividades, provavelmente não apresentará desfasagem significativa, caso contrário, terá sim postergado seu desenvolvimento psicomotor, a menos que instintivamente esta criança procure por si própria estratégias de movimentação. Para que isso ocorra esta família deverá dar a ela a liberdade necessária à sua movimentação.

No trabalho desenvolvido pela autora no Instituto Benjamin Constant, foi possível constatar que as crianças, na faixa etária entre seis e oito anos e até mesmo antes desta idade, são muito receptivas aos exercícios que trabalham sua lateralidade, pois muito cedo percebem a necessidade de diferenciar esquerda e direita, já que a maioria das orientações para seu caminhar seguro mencionam as referidas direções. A criança observa então, que, quando ela internaliza o conceito de direita e esquerda, imediatamente esse saber a beneficia, pois, assim que sai da sala de aula, o professor já a orienta, indicando, dessa maneira, a porta de saída.

O próprio posicionamento das letras, no alfabeto Braille, deve ser apresentado, empregando-se a noção de direita, esquerda, em cima e em baixo, conceitos que, se já estiverem dominados pela criança cega, no início de sua alfabetização, facilitarão o domínio das técnicas do sistema.

Deste modo, não é difícil concluir quão importante é o domínio, o quanto antes, da lateralidade, a fim de possibilitar seu apropriado desenvolvimento intelectual e social.


RELAÇÃO ENTRE O SISTEMA BRAILLE E A NOÇÃO DE POSIÇÃO

O sistema Braille caracteriza-se pela disposição e combinação de seis pontos em relevo. Como esses pontos são determinados por diferentes posições no papel, o cego deverá memorizá-las. Para tanto, cada posição relativa dos seis pontos, em um rectângulo que os delimita, denominado de cela, determina os sessenta e três caracteres do sistema Braille.

célula braille


Quando as pessoas que enxergam aprendem o sistema Braille, muitas vezes, recorrem a desenhos para memorizar o formato de cada letra.

Porém, a visualização não é possível para o cego. Torna-se necessário, portanto, fazer uso dos nomes dos locais dos pontos para descrever as letras.

Nessa descrição são empregadas seis posições. São elas:

  • em cima à direita;

  • em cima à esquerda;

  • no meio à esquerda;

  • no meio à direita;

  • em baixo à direita; e

  • em baixo à esquerda.

A combinação dessas posições determina o formato de cada letra. Em princípio não há qualquer correlação gráfica entre a representação do alfabeto em Braille e no sistema comum.


APRENDIZAGEM DO SISTEMA BRAILLE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao observarmos as etapas de desenvolvimento da escrita de uma criança cega (posteriormente à sua familiarização com o punção, quando ela fura livremente o papel colocado sobre uma espuma ou isopor, verifica-se que ela inicia um trabalho de traçados obedecendo ordens e posições indicadas pelo professor. Ao fazê-lo, as crianças desenvolvem uma pré-escrita.

Segundo Pedras (1992), as etapas em progressão pedagógica, em termos de posições, são as seguintes:

  • os dois pontos de cima;

  • um ponto em cima e outro em baixo, à esquerda;

  • os três pontos do lado esquerdo;

  • um ponto em cima e outro em baixo, à direita;

  • os três pontos do lado direito;

  • os dois pontos de cima e os dois de baixo; e

  • todos os seis pontos.

Com base nessas etapas do desenvolvimento da escrita da criança cega, observa-se que o entendimento das posições relativas dos pontos na cela determinarão o aprendizado do alfabeto e, posteriormente da escrita no sistema Braille.

Examinando o livro de exercícios didáticos “Dedinho Sabido” (Pedras, 1974) verifica-se que os conceitos de: meio da folha, parte de cima da folha e parte de baixo da folha são apresentados, inicialmente, demonstrando a importância que os conceitos das posições têm na alfabetização da criança cega.

Quando a criança consegue, por meio de treinamento específico, distinguir pelo tato, as posições relativas dos pontos de sua escrita no papel, percebendo suas diferenças, ela estará pronta para iniciar seu processo de alfabetização pois será capaz de verificar as diferenças existentes entre cada carácter.


ACTIVIDADES CORPORAIS E ALFABETIZAÇÃO

Para iniciar a alfabetização de uma criança cega, além de estimulá-la no seu tato, a fim de que possa, na leitura, sentir e discriminar o relevo dos pontos do sistema Braille, e, na escrita, manusear corretamente o punção ( que, na verdade, constitui o instrumento de escrita do cego) e a reglete sobre o papel, torna-se necessário trabalhar, de uma maneira eficaz, os conceitos de direita, esquerda, em cima e em baixo.

Um trabalho corporal lúdico, fazendo com que esta criança se aproprie e domine esses conceitos, relacionando-os com a maneira de se escrever no sistema Braille, é de suma importância.

Quando o professor apresenta a reglete e o punção, já para a iniciação da escrita, necessita demonstrar para a criança o conceito de coluna, já que os seis pontos estão dispostos em duas colunas de três pontos cada.

Esse conceito é facilmente demostrado se as crianças forem posicionadas em colunas de três crianças cada, na sala de aula ou nas aulas de Educação Física, de modo que a criança cega possa ter idéia de sua posição e da posição de seus colegas dentro da formação, percebendo, assim, se é o primeiro da fila, o do meio ou o último. Com isso, adquire a noção de ordem, de formação em coluna e em linha e de posição relativa.

A posição dos pontos na cela pode ser associada, também, com uma formação, constituída por duas colunas de três crianças cada. As duas crianças das testas das colunas representariam os dois pontos de cima da cela, as do meio, os pontos do meio e as duas últimas, os pontos inferiores. Dessa forma muitos jogos de posição poderão ser criados pelo professor com o objetivo de reforçar nos alunos os conceitos necessários a cada etapa de sua aprendizagem.

Aquele que lida com cegos sente, por experiência própria, que por melhor que seja uma explicação teórica, ela raramente suplanta a demonstração prática, ou seja, a concretude da qual já falamos anteriormente. Quando se colocam as crianças, uma atrás da outra, e se mostra o que é uma coluna, a criança vivencia essa maneira de dispor pessoas, objetos, etc pode abstrair este conceito e aplicá-lo a outras situações em que o mesmo seja necessário. Ao tocar nos colegas situados na sua frente, ao lado ou atrás, os alunos cegos percebem através do toque, de igual modo, o que o professor quis explicar, ao passo que numa explicação teórica, o raciocínio individual poderá conduzi-la a entendimentos diversos do conceito que se quis demonstrar.

Não há melhor maneira de entender o posicionamento do corpo no espaço do que usando vivências corporais. Quando se quer explicar o que é dentro e fora para uma criança, sem utilizar seu corpo, apela-se para objetos que ao serem colocados ou retirados de caixas, possibilitam a compreensão da posição dentro e fora. Porém, se não houver disponibilidade de material adequado, nada é mais representativo do que o próprio corpo para demonstrar, entrando-se numa sala de aula, loja, casa, quarto, etc. o que é estar dentro ou fora de um espaço determinado.

Para iniciar um trabalho corporal, com vistas à compreensão dos conceitos de lateralidade e posição no espaço, fazendo-se a correlação com a alfabetização em Braille, é necessário que a criança já tenha formado seu esquema corporal, ou seja, conheça as partes do seu corpo.

Pode-se, então, propor brincadeiras nas quais a correlação entre as diferentes partes do corpo sejam associadas às posições de perfuração na cela, por exemplo: cabeça, parte de cima do corpo correspondendo aos dois pontos de cima da cela; o tronco, parte do meio do corpo e as pernas, parte debaixo do corpo.

Exercícios do tipo “amarelinha” 3, os quais colocam a criança em várias posições no espaço, também são muito úteis, pois é possível adaptá-los, simulando em relevo no chão, uma cela. Desta forma, será possível trabalhar intensamente o conceito de parte de cima, do meio e de baixo da cela. Na adaptação desta brincadeira, os quadrados serão desenhados em relevo no chão, com a mesma disposição da cela Braille. A criança, ao passar por estes, deverá dizer a posição relativa em que se encontra.

Ainda utilizando esse mesmo retângulo, é possível trabalhar os conceitos de: à direita e à esquerda, desde que se indique ao aluno cego, por meio de diferentes sons, se ele está à direita ou à esquerda do retângulo.

Se for possível, além dos diferentes sons, colocar, no lado direito e esquerdo do retângulo, pisos diferentes, o rendimento será melhor ainda, pois o aluno poderá distinguir os lados esquerdo e direito de dois modos diferentes, pela audição e pelo tato. Dando continuidade ao trabalho, em sala de aula, reproduz-se em material didático a mesma proposta anterior, com os mesmos sons e com as mesmas texturas utilizadas nas aulas de Educação Física, repetindo os exercícios de lateralidade e posição já treinados.

Especificamente para a diferenciação da posição relativa dos seis pontos do sistema Braille, pode-se trabalhar com arcos, colocados na mesma disposição dos pontos na sela, fazendo com que a criança passe por todos os arcos. Inicialmente, em cada passagem, o professor deve informar à criança que posição relativa ela ocupa, destacando os conceitos que se deseja reforçar. Por exemplo: caso o aluno esteja posicionado no arco o professor informa sua posição relativa e poderá também relacioná-la com o alfabeto: “você está ocupando a posição do ponto em cima, à esquerda; este ponto representa a letra A” e assim por diante. Posteriormente, a criança, sem qualquer ajuda, deverá ser capaz de informar sua posição relativa dentro da cela.

A preocupação do professor com a localização do aluno, quanto à posição do seu corpo no espaço, permeará toda a prática da movimentação e orientação dos alunos.

A criança cega sente-se segura quando domina o ambiente em que se encontra e sabe onde estão os pontos de referência para a sua movimentação.

Percebe-se que esse domínio reflete-se, com sucesso, na sua alfabetização, quando a criança é capaz de, facilmente, identificar os limites da cela e de localizar os pontos da mesma, quando a professora a solicita.

Neste sentido actividades corporais adequadas, desenvolvidas desde a tenra idade, propostas com o intuito de assegurar à criança cega o completo domínio de sua lateralidade e de sua noção espacial, permitindo-lhe uma comunicação precisa com as pessoas que a cercam, não só facilitam sua psicomotricidade bem como sua alfabetização.


CONCLUSÃO

Após essa análise, onde se verificou o comportamento da criança cega em relação ao processo de iniciação de sua alfabetização, podemos concluir que ela é capaz de se alfabetizar num período de tempo similar ao da criança vidente, desde que receba, desde tenra idade, estimulação essencial voltada para a valorização de seus sentidos remanescentes e de sua psicomotricidade.

Percebe-se que as potencialidades motoras, táteis, auditivas e olfativas estão intactas, porém, necessitam ser despertadas e trabalhadas a fim de evitar defasagens no comportamento cognitivo e psicomotor da criança cega, se comparada a uma outra, sem deficiência, de mesma idade.

Depreende-se, também, que a família exerce um papel fundamental no desenvolvimento adequado da criança cega, devendo, portanto, ser orientada e informada a respeito de suas possibilidades e dificuldades, evitando comportamentos superprotetores.

Um trabalho de motricidade bem feito, eliminando os problemas básicos de locomoção e de lateralidade, surte efeito positivo na alfabetização desta criança, que é feita por meio do sistema Braille, código que exige memorização, atenção e tato aguçados.

Sendo um trabalho manual minucioso, a escrita em Braille é, logicamente, mais lenta do que a escrita normal.É necessária grande habilidade psicomotora para minimizar essa diferença de ritmo quando a criança cega tenta acompanhar um ditado, por exemplo.

As actividade físicas podem e devem ser direcionadas para um caminho capaz de facilitar a alfabetização da criança cega que depende muito de movimentos bem coordenados, inicialmente de seu corpo e, posteriormente, de suas mãos e dedos, para que possa obter sucesso em sua leitura e escrita.

Exercícios físicos criados com base nas posições utilizadas na escrita do código Braille são de grande valia para exemplificar concretamente a representação das posições relativas dos pontos na cela Braille.

Uma orientação da actividade física voltada para as reais necessidades da criança cega e integrada com as especificidades de sua alfabetização, além de facilitarem o processo podem vir a fortalecer sua auto-estima através do sucesso escolar desta fase de sua vida, proporcionado-lhe melhores oportunidades no seu processo educacional.

As actividades corporais merecem lugar de destaque na educação dos deficientes visuais, já que eles podem vir a se tornar naturalmente sedentários, devido a sua deficiência. Porém, ao serem estimulados a um trabalho corporal consciente e que lhes transmita segurança em sua execução, demonstram satisfação e tiram, sem dúvida, enorme proveito dessas actividades para sua vida, tanto no campo educacional, como também no social.

FIM

 


NOTAS

1. Equilíbrio Estático - aquele obtido sem movimento, dinâmico - obtido em movimento.
2. Espaço de tempo que a criança deixa de exercitar-se por um impedimento de qualquer ordem.
3. Amarelinha: brincadeira infantil onde são desenhados quadrados numerados no chão, por onde a criança deve pular com um pé só ou com os dois, após lançar uma pedra que determina a posição que deve ser alcançada.


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Lúcia Maria Filgueiras da Silva Monteiro é mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Instituto Benjamin Constant (IBC).
Fonte: Revista Benjamim Constant, Dez. 2004

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11.Jun.2012
publicado por MJA