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 Sobre a Deficiência Visual

 

Ulisses

James Joyce

-excerto-

O Cego - Karl Hofer, 1938
O Cego - Karl Hofer, 1938

 

Tac. Tac. Tac. Tac. Tac.

[...]

Um rapazito cego parara a bater na beira do passeio com a sua bengala delgada. Nenhum eléctrico à vista. Quer atravessar.

- Quer atravessar? - perguntou o Sr. Bloom.

O rapazito cego não respondeu. A sua cara murada franziu-se debilmente. Moveu a cabeça indecisa.

- Você está em Dawson Street - disse o Sr. Bloom. - Molesworth Street é em frente. Quer atravessar? O caminho está livre.

A bengala moveu-se trémula para a esquerda. O olhar do Sr. Bloom seguiu-lhe o percurso e viu de novo a carrinha da tinturaria parada em frente do Drago. Onde vi o seu cabelo com brilhantina precisamente quando ia. Cavalo cabisbaixo. Condutor no John Long. A matar a sede.

- Está ali uma carrinha - disse o Sr. Bloom - , mas está parada.

Eu ajudo-o a atravessar. Quer ir para Molesworth Street?

- Sim - respondeu o rapazito. - Para South Frederick Street.

- Venha - disse o Sr. Bloom.

Tocou o ombro magro delicadamente: depois tomou a flácida mão vidente para a guiar em frente.

Dizer-lhe qualquer coisa. Melhor não se armar em condescendente.

Eles desconfiam do que se lhes diz. Faz uma observação trivial: - Não há meio de chover.

Nada de resposta.

Nódoas no casaco. Baba-se com a comida, suponho. Sabores todos diferentes para ele. Tem de ser alimentado à colher primeiro. Como a mão de uma criança a sua mão. Como era a de Milly. Sensível.

Ajuizando-me ouso dizer pela minha mão. Pergunto-me se terá um nome. Carrinha. Mantenhamos a sua bengala afastada das patas do cavalo escravo exausto a bater a sua soneca. Assim está bem. Afastada. Por trás de um touro: pela frente de um cavalo.

- Obrigado, senhor.

Sabe que sou um homem. Voz.

- Está bem assim? Primeira à esquerda.

O rapazito cego bateu na beira do passeio e seguiu o seu caminho, voltando a tirar a bengala, tacteando de novo.

O Sr. Bloom caminhou atrás dos pés sem olhos, um fato de corte anódino de tweed espinhado. Pobre moço! Como raio é que ele soube que aquela carrinha estava ali? Deve tê-la sentido. Vêem coisas na testa talvez. Uma espécie de sentido de volume. Peso. Senti-lo-ia se algo fosse removido? Sentiria um vazio. Uma ideia esquisita de Dublin deve ele fazer, a bater o seu caminho em torno pelas pedras. Conseguiria meter a direito se não tivesse aquela bengala? Cara piedosa e exânime como um fulano que vai para padre.

Penrose ! Era como se chamava aquele tipo.

Vejam só quantas coisas eles conseguem aprender a fazer. Ler com os dedos. Afinar pianos. E nós ficamos surpreendidos por eles terem cérebro. Porque pensamos que uma pessoa deformada ou corcunda é esperta se diz algo que nós poderíamos dizer. É claro que os outros sentidos estão mais. Bordar. Entrançar cestos. As pessoas deveriam ajudar. Poderia comprar um cesto de verga no aniversário da Molly. Odeia costurar. Podia ficar contrariada. Chamam-lhes homens das trevas.

O sentido do olfacto deve ser mais forte também. Cheiros de todos os lados reúnem-se em molho. Cada pessoa também. Depois a Primavera, o Verão: cheiros. Sabores. Dizem que não se pode provar vinhos com os olhos fechados ou uma constipação na cabeça. Também fumar no escuro dizem que não dá prazer.

E com uma mulher, por exemplo. Mais impudente não ver. Aquela rapariga que passa o Instituto Stewart, cabeça levantada. Olha para mim. Tenho-as todas em cima. Deve ser estranho não a ver. Uma espécie de forma no olho da sua mente. A temperatura da voz quando ele a toca com os dedos deve quase ver as linhas, as curvas. As suas mãos no cabelo dela, por exemplo. Digamos que era preto por exemplo. Bom.

Nós chamamos-lhe preto. Depois a passar pela pele branca dela. Sensação táctil diferente talvez. Sensação de branco.

Correios. Tenho de responder. Que canseira hoje. Enviar-lhe um vale postal de dois xelins, meia coroa. Aceite o meu pequeno presente. Papelaria mesmo aqui também. Espera. Pensa bem nisso.

Com um dedo delicado palpou muito lentamente o cabelo penteado para trás por cima das orelhas. De novo. Fibras de fina fina palha. Depois delicadamente o seu dedo palpou a pele da sua face direita. Cabelo pubescente ali também. Não suave o suficiente. A barriga é o mais suave. Ninguém em volta. Ali vai ele a entrar na Frederick Street. Talvez para o piano da academia de dança de Levenston. Podia estar a ajustar os meus suspensórios.

Ao passar diante do bar de Doran fez deslizar a mão entre o colete e as calças e, afastando delicadamente a camisa, palpou uma prega flácida da sua barriga. Mas eu sei que é amarelo-esbranquiçada. Quero experimentar no escuro para ver.

Retirou a mão e compôs a roupa.

Pobre fulano! Quase um miúdo. Terrível. Realmente terrível. Que sonhos pode ele ter, se não vê? A vida um sonho para ele. Onde está a justiça de ter nascido assim?

[...]

Tac. Tac. Tac. Tac.

[...]

Tac cego caminhava a tactear pelo tac a beira do passeio a tactear, tac a tac.

FIM

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James Joyce - fotografia

James Joyce (02Fev1882 - 13Jan1941)
começou a escrever esta obra em 1914, recorrendo às três armas que dizia restarem-lhe, «o silêncio, o desterro e a subtileza».

'Ulisses' é um romance de referências homéricas, que recria um dia de Dublin, a quinta-feira de 16 de Junho de 1904, o mesmo em que Joyce conheceu Nora Barnacle, a jovem que viria a ser sua mulher. Nesse único dia e na madrugada que se lhe seguiu, cruzam-se as vidas de pessoas que deambulam, conversam, tecem intrigas amorosas, viajam, sonham, bebem e filosofam, sendo a maior parte das situações construídas em torno de três personagens. A principal é Leopold Bloom, um modesto angariador de publicidade, homem traído pela mulher, Molly, e, de modo geral, o contrário do heróico Ulisses de Homero.  in Relógio d'Água

«Mais do que a obra de um só homem, Ulisses parece de muitas gerações (…). A delicada música da sua prosa é incomparável.» J. L. Borges, "James Joyce", 1937 . 

 

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excerto de
Título: Ulisses
Título original: Ulysses (1922)
Autor: James Joyce
Tradução: Jorge Vaz de Carvalho
Editora: Relógio de Agua

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16.Jan.2014
Publicado por MJA