|
-excerto-

«Della Scoltura Si, Della Pittura No»
MAL DE UNS...
A senhora Estefânia
Fargés era uma velha dama cuidadosa, esperta, curiosa como uma gata, e que
segundo as palavras dos que a conheciam, “tinha tido seus desgostos.”
Casada cedo,
tratara sucessivamente do marido, morto tuberculoso, depois de uma filha, morta
aos vinte anos. Um dos filhos, mal sucedido nos negócios, expatriara-se, e fora
assassinado na Califórnia, numa rixa entre pesquisadores de ouro. Enfim, o
neto, que a ajudava a manter-se com o seu trabalho, desaparecera na Champagne
e, aos sessenta anos, achava-se D. Estefânia sozinha, e com rendimentos muito
escassos.Vivia como reclusa
nos seus aposentos de três peças, situado em um quarteirão populoso de Nice, e
foi lá que João bateu.Abriu ela e gritou
alegre ao vê-lo:
— Tu! E tua mulher?
Mas imediatamente,
ao ar acabrunhado do moço, àquele aspecto “mutilado”, diríeis, a tal ponto a
provação lhe amputara todo o ardor, ela adivinhou um drama e introduziu-o na
humilde sala de jantar, onde falsas faianças decoravam ingenuamente paredes
indecoráveis...Participou-lhe João
sua desgraça muito sucintamente. Da senhorita Deléris disse apenas:”Restituí-lhe a palavra” e desconversou claramente quando a velha dama lhe fez perguntas
sobre “o que dissera ela ao saber disso”.
Escutava-o, as
mãozinhas enrugadas descansando nos joelhos, e enchiam-lhe os olhos de lágrimas
sinceras e pouco abundantes, como as têm os velhos. Procurava, sem as achar,
palavras de consolação, e nem ousava, diante daquele grande desastre, tirar do
bufete o licor de tangerina, reservado às visitas, e que usava com parcimônia.
Entretanto, era da
desgraça de João que ia brotar a sua prosperidade.
De volta à vila,
sentira Fargés que não teria coragem de viver ali sozinho com uma criada, que
não o poderia guiar. Assustou-o a espantosa solidão, o desespero sem alívio que
viria cotidianamente visitá-lo na vila deserta. No meio da perturbação que o
assaltara, pensara na velha parenta.
Assim, quando o
moço lhe perguntou se consentia em deixar o pequeno aposento sombrio para ir
dirigir a Vila Azul, onde Devota, a jovem criada, mantinha cuidadosamente a desordem,
D. Estefânia empalideceu, corou, sorriu, e, finalmente, aceitou, exultante!
A Vila Azul,
herança dos pais de João, representava para a pobre mulher, o equivalente de
principesco domínio.Nada tinha a vila,
no entanto, de magnificente. Sita na falda do Monte Boron, que domina a Baía
dos Anjos, tinha o teto de telhas envernizadas de azul, o que lhe justificava o
nome; toda branca, meio mascarada, do lado da estrada, por plantas
trepadeiras, não se revelava, clara, nua, duma graça italiana, senão do lado do
jardim, que descia em um caos de verdura e de rochedos até ao mar.
D. Estefânia entrou
na vila tomada de respeito. Durante três dias, sob pretexto de se orientar,
viu-a João a aforar por todas as peças, abrindo armários, soltando cacarejos de
admiração, comovida, encantada, deslumbrada!
João mobiliara-a
com amor, aquela Vila Azul, onde ele e Dinisa deviam passar tão ternos dias!
Foi com reverência
que Estefânia pisou o mosaico negro e branco da sala de jantar, severa nos
móveis de velho carvalho maciço; apreciou menos, o salão Diretório, onde errava
uma espécie de negligência feliz que a fez sacudir a cabeça, reprovando:
almofadas demais naquela sala!
No primeiro andar,
hesitou na escolha entre um quarto amarelo, mobiliado de acaju, e outro, pequenino,
vizinho daquele, forrado de pano de Jouy, cujo assunto simbólico era adornado
de cartelas explicativas: “O Amor faz passar o Tempo”, com a réplica: “O Tempo
faz passar o Amor”.Achou Estefânia que
estes ternos conselhos eram inúteis talvez para ela, e escolheu o virtuoso acaju.
Teve enfim a
alegria de comunicar a suas amigas “que teria muita satisfação em recebê-las”. E foi na vila um desfile de gente velha: soltavam exclamações de “conhecedores”
diante da profundeza dos armários, do asseio da cozinha; sopesavam o tecido das
cortinas e embasbacavam ante os quadros que tinham... tão belas molduras.
A João não
inquietavam essas visitas. Estefânia mal o via. Vivia encerrado no quarto,
muito vasto, luminoso, mais iluminado ainda por um imenso tapete branco, macio
como pele de urso polar. Ou refugiava-se no atelier, contíguo à vila, e cuja
janela, rasgada um pouco acima do comum, emoldurava apenas o azul do mar. Dentro em pouco, não veria mais nada daquilo! Dentro em pouco, aquele atelier
de nudez grega, que o sol enchia ao meio dia de um raio de âmbar, seria para ele
como um subterrâneo! E, desesperado, saía, estudava o jardim, o panorama, os
jogos do céu e das águas, a fim de nada esquecer.
Descia muita vez à
praia por um trilho tortuoso, áspero e delicioso, todo florido de gerânios
róseos. De espaço a espaço, um estreito terraço, onde se erguia uma grande
árvore, ou se ocultava um banco, um canto encantador, onde sonhara outrora. Revia a infância feliz, entre o pai e a mãe, ternamente unidos. Uma tarde
trouxera seu pai uma cópia muito bela da
"Ronda da Noite" de Rembrandt, e
dificilmente obtivera a criança o direito de olhá-la. “Vê-la-ás quando estiver
encaixilhada”, dissera o pai, que pretendia colocar o quadro na sala de
jantar.Ora, nessa noite,
João não pôde dormir. Conservava estranha recordação do quadro, entrevisto à
mesa à luz do ilustre. Levantou-se muito cedo e, introduzindo-se furtivamente
no gabinete do pai, apoderou-se do rolo e correu ao jardim, para estar só.
Era no inverno e a
aurora subia rósea, tépida, polvilhada de orvalho. Sem ruído ganhou o estreito
trilho, alcançou o terraço onde três palmeiras abrigavam um banco sob a trama
das enormes palmas entreveradas, e ali, tranqüilo, seguro de não ser perturbado,
desfez o rolo.E a sombra genial
espalhada sobre o grupo de Rembrandt, o brilho admirável da túnica amarela,
aquela vida ardente e contida, entusiasmaram-no. Foi nessa manhã que ele soube
que era pintor. Nascera naquela hora a sua vida de artista, enquanto subia ao
céu, translúcida, a aurora de inverno.
Acompanhava-o D. Estefânia algumas vezes até aos rochedos da praia. Quando o mar era forte,
era perigoso aventurar-se ali. Um homem teria sido facilmente arrebatado pelas
vagas; sentada um pouco mais acima, tecendo mantas para o primo João, tentava
pregar-lhe moral. Interrompia-a, porém, ele, pedindo-lhe somente: “Fale-me de
seus desgostos”.Nesse assunto, era
a pobre mulher inesgotável. Decerto, na vida corrente, testemunhava ela lamentável
mesquinharia e talvez João, nesse ponto, houvesse adquirido não uma governante,
mas uma despótica soberana. Mas não esquecia ele jamais suas provações, e
achava justo que ao menos aproveitasse a alguém a catástrofe que o separava do
resto dos humanos...A Estefânia a
aproveitava, certamente. A boa dama engordava, caíam-lhe as espáduas para trás
agora; trazia garbosamente um vestido de interior novo; dia a dia sentia ela
que se tornava proprietária.Contudo, perguntava
muitas vezes consigo como consolar seu jovem primo. Depois sacudia a cabeça,
achando que o moço parecia, em suma, aceitar muito bem o desastre. Inclinava-se
a pensar que talvez nem amasse a noiva, e que não tinha saudades dela...
Quanto à sua arte,
nem um segundo imaginava Estefânia que o moço pudesse ter saudades dela como de
um filho morto. Um talento? É tão pouca coisa, para o comum dos mortais! Não
vemos todos os dias, afinal, gente que muda de profissão?
Porque não faria o
artista o mesmo?
Ai! Uma arte é um ser
que vive sua vida própria e febril em outro ser; que quer agir, dominar; que
lhe impregnou tão bem a medula, o sangue, com a sua sedução terrível, que, para
arrancar de si, seria preciso arrancar o próprio coração com todas as raízes!
Para que dizer isto
a Estefânia? Sentia na prima uma incompreensão tão profunda e tão ingênua, que
diante dela fingia uma calma inerte; essa placidez enganava a velha dama. Mas,
quando estava só no atelier, apoderavam-se dele acessos de dor desesperada,
revoltas contra o destino, surdos desejos de correr a Londres. Agonizava no
gênio e no coração mutilados; constringia-o a derrota da sua mocidade, roída
nas asas. Tinha esperado tanto da vida, sentindo-se com força para domar a
sorte! Lá, em Roma, censuravam-no por ter, diziam, a alma de autócrata,
instintos de grande senhor, que chamava a felicidade com um assobio, como aos
seus cães. Ah! Sacara letras sobre a vida... e elas tinham sido protestadas!
Então soluçava, sem
lágrimas, sucumbindo ao assalto de recordações corrosivas e Estefânia não
reconheceria naquele homem desorientado, o grande rapaz melancólico, que todos
os dias se sentava em frente dela na sala de jantar, dando costas àquela “Ronda
da noite”, de Rembrandt, que ela quisera lavar um dia, porque os quadros negros
“parecem sujos”, dizia.Dia a dia
obscurecia-se a vista de João. Padecia, às vezes, longas horas, já afogado em
uma sombra sem luz. A leitura, o desenho, tornavam-se impossíveis, a paisagem
radiosa ora enlutava-se sem razão, ora se deformava de maneira grotesca e trágica. Chegava às vezes a fechar os olhos, a tornar-se cego... antes do tempo.
Num dia em que se
achava assim, estremeceu.No salão, alguém
tocava piano.Não gostava quase
de música. Outrora seu espírito — sempre fremente de projetos maravilhosos,
cheio de visões de arte — não se interessava pelas graças delicadas da
harmonia. Naquele dia, porém, pareceu-lhe a música a linguagem dos deuses... Palpitavam e soluçava na melodia pungente a saudade desesperada de felicidades
impossíveis, o lirismo exasperado do sofrimento: aquele scherzo de Chopin lhe fez
subirem lágrimas aos olhos, e essas lágrimas caíram sobre o coração árido como
chuva benfazeja.A música
distendeu-lhe o espírito. Ah! Quem tocava assim? Era possível que as mãos de
Estefânia, tão hábeis em lustrar e tecer soubesse encadear notas com aquela
virtuosidade? Intrigado, entrou no salão.
Lá estava uma moça,
trajando simples vestido cinzento, e era quem tocava diante de D. Estefânia. Voltou a cabeça ouvindo entrar o moço, que lhe estendeu as mãos, dizendo
vivamente:
— Maria Chaslier, não é?
Eram os Chaslier
amigos da família. Maria brincara com ele outrora, no jardim da Vila Azul, e
em sua casa, em Monte Cario. Tinha vinte e dois anos, aparência de coragem e de
boa saúde. Grande, forte, pesada, mesmo; os longos cabelos lisos e negros
enrolavam-se na cabeça em voltas sem elegância: Luzia o rosto franco, colorido,
ignorante do pó de arroz; notou-lhe Fargés os dentes largos e sãos.
— Como você toca bem,
Maria! Eu, um profano,
eu, que fazia profissão
de desdenhar “o mais
custoso dos ruídos”,
estou encantado. Quer
continuar este trecho?
Acedeu ela de boa
vontade, enquanto D. Estefânia lhe contava que Maria possuía todas as qualidades,
e, atualmente, se devotava a cuidar da avó enferma, paralítica há muitos anos.
Era simpática,
afinal, porque se adivinhava que era boa. Não lhe pedissem à execução,
correta até à secura, o colorido apaixonado que comove as multidões, mas a
nitidez absoluta parecia triunfar facilmente de todos os obstáculos do
compasso e da dedilhação, e, durante uma hora, escutou-a João com prazer.
Observava-o D. Estefânia.
Quando Maria falou
em retirar-se, ofereceu-se para acompanhá-la; tão ocupada estava em conversar
com a moça, que nem viu o carteiro trazer correspondência à Vila Azul.
De pé junto ao
portão, onde acabava de se despedir de Maria, tomou João as cartas das mãos do
pai Sariguet, e empalideceu terrivelmente ao reconhecer a letra de Deléris num
grande sobrescrito cor de marfim.— Então, senhor
João, que há? Interrogou o pai Sariguet repondo sobre os ombros a correia que
suportava a caixa.— Nada, nada,
respondeu o moço, que sentia o carteiro devorado de curiosidade, e não queria
dizer coisa alguma.Deixando-o plantado
diante da porta, Fargés deu de calcanhares e subiu rapidamente ao seu quarto.
Cada batimento do
coração parecia repetir: “Dinisa! Dinisa!” e compreendia agora que a arte
morta, e mesmo a cegueira, eram menos dolorosas que a perda da moça de rosto
branco, alvejando a sombra dos bandos ondulados. Que lhe diriam naquela carta?
Que palavras de esperança encerraria ela? Contra toda a esperança, esperava boas
notícias. Talvez Dinisa soubesse e quisesse vir. Mas teria, escrito ela mesma
nesse caso!
De pé diante da janela, abria a carta e lia avidamente:
-
“Londres, junho de 19... “Caro Sr. Fargés. “Que o não surpreenda o receber carta minha. “Sinto que
lhe devo notícias e quero reiterar-lhe minha sincera admiração pelo modo
heróico por que procedeu.”
João deixou cair a
missiva. Era então apenas isso? Não queria louvores daquele homem. Mas não,
devia haver ali outra coisa, para justificar quatro páginas cerradas. Tornou a pegar
na carta, saltou por cima das afirmações de estima, das escusas previstas: “Você
não pode compreender, eu sou pai, etc. e caiu enfim sobre estas palavras:
-
“O bilhete que
escreveu à minha filha era necessário, em sua concisão brutal, para cortar
todos os liames, mas compreendi que seria iníquo que Dinisa, por esse fato,
deixasse de estimá-lo. Expliquei-lhe, pois que você tinha, desde o princípio,
agido com perfeita honestidade, pensando verdadeiramente que era livre para se
comprometer. E tantas vezes lhe tenho repetido: “Estimo João Fargés muito mais
agora que dantes, ele deu prova de heroísmo aceitando o cumprimento do dever
sem atração, em lugar do casamento de dinheiro e de amor que podia realizar”;
tanto tenho dito à minha filha que devia lamentá-lo e não o condenar, que,
posso afirmar-lhe, ela não experimenta a seu respeito nenhum sentimento de desestima.
-
“Devia a mim mesmo,
devia-lho ao senhor, igualmente, a obrigação de criar nela este estado de
espírito.”
João ocultara o
rosto nas mãos. Parecia-lhe que lhe haviam tirado de repente de cima dos ombros
uma parte da sua dor. A idéia do desprezo de Dinisa torturava-o mais que
todas as outras considerações; e, cedendo ao excesso de desespero que lhe
causava esse pensamento, mais de uma vez escrevera à moça, revelando-lhe tudo,
mas a carta jamais fora enviada: era ainda pensando nesse desprezo, vindo da
pessoa querida, que ele descia às vezes até à beira do mar, quando as vagas
eram muito fortes, com a secreta esperança de ser arrebatado...
Envergonhava-se
depois dessa fraqueza, voltava à vila, retomava o fardo cruel de miséria e
tratava de subjugar a dor, pensando em Estefânia, sempre atarefada e esperta,
corajosa, apesar de tantos lutos e lágrimas.
Agora já não teria
aquele ferro candente sobre o coração; durante um segundo teve a ilusão de que
tudo o mais se apagaria facilmente, pois que estava certo de não ser desprezado
por ela. Mas, não era senão uma ilusão! Parece que todas as mágoas são como as
ervas daninhas: quando se arranca uma, crescem as outras mais livres e mais
ardentes!
E, pela primeira
vez, desde que chegara à Vila Azul, conheceu João alguns instantes de trégua.
Enquanto isso, D. Estefânia, passando o braço sob o de Maria, conversava com a moça.
Contava-lhe
miudamente a vida do primo. Pouco sabia sobre a noiva misteriosa, “uma peça”
que não teria insistido muito para casar com ele. Guiou depois a conversa para
assuntos gerais, e disse enfim como por demais, piscando os olhinhos
maliciosos:
— E você, Maria, sempre
com suas idéias de
religião?
Porque não era
mistério para ninguém que ela falava muitas vezes em professar.
— Já fez os votos? Perguntou
a velha caçoando. Sem sequer parecer que notara o ar de chacota da velha dama,
respondeu a moça com tranqüila gravidade:
— Não.
— Ora, replicou
Estefânia, você vive quase como uma religiosa, tratando de sua avó como trata!
— Disse muitas
vezes o padre Anselmo, meu confessor, e eu o creio, disse Maria com doçura.
— E não gostaria depois
de se tornar o modelo
das esposas cristãs?
— São tão frívolos os
moços de hoje! Respondeu
Maria com mais
vivacidade. A vida de
minhas amigas casadas
parece-me tão vã, tão
vazia... Aspirava
maiores deveres...
Acha-me talvez vaidosa?
— Não, Maria, mas
penso que nem todos os moços se assemelham...
Há criaturas que
pediriam à vida conjugai
excepcional
devotamento...D. Estefânia sentiu
estremecer levemente o braço da moça. Compreendera a alusão velada da velha
senhora, e batiam-lhe as pálpebras. Achando que já dissera que chegasse,
encadeou sem interrupção:
— Asseguro-lhe que minha
vida foi muito mais
triste que a das
religiosas. Mas aí está
o bonde, Maria; e posso
pedir-lhe um favor?
— Fale, disse
vivamente Maria.-— Não se esqueça
de vir muitas vezes distrair a tristeza de um pobre rapaz cego, abandonado pela
noiva.— Não o esquecerei,
disse a moça, lentamente, baixando os olhos.
Chegava o bonde,
rangendo horrivelmente. Pesada e ágil, bem equilibrada sobre os vastos pés
protegidos por calçado sem salto, subiu Maria, e D. Estefânia voltou à vila,
tendo mil pensamentos na cabeça:
— É tão devotada... exatamente o que ele necessita... e depois... já está habituada a tratar de
velhos... conhece-me...
não sairei da Vila
Azul...E, erguendo a
cabeça, olhou de longe a vila meio oculta entre as cortinas de folhagem,
envolvendo-a num olhar pacífico e altivo de proprietária antecipada.
Passaram os meses,
não passou a infelicidade de João, mas parecia que lhe tomara o sombrio e
amargo hábito. Contudo, um dia lá lhe entrava em casa, com duas cartas registradas,
todo aquele passado que ele se esforçava por sepultar. Uma das cartas vinha do
governo, que lhe propunha a venda, para o museu do Luxemburgo, do quadro da
"Moça da charpa", exposto no último Salão. Era a outra enviada por um americano
que oferecia considerável soma pelo retrato da senhorita Deléris.
Vender o retrato de
Dinisa! Mas, que podia fazer dele? Não no queria Deléris, esquivando-se de pôr
sob os olhos da filha uma recordação constante de João. Guardá-lo? Em
breves dias, nem o veria mais!
Pois bem, dava
preferência ao governo. Perdida para ele iria Dinisa para o Luxemburgo;
prosseguiria, sob os baldaquins oficiais, o sonho extasiado que lhe iluminava o
pálido rosto. Não o teria o americano.
Mas, ao enviar a
resposta, teve a impressão de que se erguia outra muralha entre ele e a moça;
entregando aquele retrato à multidão, parecia-lhe que repudiava o passado! E,
contudo, doce lhe era pensar que em falta do seu amor, dava a Dinisa a imortalidade!
E quando refloriram
as mimosas, no ano seguinte, não as viu o moço. Estava acabado. Para aquele
homem, inebriado de cor e de luz, não havia mais de ora em diante nem aurora
nem crepúsculo, mar azul nem rosas ardentes. Não havia mais que a noite.
E Dinisa? Que fazia
em Londres? Desposara já aquele lord Ferling a quem tinha preferido a João? Nem
queria mais perguntá-lo sequer consigo. Cingira o coração mutilado de uma
armadura de frieza, de impossibilidade, de ascetismo, mas por vezes, voltavam
os versos do poeta árabe a murmurar-lhe na alma heróica:
-
“Sonho ou
realidade? Eu vi, na noite azul,
“Uma deusa passar,
toda de luz vestida...”
E, pálido como um
supliciado sobre a roda, fechando os olhos, que se conservavam puros e transparentes,
João sonhava: “Lembra-se ela ao menos de que nos amamos?
”
FACE A FACE
Curta escala em Marselha. O Mistral varria a cidade com uma potência glacial que desanimava. Já no dia
seguinte resolveram prosseguir a viagem e fugir para Ajaccio. Todo mundo ficava
a bordo do iate; só Dinisa e Dolly, sua criada, desceram a terra, para ir à
Nossa Senhora da Guarda, prometendo voltar depois do almoço, pelas três horas.
Dinisa foi ao
célebre santuário, que parece palpitar sob tantas invocações ardentes
inscritas nos mármores de seus ex-votos. As doze e meia foi a um restaurante,
instalando-se, com a criada, no interior, se bem que o terraço ensolarado
oferecesse abrigo suficiente.Estudava Dolly, o
cardápio, e era homérico o debate entre seu conhecimento limitado do francês e
o nome dos pratos. Nunca pôde pronunciar
bouillabaisse, e a idéia de um
perdigoto deitado num canapé a fez rebentar de riso. Dinisa ria também, e,
afastando a cortina que mascarava a vista do mar, lançou um olhar sobre o
terraço.Pouca gente, com
aquele tempo hostil. Maquinalmente errava o olhar de Dinisa de mesa em mesa; de
repente ficou ela muito pálida, os olhos fixos, estupefata.
Não longe dela,
João almoçava. Não sozinho, mas com duas senhoras, uma das quais era a senhora
Bremont, sua tia.
Paralisada pela
surpresa, Dinisa deixou cair a cortina.
Depois que chegara
a Marselha quase nem pensara em João, muito absorvida pelas excursões e por
seus companheiros de viagem.Tornar a vê-lo
causava-lhe um abalo tanto mais violento, quanto era inesperado. E, gelada,
sentia aquela presença a sufocá-la numa emoção crescente. Por instinto,
prudentemente, levantou a seda da cortina e olhou de novo. Mas, imediatamente,
bateu-lhe forte o coração, verificando que um maciço de loendros lhe mascarava
uma parte da mesa, e, pensou imediatamente, que ali, invisível para ela, devia
estar à mulher de João...Sentiu apaixonado
desejo de conhecê-la antes de fugir daquele restaurante. Mas o criado, aproximando-se
de João e de suas parentas, pôs ostensivamente um prato no lugar onde devia
achar-se a senhora Fargés, o que indicava peremptoriamente que estava
desocupado. Ele não estava com a mulher. Além disso, nenhuma aliança brilhava
na mão esquerda, fina, longa, um pouco nervosa, como outrora.
Como outrora!
Sim, devia partir
imediatamente, não se arriscar a um encontro. Que diria ela? Que vergonha e que
angústia não padeceria! Que postura adotaria? Olhá-lo desdenhosamente? A menos
que súbitas lágrimas lhe não arrasassem os olhos, porque bem o sentia ela, mau
grado a aversão declarada... Amava-o sempre...
Amava-o, amava nele
aquela bela expressão altiva e terna, aquela mistura de ardor e de melancolia
que lhe tornavam o olhar tão cativante. Amava-o e odiava-o ao mesmo tempo, pela
amável alegria que mostrava naquele instante, curvado para as duas velhas
damas, rindo ao contar alguma coisa.
Então, era
descuidoso e feliz! Mas, enquanto vaga amargura afogava-lhe o coração, viu o
moço endireitar-se, e alhear-se da conversação das parentas; então lhe
desapareceu do rosto a alegria, extinguiu-se-lhe nos lábios o sorriso, e um ar
de desconsolo e de padecimento espalhou-se-lhe sobre os traços. Não seria
aquela sua expressão costumeira?
Parecia que certas
pregas de angústia lhe
estavam marcadas na
fronte e no canto da
boca. A afabilidade
precedente era apenas
fugitivo esforço para
mascarar o
desencantamento da alma?
Talvez tivesse sido na
verdade, como o dizia a
carta, constrangido
pelos acontecimentos.
Talvez não tivesse mais
conhecido a felicidade,
desde que se arrancara
de Dinisa. Havia coisas
que ela ainda não podia
compreender, dizia
Deléris, que sempre a
impelira, na verdade, a
perdoar sem se
aprofundar... Mas não
tinha ela, aí! Na
fraqueza do coração
amante, perdoado desde a
primeira hora?
A mão crispada
sobre a cortina meio erguida, pensava Dinisa todas estas coisas, e estremeceu
estupefata, ao ver a senhora Bremond tomar, deliberadamente, o prato do moço,
e... Cortar-lhe a carne.A surpresa, a
incompreensão, arrancou-lhe uma exclamação e Dolly, deixando o estudo do
cardápio, teve curiosidade de ver o que assim surpreendia sua ama. Erguendo por
sua vez a cortina, lançou um olhar para a mesa de Fargés, observou um instante
os gestos incertos do moço que começava a comer e disse, positiva:
— He is blind. (É
cego).— Cego? Repetiu
Dinisa como um eco.— Sim, replicou
Dolly com segurança, veja como
ele hesita para pegar no copo; tateia antes de
se apoderar dele. Agora lhe erram os dedos pela mesa à procura do pão. Olhe, o
criado fala-lhe, e ao responder-lhe
ele olha para o seu lado, mas não diretamente
para os olhos, como se costuma fazer...
Depois, examinando
a ama, disse:
— Miss Dinisa, não
se abale assim. Parece que vai desmaiar. Levante-se, vamos embora.
— Deixe-me,
deixe-me, disse. Dinisa, com uma espécie de vontade selvagem, que surpreendeu a
criada. Calou-se esta, não ousando insistir.
Então, repelindo o
prato, ficou Dinisa imóvel, olhos fixos nos movimentos de João, perguntando a
si mesma, numa ansiedade terrível o que se teria passado, e tremendo de medo de
adivinhar a verdade. Oh! Não, não, seu pai não teria feito isso!
Turbilhonavam-lhe
no cérebro os pensamentos. Esquecia-se de si mesma, a contemplar o moço, depois,
por instantes, impunha-se-lhe uma certeza: Está casado, isso veio-lhe depois. Mas, então, onde está sua mulher? Ah! Não podia ficar naquela incerteza.
Levantar-se? Ir
falar-lhe? E se se houvesse casado com outra? Como a acolheria?
Era possível que ela
fizesse isso?
Mas, era possível também
que ela o deixasse sair
sem saber... Sem lhe
dizer que o lamentava,
sem lhe dizer — mesmo
casado — que lhe
perdoava e que lhe
oferecia seu auxílio?
Porque, ah! Se
estava cego, era uma vez o seu talento, a sua arte. De que vivia
ele? Suas
rendas eram modestas. A menos que a mulher...
Enquanto divagava
assim, terminava o repasto de Fargés. Apresentara-lhe a tia uma fruta cuidadosamente
descascada, e ele quase virara o copo em um movimento de infantil desaso, cruel
de ver naquele grande rapaz elegante e grave.
Opressa, sem ouvir
as reflexões de Dolly, fechou Dinisa os olhos um instante. Quando os reabriu,
sobressaltou-se. João, de pé, dava o braço à velha dama, que o guiava, ainda
que ele parecesse conduzi-la; e afastaram-se da mesa.
Deixá-lo-ia partir?
Lívida, sacudida de
horror e de piedade, Dinisa ergueu-se bruscamente. Deu um passo para a saída,
justamente no momento em que a senhora Bremond voltava à sala para pôr o chapéu
diante de um espelho. Explodiu dupla exclamação:
— Você! Você! Balbuciou
a senhora Bremond. Depois, vendo a perturbação de Dinisa, acrescentou muito
depressa, ofegante:
— Você viu? Você sabe?
— Sim... Eu adivinho...
Ele está cego, não é?
— Ai! Sim... Mas você,
seu pai...— Meu pai morreu,
estou só aqui, e diga-me... Ah! Quero saber tudo, fale.
— Pois bem! Sim, é
preciso que você saiba tudo, exclamou a senhora Bremond, tomando-lhe o braço. João e a prima vão tomar o trem que os reconduzirá a Nice, mas eu só partirei à
noite, e vou dizer-lhe tudo, tudo. Se João mo censurar, eu lhe responderei... Não, na verdade, é você quem lhe vai responder por mim!
AÇÃO TEMERÁRIA
À emoção causada pela narrativa minuciosa da senhora Bremond,
sucedera uma vontade firme, inquebrantável, de ir até João, de lhe votar sua
fervente vida. Imediatamente, acompanhara a Nice a senhora Bremond, e, no dia
seguinte ao da chegada, já cedo, escrevia aquela carta, que selava o passado. Antes do meio dia, estaria na Vila Azul, perto do seu noivo.
Seu noivo... Dinisa
fechava os olhos, ao pronunciar estas palavras, abrindo de novo o coração a
deliciosas emoções de um amor enobrecido por apaixonada admiração. Ela podia
então ainda amar, conhecer a doçura de ser amada, de consolar, de proteger. O ser
querido que tinha padecido sem ela, não estaria mais só, talvez tornasse a
achar no seu coração uma pouca da felicidade de outrora. Amava-o agora com
diverso amor, amor múltiplo, como uma esposa, uma mãe, uma irmã, e quase tinha
medo da alegria muito violenta da sua reunião... Sim, era preferível, como lho
oferecera a senhora Bremond, que ela deixasse a boa senhora revelar devagarinho
ao sobrinho, que a noiva perdida tornava a ele para sempre.
Uma hora depois, a
senhora Bremond e Dinisa dirigiam-se, pois, para a Vila Azul. Vista de longe, o
teto de telhas envernizadas de azul confundia-se com o azul do céu; envolvia-a
a serenidade do firmamento matinal, que parecia insulá-la em uma quietação, uma
doçura sem limites. Enfim, alcançaram a grade. Bateram. Veio Devota abrir, e a
uma palavra da senhora Bremond, conduziu-as ao terraço.
— Quem está aí? Perguntou
do interior da casa a voz de João.
— A senhora
Bremond, respondeu a criada, sem mencionar a presença de Dinisa.
— Um minuto e sou
seu! Respondeu João, e o acento denunciava-lhe uma espécie de leve alegria. Imagine, acrescentou ele sem se mostrar ainda, que Estefânia está no mercado
das flores; estou só aqui.Muito pálida, o
coração aos trancos, sentou-se Dinisa à parte e viu aparecer João no alto da
escada que levava a casa. Apoiando-se ao corrimão, desceu os degraus sem muito
embaraço, e trazia o rosto claro, ardente, quase alegre. Surpreendida daquela
aparência, disse a senhora Bremond um tanto constrangida:
— Tens o ar iluminado!
Que te aconteceu?
— Uma coisa
deliciosa, uma coisa que me entusiasma, me transforma, torna a me dar a vida
do espírito — a única verdadeiramente invejável. Minha querida tia acabou,
beijando as mãos da senhora Bremond, a senhora vê diante de si um homem feliz!
Alongou-se comicamente
o rosto da senhora Bremond. Não, verdadeiramente, a “felicidade” do sobrinho
não lhe trazia prazer algum. Primeiro qual era a causa daquela mudança? Acaso
Maria...Mas o moço repisou
volúvel, afastando, num gesto habitual, a mecha castanha que lhe caía sobre a
fronte:
— Eu modelo, compreende?
Sim. Oh! Serei
eternamente reconhecido
à boa Estefânia, par ter
tido esta genial
inspiração. Esta manhã
ela um bloco de argila
diante de mim
dizendo-me: Pois que tu
acaricias Mistral todo o
tempo, deve conhecer de
cor a anatomia desse
gato. Experimenta
modelar, talvez isso te
divirta. A idéia,
confesso, seduziu-me
pouco. Mas tanto que
senti o barro sob os
dedos, enchi-me de
intensa alegria, a
alegria de criador, ao
dar-lhe forma
determinada, e, desde
manhã, invadido por um
fogo sagrado que não
reconhecia mais desde...
desde, palavra! aquela
manhã de meus doze anos,
em que compreendi que
seria pintor, eu
trabalho, trabalho...
Estou cansado, cansado e
encantado, porque me
parece que vou, talvez,
tornar a achar uma razão
de viver...Falava com
extraordinário ardor, como um homem que cai de um prolongado coma, no delírio. A faculdade criadora, até agora sem objeto, e que o minava, tornava a achar,
nesta nova arte, um meio de reviver. E na verdade, recordava-lhe isso seu desatinado
entusiasmo diante da Ronda da Noite de Rembrandt, aquele quadro que despertara
nele a vocação de pintor...O rosto da senhora
Bremond era curioso misto de contentamento e consternação. Não, na verdade.
Dizer que se vai
levar a um homem inesperada alegria, arrancá-lo ao desespero, transformar-lhe,
com uma palavra, a desanimação em júbilo, e achá-lo radiante, possuído da
arte... Isso transtornava todos os seus projetos, e as frases tão habilmente e
tão longamente preparadas, não tinham mais razão de ser. Desanimada, disse
num tom lamentoso:
— Eis-te, então... Bem
feliz? Não lamentas o que sucedeu?... Enfim... Sim, esqueces o que
padeceste?...Devia João ter
percebido o tom esquisito, quase vexado da tia, mas estava muito absorto pela
nova revelação de uma obra a empreender, a levar a bom termo, para que o
notasse. Com voluntário gesto, que parecia repelir a dor desalentadora, em uma
necessidade de reviver, de voltar a ser homem, capaz de outra coisa mais que
lamentações e saudades estéreis, replicou decisivo:
— Minha tia não
esqueci nada, mas (e ela apoiou gravemente nestas palavras) não lamento mais
nada, absolutamente nada!
— Tu me admiras... Porque
enfim tinhas direito a outra felicidade, além da arte pura... Tu amavas...
— Sei o que a senhora
quer dizer, mas sou sincero ao responder: pois que eu não podia escapar à
cegueira, a ruptura de... Meu casamento era o maior benefício que se podia
produzir!
— João!
— Sim, um
benefício! Amargo, pungente como o golpe de bisturi que arranca um grito, e,
contudo preserva o futuro de cruéis padecimentos. Eu o sei, sinto-o, Dinisa
Deléris não era a mulher que convinha a um artista decaído...
— Oh! Exclamou
inquieta, a senhora Bremond, que não ousava olhar para o lado de Dinisa.
Tomava a conversa
rumo tão imprevisto, que ela na verdade não mais conseguia encadear as idéias. Animando-se um pouco, prosseguiu João:
— Não duvido nem da
sua bondade, nem do seu devotamento. É bem o sei, uma alma encantadora e
delicada. Mas foi educada no luxo, na esperança de uma vida mundana, ou, ao
menos, de uma existência artística, que lhe teria preenchido as aspirações de
beleza e de requinte do espírito. Justamente porque ela tinha essas qualidades
raras, eu a reconhecera entre tantas outras como uma alma irmã. Mas ai! Minha
existência obscura e mesquinha, a amargura de ser consoladora e não
inspiradora, tê-la-iam ferido, magoado, e mesmo que nunca — em sua abnegação —
ela se queixasse, eu sentiria que padecia, e isso me seria uma tortura!
— Exageras João. Estou persuadida de que Dinisa teria achado na sua ternura, na alegria de te
consolar, uma felicidade profunda e comovida, que a impediria de se lamentar.
— Talvez, é
possível, se bem que não passe de hipótese. Veja minha cara tia, em casos deste
gênero, seria preciso positivamente poder fazer um ensaio. Se após um ano de
vida comum, a pessoa não se tivesse cansado, a gente podia esperar entender-se
para o resto de seus dias. Mas como pode uma moça afirmar que não será penoso
um estado de coisas, cuja experiência não fez? Seria preciso, para se comprometer
sem receio, tratar com uma pessoa um pouco especial, de aspirações
particulares... Sem o que jamais, jamais eu teria confiança!
— Pensas em Maria? Perguntou
à senhora Bremond, ofegante.— Não falo por mim. É evidente que uma pessoa como Maria, desejando fazer-se religiosa, tendo-se votado,
pequenina ainda, à uma vida de sacrifício e de devotamento sem recompensa,
representa bem melhor a enfermeira necessária a um homem mutilado que uma
adolescente ardente, que formou há anos a alma para uma felicidade brilhante. Não, eu não lamento a ruptura do meu casamento e por outras razões ainda,
razões profundas... Que eu não digo.
— Mesmo à tua boa
velha tia? Já não tens então confiança em mim? Interrogou ela, partilhada entre
o desejo de conhecer a fundo a alma do sobrinho e a angústia de ouvir palavras
que podiam magoar Dinisa, silenciosa e pálida a dez passos deles.
— Oh! Retrucou
João, numa decisão repentina e volúvel, como quem procura persuadir-se a si
mesmo; essas razões nada têm de misterioso, mas têm me ajudado poderosamente a
dominar minha desorientação. Casado com Dinisa padeceria lento, cotidiano
suplício.E como a senhora
Bremond lhe pousava a mão no braço, quiçá para impedi-lo de continuar:
— Admira-se? Disse
mais volúvel ainda. Seria um suplício de gênero especial, o de um artista que
sente ao pé de si uma criatura ideal, a aguçar-lhe perpetuamente a inspiração a
recordar-lhe que tem um modelo adorável, a entretê-lo em estéril e trágica
febre, sem lhe deixar — involuntariamente — nenhuma trégua!
Animara-se,
passando a mão nos cabelos. Depois, mais sereno:
— E a outra
tortura: ter sob seu teto uma pessoa muito linda, a atrair inconscientemente os
adoradores. Sentir que a cortejam, que olhares, sorrisos furtivos são talvez
trocados, ali diante dele, que nada pode para defender seu bem! Oh! Não! Uma
pobre criatura como eu não deve ter ao pé de si uma mulher que seja ao mesmo
tempo uma inspiradora inútil e uma inquietação dolorosa. Eu sou. Eu seria loucamente
ciumento!
Deteve-se,
sufocado, o rosto torturado. Depois, esboçando pálido sorriso, acrescentou com
grave doçura:
— Minha tia, tenho
conhecido horas tão atrozes que, se se pudesse morrer de dor, estaria morto
agora. Um dia estive a ponto de me suicidar. Foi, creio o dia mais negro de
minha vida... Resisti, e jurei comigo mesmo ser homem, ser forte a todo o
preço! Consegui-o. Agora estou sereno, tranqüilo, pacificado, e, não somente
Dinisa não me aparece mais como um bem perdido, mas ela me parece um perigo que
me devastaria a vida — sem o querer, a pobre criança! — e que Deus me poupou!
A senhora Bremond
baixou a cabeça.Certo, poderia
objetar triunfantemente ao sobrinho que Dinisa nada lamentaria que se sentiria
feliz ao pé dele; mas como persuadi-lo de que não seria a inspiradora estéril,
recordando-lhe sem cessar a sua decadência de artista?
Podia afirmar-lhe que
ela não seria cortejada,
que ele não conheceria o
tormento do ciúme,
decuplicado pela
cegueira?
Se ele temia esses
dois padecimentos, era possível negá-los? Só
ele sabia o que poderia sentir. Se se recusa a uma criatura desesperada o direito de se matar, cumpre tudo
envidar para ajudá-la a domar seu desgosto, a curar sua dor. Enfim, dizia
ele a
verdade, ao afirmar que, desposando-o outrora, Dinisa comprometia-se antes de
saber se, verdadeiramente, aquela vida lhe poderia convir.
Impôs-se então ao
espírito da senhora Bremond a lembrança de lord Ferling. Não padeceria um dia
Dinisa, por ter perdido àquela vida luxuosa, honorífica, aristocrática?
Aqueles castelos e
tapadas, aquele iate e
aquela coroa, que
deslumbravam um tanto a
boa senhora?
Olhou para João,
que enrolava entre os dedos uma folha de laranjeira. Parecia verdadeiramente
pacificado, como dizia; renunciara, a ferida começava a cicatrizar. Maria
representava a esposa ascética que lhe convinha. E teve medo de repente de
trazer não a felicidade, mas a dor ao sobrinho. E olhando para Dinisa, suspirou
com ar impotente.Não a viu Dinisa,
que meditava de cabeça pendida, e então prosseguiu de repente:
— Então, minha tia,
está tão silenciosa... Tem alguns instantes a me conceder? Se sim, peço-lhe um
grande serviço: Leia-me um capítulo dos discursos de Cícero, cuja coleção
achará lá, na mesa de ferro, sob a palmeira.
— Veja, continuou
com uma alegria evidente de mais para ser sincera, minha pobre Estefânia tem má
vista, e tenho sempre remorsos, quando lhe peço que leia para mim. É, no
entanto, um dos mais seguros passatempos. Quando tiver adquirido a riqueza com
a escultura, acabou rindo, pagar-me-ei o luxo de uma leitora...
— Sim, Estefânia
falou-me nisso. Pena é
que Maria more tão
longe; ela não passou
seis meses nas
montanhas?
— Sim, além disso,
tem muito que fazer em casa e não pode perder tanto tempo. Quanto a uma leitora,
minha pobre Estefânia vê as coisas em grande. Hoje em dia isso sai muito dispendioso...
— Meu caro João,
disse num impulso a senhora Bremond, se é a questão financeira que te detém,
deixa-me oferecer-te isso!
— Não pense em tal
coisa, minha tia!
— Sim. Sentir-me-ia
feliz se pudesse fazer qualquer coisa por ti. Estefânia está longe de ser, ela
também, a mulher que te seria preciso! E lê como uma cozinheira. Perfeitamente,
eu a ouvi! Ah! Se meus negócios não me chamassem a Paris, eu te instalaria em
minha casa, tratar-te-ia, te faria a leitura!
— Eu sei minha boa
tia, que a senhora seria maternal!
— Pois bem, deixa-me
dar-te esse prazer.
Procura uma leitora e
ficará por minha conta.
Negócio entendido, sim?
— Não me tente, eu
teria á covardia de aceitar!
— Está bem, não te peço
mais parecer. Imponho-te
uma leitora à tua
escolha. Se, daqui a um
mês não tiveres achado
uma, deserdo-te. Mas que
tiro de canhão é este?
— Já não se lembra,
minha tia? É isso que anuncia todos os dias à boa cidade de Nice que é meio
dia. A senhora fica para almoçar connosco.
— Não, não, disse
ela vivamente, pois não tinha empenho em esperar a volta de Estefânia, que
teria traído a presença de Dinisa. Lembro-me agora de que espero algumas amigas
à uma hora, e é urgente que me vá.
— E Estefânia que
não voltou! Antes de partir, minha tia, deixe-me agradecer-lhe e, também, mostrar-lhe
minha nova obra: esse pobre Mistral de barro que não vejo e que é talvez
informe! Mas não, minhas mãos não me enganam. Que seja cheio de erros, é
certo, mas basta para que descubra em mim alguma aptidão...
Levantando-se,
arrastava-a para o atelier, ela seguia-o, quando viu erguer-se Dinisa de um
salto, deslizar sem ruído sobre a grama de um tabuleiro e aproximar-se dela,
fazendo-lhe sinal de escutar.João entrara no
atelier; a senhora Bremond parou e Dinisa sussurrou-lhe ao ouvido, num sopro:
— Eu quero ser sua
leitora.— Então, minha tia,
não vem? Onde se escondeu? Não a ouço mais.
— Sim, sim, eu vou,
respondeu à senhora Bremond, toda aturdida com as palavras de Dinisa.
Chegou ao atelier e
soltou grandes exclamações admirativas, enquanto João, canhestro e precavido,
erguia o linho molhado posto sobre o barro. Mas em realidade ela nada via,
pensando: Ela, leitora aqui? Como? Ele a reconhecerá, certamente. Não enxerga,
é verdade, e Estefânia não a conhece. O nome? Pode mudá-lo. Mas a voz?
Aí está o que não
engana. Só nos romances
não se reconhecem as
vozes, ou são
modificadas. Que fazer?
— Vejamos minha tia,
diga-me sinceramente o
que pensa disto. É
semelhante, ao menos?
— Muito, muito,
acho-o perfeito, eu... Ah!
— Que foi? Bateu nalguma
coisa?
— Não, não, é que,
vê tu, tenho de te falar justamente a propósito de uma leitora. Sabes que Estefânia
me dissera que desejavas uma e eu — sem te prevenir — me pusera logo à cata de
uma pérola rara.— Foi então por
isso que me propôs logo uma?
Disse o moço rindo,
deslembrado de que fora
ele o primeiro a falar
nisso há pouco. Tinha
uma protegida a colocar?
— Mas sim,
acertaste, replicou a senhora Bremond, rindo para ocultar a perturbação; e se
te falei tanto de Dinisa, se quis saber se ainda tinhas saudades dela, era por
causa disso...— Não compreendo! Disse
João, franzindo os supercílios.— É muito simples. Conheço uma moça necessitada... E queria ajudá-la.
— Uma parisiense?
—... Sim... Uma
de minhas empregadas... Sua saúde exige o clima do sul. Compreendes?
Respondeu ela,
inventando ao passo que
falava, e perturbada
como uma menina diante
do examinador. É uma
criança encantadora,
seria excelente leitora;
tens a intenção de
alojá-la aqui?
— Sim, se for
necessário...— Tem apenas um
defeito... Ou antes, uma estranha particularidade, que me fazia hesitar em
propor: Solange, é o seu nome, tem na voz muitas entonações de Dinisa, e eu
temia que isso... Despertassem em ti recordações penosas.
— Era então por
isso que... Interrogava-me assim? Disse o moço, sem a menor desconfiança. Pois
bem, fique tranqüila. Essa semelhança não me perturbará. Estou curado,
completamente curado, e essa moça pode aparecer; ela tem necessidade do sul,
diz a senhora, e sou feliz de lhe facilitar a estada aqui. É preciso que os infelizes
se ajudem mutuamente... Quando a mandará vir? Perguntou após um momento de
silêncio.— Já está em Nice. Se não a tivesse querido, tê-la-ia colocado em casa de uma colega como vendedora, mas
prefiro que esteja em tua casa, assim descansará melhor.
Adquiria mais firmeza
ao passo que falava, admirada ela própria de ter tão habilmente improvisado
uma fábula. João respondeu maquinalmente, de novo absorto na sua argila, que
manejava com inquieta vigilância:
— Pois bem, mande-a
quando quiser, está entendido.— Deixo-te, então,
vejo que mal me escutas e que Mitral te interessa mais que tua velha tia.
— Querida, boa tia,
não diga isso!
— Mas não to
censuro. Sinto-me bem feliz por ver que te apegas de novo à vida, à arte. João,
meu querido, acabou ela, pegando na cabeça do sobrinho, estou certa, de que a
felicidade ainda voltará para ti.— Ser feliz? Nunca
mais! Replicou o moço vivamente. Mas quero ser corajoso e hei de sê-lo!
Acompanhou a
senhora Bremond ao portão, e Dinisa seguiu-os na ponta dos pés. Quando
ele abriu
a porta, a senhora Bremond recuou para deixá-la passar e, como corria no
momento um automóvel barulhento na estrada,
ele não percebeu o leve ruído dos
passos. Agora, tinha a senhora Bremond pressa de se afastar, receando encontrar
Estefânia, que teria descoberto o segredo, e traído a presença da moça. Enfim,
entrou João em casa, e a senhora Bremond voltou-se para Dinisa:
— Você será sua
leitora, está entendido, Dinisa.— Não desconfiou de
nada? Interrogou a adolescente, voltando a cabeça.
— Não. Apresentei-a
como uma das minhas vendedoras de Paris, que necessita do ar do sul. Você
habitará em casa dele.— Perto dele,
murmurou Dinisa.— Você chora? Exclamou
a senhora Bremond. É verdade, deve ter padecido muito!
Passava um carro,
tomaram-no e Dinisa, ocultando o rosto nas mãos, desatou a soluçar.
— Oh! Todas as suas
palavras eram justas! Como provar-lhe que encontrarei a felicidade junto dele,
sem que me objete que me comprometo antes de saber? Não posso esquecer esta
frase: Jamais, jamais terei confiança...
Para lhe inspirar
essa confiança, é preciso que possa dizer-lhe: “sei que existência levaria ao
pé de você, eu a vivi, e ela me agrada.” Queria persuadi-lo de que não teria de
padecer de ciúmes, e se, a meu pesar, eu o inspirar na sua arte, pois bem, será
o meu rosto que ele modelará.— Eis uma idéia. Diga-lhe isso logo, sugeriu à senhora Bremond, a quem o embuste inquietava um
pouco.— Dizer-lho,
replicou amargamente Dinisa. Eu o faria se
ele ainda tivesse saudades de mim,
se estivesse certa do seu amor e... É desse amor mesmo que duvido. Se
ele
cessou de padecer pelo passado, não é porque lentamente... Outra o encantou?
Oh! Como é ela? Interrogou ardente, pensando em Maria.
— Uma boa menina,
mas menos que bonita: mãos grandes, porte pesado!
— Posso torná-lo
mais feliz do que ela poderia fazê-lo e quero reconquistar este bem que as
circunstâncias me arrancaram. Não estou agindo unicamente pela sua
felicidade, ai de mim! Mas também pela minha!... Amo-o, e compreendi ao ouvi-lo
que farei tudo para ganhar aquele coração que foi meu e, quando a senhora falou
de uma leitora, veio-me imediatamente a idéia de ir eu para esse lugar. Oh! Minha
senhora, viver perto dele, guiá-lo nos seus passeios, senti-lo apoiar-se
confiante no meu braço e poder dizer-lhe um dia: Se tem ainda um pouco de amor
por mim, deixe-me participar da sua vida!
Exaltava-se. A
senhora Bremond sacudiu a cabeça, pensando que João estava certamente enamorado
de Dinisa e que muito depressa se desfaria o enredo. Podia, sem receio, deixar
seguirem os acontecimentos, e Dinisa continuava a falar febril, fazendo
projetos, enquanto a boa dama, serenada, pensava:
— Não lhes dou
quinze dias para caírem nos braços um do outro!
Enganava-se a
senhora Bremond em suas previsões.
Desde o primeiro
momento teve Dinisa, ou antes, Solange Parny, como a chamara à senhora Bremond,
uma inimiga na Vila Azul, inimiga que não tardou em apresentá-lo sob uma luz
desfavorável.
Era D. Estefânia.Ficara ela
profundamente magoada de saber — ao voltar do mercado de Flores — que haviam
decidido, na sua ausência, admitir uma estranha em casa! Esquecia
positivamente que João estava em sua casa, e, como administrava o interior,
julgava-se a senhora e achava que o moço não devia ter aceitado nada sem a sua
aprovação.Além disso, não
podia ela sofrer a senhora Bremond, e tudo o que vinha da tia de João era-lhe
antipático, e quando no dia seguinte à tarde viu chegar Dinisa, quando lhe viu
o grande ar a despeito da sua simplicidade, ficou sufocada.
Queriam que aquela
bela adolescente fizesse a conquista de João! Não era aquilo uma artimanha da
senhora Bremond, que desejava entravar a influência de Maria? Ora, era Maria a
noiva escolhida por Estefânia, que viu na chegada daquela Solange Parny uma
manobra para lhe baldar os planos, e expulsá-la da casa.
Era isso mais do
que suficiente para gerar nela violenta antipatia. Mas como João não podia ver
a moça, ficava-lhe a melhor parte do lance, e quando, negligentemente,
ele
perguntou:
— Que tal é ela?
Replicou logo em
tom decisivo:
— Uma espécie de
mulherona desajeitada, negra como um corvo.
Os cabelos sombrios
de Dinisa justificavam assaz a comparação com um corvo, mas a construção da
frase parecia implicar que a pele era do mesmo tom sedutor, e imediatamente se
precisou no pensamento de João uma silhueta magra, de espinhaço ósseo, de rosto
seco e trigueiro.Enquanto D. Estefânia assim descrevia a esbelta figura de Dinisa e sua tez de marfim
rosado, a moça dispunha seus vestidos no armário e na cômoda que mobiliava o
quarto forrado de pano de Jouy de assunto simbólico: O Amor faz passar o Tempo... O Tempo faz passar o Amor...
O mobiliário era
simples, mas envernizado à laca cinzenta Trianon, com leves toques cor de
turquesa que bastavam, com duas belas gravuras antigas suspensas por cordões
do mesmo tom, para dar à peça a graça amável dos interiores Luis XVI. Sobre a
chaminé, dois castiçais de prata maciça, de puro e sóbrio estilo, e, recostada
ao mármore branco, mirou-se Dinisa no grande espelho, com a surpresa de se ver
como subalterna naquela casa onde deveria entrar como senhora...
Ao chegar, uma hora
antes, não vira João, ocupado no atelier, absorvido pela paixão da modelagem. Daí a pouco lhe seria apresentada; sem dúvida
ele lhe apertaria a mão em sinal
de boas vindas e, a este pensamento, sobreveio-lhe singular impressão de
constrangimento e de angústia, como se, ao simples toque de seus dedos,
ele lhe
fosse traspassar o incógnito.Abriu a janela. Deitava, não para o mar, mas para o jardim que, talhado na rocha viva da montanha,
pululava de plantas carnudas, de hastes purpurinas. Um gerânio subia, no meio
das rosas, até ao peitoril, mas havia, sobretudo ipoméas de largas corolas de
um azul de rei e plúmbagos cujos cachos leves e azulados recordam a hortênsia. O quarto de João devia dar diretamente para o mar. Lembrava-se de algumas
palavras do moço, pronunciadas há dezoito meses, no princípio do seu noivado: O
mais belo quadro da casa está no meu quarto e não foi pintado por mim, dizia ele. Está emoldurado pela janela e representa o panorama inteiro, o golfo dos Anjos,
o Esterel erguido como uma muralha de sombra no fundo do horizonte. Esse quadro
era a própria paisagem.Dinisa não o via.
Anoitecia. Às sete
horas, alisou o cabelo castanho passou um pouco de pó de arroz pelas faces
acetinadas, e, o coração batendo, terrivelmente comovida, desceu ao salão.
Lá estava D. Estefânia, fazendo malha com furioso ardor. Vendo chegar à moça, disse algumas
palavras a meia voz, e, surgindo de uma poltrona, ergueu-se o vulto de João.
— Meu primo João
Fargés, a senhorita Parny, leitora.
Dinisa inclinou-se
levemente, e apertou-se-lhe o coração ao ver como o olhar de João, sem que ele
o imaginasse, errava acima dela, supondo-a mais alta, provavelmente. Nada há
mais doloroso do que estes erros quase ridículos, estes hábitos que parecem
infantis, esta confissão de fraqueza e de impotência num homem que conhecêramos
ágil, desenvolto. Mas seu coração apertou-se mais ainda, ouvindo-o dizer muito
friamente:
— Espero que se
agrade aqui, senhorita.Era curta a frase,
e o tom sem calor agravava o laconismo do acolhimento. Ela balbuciou:
— Estou persuadida
disso, senhor.Ele, porém, nem
pareceu ouvi-la, e, saudando em sinal de vaga aquiescência, voltou-se para a
prima:
— Vamos para a
mesa, Estefânia? Estou fatigado de esperar.
— Fui eu quem o
retardou? Perguntou Dinisa Solange, com real timidez.
— Não, senhorita,
foi nossa criada, Devota, que deixou queimar a sopa, respondeu Estefânia.
Foram para a mesa. Dinisa examinava
às furtadelas aquela sala de jantar cujos velhos móveis
provincianos, de carvalho já quase enegrecido pelo tempo, lembravam os
interiores holandeses. Não o mobiliário claro e entalhado que pulula em todos
os armazéns, mas os antigos baús sombrios, onde brilham discretos e severos,
estanhos cobertos de patina, o cobre de um prato lavorado, a brancura azulada
dos vasos de Delft. Adornava o lustre de metal um tufo de agárico e o solo, de
quadrados brancos e negros, luzia na sombra como lajedo de mármore.
Dinisa não ousava
falar. Positivamente, sentia que se tornara completamente leitora, pobre rapariga
que temia desagradar aos patrões... João não a animava, na verdade; imóvel,
voltando as costas à vasta cópia da Ronda da Noite de Rembrandt, mostrava um
rosto impenetrável e cansado, que a desorientava. No entanto, era
ele assim
mesmo no instituto Monfermeil, quando lá ia, altivo e desdenhoso, dar lições às
pensionistas. Era assim que ele lhe tinha agradado. Mas então, adivinhava nele
outras expressões, uma dupla vida que despertava o interesse, e que a tinha
entusiasmado por seu ardor juvenil. Evidentemente, não poderia ele falar de
arte ou de idéias gerais com D. Estefânia, mas em Marselha vira-o ela
esforçar-se por parecer amável.Apenas Mistral lhe
fazia bom acolhimento, saltando-lhe aos joelhos e rosnando. Encerrada em suas
cismas, nem ouvira D. Estefânia perguntar-lhe se sabia fazer malha. Àquele
mutismo, a velha dama encolheu os ombros, tocando no cotovelo do primo:
— Senhorita Solange?
Desta vez ouviu-a
Dinisa muito bem, mas o nome de Solange não lhe recordou nada e D. Estefânia
teve de lhe tocar no braço. Isso a assustou:
— Estava nas
nuvens, senhorita Solange? Perguntou ela, agridoce.
— A senhora chamou-me?
— Duas vezes, pelo
seu nome!
— Meu nome? Ah!
Sim, Solange... Eu...
Que deseja a senhora?
Diante desta
resposta quase incoerente, ergueu D. Estefânia os olhos para o lustre como quem
invocava o tufo de agárico por testemunha de tão aparente fraqueza mental. Nisto, veio Devota dispor as frutas sobre a mesa, e Dinisa arriscou-se a dizer:
— Quer que eu lhe leia
alguma coisa esta
noite... Senhor?
— Obrigado,
senhorita. Deve descansar, respondeu João num tom neutro. Depois, voltando-se
para a prima:
— Vou modelar.
— À luz artificial?
Isso não o perturba? Perguntou estouvadamente Dinisa.
— É sempre noite
para mim, senhorita, replicou João secamente.
Lançou-lhe D. Estefânia um olhar encolerizado e ela mordeu os lábios.
Sem dúvida lhe
desagradara com aquela reflexão inconsiderada. Procurava uma palavra para lhe
dizer. Era horroroso que, desde a primeira noite, houvesse entre eles um mal
entendido. Ah! Outrora, falava-lhe
ele com uma doçura de adoração, beijando-lhe
as mãos, cerrando-a nos braços, beijando-lhe às vezes os tépidos cabelos. Vê-lo
sem nem sequer ousar falar-lhe, era intolerável. Quisera lançar-se-lhe sobre
o coração, dizer-lhe: Sou eu, deixe-me querer-lhe. Horrível opressão a
detinha. Tentou, ainda assim, atrair-lhe a atenção:
— Poderia eu
ajudá-lo nos seus trabalhos de modelagem? Conservaria a humidade do barro... Disse
ela.Erguia-se ele da
mesa, e, com as mãos um pouco estendidas para evitar qualquer obstáculo,
dirigia-se para o atelier. Às palavras de Dinisa, percebeu-lhe ela um levíssimo
movimento de impaciência;
ele esperou um minuto antes de responder, como se quisesse
dar tempo de adoçar a voz:
— A senhora é muito
amável, mas não se ocupe comigo. Quando eu tiver necessidade de seus serviços,
chamá-la-ei. Boa noite, senhorita.
Era uma maneira
disfarçada de aconselhá-la a calar-se, a esperar que a interrogassem antes de
falar... Sublinhou-a Estefânia, dizendo:
— Visto que a
senhora Bremond deseja que a senhora descanse, pode ficar no seu quarto o tempo
que quiser. Eu lhe direi quando for para descer.
— Volto então para
lá, replicou Dinisa magoada. E quando João mergulhava no atelier, consternada,
entrava ela no quarto.Fizera mal em
agastar-se? Parecia-lhe perceber nos modos de João certa hostilidade surda... Ser-lhe-ia desagradável ter ao pé de si outra adolescente que não fosse aquela
Maria desconhecida? Escondendo a cabeça nos travesseiros, sob a musselina
azulada do mosquiteiro, chorou Dinisa muito tempo, antes de adormecer.
Por seu lado,
também João não conseguia conciliar o sono.
Chegando à oficina
para modelar, sentira imediatamente que os dedos, sem animação do cérebro
absorto, não comunicariam vida alguma à argila inerte, fria, viscosa. Foi então
para o quarto e lançou-se sobre o divã.
Pela janela aberta,
penetrava a quente doçura do outono. Sentia-a passar-lhe sobre a fronte, em
eflúvios perfumados pelos últimos alcendros; o mar modulava sobre os rochedos,
e Nice parecia cingida de uma vivente coroa de estrelas. Lembrava-se o moço de
outras noites semelhantes, cuja tepidez distendia os nervos mais crispados.
Mas hoje, que febre
o agitava? À mesa,
não pudera comer. A
modelagem que na véspera
o apaixonara, deixava-o
de repente indiferente;
alguma coisa amarga,
sombria, ofegava nele
como outro ser
soluçante. Que tinha
então?
Pois bem, sim! Devia
confessá-lo: padecia. Sua conversa com a tia, a espera daquela leitora que,
diziam, tinha a voz de Dinisa, sua chegada, os primeiros acentos ouvidos, tudo
isso transtornara-lhe a quietação — fictícia, infelizmente! — e, brutalmente,
ressuscitava o passado, aquele passado que ele com tanta coragem se esforçava
por anular.Além disso, desde
as primeiras palavras da senhora Bremond revelando-lhe a semelhança de voz
entre a senhorita Parny e Dinisa, compreendera que o som daquela voz lhe
devastaria a alma, e estivera a ponto de gritar: Sobretudo, que eu não a ouça!
Mas, como voltar tão depressa atrás, se acabara de afirmar com segurança sua
cura completa? Dominara-se, ao contrário, para declarar com desenvoltura, que
“esse pormenor não o poderia impressionar.
Na verdade, não se
mesclara nele à angústia de tornar a ouvir aquela voz querida, o desejo insensato,
apaixonado, de ouvi-la ainda, mesmo com risco de renovar sua mágoa, de perder
em algumas horas o benefício de tantos meses de esforço, de coragem, de
admoestações!
Sim, fora fraco. E
vinha-lhe agora a punição. Já há duas horas, mergulhado na poltrona, esperava
Solange Parny, sentindo-se alternativamente gelado e febril, como na expectativa
de um prodígio, de ilusão enganadora, mas apaixonadamente desejada. Espreitara
o ruído da porta do salão ao abrir-se e tivera de conter-se para falar
serenamente à moça.Contudo —
pronunciara Dinisa algumas palavras com acento deformado pela comoção — não lhe
achara na voz tanta semelhança com a da sua ex-noiva! Enquanto durara o jantar,
aplicara-se a descobrir nas raras palavras ditas por Solange, dissonâncias que
não existiam, pensava ele, no órgão da senhorita Deléris. Porque, no fundo,
parecia-lhe uma espécie de inconveniência, de espoliação, de usurpação, que
aquela mulherona trigueira tivesse o mesmo tom de voz que a bela adolescente!
Odiava-a por isso, como se fosse acção má.
Odiava-a, sobretudo
— sem que o confessasse a si próprio — recordar-lhe a acabada felicidade; ser
tão diferente e tão igual! Não, sentia-o
ele, não conheceria mais trégua ao seu
mal, e, febricitante, atormentado pelo passado, sentindo crescer-lhe no peito
verdadeira aversão por Solange Parny, e jurando consigo mesmo recobrar a paz a
qualquer preço, sonhava:
Não é ao meu
serviço que ela vai cansar a voz... A leitora de minha tia.
A RIVAL
— Mestre, diga-me
sua verdadeira impressão. Repito-lhe: não penso em ser escultor para tirar proveito
de minhas obras. Queria que a modelagem fosse para mim um passatempo de encanto
mais vivo, mais ardente que a leitura dos livros Braille. Não lhe pergunto, pois
se tenho talento, mas apenas se mostro alguma aptidão...
Falava a um velho
de sobrecasaca, magro, pequeno, bem tratado com um notário. Óculos de ouro
aumentavam o olhar fino dos olhos azuis. Parecia inofensivo e meigo.
Era Valiet, um
selvagem, um escultor potente e duro, que talhava em plena massa, preferindo a
pedra rude e bruta. Na oficina, entre seus mendigos e atletas, apenas esboçados
e frementes de vida, parecia um humilde sacristão.
No entanto, era seu
polegar que tirava da matéria aquela plenitude de energia e de força. Mas era
humanista, tanto como escultor, talvez, e divertia-se em acentuar o contraste
entre sua miúda e correta pessoa e a evidente incorreção das criaturas que
tirava da pedra.Vinha muitas vezes
ver João e o moço mostrara-lhe seu Mistral na tocaia, que secava sobre um escabelo,
enquanto o verdadeiro Mistral empoleirado noutro banco, com a linguinha
raspadeira, escovava, com um nojo que lhe causava náuseas inócuas, os traços de
barro aderentes à pelagem espinhenta. A voz do amo ergueu para
ele os olhos
verdes, cheios de sentida reprovação e continuou a limpeza do seu colete
branco.— Este pequeno tem
uma alma de artista, disse João designando seu modelo. Apesar do horror que lhe
inspiram minhas mãos húmidas, compreende que o quero imortalizar e me sofre as
manipulações.— Onde se foi
aninhar a vaidade! Disse Valiet, enquanto Mistral, vendo que se ocupavam dele,
erguia-se, dorso arqueado como uma ponte albanesa, e a cauda direita,
levemente enroscada, em ponto de interrogação.
Examinava agora
Valiet o barro e dizia:
— Meu caro filho,
tem você todos os defeitos dos estreantes. Sua obra não tem base, certas partes
são muito pesadas, outras muito mesquinhas. Há coisas ingênuas, mas você é um
verdadeiro artista, e o movimento da pata esquerda, estendida, rija como uma
mola, pronta a dar impulso ao corpo todo, tem um acento de verdade, de energia,
uma espécie de pulsação selvagem que muitos escultores, que não cometem um só
de seus erros, não poderiam atingir.
É o principal. Com
os anos, poderá você vir a ser sem dúvida um excelente animalista.
Sorria João. Sabia
que, em obra de estréia, pouco contam os defeitos, que desaparecem com o
estudo; só as qualidades importam. Escultores que, desde o princípio, cometem
poucos erros, não apresentam muitas vezes, em toda a sua carreira, nenhuma
particularidade brilhante. São os monótonos da escultura; enchem os salões com
suas obras corretas, onde nada há a maldizer, e das quais não se acha nada a
dizer também...Cerrou as mãos de
Valiet dizendo — e seus olhos sempre claros pareciam “ver” de novo:
— Mestre, o senhor
me faz tão feliz! Essa pesquisa da vida foi sempre o meu fim.
— E atingiu-o na
sua “Colhedora de laranjas”, mais ainda talvez no meio sono vibrante da “Moça
da charpa”.— Ah!
o senhor acha-o?
— Sim, é uma bela
obra, e fiquei contente de saber que o governo lha comprou para o Luxemburgo... Enquanto espera o Louvre, acabou o velho sorrindo.
Ignorava Valiet que
James tinham ligado Fargés à moça de cabelos escuros, delicadamente rosada, mas
João empalideceu um pouco a esta recordação. O Louvre?
Acolheria ele um dia a
imagem daquela criatura
adorada e perdida?
Não podia já seguir
a conversa de Valiet e o velho, finalmente, despediu-se. Enquanto
ele continuava
a tagarelar à porta da oficina, espiava D. Estefânia ansiosamente a janela do
quarto da senhorita Parny. Via-a de costas, ocupada em alguns arranjos, e
receava que ela se voltasse ou descesse. Se a visse o escultor, revelaria a
João, em exclamações de admiração, a beleza da moça, tão cuidadosamente
denegrida por ela.De pé no alto da
escada, abarcou Valiet com o olhar o panorama de ouro e azul, a curva das margens,
a linha das montanhas, toda aquela natureza brilhante e acabada como uma jóia
de preço e disse:
— Não maldiga a sorte,
João, você que pode,
pelo pensamento, rever
este jardim, esta baía,
este mar divino. Não
tenho razão, senhora
Fargés?
Hipnotizada pela
janela de Solange, esqueceu-se ela de responder.
Mas Valiet saiu sem
ter visto a moça e como vinha raramente, era pouco provável um encontro. Estefânia suspirou, aliviada. Ao entrar no atelier, João cantarolava possuído
dessa alegria espiritual e ardente que dá a arte.
Depois, a lembrança
da moça da charpa passou-lhe de novo no espírito... Não, não queria marear a
felicidade intelectual que o invadia. Que diria ela, contudo, se soubesse... E,
imediatamente, sentiu desejo imperioso de lhe ouvir a voz por intermédio de... Solange.
Vamos, era
desarrazoado! Desde que a moça vivia em casa, privava-se do prazer da leitura. À senhora Bremond, que viera vê-lo antes de voltar a Paris, afirmara que queria
primeiro deixar a sua protegida descansar, e como Dinisa nada lhe dissera de
suas secretas angústias, partira descansada a boa dama. João acabava por ter
meio esquecido a presença de Solange; ia agora perder o benefício de sua
corajosa vigilância?
Embriagar-se ao perigoso
encantamento da voz que
evocava o passado?
Hesitava ainda. D. Estefânia, que deixara o atelier, voltava de repente, exclamando:
— Decididamente,
pergunto a mim mesma se temos alguma razão para conservar aqui essa moça!
Pediu-me para sair...— Pois bem, onde o
mal? Perguntou Fargés, a quem a estreiteza de vistas da prima irritava.
— Oh! Consenti
nisso. Meu filho, ela usa véus bordados, que
custam perto de cem francos na cidade!
E sapatos de camurça negra! E meias de seda! Há dias, comprou um par de luvas
de mais de trinta francos na Galeria Lafayette! Pôr tudo às costas, quando tem
de ganhar a vida. Eu contento-me com luvas de retroz, e a senhorita não quer
senão pele de Suécia!
— Porque ela está
de luto, objetou João, encolhendo os ombros.
— Pela mãe... Parece-me,
respondeu Estefânia. É mesmo, ela não é interessante, e pergunto a mim mesma se
devo deixá-la sair...— Pois bem, disse
João, com repentina determinação, pergunte-lhe se não pode deixar a saída para
um pouco mais tarde; ela me lerá a revista que chegou agora.
— Ah! Tu queres? Perguntou
Estefânia, interdita por aquele desenlace, que ela mesma provocara.
Chamou Dinisa e a
moça apareceu simples, mas com a elegância refinada, permitida a uma pessoa que
tem mais rendimentos do que dispende.
— Senhorita, disse
apressadamente a velha dama, meu primo queria que a senhora lhe fizesse um
pouco de leitura.— Oh! Senhora, com
prazer! Respondeu Dinisa, corando enquanto tirava rapidamente as luvas de
trinta e seis francos que sublevavam o coração virtuoso de D. Estefânia.
Furioso contra si
mesmo, mas impaciente por ouvi-la, disse-lhe João:
— Vê a senhora uma
revista de capa verde?
Sim, sobre a mesa. Quer
abri-la e ler-me?
— Certamente,
senhor.
Tirou o chapéu e
instalou-se na poltrona — o que revoltou D. Estefânia (podia bem ter tomado uma
cadeira!) — e começou a ler depois de cortar algumas folhas.
Era a primeira vez
que João lhe pedia esse serviço... Iria doravante tomar-lhe o hábito? Lendo
maquinalmente, pensava com ardor. Sim, sua estada na Vila Azul manifestava-se
triste, gelada, exatamente o oposto do que esperara. Mantinham-na aparte,
sentia-o ela. Era então agora Dinisa Deléris de tal modo antipática ao moço,
cansado de padecer, que nem sequer podia suportar a recordação da sua voz? E
supusera que, preso ao encanto do antigo amor,
ele se curvaria, confiante, para
ela... Muito depressa, pensara, nasceria uma terna amizade, e, um dia em que
se achasse mais cansado, mais meigo que de costume, prometera a si mesma
dizer-lhe: Eu sou a felicidade que voltou, toma-me por mulher.
Mas muito outra era
a situação. Estouvadamente, sem refletir, arrebatada num impulso de louca ternura,
quisera entrar naquela casa sob um nome de empréstimo, sem temer a posição
falsa em que se iria encontrar, persuadida da iminência do desfecho. Mas o
desfecho não aparecia, e a moça começava a padecer com a estranheza da situação.
Desde o primeiro
instante, e pela primeira vez na vida, era-lhe preciso mentir, e, cada vez que
o fazia corava, arriscando-se a contradizer-se. Muitas vezes resolvera-se a ter
franca explicação, a escapar ao equívoco, pôr fim àquela existência de
dissimulações. Mas; no último momento, recuava...
No estado de espírito
em que se achava não se ofenderia João de vê-la assim introduzir-se-lhe em
casa? Julgamos com
rigor numa outra aquilo
mesmo que perdoamos à
mulher querida, e,
enganada pelos modos
distantes de João,
acabava por acreditar
que deixara de amá-la.
Devia, então,
desaparecer
simplesmente?
Faltava-lhe a
coragem para isso. Amava e apegava-se ao seu amor. Ele não lhe falava,
tratava-a com desanimadora frieza, mas enfim, ela via-o, tomava as refeições
em frente dele, muitas vezes mesmo tocava-lhe nas mãos. Via na sua dolorosa
intimidade, testemunha comovida de seus gestos desajeitados, mas altiva
também de vê-lo inclinar-se para uma nova forma de arte e sair-se bem nela
indubitavelmente. Basta tão pouca coisa para encher-nos de alegria quando
amamos. .. Vivia desses curtos momentos de felicidade, e, corando da própria
covardia, ia ficando.Mas ia João talvez
mudar de procedimento para com ela. Pedia-lhe, pela primeira vez, que lesse, e
Dinisa lia, punha agora toda a atenção em tornar a leitura clara, colorida,
compreensiva...Entre as almofadas do
divã, Fargés, sentado, sonhava também. Desde as primeiras linhas, cessara
inconscientemente de escutar o sentido das palavras, para perceber-lhes apenas
o som, e invadia-o agora a embriaguês perigosa que temia, e que provocara. Fechava as pálpebras, como se quisesse dobrar a cegueira, encerrar-se no mundo
radioso dos sonhos. Evocava Dinisa, luminosa e flexível como uma sereia naquela
charpa tunisiana, de que a revestira. Porque não lhe dissera a verdade no momento
do seu casamento? Aquele heroísmo não era imbecilidade? Ela tê-lo-ia certamente
desposado, talvez mesmo sem nada lamentar, na perpétua adoração de que a
cercaria. E, agora, seria ela quem ali estaria lendo, ela, cuja harmoniosa silhueta
ele adivinhava sobre o divã, a quem beijaria a cada passo as mãos, delicadas e
doces como as mãos das chinesas, que parecem nem ter ossos, e são leves como um
pássaro recém emplumado...Entorpecia-se
naquela visão, sabendo que padeceria terrivelmente depois, mas já não aplicava
sua teoria do golpe de bisturi que fere o presente; para proteger o futuro. Tanto
pior, deixava-se ir...— Ora essa! Que
teorias imbecis! Disse de repente D. Estefânia que, presente à leitura, tecia
suas malhas com raivosa velocidade.
Reabriu João os
olhos, voltando para ela o olhar ausente:
— Teorias? Que
teorias?
— Tudo o que eles
contam sobre o cubismo na revista.
— Trata-se de
cubismo? Perguntou Fargés.— Mas...
— Desculpa-me, minha
prima, mas eu não escutava...A estas palavras,
empalideceu Dinisa. Ele não a escutava! Pareceu-lhe isso prova inegável do
pouco interesse que tomava na leitura feita por ela. Desalentada, sentindo que
as lágrimas a ganhavam, deixou cair a revista, dizendo:
— Então... Não o
quero fatigar por mais tempo...Percebeu ele na voz
um tremor doloroso e compreendeu que acabava de magoar involuntariamente sua
leitora. Aborreceu-se por ter feito padecer alguém, por ter humilhado uma
criatura, ele que tão bem conhecia o padecimento e a humilhação; verdadeiramente
comovido, disse com uma doçura cheia de bondade:
— Perdoe-me, sou
facilmente distraído,
mas a senhora lê muito
bem, de maneira muito
inteligente mesmo...Jamais, desde que
ela chegara à Vila Azul,
ele se exprimira com aquela cortesia benevolente e
terna. Saltou-lhe o coração. Tudo o que padecera desde que chegara a Nice, tudo
foi anulado por aquela simples resposta. Tornava a achar o João delicado e
encantador. Respondeu muito depressa, desejando apaixonadamente entrar em
conversa verdadeira:
— Amo de tal modo todas
as coisas de arte! O
senhor pintava outrora,
senhor Fargés?
— Meu Deus, sim... Tenho ainda ali, pendurados à parede, a menos que Estefânia, no seu furor de
arrumação, não os tenha metido nalguma gaveta, alguns estudos...
— Sim, apressou-se
a dizer Estefânia, enquanto Dinisa olhava em vão ao redor de si, para as
paredes completamente nuas; eu guardei-os, podiam estragar-se.
O moço encolheu os
ombros e suspirou ao responder:
— Quer você dizer à
senhorita Solange onde estão eles? Será para mim uma distração folheá-los,
comentá-los.Brilharam os olhos
de Dinisa. Enfim, surgia subitamente entre eles um liame, um traço de união. Consternada, teve D. Estefânia que indicar o baú medieval onde arrecadara as
grandes caixas que Dinisa tirou. João, todo feliz, estava perto dela.
Havia naquelas
caixas estudos à maneira de Besnard (obras de um amigo de Fargés) representando
paisagens indús; cidades rosadas, abandonadas, e que se diria feridas de
encantamento no fundo de florestas milenárias; templos esculpidos de dragões,
oceano Índico de um azul de centúria. Batia o coração de Dinisa descompassado,
ao reconhecer aquelas vistas. Mostrara-lhas
ele com calorosos comentários, em
Paris, no atelier, no luminoso tempo da sua felicidade!
D. Estefânia, que
afuroava em outras caixas, disse de repente:
— Ora, aqui está
uma bela moldura! Não me dá, João? O senhor cura ofereceu-me um Sagrado
Coração, colorido, uma maravilha! Queria colocá-lo aqui dentro.
— Mas é um retrato,
disse Dinisa, assustada com vandalismo da boa velha.
Era, com efeito, o
retrato de uma adolescente, de boca infantil, olhos eloqüentes, água sombria e
fogo, olhos de cigana. Tinha a fronte bela das estátuas antigas, feita para
suportar o peso de altaneiro destino, e, na graça elegante, parecia brotar da
tela.João, com os dedos,
reconheceu o quadro e disse:
— Ah! É Dzinn... (romance de Yvonne Schultz)
— Quem é Dzinn? Perguntou
Dinisa, tomada já de secreto ciúme.
— Uma moça cujo
retrato fiz durante umas férias de convalescença.
— Pousou ela muitas
vezes?
— Nunca. Morreu tragicamente
alguns dias antes da declaração de guerra e servi-me de uma fotografia que o
conde Guy de Lusigrére — seu noivo, creio — me emprestara...
— Então como lhe
deixou ele este retrato? Perguntou D. Estefânia admirada.
— Ele morreu em Verdum,
respondeu gravemente o moço, e tinha-me recomendado que, em caso de acidente,
destruísse este quadro, que eu queimarei pois, qualquer dia...
— Não fará isso... Disse
vivamente Dinisa.— Eu o farei
senhorita. Um drama misterioso compreendi-o, quebrou o amor desses dois jovens
e devo respeitar a vontade de um morto...
Calou-se, manejando com
fraternal doçura o
retrato sombrio e claro
votado ao aniquilamento,
como Dzinn e Guy já se
tinham aniquilado para
sempre. Mas... Não eram
mais felizes que ele?
A tudo isso, D. Estefânia agitava-se. Não pelo quadro, porque prometia a si própria salvar sua
moldura na ocasião do auto de fé e apenas isso a interessava. Outra coisa
irritava-a: ia seu primo contrair o hábito de contar histórias à leitora? Não
sabia como interromper a palestra, e não pôde ocultar a alegria ao dizer de
repente:
— Batem! É hoje
quinta-feira, deve ser Maria, que já está de volta!
— Ah! Maria! Disse
João com interesse, aprumando-se. Ela me vai fazer música.
Ele adorava a
música desde que cegara. Dinisa, que ignorava essa nova disposição de espírito,
jamais se oferecera para tocar, e nem Estefânia nem ele, supunham que a
vendedora da senhora Bremond pudesse ser boa pianista.
Ora, Maria era cada
vez mais hábil. Não lhe pedissem calor, nem compreensão original das obras primas,
mas tocava com muita correção. Ouviam-na já entrar em casa. Um minuto e Dinisa, gelada, via-a aparecer e João levantar-se para ir-lhe ao encontro.
Sua rival. Acabava
de passar seis meses na montanha e João acolhia-a hoje com mais boa vontade
ainda, porque, bem o compreendia
ele, vinha arrancá-lo de um perigoso
encantamento. Sentia-se feliz por vir alguém ajudá-lo a se recuperar e,
volúvel, tratando de se aturdir, de se desembaraçar completamente da deliciosa
embriaguez em que quase se sepultara de repente, dizia a Maria ao tomar-lhe das
mãos um rolo de músicas:
— Você não esqueceu
o desgraçado que tem sede de harmonia? Ah! Deixe-me apresentar-lhe a senhorita
Solange Parny, leitora. Você vê Maria, tive finalmente pena dos olhos da minha
pobre Estefânia!
Maria! Ele
chamava-a Maria! E falava-lhe alegremente. A senhorita Chaslier envolveu num
olhar frio a “leitora”, que se inclinou levemente, enquanto D. Estefânia dizia:
— A senhora pode ir
dar um passeio, senhorita Solange.
— Sim, sim, não a
retenho mais tempo. Vá aproveitar o sol, disse vivamente João.
Sentia o desejo de
vê-la afastar-se, cessando de misturar o passado ao presente; queria também que
ela pudesse passear à vontade. Dinisa não viu nas suas palavras senão uma
despedida disfarçada e, desanimada, aterrada, humilhada, saiu...
Tinha sido a
eleita, era jovem, bonita, rica e cedia o passo a uma recém-vinda, sem graça e
sem bens da fortuna e por certo menos apaixonadamente enamorada que ela por João
Fargés.
O AMOR FAZ PASSAR O TEMPO...
Era a queda das
folhas...Quem não conhece a
melancolia dessa lenta chuva de ouro e de ferrugem pelos caminhos arborizados?
As chuvas do outono deixaram visguenta a terra negra, e o pálido rosto do
inverno parece surgir por toda a parte entre os ramos despojados. É a época em
que as casas atraem como refúgios, em que a natureza fustiga o viandante com o
vento pejado de ameaças de neve.Mas, no Sul, quando
os belos plátanos perdem as folhas ambreadas, nenhuma tristeza se exala das
coisas, porque parece que eles se despem apenas para que melhor reine o tépido
sol de inverno. Além disso, todas as outras árvores conservam o seu tosão
vegetal; agulhas dos pinheiros inumeráveis, palmas das fênix, folhagem leve
das pimenteiras, das mimosas, dos verdes carvalhos, e o sorriso pródigo das
flores multicores, predizendo para novembro uma nova primavera.
Dinisa era quase
feliz.Pouco via João,
mas, ao menos, nenhuma outra pessoa lhe fazia companhia, e Maria fazia apenas
raras aparições. Dinisa compreendia agora que quando
ele a obrigava a passear,
não era unicamente para afastá-la, mas por cuidado também de sua saúde. Talvez, até, esperava-o ela ao menos,
ele se privasse assim de sua companhia.
Por seu lado, D. Estefânia, para não a deixar nunca só em casa com o sobrinho, levava-a em todas
as suas excursões. Não era transcendente a conversação da boa dama, e mostrava
às vezes pontos de vista mesquinhos, mas esses passeios faziam-na conhecer a
cidade. Iam ao cemitério de Cimiez onde estavam enterrados os pais de Fargés,
num túmulo muito cuidado, ou à casa dos fornecedores da Sra. Estefânia.
Porque, muito
maníaca, ela não comprava manteiga senão em “tal” casa, bem no extremo da cidade,
em um vale encantador pela selvageria, das rosas silvestres e da verdura lustrosa. Quanto ao sabão, não havia outro igual ao de certo negociante da cidade velha,
numa lojinha medieval perdida num dédalo de ruas estreitas e íngremes.
Em suma, passava o tempo
e Dinisa enchia-se de
paciência. Não tinha de
provar a João que amava
e conhecia sua vida,
tendo-a vivido algum
tempo perto dele?
Na verdade, o que
ela chamava sua “paciência” não era o atavismo herdado de seus antepassados
orientais? Não era — sem que ela o suspeitasse — aquele fatalismo muçulmano que
deixa agir o tempo e não mete o dedo na engrenagem dos acontecimentos senão
quando lho aconselha o instinto? Nós outros, ocidentais, tomamos sempre a vida
pela gorja para domar... O fatalismo oriental não é muita vez a suprema
sabedoria? Há às vezes perigo em apressar um desenlace e têm menos sabor os
frutos cuja maturação foi forçada.
Vinda para cumprir
uma obra de persuasão, Dinisa era soberanamente sábia deixando agir o tempo, e
era a alma das sultanas dóceis e dos sheiks — tão resolutos e tão pacientes —
que revivia nela...Entretanto, à
medida que corriam os dias, admirava-se a moça da frieza persistente de
Fargés, não achando explicação para que lhe testemunhasse tão gelada polidez. Não via a tortura que infligia ao moço, tortura que
ele previra, e que cometera
a imprudente loucura de desejar!
Positivamente,
desde a chegada, arrastava-o Dinisa sobre brasas, supliciava-o, recordando-lhe
o impossível. A ferida, tão mal cicatrizada, reabrira, para não mais sarar. Embriagava-se com a própria dor, saboreava-a como peçonha mortal e deliciosa,
envenenava-se com ela, como certos mendigos entretêm as chagas com ervas.
Não sabia se devia
odiar Solange ou amá-la, e ora aborrecia-a por não ser a outra, ora considerava-a
uma usurpadora; ora, enfim, enternecia-se, pronto a cerrá-la fraternalmente
sobre o coração, para ressuscitar os dias de outrora, os dias daquela primavera
desaparecida, em que tinha nos braços Dinisa, perfumada e flexível como uma
braçada de flores...Estas alternativas
esgotavam-lhe os nervos, que a contínua irritação tornara hiper-sensíveis. Muitas vezes, censurava consigo mesmo esses saltos de humor, sem que os
pudesse reprimir. Já não era o homem sombrio e resignado do estio precedente,
mas um desgraçado que lutava para não ser enganado por uma miragem, e que
ocultava sob a altiva máscara o desatino do coração ulcerado.
Como poderia Dinisa
adivinhar, na sua ignorância do coração masculino, a complexidade daquele qui pro quo,
e saber que, quanto mais meiga e semelhante a Dinisa era ela, mais se
revoltava o moço contra seu encanto, censurando, enfim, a si próprio, como uma
infidelidade para com o seu único amor, suas veleidades de enternecimento pela
leitora!
Uma tarde pensou a
moça que, visto que o Sr. Fargés gostava de música, devia oferecer-se para
tocar.Era perigoso
porque, geralmente, João preferia aos trechos lentos e graves que ela podia
tocar, os presto brilhantes que sacodem como uma risada e exigem velocidade que
já não possuía, e estudos diários, cuja monotonia não podia impor ao moço. Contudo, aproveitando a ausência dele, agora à beira mar com a prima,
arriscou-se. Com efeito, D. Estefânia instalou o moço sob os pinheiros da praia
e ia assentar-se quando se lembrou de uma barrela que tinha de mandar Devota
fazer.Deixando lá Fargés,
tornou a subir a toda a pressa para a vila; ao aproximar-se ouviu o piano e finalmente
viu Dinisa a tocar. Teve um abalo!
Nada conhecia de
música, mas teve mesmo assim a intuição de que a execução tão expressiva da
moça seduzia como um canto sem palavras; contrariou-a aquilo.
Pois que! A leitora
ousava ter o mesmo encanto que Maria! Era preciso, a todo o preço, deter aquela
onda intempestiva de harmonia!
Mas, seria prudente
mostrar-se rabugenta? Magoada, talvez a moça procurasse obter o parecer direto
de João.Reclamava a
conjuntura alguma diplomacia, e ela não falava a D. Estefânia. Refletiu depois
se iluminou a carinha de doninha asseada, e, toda sorridente, entrou na sala.
— Como
a senhora
toca bem, D. Solange, disse alegremente.
Suspendeu-se
Dinisa, admirada da amabilidade da velha dama. Acrescentou esta, em encantadora
confissão:
— Gosto muito de
música, e será preciso que a senhora toque para mim de vez em quando...
— Decerto, senhora,
disse Dinisa, surpresa e encantada.
—... Quando
estivermos sozinhas, acabou D. Estefânia baixando confidencialmente a voz,
porque, a senhora sabe meu primo não gosta muito de música, e Maria Chaslier,
apesar do seu grande talento, basta-lhe amplamente... Diz
ele.Sentiu Dinisa que
empalidecia e voltou a cabeça.— Eu, que adoro o
piano, desde que a ouvi do jardim, isso me deu prazer; mas João... Ele não é
como eu... E encarregou-me de lhe pedir... Não é...
Aquilo se tornava
difícil de dizer. Ora, pensou Dinisa que, na verdade, manifestara João o desejo
de que ela se calasse, e, muito fria, replicou:
— Mas, eu me
absterei de boa vontade, minha senhora!
— É isso, durante algum
tempo ao menos... Ele
está tão nervoso, tão
estranho...E continuava a envolver
a mortificação que
impusera em mil
gentilezas verbais que
Dinisa nem escutava,
dizendo consigo
aterrada: Não gostará
ele verdadeiramente
senão da música de Maria
por causa de Maria
mesma?
E, desde esse dia,
nunca mais pôs as mãos no piano..Vinha Dinisa só,
por uma tarde, de volta da costureira, à Rua do Paraíso, e flanava pela avenida
de Verdum.Anoitecia. Era a
hora deslumbrante das vitrinas.É Nice ainda mais
elegante que Paris, por causa da sua tepidez, que permite passear a pé, pelas
alamedas, os grandes mantos de zibelina abertos sobre vestidos de rendas e
colores de pérolas. E os armazéns, sucursais dos da capital, deles recebem a
flor de suas jóias, bordados e riquezas. Numa extensão de duzentos metros, é
uma acumulação de tesouros, como se um marajá da Índia ou um sátrapa da Pérsia
antiga ostentassem subitamente, para alegria dos olhos, todas as gemas de seus
cofres.Menos sensível era
Dinisa às jóias que aos trabalhos delicados dos esmaltes e avelórios expostos
na casa Macquet ou na vitrina de Mappin e Webb. Esquecia as mágoas, na contemplação
daquelas leves obras-primas.Detiveram-na,
porém, as flores de Calisté...Jóias, elas também,
jóias viventes, esmaltes que respiram, luminosos, coloridos, cheios de graça divina. Evoca o armazém, com seus mosaicos azuis e bancos de mármore, um átrio da
Grécia de Phídias.Dinisa entrou.
Certamente D. Estefânia, sempre à espia de suas compras, ficaria escandalizada por comprar
rosas daquele preço, e, com toda a justiça, não podia a moça levar a mal,
porque a boa dama ignorava a verdadeira situação da “leitora”.
Tanto pior; ela
tinha necessidade de pôr em seu quartinho aquelas rosas brilhantes, dum tom
ardente de vida, e cujo aroma mesclava a finura do chá ao perfume quente do
incenso.E, uma vez dentro,
soltou Dinisa uma exclamação, a que respondeu um “hulow” sonoro e alegre de
Daffodil Craig; acompanhava-a a mãe, arrebicada e cheia de pérolas como uma
rainha no dia da coroação.— Querida darling,
como vai você? Há muito tempo aqui? Sozinha? Oh! Fique assim. Toda esbelta e
negra como um cipreste você faz ressaltar todas as rosas!
Era bem aquela a
fantasia Daffodil. Sentindo-se levar na mesma alegria comunicativa,
respondeu-lhe Dinisa:
— Obrigada, você é
encantadora, eu sou o contraste delas!
— Ah! Darling, você
compreende o que quero
dizer. Há coisa mais
elegante do mundo, mais
distinto, que um
cipreste como se vêem nas
colinas toscanas?
— Você vai lá, sem
dúvida?
— Venho de lá. Eu e
a mamãe, que você conhece, passamos cinco dias em um palácio de ratos e de
frescos, darling, um palácio sem sala de banhos, mas coroado de vinha rústica. E você, vem comprar rosas, sem dúvida? Como eu, veja, tenho também violetas!
Ela e a senhora
Craig levavam ao cinto enormes ramalhetes. Esta disse:
— Anda sozinha?
— Sim, respondeu
Dinisa, certa de que isso não assustaria americanas. Habito Nice... Em casa de
amigos.— Pois bem, venha
tomar chá connosco no Ruhl, onde nos hospedamos, convidou Daffodil. Venha
querida, tenho tantas coisas a dizer-lhe... Agora que Dinisa cipreste está
florida de rosas, saiamos, o auto espera à porta.
O automóvel dos
Craig era longo, macio, aquecido qual mole alcova. Em poucos minutos estavam
no Ruhl.Dinisa não vira
ainda nenhum dos lugares elegantes de Nice. Gostou imediatamente da sumptuosidade
amortecida do hotel, onde nenhum esplendor berrante deslumbrava o olhar. O
estuque, as cornijas, os frisos de gesso, os doirados que abundam nos palácios,
cediam o lugar no vasto vestíbulo a colunas geminadas de mármore cor de flor de
pessegueiro. Muito pouco ouro e o reflexo disperso de altos espelhos, divididos
como os da época de Luís XIV. Belos tapetes cor de coral, o zum-zum discreto de
multidão bem educada, o serviço silencioso, formavam um conjunto de gosto
severo e requintado que agradou à donzela.
Daffodil alcançou
uma mesa meio cercada por um paravento, e as três mulheres sentaram-se.
— Sinto-me tão feliz
por tornar a vê-la, darling... Porque você não escreve quase nunca para o colégio... Deixei o instituto há três semanas, e tenho muitas notícias para lhe dar.
— Eu escuto,
confesso nada saber...— O ilustre senhor
Lépervier pediu, no mês passado, Odeta Grafeuil em casamento.
— Isso estava
previsto! Não foi em vão que ela tomou a sua maneira. Realiza
ele um belo
sonho, e ela deve exultar...— Nada disso, minha
querida, Odeta Grafeuil recusou, altivamente, casar com um professor sem
talento. São suas próprias palavras. E o senhor Lépervier deixou o instituto,
para não mais voltar.Depois, receando
que esta narração fizesse alusão às metamorfoses de Dinisa, acrescentou às
pressas:
— Em troca, a
senhora de Monfermeil, nossa venerável diretora, em pessoa, torna a casar.
— Oh! Mas... Com
quem? Não com o senhor Lépervier, creio...
— Não, com um
conhecido oculista, o doutor Thiet... Parece que se encontraram pela primeira
vez no hotel Meurice, nos aposentos de seu pai...
Dinisa estremeceu. Lembrava-se da noite da chegada do pai, da presença do doutor Thiet, da sua
desastrada intervenção, que destruira, talvez para sempre, a felicidade de Fargés e a sua. Tremeram-lhe as pálpebras, e Daffodil, perturbada, percebeu
que acabava de dar nova cinca. Muito triste, resolveu lançar-se em uma
digressão sobre modas, e passou a tratar de fazendas.
Escutava-a Dinisa
com prazer. Sentada entre Daffodil e a mãe, naquele quadro luminoso, embalada
pela orquestra, esquecia de repente a angustiada tristeza de sua vida.
Em frente dela, entre
duas colunas, um cartaz
florido anunciava a
festa das rosa. Não
viria ela jamais a uma
dessas festas com
Fargés, seu marido,
arrancado por ela à vida
morna que lhe impunha D.
Estefânia?
Doía-lhe ver a
velha senhora tratar o moço como um octogenário, passeando-o ao sol a passinhos
prudentes, andar lento que o enfraquecia; não lutava contra a anemia que, à
falta de exercício, espreita os cegos. E esse exercício com algum engenho, se lhe
podia ministrar. Quisera Dinisa fazê-lo caminhar todos os dias, a passo de
ginástica, sobre uma superfície perfeitamente plana e bem conhecida dele. Isso
fustigar-lhe-ia o sangue vivificando-o. Voltaria à casa alegre, animado. Os
cegos devem ser tratados como cegos o menos possível.
Veio arrancá-la
bruscamente às suas reflexões um rufar de tambor, e extinguiu-se a luz
elétrica; afogou-se na sombra o grande vestíbulo de mármore, célebre em toda a
região.— Que aconteceu?
Perguntou ela admirada.
Um desarranjo na
eletricidade?
Sacudindo a cabeça
emplumada de penachos, que lhe davam um ar de linda selvagem, respondeu
Daffodil rindo:
— Minha querida,
vai-se executar a dança das pérolas luminosas.
— Luminosas? Não
compreendo...— Você vai ver.
Acorria ao palácio
toda Nice, a ver este número, e a espera eletrizava as curiosidades. Já muitos,
para melhor verem, subiam às cadeiras, sem respeito pelo brocado... Um refletor
projetou sobre o lajedo de mármore branco um jato resplandecente, e apareceu a
dançarina.Grande, pernas
longas e finas, rosto infantil de olhos vivos de japonesa, estava toda vestida
de uma rede de pérolas róseas que lhe acompanhavam os passos dum murmúrio muito
doce, perceptível, apesar da música. Mas não era essa a atração prometida.
De repente,
extinguiu-se o projetor, toda a sala ficou escura, e brotaram as aclamações,
porque, naquela treva, só as pérolas luziam, com um fogo sem raios, verde cor
de absinto, sulcos de luz saltitante na obscuridade, como se revestissem um
espírito demoníaco e invisível, ou, talvez, a sombra da Sulamita do Cântico
dos Cânticos, dançando, banhada de luar, diante do rei Salomão... Era a dança
do Rádium.A multidão
palpitava.Súbito,
reapareceram as luzes, foi-se a dançarina; recomeçou a tagarelice, e, no espírito
de Dinisa, uma pergunta surgiu: que dizer às Craig? Agora, que pessoas
razoáveis podiam julgar sua escapada, parecia-lhe esta absurda, insensata,
incrível. Não, jamais ousaria confessar a que situação falsa a arrastara sua
ternura repelida. De todo coração desejava que Daffodil, arrebatada pela
própria loquacidade, pela narração de seus namoros, se esquecesse de lhe
perguntar em casa de quem se hospedava, e, sobretudo, não se oferecesse para ir
vê-la à casa de seus pretensos amigos...
Corria o tempo. Afinal parou a orquestra, deixaram os músicos seus instrumentos, terminara a
hora do chá. Dinisa levantou-se.— Daffodil tenho
que ir, tenho que dar ainda algumas voltas...
— Oh! darling,
acompanho-a.— Mas não, Daff... Balbuciou
Dinisa desnorteada.Felizmente, a
própria senhora Craig veio tirá-la do embaraço:
— Daff jantamos
hoje em Cannes, você bem sabe como os Scott são pontuais: ainda temos de nos
vestir... Na verdade, é preciso ficar.
— Mas tornarei a
vê-la, Dinisa? Interrogou a americana.
— Sim, eu voltarei
sem demora aqui, replicou rapidamente Dinisa.
— E tome o auto, que vai
levá-la à casa de seus
amigos. Onde está?
Ia Dinisa responder
vagamente, mas aproximaram-se dois moços de Daffodil e da mãe, dois namorados:
a americana, confiscada, não esperou a resposta da amiga. Recomendou-lhe
somente que tomasse o auto, acompanhou-a a carruagem, depôs-lhe nos joelhos
seu ramalhete de rosas e a moça partiu.
— Ao vértice do
monte Boron! Disse ela ao chofer pelo tubo acústico.
Reaquecida,
embriagada pelo odor das rosas, pensando nas narrativas variadas de Daffodil, achou o trajeto curto. Mas um instinto
determinou-lhe que fizesse o chofer parar antes da Vila Azul. Chegando diante
da estrada transversal, pediu-lhe que parasse e desceu.
Projetavam os
faróis do auto uma luz tão cegante, que, fora da zona esclarecida, à sombra
parecia duplamente densa. Ao descer, não viu, pois Dinisa, parada para lhe dar
passagem, D. Estefânia em pessoa. D. Estefânia que, de boca aberta, a
reconhecia e verificava que ela punha na mão do chofer uma cédula azul!
O auto desapareceu,
e Dinisa ganhou a vila, seguida de perto por D. Estefânia.
Subiu imediatamente
ao seu quarto e pôs na água as rosas adoráveis; os painéis cinzentos, as
gravuras graciosas, a elegância discreta do mobiliário, tudo foi iluminado pelo
reflexo das flores resplandecentes.
Desceu depois ao
salão, e, do vestíbulo, ouviu a voz sufocada de D. Estefânia dizer:
— Sim, meu filho,
uma limousine principesca! Ela tem na verdade relações importantes, a nossa leitora!
João, que, à fé de
sua prima, julgava Solange feia, não fez mau juízo desse fato, e replicou,
erguendo um pouco a voz:
— Isso prova que
ela conhece aqui gente rica.— Enfim,
confessarás que é excessivo!
Dinisa estremeceu. Dada num tom médio e amortecido, a resposta de João não lhe podia chegar, mas
o timbre agudo de D. Estefânia atravessou de novo a leve parede:
— Mostras na
verdade muita paciência! Pois quem tem amigos em tão boa posição, que vá procurá-los!
— Tua tia? Ela não
nô-la confiou, em suma; a senhorita Parny está colocada aqui como estaria
noutra qualquer parte. Fica tranqüilo, é bastante esperta para se tirar de
apuros!
— Dizes que ela não
te incomoda! Mas tu não te vês desde que ela está aqui. Não és o mesmo. Tornaste-te nervoso, irritável. Cada vez que ela aparece, passa-te uma
contração pelo rosto. Há nela alguma coisa soberanamente antipática, que te não
escapa, e não podes dominar a impressão desagradável que ela te causa!
— Não te é
antipática? Porque, então, ficas muitas vezes tão pálido quando ela fala?
Porque crispas os punhos?
Perguntou D. Estefânia,
longe de imaginar
evidentemente a causa
verdadeira daquelas
manifestações de
padecimento. Porque,
enfim, lhe foges tão
visivelmente?
— Não devemos, por
causa de tua tia? Seria falta de educação, para com ela, dizes. Um lindo
presente, o que ela nos fez! Podia ter escolhido melhor, em todo caso! Então,
por escrúpulo de cortesia, tu te infliges a presença dela? Primeiro, pois que
D. Solange tem amigos tão graúdos, poderia retirar-se para casa deles. Mas
não, não falo em pô-la à porta deles! Como está suspeitoso, Senhor! Vou
simplesmente interrogá-la, ver se ela não preferiria estar noutra parte a ficar
aqui...— Mas deixa-me,
pois fazer sou mais esperta do que pensas. A senhora Bremond e Solange não desconfiarão
de nada, e tu recuperarás a paz moral quando ela tiver ido embora.
A passos rápidos
ganhou o vestíbulo e viu Dinisa, acabrunhada sobre uma banqueta.
— Ah! A senhora
estava aí... Há muito tempo? Perguntou ela num misto de alegria e constrangimento.
O orgulho reanimou
a moça. Tranqüila, um tanto breve, respondeu:
— Acabo de chegar,
e queria dizer-lhe que encontrei em Nice duas amigas, que me desejam ter
consigo. Gostaria de ir esta noite...
— Mas certamente,
respondeu D. Estefânia, um pouco vexada no fundo, por ter sido Solange a primeira
a falar em partida. Estava persuadida de que a moça tudo ouvira, mas, apesar de
tudo, sua vitória não era completa. Procurou uma frase irônica para
ridicularizar a “generosidade” de uma moça que trabalha para viver, e dá “cédulas
de dez francos” a um chofer! Mas, não tendo achado essa frase lapidaria e
genial, afastou-se resmungando, enquanto Dinisa subia rápida ao seu quarto.
Na exaltação da sua
dor, meditava. Fosse embora Solange Parny e não Dinisa Deléris a que tinham despedido
nada mudava isso ao fato real. Tendo vindo para consolar, tinha, infelizmente,
desagradado tão profundamente ao moço, que, não podendo vencer sua
repugnância, despedia-a
ele, como se despede uma empregada infiel!
Isso provava, acima
de tudo, que Dinisa se tornara tão antipática a Fargés, que a que lha recordava,
por pouco que fosse, tornava-se-lhe imediatamente odiosa... Acreditava-o ela.
Sufocada, opressa,
sublevavam-lhe o peito soluços ruidosos, desesperados. Sentia desejo de
gritar, de morrer; acusava o pai, causa de tudo, depois acusava João, que
revelava fria crueldade, esquecido do amor, odiando a moça culpada... De não
ter adivinhado a verdade outrora, no momento da ruptura.
Soluçava alto, como
uma criança, abismada no desastre de seu sonho de bondade e de ternura, e,
através das lágrimas, contemplava, posto sobre a comodazinha cinzenta de
ornatos de turquesa, abaixo do quadro de Fragonard, o ramo de rosas, cuja beleza
alegre parecia insultar-lhe a tristeza, a humilhação do pobre coração.
Esteve a ponto de
soltar um grito, vendo de repente João diante dela.
Entrara sem rumor,
e percebendo-lhe o sobressalto de espanto, disse:
— Bati... Pareceu-me
ouvi-la dizer que entrasse... E, acrescentou, escutando assim sua intrusão,
cego, isso me dá o direito de aparecer mesmo aqui.
Depois, como ela se
calava, perguntando consigo mesma que novo padecimento ia ele ajuntar,
continuou:
— Ouvi-a chorar ao
passar no patamar, e venho pedir-lhe perdão da minha dureza. Sim, sim, fui
injusto, mau, eu o sei, e, contudo, menos que qualquer outro eu tinha o
direito de sê-lo! Perdoe-me, senhorita Solange, e acredite, sobretudo que não é
à senhora, — pobre e boa menina — que eu quero mal. Sinto que minhas palavras
devem parecer-lhe extravagantes... a senhora não pode compreender... Mas, sem o
querer, traz-me tão cruéis recordações... Ainda uma vez, perdoe-me.
— Perdoo-lhe,
murmurou ela num sopro.Apoiava ele a mão
ao mármore da cômoda, perto das rosas, a dois dedos da pasta de couro onde
repousava sua própria fotografia! Continuou espalhada nos traços comovente
bondade:
— Se me perdoa
verdadeiramente, faça-me a graça de ficar!
— Oh! Não, isso
jamais! Padeci demais aqui! Confessou ela num soluço.
— Está acabado,
está acabado, disse ele, estendendo a mão, atraindo-a um pouco pelo braço. Tenho
vergonha de mim mesmo, vergonha de ter feito padecer outro ente, só e sem
defesa. Tenho remorsos que me não deixarão nenhum descanso se a senhora me não
perdoa completamente, ficando.Estava muito perto
dele, sentia através do tecido da manga a mão do moço, e apoderava-se dela uma
inebriante doçura, um desejo de deter o tempo, de ficar assim toda fraca e toda
consolada, junto dele. Ah! Falar, dizer a verdade!
Veio-lhe a idéia
num relâmpago. Mas a piedade do moço, sua humanidade, não se ia toda para Solange
Parny somente? Não lhe falava assim por considerá-la a outra? Que lhe provava
que a aversão dele por Dinisa diminuira em nada? Não iria, falando cedo
demais, quebrar por suas próprias mãos o frágil liame de piedade, de compaixão,
de remorso, que a ligaria a
ele? Não queria ele, de agora em diante, resgatar a
passada dureza com alguma benevolência? Não ia ela tocar o fim?
Desmascarando sua
verdadeira
personalidade,
arriscava-se a vê-lo se
retrair, repelir em um
movimento irrevogável —
embora o lamentasse mais
tarde — a felicidade que
lhe vinha trazer?
Sabia-o nervoso, mais
impulsivo que dantes,
depois da provação, e
cresceu nela o desejo de
deixar àquela hora toda
a sua tocante doçura, de
não falar ainda...— Não me responde? Perguntou
João com uma grande melancolia, enquanto os dedos se lhe fechavam um pouco
sobre o braço da moça.Ela estremeceu e
disse, envergonhada da própria covardia, desesperada e feliz a um tempo:
— Ficarei!
Já ele a soltara,
mas alcançando a porta a tatear, envolvia-a num olhar cego e benevolente. Não,
nunca mais ela estaria exposta à sua frieza hostil, e, como se quisesse
persuadi-la melhor, disse, num tom hesitante, de quem teme a recusa:
— Hoje... Quer a
senhora me começar a leitura da Cartuxa de Parma? É leitura para muitos
serões...Queria, com isso,
sublinhar bem que ia começar uma vida nova: Não era a ocasião de conversar um
pouco? Dinisa murmurou:
— Não gostaria
também que lhe lesse o teatro moderno?
Não ia dantes ao teatro?
— Mas sim,
freqüentemente. A última
peça que vi foi no
Casino. O Novo Ídolo, de
Curei. Conhece-a?
— Sim, e tornarei a
lê-la com alegria. Mas confesso que não é a ciência para mim, pessoalmente, meu
novo ídolo! Gostaria de viver no tempo da Renascença, quando a arte era o deus
novo.— Oh! A Renascença,
disse João animando-se, foi a idade de ouro. A meu ver, foi Rafael o mais feliz
dos mortais; morreu jovem, como aqueles a quem amam os deuses!
— Sempre tenho
sonhado com Fomarina, disse Dinisa. Como Rafael a amava, e quão bela deve ter
sido!
— Quando estava em
Roma, ia muitas vezes à beira do Tibre, esperando sempre encontrar lá alguma
das irmãs longínquas dessa Fomarina; estive até a ponto de apanhar a febre,
porque o rio é palustre e pérfido...
— E encontrou enfim essa
irmã ideal?
— Sim, creio-o; não
foi no Trastevero, mas em plena campanha romana. Voltando um dia de Frascati,
parei em um albergue. Havia ali uma mulher muito nova, descarnada, tremendo com
a malária, quatro filhos ao redor da saia, outro ao seio, e, apesar da miséria
e da febre, um perfil tão belo, que não podia despregar dele os olhos. Ela
percebeu-o, e foi buscar um retrato, um estudo que lhe deixara há três anos um
aluno da Escola Médicis.
Que perfeição!
Julguei ver Juno aos dezasseis anos! Vivera naquele rosto, agora devastado todo
o esplendor olímpico, e, a senhora vai rir de mim, D. Solange, senti lágrimas
nos olhos, como diante de um sacrilégio, uma profanação ímpia. A Vénus de Milo,
despojada dos braços, deve ter aparecido menos mutilada aos olhos dos que a
descobriram do que aquela mulher augusta e miserável!
— Oh! Disse Dinisa
comovida, ao tornar a
encontrar naquelas
palavras toda a
requintada sensibilidade
do João que tinha amado;
que disse ela, vendo-o
chorar?
— Tirou-me
vivamente o retrato das mãos e disse-me num tom selvagem e apaixonado, que
jamais esquecerei:
— Giulio, meu
marido, ama-me e eu o amo! Havia naquele grito toda a felicidade do amor fiel. De nada se lamentava ela, pois que seu bem amado a amava... Ah! Onipotência
adorável do amor!...Iluminara-se-lhe o
rosto. Assustada e trêmula, disse Dinisa baixinho:
— Como se sente que
o senhor sabe amar, e como deve ter sido querido!
— João estremeceu. Desapareceu-lhe do rosto a luz, e disse muito depressa:
— Peço-lhe,
senhorita, se me quer ser agradável, não faça jamais alusões ao passado.
No mesmo instante,
a voz super-aguda de D. Estefânia se fez ouvir no rés-do-chão:
— João, gritava, o
jantar está servido, tu
não desces?
— Sim, sim,
respondeu o moço com impaciência. Depois, voltando para Dinisa:
— Assim, está
entendido, a senhora me fará a leitura, isso me arrancará um pouco a meus pensamentos. Faço mal em me comprazer na minha solidão. A gente acaba por amar mortalmente
a própria dor!
— Está tão insulado
aqui, ninguém o compreende, eu gostaria de ajudá-lo a sair desta monotonia
moral, em que se deixa sepultar...
— Obrigado, a
senhora é, eu o sinto, benfazeja e caridosa, recomendo-lhe somente que jamais
me fale no que está acabado...— E, contudo,
começou Dinisa, fremente e resoluta, eu dizia-lhe...
— Então! João, não
jantas hoje? Disse uma voz perto deles.
Seca e crispada,
aparecia D. Estefânia à porta, que ficara aberta, e o moço respondeu:
— Mas sim, eu vou,
nós vamos. Depois, a Dinisa:
— Depois do jantar,
senhorita Solange, recomeçaremos nossa conversa.
Apurou D. Estefânia
o ouvido: depois do jantar? E prometeu consigo estar lá!
João afastou-se, a
porta tornou a fechar-se, o acaso tinha ainda uma vez selado os lábios de
Dinisa.
Ela, porém, já não
estava triste. Enfim, quebrara-se o gelo entre eles, e, através dos cílios
ainda molhados, via, reproduzido cem vezes sobre o pano de louy, o terno
axioma: O amor faz passar o tempo.
FAZ O TEMPO PASSAR O
AMOR?Ainda, Maria, ainda
o adágio, sim? Pediu João curvando-se, instintivamente, para a pianista, que
sorriu. Não pode imaginar quanto gosto deste doce e cruel adágio da sonata do
Luar... Parece-me ouvir chorar uma alma dolente, que de tão desesperada não se
pode lamentar ruidosamente...
— Vou recomeçar,
disse Maria, tocando outra vez aquela primeira parte da célebre sonata, em que
velada tristeza chora com grandiosa doçura.
Estirado numa
poltrona, abandonava-se João ao encantamento pungente da música, e a harmonia
trágica formava vivo contraste com o deslumbrante esplendor do dia, que entrava
como um oceano de luz no vasto salão.
Dezembro tinha
naquele ano brandos calores de primavera. As grandes janelas estavam abertas ao
sol, que avivava as paredes, onde finas pinturas Diretórias espalhavam em
profusão guirlandas, camafeus, umbelíferas, as minúcias encantadoras dum estilo
inspirado nas decorações pompeianas.
O salão fora
decorado pelo pai de Fargés, de volta de sua viagem de núpcias a Nápoles. Lembrando-se
de uma excursão a Pompéia, a dos adoráveis frisos do triclínio da casa dos
Vettii, aonde se vêem amores a vindimar, quisera reproduzir na sua própria
morada os frescos arcaicos e, naquela decoração não destoava muito o piano de
cauda, graças à sua capa de seda clara, e a um vaso de bronze esverdeado, cheio
de ramos de mimosa.Enfim, pelas
janelas avistava-se o Mediterrâneo...
Inesgotável encanto
das palavras! Desde séculos, as sílabas de “laranjeiras”, “primavera”, “vergéis”,
derramam nas almas ondas de frescura! e aquele mar pareceria menos belo talvez,
se não se soubesse que banha aqueles jardins da antigüidade de doces nomes:
Egito de Cleópatra, Mitilene de Sapho, Itália, museu do mundo, para onde se
voltam nossos sonhos. Aquele Mediterrâneo, tão carregado de passado, será para
sempre adolescente, porque embalou a juventude do mundo, e, todas as manhãs,
as ondas parecem trazer às praias mediterrâneas a mensagem de Afrodite, a
abrasada anunciação do amor...Tudo isso, dizia-o
João de si para consigo, e comprazia-se, na sua noite sem fim, no encanto da
música.Seguindo a
cadência, repetiu de novo, quando acabou o adágio:
— Quem se queixa assim
no pensamento de
Beethoven?
Dinisa, que bordava
um quadro de filé sentada ao pé de D. Estefânia, disse docemente:
— Ouvi dizer que o
que inspirou esta sonata a Beethoven foi
a vista de uma jovem cega, e é o
doloroso estupor que sentiu meditando na cegueira da moça que descreve nesta
primeira parte.— Ah! Disse João
voltando-se para ela com animação, é então por isso que sinto tão estreita
relação entre minha alma e esta música?
Sabia esta
particularidade, Maria?
Sacudiu a moça a
cabeça, coroada de pesada massa de cabelos lisos, luzentes de brilhantina, exalando
cheiro forte e vulgar de rosa e almíscar. Ignorava a minúcia referida por
Dinisa, e, imediatamente, sem deixar a João o tempo de falar mais com sua
leitora, atacou o alegreto, que é vivo, arrebatado, como súbita reação contra
a dor sombria.Dinisa escutava-a. Sim, Maria Chaslier tocava bem, destacando cada nota, corretamente. Contudo,
Dinisa não se sentia encantada. Parecia-lhe ouvir uma pianola. Também ela,
outrora, aprendera aquela sonata do Luar; certamente não possuía o brio de
Maria para as partes brilhantes, mas parecia-lhe que, ao apelo de seus dedos, o
adágio tinha um acento mais cruel, bem mais humano.
Afinal, como
poderia Maria ter muito sentimento?
Sentia-a a gente
profundamente plácida,
nervos serenos,
incapazes de
sobressaltos. Religiosa
beatitude impregnava-lhe
a alma, muito
desprendida da terra
para se inflamar com
imaginações artísticas.
Dinisa não amava Maria,
sentia-a muito diferente
de si própria, enfim,
temia-lhe a influência
sobre João. Mas não
podia deixar de apreciar
profundamente. Sabia-a
devotada, heróica, se
fosse preciso, acima do
comum. Mas, justamente,
Maria não poderia ser a
companheira ideal de um
artista, de um ente
impressionável, de cujos
súbitos entusiasmos ela
não poderia participar,
e, como ele, delirar de
alegria porque uma forma
de arte pura fora
alcançada. Não a via
ele, é certo, mas
agradar-lhe-ia ao tato a
seca rugosidade dos
vestidos de sarja e
aqueles grossos pulsos
feitos para erguer um
ferido sem fraquejar,
aquelas fortes mãos, tão
ágeis sobre o teclado,
mas cujas unhas,
cortadas rente, mais
lhes acentuavam a forma
quadrada, vigorosa,
varonil?
Enfim, a não ser a
música, Maria desinteressava-se por todas as artes em geral, e fazia esforços
tocantes e inúteis para parecer que apreciava os gatos de argila de João.
Evidentemente, não
via ela nenhuma utilidade em haver quadros nas paredes, estátuas nos socos, e
quando queria dar mais sonoridade à sua execução, pegava no vaso de bronze
coroado de flores encantadoras e o pousava prosaicamente, não sobre uma mesa,
onde resplandeceria, mas no chão, a um canto, como faria a uma caixa de carvão. Sem a intervenção de Dinisa, é verdade, não haveria jamais flores na casa. Pretendia D. Estefânia que isso sujava, e Dinisa tinha, às escondidas, feito
contrato com uma florista, que as trazia duas vezes por semana, por preço tão
irrisório, — a pagava a diferença — pois João ordenara que sempre lhas
comprassem.Ele sim era
sensível ao perfume de um ramo de laranjeira, redondo e cândido, em um vasinho
de Delft, ou ao aroma dos cravos multicores. Descobrira, com o tempo, que era
a leitora quem cuidava destas minúcias, e recompensava-lha com um sorriso
amigável, que reaquecia o coração da moça.
Ademais, depois da
grande cena, modificara-se a situação entre eles. Regularmente, depois do jantar,
enquanto o moço repousava na sua longa estação de pé diante do barro, ela
fazia-lhe a leitura. Depois de Stendhal, tinham começado as Lendas dos Séculos,
e ambos se entusiasmavam nas mesmas passagens, repetindo à saciedade certas
obras que os comoviam mais profundamente. Sabiam de cor Oceano Nox, trágico e
selvagem como o mar bretão; de cor, aquela Ruth e Booz, pura, bíblica, imortal
como um templo de mármore, e amava com o mesmo amor enternecido a pequena
Infanta, de pé perto da fonte triste, uma rosa na mão...
Tinha, afinal,
chegado ao teatro, que por virtude do diálogo, parece imiscuir diretamente o
leitor na conversação dos heróis. Trocavam impressões. Encontrava João grande
paridade entre seu espírito e o da jovem. Não tinha ela sempre opinião formada,
e, nesse caso, escutava-o docemente, impregnando-se do seu espírito, atenta e
fervente discípula.Sim, havia nesses
momentos uma distensão, comunhão deliciosa, que inebriava Dinisa para todo o
dia seguinte, porque, da manhã à noite, ficava
ele na oficina, fumando,
trabalhando ou cismando.Que importa,
revestia-se de paciência. Muita outras vezes ainda tentara ela desmascarar sua
verdadeira personalidade, mas a contínua presença de D. Estefânia
entravava-lhe as confidencias. Muito decidida, além disso, a se explicar um
dia longamente se fosse necessário, desejava ainda assim que surgisse um
acontecimento que a lançasse espontaneamente sobre o coração de João.
Demais, não havia
ainda três meses que participava da existência de Fargés, e era preciso ao
menos esse lapso de tempo para persuadir de que ela conhecia sua vida, por ter
vivido a seu lado.
Enfim, tinha receio
de Maria. Acolhia-a João com afetuosa cortesia, determinando que, sempre que
vinha, levasse para Monte-Carlo enormes ramos de flores, que embaraçavam a
prática donzela...
Não, era preciso
nada precipitar, o tempo lentamente tornava a tecer entre eles o liame
quebrado outrora por Deléris.Ora, uma tarde,
lendo um programa que João acabava de receber, disse-lhe Dinisa:
— Vai haver, no
Club dos Artistas, uma conferência sobre a ilha de Malta; o senhor devia ir,
há tantas coisas a dizer sobre essa ilha!
—- A senhora conhece-a?
— Passei lá, vindo
de Túnis... Interrompeu-a uma exclamação. Nem ousava olhar para João...
Mas não fora
provocada pela sua resposta. Era Mistral, que, pedindo auxílio um pouco forte
às garras, acabava de saltar sobre o senhor.
— Mistral, infame
quadrúpede, são modos de moço bem educado?
Dizia João sacudindo o
belo animal, que
rosnava. Então,
senhorita Solange,
recomeçou Fargés, dizia
a senhora que a ilha de
Malta é interessante?
Não ousou ela tornar
a falar de Túnis, e disse somente:
— Imagine um
pedestal de calcário resplandecente, servindo de suporte a uma cidadezinha de
deslumbrante brancura, sem uma árvore, sem uma flor, sem um obstáculo que
detenha o ímpeto furioso da luz ou lhe quebre a reverberação! Malta é a eleita
do sol, seu templo natural...— Se o
conferencista se exprime como à senhora, a sessão será interessante. Além
disso, faço parte do Club dos Artistas.
— O senhor devia ir
lá muitas vezes. Parece-me que lhe seria agradável conversar com homens. A
conversa das mulheres deve acabar por cansá-lo.
— De modo algum,
ela é cheia de pontos de vista engenhosos, respondeu
ele sorrindo. Entretanto,
confesso que gostaria algumas vezes de falar de política. Mas é-me difícil ir
lá...— Eu poderia
acompanhá-lo. A existência que leva aqui é a de um frade cartuxo. Não é minha
senhora? Disse
Solange, voltando-se
para Estefânia, não acha
que o senhor Fargés
devia apegar-se à vida
como todas as outras
pessoas?
— A facilidade com
que a senhora diz isso! Disse a velha dama, que detestava as “inovações” da leitora
e achava João menos feliz. Em primeiro lugar, é ainda muito nova para bem
julgar.— A mocidade
compreende a mocidade! Replicou lentamente Dinisa.
— Bem, bem, não discuto,
mas lembro-me agora,
João, que tenho que te
falar. Queres ir até ao
teu atelier?
Dinisa mordeu os
lábios. Estava habituada a que Estefânia a interrompesse e lhe “cortasse os
naipes”. Se Mistral também vinha ajudá-la, era completo!
No entanto, dizia
João:
— É então muito solene o
que me queres dizer?
— Nunca posso te
falar só por só! replicou acirradamente a prima.
— Pois sim, estou à
tuas ordens, vamos lá. Desculpe-me, D. Solange, tornaremos a falar do Club
amanhã. Por esta noite, eu a liberto...
— Oh! Disse ela,
com mais fogo do que o quisera, sabe bem que não me aborreço ao seu lado!
Sorriu o moço. Decididamente, tornava-se muito gentil a leitora. E respondeu:
— A senhora é muito
amável; sou infinitamente grato, e boa noite. Tenha belos sonhos alados... As
asas do amor. ..— Não vens? Interrompeu
D. Estefânia, a quem horripilavam estes madrigais.
Seguiu-a ele ao
atelier, voltou o botão da luz, por um velho hábito, e um clarão amortecido
espalhou-se de uma lâmpada antiga modernizada.
— Escuto-te, minha
prima. Que problema de
economia doméstica vai
submeter, ao meu saber?
— Meu filho, disse
ela, parece-me que esqueces o fim da vida.
— Sou muito
diferente dos outros para que me importe o fim da vida: quando muito o fim da
minha vida...—
Não façamos jogo de
palavras, eu não sou
fina! Vejamos João,
quando vais pedir a mão
de Maria?
Fez ele um gesto de
contrariedade, e disse enfim:
— Mas... Tu sabes
que ela trata da avó. Enquanto esta tiver necessidade dela, Maria não a pode
deixar.— Então, isso pode
ainda durar meses! Gritou a velha consternada.
— Não temos pressa,
nem um nem outro, disse João friamente.
— Devias, no
entanto pensar em criar um lar, meu filho.
— Não me queixo da
minha existência presente.— É uma existência
inútil, disse D. Estefânia nervosamente. Passas o tempo a manejar terra ou a
tagarelar à noite com Solange.— Nós não
tagarelamos, corrigiu João, conversamos... Nem sempre tenho ocasião de agitar
idéias gerais, isso me distrai das conversas vulgares que não tratam senão de
si mesmo ou de outrem! Solange é muito culta.
— Em todo caso, se
crês que isso a diverte, teus assuntos filosóficos, como ontem à noite, sobre
teu Einstein, enganas-te. Isso a aborrece profundamente, aquela moça, mas ela
segue um plano, na verdade!
— Um plano? Perguntou
ele sem compreender.— És ingênuo se não
sentes que, destinada a trabalhar toda a vida em casa dos outros, representas
para ela um vantajoso partido! Bem quisera ela tornar-se a proprietária da
Vila Azul. Ao menos, com Maria, sabes que és escolhido por ti mesmo, e não seduzido
por causa dos teus bens!
Era verdadeiramente
sincera, supondo que a situação tentava Solange. Ademais ignorando ela a
verdadeira posição da leitora, justo era que achasse aquela moça elegante, que
despendia largamente, o oposto da mulher econômica, apta para a boa administração
dos fracos rendimentos de João.
Este, entretanto,
respondia:
— Acaso faço eu a
corte a Solange?
Então, donde tiras tu
que penso em casar com
ela?
— Ela te fará
pensar nisso. Se eu não velasse, há muito tempo te houvera assaltado com suas
declarações. Naturalmente, a supões tu desinteressada. Os homens são tão
fátuos!
— É uma palavra
demais no meu caso, disse João, magoado. Não tens necessidade de me recordar
que já não posso suscitar outro sentimento que não... A cupidez!
— Ah! Meu João, eu
não te diria, se Maria não te amasse sinceramente, assim como tu és!
— Assim como eu
sou... Ela é muito bondosa, e tu também, afinal, mas deixa-me, queres? Estou
fatigado.Retirou-se D. Estefânia e João pôs-se a passear de um lado para outro. Fora certeiro o golpe.
Decerto, jamais
perguntara a si mesmo se o prazer intelectual que gozava ao pé de Solange podia
conduzi-lo ao casamento. Nem mesmo pensava nisso. Mas, sabê-la venal, saber que
o interesse que mostrava pelas suas discussões era hábil fingimento, entristecia-o. Nunca sentira tanto sua decadência; exagerava-a até, porque se conservava
belo, a desgraça acrescentara-lhe à expressão um encanto comovente, e quando conversava
animado, Fargés voltava a ser o homem encantador de outrora.
Em suma, desde esse
dia, vigiou ele para que as leituras não degenerassem em palestras. Quando Dinisa tinha lido um ato ou um capítulo,
ele levantava-se, ia para a
oficina, pretextando a inspiração, e chamava Mistral... Mistral, modelo
preguiçoso, que estava a se fazer cozer a fogo lento diante da chaminé,
hesitava. Então Dinisa, para ocultar a decepção — porque aquele reviramento? Seria
Maria a causa? — tomava o gato nos braços, beijava a cabecinha redonda, onde o
pêlo era raso como um pano negro ali onde pousava os lábios de João.
Estendia depois o “modelo”
ao moço, e Mistral — intérprete inconsciente — levava entre as duas orelhas o
coração de Dinisa posto ali num beijo!
E João não sabia
reconhecê-lo, e João ignorava que adorável rosto, umbroso e fresco como um belo
fruto sob a folhagem, se tinha estendido para
ele. De novo, D. Estefânia
triunfava...Teve, porém, esse
triunfo a duração de um fogo de Bengala.
Ia o acaso
demonstrar ao moço a duplicidade da prima.
E esse acaso
penetrou na Vila Azul, encerrado num frasco de Lalique, de vidro gravado, igual
aos alabastros de perfumes achados nos túmulos das antigas cortesãs.
Apesar da aparência
fenícia, não vinha o frasco dos hipogeus de Tyro ou de Amathonte. Comprara-o
Daffodil Craig,
mais simplesmente, enchera-o de Chypre, na casa Coty, e oferecera-o a Dinisa.
— Este perfume
inebriante, pensara a moça ao respirá-lo uma manhã, faria desmaiar de horror a
nossa virtuosa Estefânia. Mas, estou certa de que gostaria dele. Dantes... Adorava
o Origan.Pensou um pouco,
depois, não mais resistindo, deitou algumas gotas na massa sedosa dos cabelos. Súbito, iluminou-lhe o rosto gaiato sorriso. Acudia-lhe travesso pensamento! Se
pusesse um pouco da essência na casa, para criar uma atmosfera deliciosa e
efêmera? Que espanto não seria o de D. Estefânia, sentindo-se perseguida por
aquele demônio intangível? Há muito tempo não ria, veio-lhe súbita necessidade
de travessura, de criancice. Abriu com precaução a porta do quarto. Deserto o
corredor. Ajoelhou-se sobre o tapete e quis derramar algumas gotas. Mas, no
mesmo momento, julgou ouvir o rumor de outra porta, e, estremecendo, fez um
movimento tão rápido, que a metade do frasco se espalhou no tapete.
— Passei da medida,
pensou confusa, voltando precipitadamente ao quarto.
Depois, pensando na
emoção de D. Estefânia, pôs-se a rir, tomou o chapéu e a capa e saiu como costumava
fazer todas as manhãs.
Estava em marcha o
acaso...Repousava ainda
João, quando a porta abriu-se abruptamente, e D. Estefânia precipitou-se, dizendo-lhe
assustada:
— Não estás doente?
Não tem dor de cabeça,
meu “pobre” pequeno?
Espantado da
trágica entonação, perguntou o pobre pequeno:
— Que há? Estou ameaçado
de asfixia?
— Há, replicou D. Estefânia, com gestos largos de rainha de tragédia, há que a leitora derramou
no tapete do corredor não sei que horrorosa mistura, e estamos literalmente
envenenados!
Sem responder, João
suspirou. Pensou que Solange entornara sem dúvida algum frasco de farmácia, e
achava fora de propósito tanto barulho por um pequeno acidente.
Nisto bateram à
porta.— Entre! Gritou
Estefânia.Depois,
desnorteada, como se a peste em pessoa estivesse emboscada atrás do batente:
— Depressa, Devota,
torne a fechar a porta,
que “isso” não penetre
aqui. Que há?
— Senhora, achei esta
garrafa sobre a chaminé da senhorita Solange; é daqui que vem o odor, sem
dúvida.— Que é? Disse
João, que ainda não sentira o perfume. Petróleo para o cabelo? Essência
mineral? Alcatrão
para a garganta?
— Não, disse
ingenuamente Devota, lendo no frasco, é Chypre...
— Oh! Mas isso deve
ser delicioso! Gritou Fargés estendendo a mão. Dê-me.
Passou-lhe a criada
a pequenina ânfora de cristal, enquanto D. Estefânia dizia ofendida:
— Eu, estes
horríveis perfumes modernos me deixam doente! Desço ao jardim, pois tenho que
falar ao jardineiro.Não a reteve João e
ela saiu com o ar majestoso de uma rainha ofendida, ar, aliás, perdido para o
moço. E como a criada ficara no quarto, perguntou-lhe
ele:
— Espera alguma coisa.
Devota?
— Eu queria a “garrafa”,
senhor, para repor na chaminé da senhorita.
— E Estefânia está lá
embaixo?
— Sim, senhor, no
jardim; ela quer que o jardineiro despregue o tapete que cheira tão bem, senhor...
— Ah! Você acha
minha filha? Disse João sorrindo. Pois bem, aí tem o frasco, mas não vá você
derramá-lo por sua vez no avental ou na cabeça!
— Como faz a moça,
que o põe nos cabelos crespos...— Ela tem cabelos
crespos? Perguntou João, um pouco surpreendido.
— E belos olhos,
grandes e negros, replicou Devota com ardor, porque era admiradora sincera de
Dinisa; e uma boquinha que eu sempre pensava primeiro que ela lhe punha carmim,
mas não é verdade, senhor, que uma vez bem vi nas gavetas...
— Você remexe nas
gavetas dela, Devota? Exclamou severamente o moço.
— Oh! Era para
arrumar... Explicou a criada, cuja confusão a voz traía. Eu procurava fita para
pôr no vestido branco que ela veste no quarto de manhã...
— Há de parecer uma
negra, dentro dele, disse ardilosamente o moço; disseram-me que tem a pele tão
preta...— Oh! Não, não! Senhor
replicou Devota desatando a rir. Quem me dera ter faces como as dela! Parece
porcelana branca e rósea! Mas a senhora chama-me, e eu fujo senhor.
— Sim, sim, fuja!
Saiu à criada
correndo, e João ficou pensativo, supercílios franzidos.
Ah! Mas então! Que
comédia era aquela? Evidentemente, não mentia Devota. Solange Parny não era a
mulherona sem graça que lhe pintara Estefânia. Adivinhava facilmente com que
fim a prima o enganara. Pouco lhe importava, na verdade, que Solange fosse
bonita ou feia, mas indignava-o verificar que assim se aproveitavam, na sua
casa, da sua enfermidade, para induzi-lo em erro. Era um abuso de confiança! Cruel afronta feita à sua impotência de cego! Lágrimas de
cólera e dor lhe molharam os cílios, e, como sempre, voltou-se-lhe o pensamento
de repente para Dinisa, e murmurou:
— Dinisa, Dinisa,
porque não estás tu aqui?
Porque só tua voz veio a
mim, por um sortilégio
que me enleva e me
tortura?
Pelas onze horas,
voltava Dinisa do passeio, cheios os braços de tufos de agárico. Parecia deserta
a vila, D. Estefânia estava no mercado, João no atelier. Ao penetrar no salão,
a moça sorriu, avistando no jardim o tapete “envenenado” que secava na corda,
depois de conscienciosa lavagem. Olhou em volta, procurando onde pendurar
aquele agárico portador de felicidade, que trouxera como feliz presságio à vila
melancólica. E ela mesma, encantadora sob os véus do luto, tinha falsos ares de
sacerdotisa carregada de oferendas para um deus pagão. Mas, que pena! Não a
podia ver João...Cumpria decorar a casa,
mesmo assim, porque o ano novo se aproximava. Era Natal no dia seguinte...
Natais do Norte,
algodoados de neve; Natal da Alsácia, em que os grandes pinheiros negros
ostentam capote, e as casas de madeira incendeiam a sombra, pelas janelinhas
abertas; Natais da Inglaterra, chuvosos, brumosos, mas reaquecidos pela chama
dos pudins; Natais luminosos de Nice, floridos de mimosas e de rosas
odoríferas!
Cantava na alma da
moça vaga felicidade. Parecia-lhe que aquele Natal lhe ia trazer, não mais os
brinquedos que lhe deleitavam a infância, mas uma alegria grave e poderosa,
presente maravilhoso que esperava apaixonadamente.
Acabara de pendurar
o agárico, e, achegando-se ao piano, viu as partituras que Maria lá deixara,
entre outras, aquela célebre sonata do Luar.
Não resistiu ao
desejo de tocar: ergueu a tampa do piano, sentou-se no banco e, prudentemente,
começou.
O instrumento era
velho e as notas não ofereciam nenhuma resistência, o que facilitava a
dedilhação. Não perdera muito o mecanismo. Após alguns ensaios furtivos,
pôs-se a tocar segundo o seu coração, segundo sua alma inquieta, ora
angustiada, ora cheia de esperança...
Da oficina, ouviu o
piano. Ora, era-lhe impossível trabalhar. Pensou que era Maria, que viera sem
que a esperassem, e, contente de se ver arrancado a uma ocupação que lhe não
agradava naquele dia, desceu ao salão.
— Bom dia, Maria,
disse ele simplesmente ao entrar.— Sou eu, murmurou
Dinisa, corando e cessando de tocar.
— Ah! A senhora
conhece então piano? Perguntou o moço surpreendido; continue, continue,
peço-lhe.Ela hesitou, depois
recomeçou o trecho célebre e viu que João, um pouco inclinado, escutava com
perturbada atenção.É verdade que
jamais o adágio falara com tão comovente arte, tanta paixão cruel e palpitante. Que ardor doloroso e inquieto enchia o coração daquela leitora, que devia ser
graciosa e linda, sob os cabelos negros, com a tez de marfim rosado...
Devagarinho, como
se fosse atraído por invencível encanto, acercou-se da moça e pousou-lhe a mão
no ombro.
E estremeceu. Recobria a pequena espádua "delicada e redonda, macio e doce tecido de
seda, e inclinando-se um pouco, sentiu o inebriante perfume do chypre que o
envolvia.
Então se apoderou
do moço desesperada perturbação. Subiram-lhe espontaneamente aos lábios palavras
de loucura e de ternura. E disse ofegante:
— Não se mexa,
continue a tocar não se surpreenda nem se ofenda com as minhas palavras. Ah!
Deve perdoar um pouco de audácia a um desgraçado que, há tantos meses, se
debate na noite, na tristeza sem esperança. Parece-me que surge uma aurora; que
a felicidade é ainda possível se...
Parou bruscamente,
espantado, surpreendido da própria expansão. Que! Ele falava de amor? Mas
enganara-se de pessoa. Não era a Solange que se dirigia em pensamento, mas a
Dinisa, Dinisa que lhe parecera, durante um segundo, ressuscitada para ele. Não
devia, não podia continuar, e, no meio da própria perturbação, sentiu a “leitora”
que, muito devagarinho, pousando-lhe a cabeça ao ombro, murmurava: “João!”
Aquela voz! Mas
não, repelia a enganosa ilusão, e, mais rudemente do que desejava, afastou-se
violentamente da moça, lívido, balbuciando como louco:
— Esqueça... Desculpe-me... Eu julgava dirigir-me a...
— A Maria Chaslier?
Acabou Dinisa, endireitando-se, a voz sem timbre.
Sem dizer sim nem
não, sacudiu a cabeça, e, como um demente, batendo-se nos móveis, fugiu!
Partira! O momento
divino, que Dinisa julgara enfim chegado, fugia com ele! Alimentara tanta
esperança, mau grado a frieza dos últimos dias (causada pelas palavras de Estefânia
sobre a sua pretensa venalidade), esperara tão ardentemente o momento em que
lhe cairia sobre o coração, em que lhe explicaria, entre dois beijos, seu
estratagema!
Pois bem, não! Era
preciso que ela a tivesse, essa explicação, mas friamente, sem ser encorajada
agora; rejeitada talvez desde as primeiras palavras! Ah! Era aquilo o que mais
temera, e teria preferido fugir, desaparecer, a afrontar aquela agonia!
Mas lutara demais,
para se evadir assim no último momento. Tinha de conhecer a verdade, fosse
qual fosse, imediatamente, e, precipitando-se no encalço de João, chegou ao
atelier, lançou-se contra a porta, aquela linda porta coroada das pesadas
lianas de begónias da Virgínia, e que lhe parecia tão hostil, tão fechada...
Estava aferrolhada
por dentro.— Senhor Fargés!
Senhor Fargés! Escute-me, preciso falar-lhe imediatamente!
Mas o moço
refugiara-se numa galeria superior que contornava o atelier, e, com a cabeça mergulhada
nas almofadas do divã, os punhos nas orelhas, não podia ouvir Dinisa e não a
ouviu...Ademais, o Destino
iminente estava em marcha, não tinha a moça o poder de fazê-lo parar. “Estava
escrito”!
E foi ainda o
Destino quem quis que, quando João saísse do atelier, às quatro horas, Dinisa
estivesse ausente da vila, chamada ao Ruhl por Daffodil, a quem ela telefonara
e que estava doente.Dirigiu-se ele pois
para o salão e foi Estefânia quem chegou, ofegante e a se lamentar:
— Estes criados,
dizia ela, que flagelo! No meu tempo não era assim! Você acreditará João, que
Devota queria se levantar tarde amanhã, sob o pretexto de que vai consoar esta
noite? Consoar! Uma vergonha!
— Deixa-a, pois
divertir-se um pouco,
disse Fargés com voz
fatigada, quem sabe o
que lhe reserva o
futuro?
— Não, não, isso
lhe traria idéias de preguiça. Além disso, acho-te fraco demais no que
concerne...— Prima,
interrompeu Fargés já farto quer me ler alguma coisa? O jornal deve estar por
aí.D. Estefânia, não
querendo que ele recorresse a Solange, se a moça voltasse, pegou depressa no
Batedor e começou a ler.Lia como uma
torneira que corre, encadeando sem uma pausa a política, a moda, as notícias, e
até os anúncios perfidamente encaixados entre dois crimes palpitantes. Nada a
surpreendia. Fargés teve de aceitar a narração das pílulas Pink e os anúncios de
Bourseau, o velhaco que tudo compra, desde as jóias da coroa até as velhas
dentaduras...João, todo crispado,
não escutava. Febril, tamborilava nos braços da poltrona, e disse por fim:
— Não há aqui o
Paris-Nice? Lê-me as notícias mundanas, isso me interessará, ouvir falar de
gentes que freqüentava outrora, e que freqüentaria ainda se...
Se, concluiu
mentalmente, tivesse alguém para me acompanhar e alguém para desempenhar aqui
com graça o papel de dona de casa.
Pegou D. Estefânia
no jornal mundano e começou um artigo sobre as festas de Natal, em que Nicette, a cronista, prodigalizava os engenhosos arabescos do seu espírito.
Todos os palácios,
todos os grandes hotéis, os restaurantes famosos de Nice, as múltiplas
cervejarias, falavam de festins sardanapalescos, e o odor dos patos gordos, da
morcilha clássica, das trufas cheirosas, parecia chegar às narinas de D. Estefânia, que confessava já “estar com água na boca”.
Tinham os teatros
composto programas interessantes. Na Ópera, representava-se Werther, triunfo
de certa cantora, então de passagem por Nice. D. Estefânia lia tudo de um
fôlego:
“As personagens
estrangeiras e niceanas estarão na Ópera para ouvir a voz divina de Carlota
Spranzini, a incomparável Carlota... Tomaram camarotes: SS. AA. II. O grão duque
e grã duquesa de B... Da Rússia, conde e condessa de Saint Roman, Mrs. Watson,
a americana multimilionária, filha do rei do algodão, lord e lady Érico
Ferling, que chegam de Londres, em viagem de núpcias...
A mão de Fargés caiu pesadamente sobre o jornal:
— Repete! Disse com voz breve. Estefânia repetiu, “à francesa”:
— “Lord e lady Ferling, que chegam de Londres, em viagem de núpcias.”
Fargés levantara-se e caminhava, cerrando os punhos, como se quisesse afastar uma crise nervosa: “Lord
Ferling e lady...”
Toda a sua
infelicidade, todo o seu amor fiel, todas as suas angústias, iam acabar
naquelas duas linhas cruéis: lord e lady Érico Ferling.
Teve a intuição
total, imediata, completa, de que se tratava de Dinisa Deléris. Dinisa
casada!
Casada! Casada! Não
era muito natural? Por ventura não esperava este desenlace desde... Desde
sempre? Era o incidente vulgar, previsto, fatal!
Não somente o
aceitara, mas não tinha dito à senhora Bremond que se aplaudia da ruptura?
Não considerava como um
dever absoluto repelir
Dinisa no caso — ai! Bem
incerto! — em que ela
lhe tivesse vindo
oferecer sua vida! Não
teria ele recusado
peremptoriamente o dom
encantador da sua
mocidade e do seu amor,
para não arrastar na
própria treva aquela
criança prometida a um
porvir de luz?
Sim, era exato, mas, bem
no fundo da alma, não
conservara a insensata
esperança de que a sorte
lhe fizesse violência
lançando-lhe à força
sobre o coração a
adolescente de grandes
olhos de sombra num
rosto de neve?
E agora estava
cumprindo o irrevogável, sangrava-lhe o coração. Empalidecia, como um homem
que vai morrer.— Que tens tu? Perguntou
D. Estefânia inquieta, pegando-lhe no braço e forçando-o a sentar-se.
Falar, ah! Falar,
confiar-se, mesmo àquela mulher que não o compreendia, mas gritar a dor que o
matava... Murmurou:
— A mulher desse
lord Ferling, que alugou um camarote para esta noite, é Dinisa Deléris, minha
antiga noiva!
E era tal o som da
sua voz, que D. Estefânia não ousou consolá-lo, nem lhe falar de Maria. Ficou
muda, impotente, diante daquela dor que julgava tão bem curada!
De repente ele
ergueu a cabeça e disse!
— Quero ir à Ópera
esta noite!
— Mas... Tu não a
verás!
— Não, mas tu me dirás
qual é a sua expressão, se ela parece feliz! Não sei, é preciso que eu vá lá!
— Que idéia! Isso vai
te fazer mal. E para
que?
— Eu quero, disse
ele energicamente. Se tu não me acompanhas, alguém me levará.
— Está bem, iremos,
respondeu D. Estefânia,
temendo que ele fosse em
companhia de Solange. Já
pensaste em que não
acharemos mais lugar?
— Mandarei meu
cartão a Dunan, o regente em chefe; fomos condiscípulos,
ele me fará entrar.Não ousou mais ela
insistir, e foi para o quarto, toda transtornada.
Enfim, conhecia o
segredo do moço! Amava sempre a noiva... Era isso que o oprimia, o que lhe pesava
sobre o coração, impedindo-o de viver! Há dezoito meses, incubava sua dor e seu
impossível sonho!. ..Pois bem! Não era
melhor que ele soubesse enfim perdida toda a esperança? Lá imaginava o que lhe
diria no teatro a fim de desviá-lo para sempre. Agora, era ela quem desejava ir
à Ópera, para extirpar do coração do primo aquele amor insensato. Como se
extirpa uma rosa solitária e magnífica do campo onde se quer semear o simples
cereal...Ora, por verdadeiro
acaso, Dunan, o amigo de Fargés, pôde dar-lhe dois bilhetes que acabavam de ser
devolvidos por sul americanos, que tinham partido para Paris, e, guiado por
Estefânia, ele tomou seu lugar.Estava já erguido o
pano. Terminava o primeiro ato quando o moço entrou na sala, e a orquestra
tocava o Luar não o nobre e surdo adágio de Beethoven, mas a terna melodia de
Massenet, aquele canto sem palavras que parece composto de soluços contidos,
série de confissões interrompidas, dor que se domina e que espera ainda...
Werther! Werther!
Em verdade, não tinham escolhido de propósito aquela ópera para o moço?
Werther, o namorado inconsolável, que prefere a morte ao desespero de viver sem
seu amor! Cerrava-lhe a garganta, quando explodiram os bravos. Terminara o
primeiro ato.Então, iluminada a
sala, assestou D. Estefânia o binóculo para os camarotes. Estavam ocupados agora,
salvo um em baixo, à direita. Já Fargés a interrogava, recordando-se da
descrição que lhe fizera Dinisa do seu adorador:
— Não vês um homem muito
grande, loiro claro, de
faces vermelhas e olhos
azuis?
Ela inspecionava em vão. Mas, quando ia acabar o entreato, apareceram duas pessoas à beira do camarote até então
vazio. E D. Estefânia reconheceu facilmente lord Ferling.
— Ei-lo, disse ela,
acaba de chegar com a mulher. Torceu-se o coração de Fargés. Tão perto, ela estava
tão perto! Assim, vinha passar a noite de Natal em Nice, naquela cidade onde
podia supor encontrá-lo, a
ele! Desejava ela ostentar seu triunfo de mulher de
par do reino e de marquesa, riscar o passado com um gesto de leque? Balbuciou:
— E... Ela... Tu a
vês? Muito grande, castanha, muito linda; oh! Tão linda!
Estefânia encarou a
companheira de lord Ferling. Era grande, o ar altaneiro de uma Elisabeth de Inglaterra,
mas loira e não castanha... Hesitou. Sabia que muitas castanhas descolorem os
cabelos para os tornar dourados; sem dúvida lady Ferling estava “oxigenada”. Não hesitou mais, e disse:
— Sim, é ela mesma,
ao lado dele.— Oh! Replicou
Fargés torturado, qual é sua expressão?
Tem ar alegre?
Mas lady Ferling
estava voltada para a cena, D. Estefânia não lhe podia ver mais o rosto. Demais, terminava o entreato. Na sala escura, elevava outra vez a orquestra seu
grande vento harmonioso. Fargés calou-se.
Vertigem da música
que, ainda mais que o álcool e quase tanto como o amor, exalta até aos paroxismos
todos os sentimentos. Vertigem da música, que devasta a alma! A imortal
embriagues, a imortal melancolia das paixões desgraçadas perturbava a
sensibilidade ferida do moço, cujos punhos se crisparam ao ouvir Werther
cantar:
“Eu teria apertado
ao peito a mais bela, a mais divina das criaturas!”
Aquela mulher,
aquela Carlota adorada, era outro que a cerrava nos braços... Ele também,
Fargés, fora espoliado, despojado. Lá estava o feliz vencedor, a lhe insultar a
agonia, e João nem ouvia as palavras proféticas do marido de Carlota, a
consolar Werther:
“Procuramos bem
longe a felicidade, ela está tão perto de nós!”
Novo entreato,
porém, vinha suspender a emoção, e Fargés recomeçou a indagar de Estefânia:
— Olha bem para
ela. Fala? Há
gente com eles?
— Sim, sim, vêm
vê-los. Ela ri... Que queres?
Não imagina... Quantas
safiras nos cabelos e no
pescoço! É muito rico,
este lord Ferling, não
é?
E Fargés percebeu
no tom da prima um toque de admirativo respeito.
— Sim, disse
surdamente; e despedaçava-se-lhe o coração ao sentir Estefânia, sua aliada
natural, cheia de simpatia por aquele rival, por causa da sua riqueza. É muito
rico, e todo mundo pensa que Dinisa teve razão em preferi-lo. Imagina tu, um homem que possui três castelos, um iate, parques de caça, e que
pode levar a mulher às festas da corte!
— Na verdade, à
corte? Perguntou D. Estefânia, com deferência na voz.
— De certo, quando
Dinisa pensa no insignificante casamento que quase chegou a fazer, deve se
alegrar com a ruptura. Que importa que seu lord seja pouco sedutor? Um marquês
é sempre mais atraente que um burguês! Ela desdenha-me, despreza-me!
— João, tu te
exaltas, peço-te, não fales tão alto: voltam os espectadores, vão te ouvir... E
o ato começa!
O moço ocultou o rosto
nas mãos.
Arrependia-se agora
de haver cedido à tentação de se aproximar de Dinisa, para conhecer a atroz
alegria de alargar a própria chaga e de irritá-la até ao frenesi.
Mas, quando os
violinos gemeram a frase trágica: “Não me acuses, chora-me!” sentiu que já não
podia suportar tão grande dor. Era Dinisa quem, pela voz sublime da cantora,
lhe dizia: “Não me acuses, perdoa e chora-me, que estou para sempre perdida
para ti!”
— Vamos embora,
disse ele, vamos!
— Espera ao menos o
fim do ato, vamos incomodar todo mundo.
Começavam já a
erguer-se ao redor deles “psius!” impacientados. Fargés levantou-se dizendo
surdamente:
— Fica se queres,
eu saio, abafo!
Era forçoso
seguí-lo. Fargés deixou a sala, enquanto a música o perseguia com a queixa
dilacerante: “Não me acuses! Chora-me!”
Estavam, enfim, na
rua. E a frescura da noite, o grande silêncio, após a tensão musical, a necessidade
prosaica de procurar um veículo, apaziguaram os nervos superexcitados do moço. Aproximou-se uma vitória, subiram ambos, e lá se foram na noite de Natal, toda
palpitante de estrelas...— João, disse enfim
D. Estefânia, não vais pensar mais nisto, não é? O passado está agora enterrado. Aquela mulher, afinal, não poderia fazer-te feliz: ela se arrependeria,
fatalmente, de não ter casado com o outro!
Continuou á falar
assim, e no seu pensamento esboçava-se sua própria existência entre Maria e
João, na vila florida.Fargés, de olhos
fechados, imóvel, branco como o mármore, não respondia. Chegaram à vila, ganharam
o primeiro andar, mas no momento de entrar no quarto, pegou o moço docemente D. Estefânia pelos ombros e, inclinando-se, beijou-a.
— João, que tens
tu? Perguntou a velha senhora, subitamente perturbada não só pelo gesto, como
pela serenidade do primo.— Nada, minha prima,
mas... É Natal agora, e quero agradecer-lhe toda a bondade que tem tido para
comigo... Tu tens sido o meu refúgio, tu não repeliste o ente decaído,
insignificante, que sou agora!
— Vamos, João! Estás tão
pálido, tu me assustas.
Padeces muito?
— Não, estou
pacificado, não padecerei mais dentro em pouco... E agora, vai descansar. E amanhã não te ocupes de mim; descansa bem, até meio
dia... Não terei necessidade de nada...
Entrou no quarto e
fechou-se. Depois se acercou da secretária, procurou um papel, experimentou uma
pena, e, guiando-se com a mão esquerda, depois de ter segurado a folha sobre a
pasta, para que não escorregasse, começou a escrever, em letras bem legíveis:
“Isto é o meu
testamento...”
Legava a D. Estefânia a Vila Azul e uma pequena renda vitalícia, que lhe permitia viver
ali. A Maria Chaslier: cinco mil francos para seus pobres; e cinco mil francos
a Solange Parny, em sinal de gratidão pela “terna e dolorosa ilusão em que o
fizera viver durante alguns meses”.
Restava ainda certa
soma. Dava-a lady Dinisa Ferling, e entumeceu-se-lhe o coração, ao escrever:
“Senhora digne-se
aceitar esta pequena soma. Nada poderá ela acrescentar ao seu conforto ou ao
seu luxo. Mas eu queria que a senhora comprasse uma jóia que lhe recordasse
aquele que a amou até à morte. Somente a desgraça, e sabê-lo-á bem cedo, me
separou da senhora, da senhora, minha pequena sultana adorada, da senhora, que
eu bendigo!”
Escrevia, e o ruído
do mar, que começava devagarinho a se agitar, chegava até
ele, como uma reminiscência
onde passava ainda a lamentação de Werther: “Não me acuses, chora-me!”
Era ele quem lhas
dizia, aquelas palavras: “Não me acuses de covardia, morro por ter lutado
muito. Tem piedade de mim, chora-me!”
Acabara. Fechou a
carta, escreveu no sobrescrito: “Para ser aberta depois da minha morte”, colocou-a
em evidência sobre a mesa, e, abrindo uma gaveta, tirou dela um revólver de
pequeno calibre.Examinou o
cilindro. Estava vazio. Lembrou-se subitamente de que lhe tinha tirado as
balas, num dia de desalento, antes da chegada de Solange, a fim de resistir à
tentação de se servir dele. E até, lembrava-se, deitara-as fora. Depois,
lamentando ficar sem arma na vila, prometera consigo tomar a comprar balas, mas
sempre lhe esquecia fazê-lo.Com um movimento de
cólera dolorosa rejeitou a arma inútil e foi abrir a janela, debruçando-se, a
escutar...O mar lamentava-se
na sombra, num crescente murmúrio. Uma frase de Estefânia — que conhecia bem
todos os aspectos das ondas — voltou-lhe ao pensamento: “Haverá marulhado
amanhã.” — Em algumas horas, as vagas seriam bastante fortes...
Precisou-lhe no
pensamento uma imagem: a última plataforma de rochedo quase à flor d’água, aonde
vinham bater, durante as borrascas, ondas tão fortes que arrebatavam um homem
no seu abraço, como se fosse um vime.
Então, como um
suspiro de alívio, como um homem que alcança o fim após longo padecer,
atirou-se numa poltrona e o sono foi mais forte que
ele: adormeceu.Quando despertou,
surpreso, tacteou o relógio e verificou que eram quase oito horas. Nada bulia na
vila. Todos prolongavam a noite. Então, sem rumor, alcançou a porta do jardim. Subia da praia um grande marulho: o mar zumbia como um exército em marcha.
Era uma dessas
estranhas e magníficas tempestades do Mediterrâneo sem um sopro de vento e sob
um céu de cândido azul. Dir-se-ia que não é, como no Norte, a natureza inteira
que se revolta, mas somente o mar que, desencadeado, liquida velha querela
consigo mesmo, sem cessar de ser azulado, sem cessar de ser belo!
E, dominando o furor,
estendia-se o jardim, inocente, sob seus colares de orvalho, ostentando em
degraus a frescura da verde ramaria, que as tangerineiras pontilhavam do ouro
vivo. Fargés aproximou-se do carreiro torcido que descia entre dois regatos
de gerânios vermelhos. Chegou depressa a um pequeno terraço.
Cinco loureiros muito
velhos, muito fortes, o ensombravam e a luz, sob aquela abóbada, era nobre e
amortecida como nos mais belos jardins de Roma. Ali, na manhã da sua partida
para a capital italiana, anos atrás, viera Fargés despedir-se da cidade natal. E lá estava também sua mãe, sua pobre mãe que morrera subitamente, quando
ele
estava em Roma, levando para o túmulo a convicção de que seu filho alcançaria a
glória.Agora, mãos vazias
de glória, fronte sem lauréis,
voltava ele para a cara
mãe que o adorara!
Parecia-lhe que o doce
rosto, pálido como uma
mortalha, inclinava-se
sobre seus últimos
momentos, chamava-o, e
perdoava! e seus lábios
murmuraram o bendito
nome: “Mãe!”
Não, ele não queria
se enternecer!
Mas, tudo naquele
jardim, lhe falava ao coração como a um amigo de infância. Naquele outro
terraço, palmeiras anãs abrigavam um banco de mármore, antigo. Quantas vezes
imaginara Dinisa assentada naquele banco, evocando Cartago onde nascera, a
Arábia, pátria de suas avós, de quem herdara a beleza de ídolo e aqueles olhos,
onde o Oriente imprimira para sempre sua sombra de ouro e sua fascinação...
— Adeus! Adeus!
Despedia-se da
vida. Amaldiçoava aquele terrível amor, e sentia que, com o ardor do mar, com
os primeiros borrifos do nevoeiro, vinha a libertação... As vigas,
engolfando-se sob o rochedo sobranceiro, troavam como canhão. Visão horrenda
atravessou o pensamento de Fargés: vira criança ainda, um homem, um afogado,
encontrado sob aqueles rochedos ávidos, que não restituem a presa senão quando
o mar amansa, e o homem estava retalhado, como se o mar o tivesse devorado a
meio...Com um gesto,
repeliu a idéia do sofrimento. A saída era aquela, e, sem ouvir os sinos que
tocavam a Natal sob o céu azulado, o desgraçado estendia os braços para a vaga
libertadora, que o arrastaria ao fundo do grande túmulo rugidor.
...E A FELICIDADE
ESTAVA ALI!Inanidade dos
pressentimentos!
Quanta vez, sob o
império dum mal estar
físico, nos sentimos
acabrunhados,
alquebrados, persuadidos
de que uma catástrofe
caminha ao nosso
encontro. Ah! Porque,
então, no momento em que
o destino vai abater
frio como um tutelo, a
gente está alegre,
esperta, cheia de
projetos?
Inanidade das previsões
humanas ou divina
piedade que põe uma
venda nos olhos daqueles
que o destino condenou?
Naquela manhã, ao
despertar, sentia Dinisa o coração bater-lhe numa esperança desordenada. Ela ia
saber. Vestiu-se às pressas e, pela janela, avistou o moço que descia para a
praia pelo caminho contorcido. E nada lhe disse que ele corria para a morte,
nada a advertiu do drama que se preparava!
Só a interessava a
hora da missa, em que queria comungar, e acabou de se vestir para sair.
Na véspera,
surpreendera-a, ao voltar do hotel Ruhl, ver João que jantava vestido para ir à
Ópera. O trajo de sarau, de elegante precisão, remoçava-o, dava-lhe realce à
figura; a bela cabeleira, lançada para trás, descobria-lhe a fronte branca, e,
na sombra, ela enviara-lhe um beijo com a ponta dos dedos.
Depois, entrou-se
de súbita angústia: não era natural João e D. Estefânia irem ao teatro unicamente
para se distrair: certamente
ele encontraria na Ópera a família Chaslier.
Entretanto, os traços
contraídos do moço
durante o reposto e o
seu mutismo bravio,
acabaram de
desconcertá-la.
Quereriam constrangê-lo
ao casamento com razões
copiosas?
Saíram o moço e a
prima. Só no quarto, enovelada numa poltrona, Dinisa
esperava sem bem saber
ao certo o que esperava,
com a alma gelada...Também, que ingênua
alegria ao ouvi-lo voltar cedo! Nada sabendo do que se passara, concluiu com
razão que uma entrevista de noivado não teria acabado tão cedo, e, sem mais
procurar destrinçar a meada cerrada dos incidentes, adormeceu apaziguada...
Aí está porque
Dinisa estava confiante naquela manhã de Natal. Enfim, enluvada, livro na mão,
saiu do quarto.No corredor encontrou
Devota que, munida de
uma escada, se
encaminhou para o quarto
do amo. Surpreendida,
perguntou: — Quê!
Grandes limpezas num dia
santo?
— Oh! Não, segredou
a criada, mas é que há muitos dias que me esqueço de pôr direito o retrato da
mãe do senhor, e se a senhora ver, ela me ralhará...
E entrou no quarto
do moço, deixando a porta entreaberta. Durante alguns segundos, teve Dinisa
curiosidade de lançar o olhar para aquela peça, onde devera ter vivido horas
apaixonadas. Se entrasse, teria visto imediatamente a carta, deixada bem a
mostra por Fargés.Foi aquele um
desses minutos em que “o destino parece abrir ou tornar a fechar a mão”... Mas ela não penetrou no quarto e, voltando as costas, começou a descer a
escada.
Já no quarto
degrau, ouviu um grito e, imediatamente depois, o fragor de um móvel
derribado, de vidro quebrado, e o gemido de Devota:
— Oh, o que eu fui
fazer!
Tornou a moça a
subir precipitadamente os degraus, entrou correndo no vasto quarto: Devota
caira da escada, arrastada pelo peso do quadro, cujo vidro se partira. A escada
quebrara um vaso, e a criada se lamentava. Sangrava-lhe na mão um pequeno
ferimento.Querendo pensá-la
relanceou Dinisa os olhos ao redor, e viu, lívida, o sobrescrito: “Para ser
aberta depois da minha morte.”
Esquecendo Devota,
sufocada por uma ansiedade terrível, nem viu entrar D. Estefânia, atraída pelo
ruído da queda. Surpreendida pela expressão aterrada da leitora, acercou-se
por seu turno e soltou um grande grito abatendo-se sobre uma poltrona:
— Ele suicidou-se!
Olhou-a Dinisa,
louca de terror.— Ontem, na Ópera,
ele viu o rival, o lord que casou com a sua noiva. Ah! Eu devia ter adivinhado
seu desespero!
Dinisa já não a
escutava. Compreendia agora e ganhava o jardim. Fargés tinha descido para a
perigosa plataforma, onde, tinham-lhe contado, a vaga tem a força precisa para
arrebatar um homem!
Seguia, por sua
vez, o carreiro em declive. Chegaria tarde demais?
Ia o mar feroz,
cobrindo-lhe os apelos
com o seu clamor,
sepultar sua esperança,
todo o amor de sua vida?
Resvalaria ele para a
morte, inconsolado,
enquanto ela corria a
oferecer-lhe mocidade,
devotamento e amor?
Ah! Porque não
entrara no quarto dois minutos mais cedo?
Porque a cegara o
implacável acaso?
É tão raro, que a
sorte permita a dois entes feitos um para o outro, que se encontrem e se unam!
De repente, através
dos pinheiros, avistou Fargés, que se aproximava da borda do golfo.
E tudo, em seguida,
se sucedeu com a rapidez do relâmpago.
Em uma vertigem de
pensamento, compreendeu Dinisa que um apelo, surpreendendo-o, bastaria para
fazê-lo vacilar no abismo branco de espuma.
Saltar sobre ele?
Um movimento em falso precipitá-los-ia a ambos na morte. Então, aceitou a
idéia de morrer com ele e correndo, enlaçou-o nos braços, gritando,
desesperada:
— João! É Dinisa,
sou eu!
Ele recuou um
passo. Em um fragor de bomba, uma vaga, alta e direita como um fantasma gelado,
ergueu-se diante deles, tomou a cair... Cobrindo-os de espuma... Sem os arrastar.
Estavam salvos!
Mas, debatendo-se,
ele gemia, rouco, repelindo-a, e aproximando-se inconscientemente do golfo.
— A senhora está
casada!
— Não, disse ela. Sou livre; amo-o, e morro se tu morreres!
Ela o tuteava no
frenesi da sua paixão, afastando-o do perigo à força. A espuma alcançava-os
ainda. Ela repetiu:
— Sou Dinisa e
amo-o. Solange Parny era eu, vivendo a sua vida, e desejando que ela se torne a
minha, mas você não me queria mais, João!
Ela, Solange Parny?
Horrenda dúvida entrou-lhe no espírito. Trágico na dor e na impotência, perguntou:
— Que é que me
prova que a senhora é Dinisa Deléris? Todo o mundo aqui me engana!
— João, eu sou
aquela que você chamava a filha de Thiet. Eu nasci em Cartago. Ah! Lembre-se do passado: o instituto Monfermeil, a charpa tecida de lua e de sol, e
o seu último beijo antes da chegada de meu pai. João, agora meu pai
está morto, eu estou só no mundo, não me repilas, não me abandones, ou eu me
mato diante de ti!
— Mas porque não me
disse logo que era
Dinisa, por quê?
— Se eu tivesse falado
há três meses, não me
teria repelido?
Ele apertou-a
loucamente ao peito. Sim, era verdade. Três meses antes, teria recusado a
oferenda de Dinisa, em obediência a um terrível dever, destruindo para sempre
a felicidade de ambos.
Mas o destino
fazia-lhe violência, lançava-lhe Dinisa nos braços à força! Era necessário que
ambos sofressem aquela longa prova, ele para não duvidar mais, ela para nunca
mais se queixar.Então,
sobreveio-lhe grande tristeza, ao lembrar tudo o que aquela criança adorada
padecera perto dele. E balbuciou, soluçando-lhe sobre o ombro, numa distensão
nervosa:
— Meu amor, por
fidelidade para com Dinisa, como fui duro para Solange! Perdão, perdão!
— Dinisa é
infinitamente feliz por ver que você não pôde amar ninguém, nem mesmo Solange,
murmurou ela, beijando os belos cabelos sombrios do moço.
Seguia-a agora no
trilho abrupto, abandonando-se à sua mão. Tudo o que padecera se desvanecia. Ofegantes, pararam no terraço onde cresciam as palmeiras acima dum antigo
banco de mármore, ali onde
ele amaldiçoara o amor, e seus lábios, selando-se
num beijo apaixonado, forte como a morte os uniu para toda a vida.
Então, dominando o
mar, dominados pelo céu azul, enquanto todos os sinos do mundo tocavam a Natal,
João compreendeu que Deus lhe enviava um presente adorável, e apoiando sobre o
coração o rosto da noiva, murmurou a divina mensagem que há vinte séculos os
anjos trouxeram à miséria humana:
“Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra... Àqueles que têm padecido!”
FIM

ϟ
excerto de:
PERTO DELE
Divonne
1955
Tradução de Pepita de
Leão
Biblioteca das Moças,
vol. 144
Companhia Editora Nacional, São Paulo
10.Mai.2015
Publicado por
MJA
|