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-excerto-

O Cego - Karl Hofer,
1938
Tac. Tac. Tac. Tac. Tac.
[...]
Um rapazito cego parara a bater na beira do passeio com a sua bengala delgada.
Nenhum eléctrico à vista. Quer atravessar.
- Quer atravessar? - perguntou o Sr. Bloom.
O rapazito cego não respondeu. A sua cara murada franziu-se debilmente. Moveu a
cabeça indecisa.
- Você está em Dawson Street - disse o Sr. Bloom. - Molesworth Street é em
frente. Quer atravessar? O caminho está livre.
A bengala moveu-se trémula para a esquerda. O olhar do Sr. Bloom
seguiu-lhe o percurso e viu de novo a carrinha da tinturaria parada em
frente do Drago. Onde vi o seu cabelo com brilhantina precisamente
quando ia. Cavalo cabisbaixo. Condutor no John Long. A matar a sede.
- Está ali uma carrinha - disse o Sr. Bloom - , mas está parada.
Eu ajudo-o a atravessar. Quer ir para Molesworth Street?
- Sim - respondeu o rapazito. - Para South Frederick Street.
- Venha - disse o Sr. Bloom.
Tocou o ombro magro delicadamente: depois tomou a
flácida mão vidente para a guiar em frente.
Dizer-lhe qualquer coisa. Melhor não se armar em condescendente.
Eles desconfiam do que se lhes diz. Faz uma observação trivial:
- Não há meio de chover.
Nada de resposta.
Nódoas no casaco. Baba-se com a comida, suponho. Sabores todos
diferentes para ele. Tem de ser alimentado à colher primeiro. Como a
mão de uma criança a sua mão. Como era a de Milly. Sensível.
Ajuizando-me ouso dizer pela minha mão. Pergunto-me se terá um nome. Carrinha.
Mantenhamos a sua bengala afastada das patas do cavalo
escravo exausto a bater a sua soneca. Assim está bem. Afastada. Por trás
de um touro: pela frente de um cavalo.
- Obrigado, senhor.
Sabe que sou um homem. Voz.
- Está bem assim? Primeira à esquerda.
O rapazito cego bateu na beira do passeio e seguiu o seu caminho,
voltando a tirar a bengala, tacteando de novo.
O Sr. Bloom caminhou atrás dos pés sem olhos, um fato de corte
anódino de tweed espinhado. Pobre moço! Como raio é que ele soube
que aquela carrinha estava ali? Deve tê-la sentido. Vêem coisas na testa
talvez. Uma espécie de sentido de volume. Peso. Senti-lo-ia se algo
fosse removido? Sentiria um vazio. Uma ideia esquisita de Dublin deve
ele fazer, a bater o seu caminho em torno pelas pedras. Conseguiria
meter a direito se não tivesse aquela bengala? Cara piedosa e exânime
como um fulano que vai para padre.
Penrose ! Era como se chamava aquele tipo.
Vejam só quantas coisas eles conseguem aprender a fazer. Ler com os
dedos. Afinar pianos. E nós ficamos surpreendidos por eles terem cérebro. Porque
pensamos que uma pessoa deformada ou corcunda é esperta se diz algo que nós
poderíamos dizer. É claro que os outros sentidos
estão mais. Bordar. Entrançar cestos. As pessoas deveriam ajudar. Poderia comprar um cesto de verga no aniversário da Molly. Odeia costurar. Podia
ficar contrariada. Chamam-lhes homens das trevas.
O sentido do olfacto deve ser mais forte também. Cheiros de todos os
lados reúnem-se em molho. Cada pessoa também. Depois a Primavera,
o Verão: cheiros. Sabores. Dizem que não se pode provar vinhos com os
olhos fechados ou uma constipação na cabeça. Também fumar no escuro dizem que
não dá prazer.
E com uma mulher, por exemplo. Mais impudente não ver. Aquela
rapariga que passa o Instituto Stewart, cabeça levantada. Olha para
mim. Tenho-as todas em cima. Deve ser estranho não a ver. Uma espécie de forma
no olho da sua mente. A temperatura da voz quando ele a
toca com os dedos deve quase ver as linhas, as curvas. As suas mãos no
cabelo dela, por exemplo. Digamos que era preto por exemplo. Bom.
Nós chamamos-lhe preto. Depois a passar pela pele branca dela. Sensação táctil
diferente talvez. Sensação de branco.
Correios. Tenho de responder. Que canseira hoje. Enviar-lhe um vale
postal de dois xelins, meia coroa. Aceite o meu pequeno presente. Papelaria
mesmo aqui também. Espera. Pensa bem nisso.
Com um dedo delicado palpou muito lentamente o cabelo penteado
para trás por cima das orelhas. De novo. Fibras de fina fina palha. Depois
delicadamente o seu dedo palpou a pele da sua face direita. Cabelo
pubescente ali também. Não suave o suficiente. A barriga é o mais suave. Ninguém
em volta. Ali vai ele a entrar na Frederick Street. Talvez
para o piano da academia de dança de Levenston. Podia estar a ajustar
os meus suspensórios.
Ao passar diante do bar de Doran fez deslizar a mão entre o colete e
as calças e, afastando delicadamente a camisa, palpou uma prega flácida
da sua barriga. Mas eu sei que é amarelo-esbranquiçada. Quero experimentar no
escuro para ver.
Retirou a mão e compôs a roupa.
Pobre fulano! Quase um miúdo. Terrível. Realmente terrível. Que
sonhos pode ele ter, se não vê? A vida um sonho para ele. Onde está a
justiça de ter nascido assim?
[...]
Tac. Tac. Tac. Tac.
[...]
Tac cego caminhava a tactear pelo tac a beira do passeio a tactear, tac a
tac.
FIM
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James
Joyce (02Fev1882 - 13Jan1941)
começou a escrever esta obra em 1914, recorrendo às três armas que dizia restarem-lhe, «o silêncio, o desterro e a subtileza».
'Ulisses' é um romance de
referências homéricas, que recria um dia de Dublin, a quinta-feira de 16 de Junho de 1904, o mesmo em que Joyce conheceu Nora Barnacle, a jovem que viria a ser sua
mulher.
Nesse único dia e na madrugada que se lhe seguiu, cruzam-se as vidas de pessoas que deambulam, conversam, tecem intrigas amorosas, viajam, sonham, bebem e filosofam,
sendo a maior parte das situações construídas em torno de três personagens. A principal é Leopold Bloom, um modesto angariador de publicidade, homem traído pela mulher,
Molly, e, de modo geral, o contrário do heróico Ulisses de Homero.
in Relógio
d'Água
«Mais do que a obra de um só homem, Ulisses parece de muitas gerações
(…). A delicada música da sua prosa é incomparável.» J. L. Borges, "James Joyce", 1937
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excerto de
Título: Ulisses
Título original: Ulysses (1922)
Autor:
James Joyce Tradução:
Jorge Vaz de Carvalho
Editora: Relógio de Agua
16.Jan.2014
Publicado por
MJA
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