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A arquitetura e os sentidos
excerto
Caravaggio,
A Incredulidade de São Tomé (1601-2)
Visão e conhecimento
Na cultura ocidental, a visão tem sido historicamente considerada o mais nobre
dos sentidos, e o próprio pensamento é igualado à visão. Já na filosofia
grega, as certezas se baseavam na visão e na visibilidade. "Os olhos são
testemunhos
mais confiáve is do que os ouvidos", escreveu Heráclito em um de
seus fragmentosPlatão considerava a visão como a maior dádiva da humanidade, e insistia que as proposições éticas universais fossem acessíveis ao
"olho da mente". Aristóteles também considerava a visão como o mais nobre
dos sentidos "por que ela aproxima mais o intelecto, em virtude da
imaterialidade
relativa de seu conhecimento".
Desde os antigos gregos, os escritos de filosofia de todas as épocas têm
metáforas oculares abundantes , a tal ponto que o conhecimento se tornou
análogo à visão clara e a luz é considera da uma metáfora da verdade. São
Tomás de Aquino chega a aplicar a noção de visão a outras esferas sensoriais bem como à cognição intelectual.
O impacto do sentido da visão na filosofia é bem resumido por Peter Sloterdijk:
"Os olhos são o protótipo orgânico da filosofia. Seu enigma é que eles
não apenas conseguem ver, mas também podem ver a si próprios vendo. Isso
lhes confere uma proeminência entre os órgãos cognitivos do corpo. Na verdade boa parte do pensamento filosófico é apenas reflexo dos olhos, dialética
dos olhos, ver a si próprio vendo. Durante a Renascença, considerava-se
que os cinco sentidos formavam um sistema hierárquico no qual a visão está
no topo, e o tato, na base. O sistema renascentista de hierarquização dos
sentidos
se relacionava com a imagem do corpo cósmico; a visão se correlacionava ao fogo
e à luz, a audição, ao ar, o olfato, ao vapor, o paladar, à água e
o tato, à terra".
A invenção da representação em perspectiva tornou os olhos o ponto
central do mun do perceptual, bem como do conceito de identidade pessoal. A
representação em perspectiva em si própria se tornou uma forma simbólica que não apenas descreve, mas também condiciona a percepção.
Não há dúvida de que nossa cultura tecnológica tem ordena do e separado
os sentidos de modo ainda mais distinto. A visão e a audição hoje são os
sentidos socialmente privilegiados, enquanto os outros três são considera dos
resquícios sensoriais arcaicos, com uma função meramente privada e, geralmente são reprimidos pelo código cultural. Somente sensações como o prazer
olfativo de uma refeição, a fragrância das flores e as respostas à temperatura
têm o direito de chamar a atenção coletiva em nosso código cultural centra do
nos olhos e obsessivamente higiênico.
A dominância da visão sobre os demais sentidos - e sua consequente
predileção na cognição - tem sido observada por muitos filósofos. Uma coletânea
de ensaios de filosofia intitulada Modernity and the Hegemony of Vision
afirma que "desde os gregos antigos, a cultura ocidental tem sido dominada
pelo para digma centra do nos olhos, uma interpretação do conhecimento, da
verdade e da realidade gera da pela visão e nela centrada". Este livro instigante
analisa "as conexões históricas entre a visão e o conhecimento , a visão
e a ontologia, a visão e o poder, a visão e a ética".
Uma vez que o para digma centra do nos olhos de nossa relação com o
mun do e de nossa concepção de conhecimento - o privilégio epistemológico
da visão - tem sido revelado pelos filósofos, também é importante analisar
criticamente o papel da visão em relação aos demais sentidos, para o enten
dimento e a prática da arte da arquitetura. A arquitetura, como todas as
artes, está intrinsecamente envolvida com questões da existência humana no
espaço e no tempo; ela expressa e relaciona a condição humana no mundo.
A arquitetura está profundamente envolvida com as questões metafisicas da
individualidade e do mundo, interioridade e exterioridade, tempo e duração vida e morte.
"As práticas estéticas e culturais são peculiarmente
suscetíveis às
experiências mutáveis de espaço e tempo , precisamente porque se envolvem
com a construção de representações espa ciais e artefatos oriundos do fluxo da
experiência humana," escreve David Harvey.
A arquitetura é nosso principal instrumento de relação com o espaço e o tempo,
e para dar uma medida humana a essas dimensões. Ela domestica o espaço ilimitado e o tempo infinito tornando-o tolerável, habitável e compreensível para a humanidade. Como
consequência dessa interdependência entre o espaço e o tempo, a dialética
do
espaço externo e interno, do físico e do espiritual, do material e do mental das prioridades inconscientes e conscientes em termos de sentidos e de suas
funções e interações relativas tem um papel essencial na natureza das artes e
da arquitetura.
David Michael Levin provoca a crítica filosófica do predomínio dos olhos
com as seguintes palavras: "Acho apropriado desafiar a hegemonia da visão
- o privilégio dos olhos dado pela nossa cultura. E acho que precisamos examinar
de maneira muito crítica o caráter da visão que atualmente predomina
em nosso mundo. Precisamos urgentemente de um diagnóstico da patologia
psicossocial da visão cotidiana - e de uma compreensão crítica de nós próprios
como seres visionários.
Levin ressalta a ten dência à autonomia e a agressividade da visão, assim
como "os espectros do poder patriarcal" que aflingem nossa cultura centra da
nos olhos:
-
O desejo de poder é muito forte na visão. Há uma tendência muito forte na visão
a agarrar e a fixar, a considerar como concreto e a totalizar: uma tendência a
dominar fixar e controlar que, por ser tão ferozmente promovida, em determinado
momento assumiu uma hegemonia incontestável em nossa cultura e seu discurso
filosófico, estabelecendo, ao manter a racionalidade instrumental de nossa
cultura e o caráter tecnológico de nossa sociedade, uma metafisica da presença
centrada nos olhos.
Acredito que muitos aspectos da patologia da arquitetura cotidiana de nosso
tempo também possam ser entendidos mediante uma análise da epistemologia
dos sentidos e uma crítica à predileção dada aos olhos pela nossa cultura em geral, e pela arquitetura, em especial. A falta de humanismo da
arquitetura
e das cidades contemporâneas pode ser entendida como conse quên cia
da negligência com o corpo e os sentidos e um desequilíbrio de nosso sistema
sensorial. O aumento da alienação , do isolamento e da solidão no mundo
tecnológico de hoje, por exemplo, pode estar relaciona do a certa patologia
dos sentidos. É instigante pensar que essa sensação de alienação e isolamento
seja frequentemente evocada pelos ambientes mais avança dos em termos
tecnológicos como hospitais e aeroportos. O predomínio dos olhos e a supressão
dos outros sentidos ten de a nos forçar à alienação , ao isolamento e à
exterioridade. A arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações
imponentes
e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana ao mundo. O
fato de o vocabulário modernista em geral não ter conseguido penetrar na
superfície do gosto e dos valores populares parece ser resultado de sua ênfase
visual e intelectual injusta; a arquitetura modernista em geral tem abrigado
o intelecto e os olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais
sentidos, bem como nossa memória, imaginação e sonhos.
Os críticos da priorização dos olhos
A tra dição da primazia dos olhos e a consequente teoria do especta dor do
conhecimento no pensamento ocidental também encontrou críticos entre os
filósofos bem antes de nossas preocupações atuais. René Descartes, por exemplo considerava a visão como o mais universal e nobre dos sentidos, e sua
filosofia objetiva dora consequentemente se baseava no privilégio da visão. Contudo, ele também equiparou a visão ao tato, um sentido por ele considerado
"mais certo e menos vulnerável a erros do que a visão".
Friedrich Nietzsche tentou subverter a autoridade do pensamento ocular em uma aparente contra dição com sua linha geral de pensamento. Ele criticava
"o olho fora do tempo e da história" pressuposto por muitos filósofos. Nietzsche chegou a acusar os filósofos de uma "hostilidade traiçoeira e cega
contra os sentidos". Max Scheler claramente chama essa postura de "ódio
do corpo".
A visão "anticentralização nos olhos" e necessariamente crítica da percepção
e do pensamento ocidental centra do nos olhos, que se desenvolveu
na tradição intelectual francesa do século XX, é profundamente analisada por
Martin Jay em seu livro Downcast Eyes - The Denigration of Vision in
Twentieth-Century French Thought. O escritor investiga o desenvolvimento da cultura
centra da na visão, passando por campos tão diversos como a invenção
da imprensa, a luz artificial, a fotografia, a poesia visual e a nova
experiência
do tempo. Por outro lado, ele analisa as posições antioculares de muitos
dos escritores seminais da França, como Henri Bergson, Georges Bataille Jean Paul Sartre, Maurice Merleau-Poncy; Jacques Lacan, Louis Althusser, Guy
Debord, Roland Barthes, Jacques Derrida, Luce Irigaray; Emmanuel Levinas e Jean-François Lyotard.
Sartre era francamente hostil ao sentido da visão, ao ponto da ocularfobia;
sua obra contém cerca de sete mil referências ao "olhar". Ele se preocupava
com o "olhar objetivador do outro, e o 'vislumbre de medusa ' [que]
'petrifica' tudo com o qual entra em contato'. Para Sartre, o espaço superou
o tempo na consciência humana, como consciência da priorização dos olhos.
Esse inverso da importância relativa de acordo com as noções de espaço e
tempo tem importantes repercussões, no nosso enten dimento, dos processos
físicos e históricos. Os conceitos predominantes de espaço e tempo e suas
inter-relações formam um paradigma essencial para a arquitetura, como Siedfried
Giedion afirmou em sua história ideológica seminal da arquitetura moderna Space, Time and Archirecrure.
Maurice Merleau-Ponty lançou uma crítica incessante do "regime escópico
perspectivalista e cartesiano" e de "seu privilégio a um tema aistórico
desinteressan do e incorpóreo totalmente desvinculado do mundo". Toda sua
obra de filosofia foca na percepção em geral e na visão, em particular. Porém em vez do olho cartesiano do espectador externo , o sentido da visão de
Merleau-Ponty é uma visão corporificada que é parte encarna da da "carne do
mundo".
"Nosso corpo é tanto um objeto entre outros quanto um objeto que
os vê e toca". Merleau-Ponty via uma relação osmótica entre a individualidade
e o mundo - elas se interpenetram e se definem - e enfatizava a simultaneidade e interação dos sentidos. ''Minha percepção é [portanto] não uma
soma de pressupostos visuais, táteis e auditivos: eu percebo de maneira total
com todo meu ser: eu abarco uma estrutura única da coisa, um modo único
de ser, o qual fala com todos meus sentidos ao mesmo tempo", ele escreve.
Martin Heidegger, Michel Foucault e Jacques Derrida também afirmaram
que o pensamento e a cultura da modernidade não apenas têm dado
continuidade ao privilégio histórico da visão, mas exacerbado suas tendências
negativas. Cada um dos escritores, de sua maneira , considerou o predomínio
da visão na era contemporânea distinto daquele de épocas passadas. Na nossa
era, a hegemonia da visão tem sido reforçada pelas incontáveis invenções
tecnológicas
e a infinita multiplicação e produção de imagens - "uma incessante
chuva de imagens", como chama Italo Calvino.
"O evento fundamental da
era moderna é a conquista do mundo como fotografia", escreve Heidegger.
A especulação do filósofo sem dúvida se materializou em nossa época de imagens
fabricadas, produzidas em massa e manipuladas.
O olho tecnologicamente expandido e reforçado hoje penetra fundo na
matéria e no espaço e torna o homem capaz de lançar um olhar simultâneo
em lados opostos do globo terrestre. As experiências de espaço e tempo têm
se fundido pela velocidade (David Harvey usa a noção de "compressão tempo-espaço") e, como consequência, estamos testemunhan do uma inversão
distinta das duas dimensões - uma temporalização do espaço e uma espacialização
do tempo. O único sentido que é suficientemente rápido para acompanhar
o aumento assombroso da velocidade do mundo tecnológico é a visão.
Porém, o mundo dos olhos está fazendo com que vivamos cada vez mais em
um presente perpétuo, oprimidos pela velocidade e simultaneidade. As imagens visuais se tornaram mercadorias, como ressalta Harvey:
-
"Uma avalanche de imagens de diferentes espaços que chega quase simultaneamente, sobrepondo os espaços do mundo em uma série de imagens na tela
de um televisor ... A imagem dos lugares e espaços se torna tão suscetível a
produção e ao uso efêmero quanto qualquer outra [mercadoria]".
A destruição radical da construção herdada da realidade nas últimas décadas
tem, sem dúvida, resulta do em uma crise da representação. Podemos
até mesmo identificar certa histeria com pânico na representação das artes
em nossa época.
O olho narcisista e niilista
Na opinião de Heidegger, a hegemonia da visão primeiramente nos trouxe
visões gloriosas, mas nos tempos modernos tem se tornado cada vez mais niilista. Hoje, a observação de Heidegger de um olho niilista é particularmente
instigante ; muitos dos projetos de arquitetura dos últimos 20 anos, torna dos
famosos pela imprensa internacional da arquitetura , apresentam características
narcisistas e niilistas.
O olho hegemônico busca o domínio sobre todos os campos da produção
cultural, e parece enfra quecer nossa capacidade de empatia, compaixão
e participação no mundo. O olho narcisista vê a arquitetura como um meio
de autoexpressão e como um jogo intelectual e artístico desvinculado de
associações mentais e societárias, enquanto o olho niilista deliberadamente
promove o isolamento e a alienação sensoriais e mentais. Em vez de reforçar
a experiência do mundo integrada e centrada no corpo, a arquitetura niilista
desconecta e isola o corpo, e, em vez de tentar reconstruir a ordem cultural torna impossível uma leitura da significação coletiva. O mundo se torna
uma jornada visual hedonista, mas insignificante. É evidente que apenas o
distanciamento e a sensação de desconexão da visão permitem uma visão
niilista; é impossível se pensar em um sentido niilista do tato, por exemplo devido às inevitáveis proximidade, intimidade, vera cidade e identificação
trazidas pelo tato. Também existem o olho sádico e o olho masoquista, e
seus instrumentos nos campos das artes contemporâneas e da arquitetura
podem ser identificados.
A atual produção industrial em massa do imaginário visual tende a afastar
a visão do envolvimento emocional e da identificação, e a tornar o imaginário
em um fluxo hipnótico sem foco ou participação. Michel de Certeau
percebe a expansão da esfera ocular de modo extremamente negativo: "Da
televisão aos jornais, da publicidade a todos os tipos de epifanias mercantis nossa sociedade é caracterizada por um crescimento cancerígeno da visão medindo tudo por sua capacidade de mostrar ou ser mostra do e transformando
a comunicação em uma jorna da visual'. A difusão cancerosa de um
imaginário arquitetônico superficial de hoje, destituído de lógica tectônica
e
senso de materialidade e empatia é, sem dúvida, parte desse processo.
Espaço oral versus espaço visual
Mas o homem nem sempre foi dominado pela visão. De fato, o domínio primordial
da audição foi gradualmente substituído pelo da visão. Os textos de
antropologia descrevem numerosas culturas nas quais nossos sentidos privativos
do olfato, paladar e tato continuam tendo importân cia coletiva no comportamento
e na comunicação. As funções dos sentidos na utilização do espaço
coletivo e pessoal de várias culturas foi o tema do livro seminal de Edward
T. Hall, The Hidden Dimension, que, infelizmente , parece ter sido esquecido
pelos arquitetos.
Os importantes estudos de Hall sobre o espaço pessoal
fornecem insights significativos sobre aspectos instintivos e inconscientes de
nossa relação com o espaço e nosso uso inconsciente do espaço na comunicação
comportamental. Os insights do autor também servem como base para o
projeto de espaços funcionais intimistas e bioculturais.
Walter J. Ong analisa a transição da cultura oral para a escrita e seu
impacto na consciência humana e no sentido de coletividade em seu livro Orality
& Literacy. Ele ressalta que "a mudança do discurso oral para o
escrito foi essencialmente uma transição do espaço sonoro para o visual e que "a imprensa substituiu a longa dominância da audição no mundo do
pensamento e da expressão pela domi nância da visão, que teve seu início na
escrita'. Segundo Ong, "[esse] é um mundo insistente de fatos frios e não
humanos ".
Ong analisa as mudanças que a transição de uma cultura essencialmente
oral para a cultura da palavra escrita (e posteriormente impressa) acarretou
na consciência, na memória e na compreensão do espaço do ser humano. Ele
afirma que à medida que a dominância da audição deu lugar à dominância
da visão, o pensamento situacional foi substituí do pelo pensamento abstrato.
Para o escritor, essa mudança fundamental na percepção e na compreensão
do mundo parece irreversível: "Embora as palavras sejam embasadas no discurso
oral, a escrita as prende ao campo visual de forma tirânica e eterna ... uma pessoa alfabetiza da jamais resgatará o sentido que a palavra tem para
aqueles puramente orais".
Na verdade, a hegemonia inquestionável dos olhos talvez seja um fenômeno
bastante recente, apesar de suas origens no pensamento e na ótica da
Grécia Antiga. Segundo a visão de Lucien Febvre: "O século XVI não via, no
início: ele ouvia e cheirava, farejava o ar e captava sons. Foi apenas posteriormente
que ele se envolveu de maneira séria e ativa com a geometria, voltando
sua atenção para o mundo das formas, com Kepler (1571-1630) e Desargues
de Lyon (1593-1662). Foi então que a visão foi liberta da para o mundo da
ciência como já era no mundo das sensações físicas, assim como no mundo da
beleza". Robert Mandrou traça um argumento paralelo: ''A hierarquia [dos
sentidos] não era a mesma [do século XX], pois o olho, que hoje domin a, se
encontrava em terceiro lugar, atrás da audição e do tato, e muito depois deles.
O olho que organiza , classifica e ordena não era o órgão favorito da época mas sim o ouvido".
A hegemonia gradualmente obtida pelos olhos parece ter paralelo com
o desenvolvimento da consciência do ego e o paulatino afastamento do indivíduo
do mundo; a visão nos separa do mundo , enquanto os outros sentidos
nos unem a ele.
A expressão artística se relaciona com os significados pré-verbais do
mundo , significados que são incorporados e vivenciados, em vez de meramente
entendidos de modo intelectual. No meu ponto de vista, a poesia tem a capacidade
de nos devolver momentaneamente ao mundo oral que nos envolve.
A palavra reoralizada da poesia nos devolve ao centro do mundo interior.
"O poeta fala no limiar do ser", como observa Gaston Bachelard, mas isso
também se dá no limiar da linguagem. Da mesma maneira , a tarefa da arte
e da arquitetura , em geral, é reconstruir a experiência de um mundo interior
indiferenciado, no qual não somos meros especta dores, mas ao qual pertencemos
de modo indissolúvel. Nas obras de arte , a compreensão existencial
advém do nosso próprio encontro com o mundo e do nosso estar-no-mun do
- ela não é conceitualizada ou intelectualizada.
A arquitetura da retina e a perda da plasticidade
É evidente que a arquitetura das culturas tra dicionais também está intimamente
vinculada ao conhecimento tátil do corpo, em vez de ser dominada
pela visão e conceitualização. A construção em culturas tradicionais é orientada
pelo corpo do mesmo modo que um passarinho dá forma a seu ninho
movendo seu corpo. As obras de arquitetura autóctones em argila ou barro de várias partes do mundo, parecem nascer dos sentidos musculares e táteis mais do que dos olhos. Podemos inclusive identificar a transição da construção
autócne da esfera tátil para o controle da visão como uma perda de
plasticidade, da intimidade e da sensação de fusão total características dos
contextos de culturas nativas.
O predomínio do sentido da visão observado anteriormente na filosofia
é igualmente evidente no desenvolvimento da arquitetura ocidental. A arquitetura
grega, com seus recursos requinta dos de correções óticas, já era extremamente
refinada para o prazer dos olhos. Contudo, a predileção da visão
não implica necessariamente a rejeição dos demais sentidos, como a
sensibilidade
do tato , a materialidade e o peso peremptório da arquitetura grega
clássica comprovam; os olhos convidam e estimulam as sensações musculares
e táteis. O sentido da visão pode incorporar e até mesmo reforçar outras
modalidades sensoriais; o ingrediente tátil inconsciente que existe na visão
é particularmente importante e muito presente na arquitetura histórica, mas
extremamente negligenciado na arquitetura de nossa época.
A teoria da arquitetura ocidental desde Leon Battista Alberti tem se
envolvido principalmente com as questões de percepção visual, harmonia e
proporções. A afirmativa de Alberti de que "a pintura nada mais é que a
interseção da pirâmide visual que segue determinada distância, um centro fixo
e
certa iluminação" resume o para digma da perspectiva que também se tornou
o instrumento do pensamento da arquitetura. Novamente, devemos enfatizar
que o foco consciente na mecânica da visão não resultou automaticamente
na rejeição deliberada dos outros sentidos antes da nossa era das imagens
visuais onipresentes. Os olhos conquistam seu papel hegemônico na prática
da arquitetura, tanto consciente quanto inconscientemente apenas de modo
gradual, com a ideia de que há um observa dor incorpóreo. O observador se
torna desvinculado de uma relação carnal com o ambiente pela supressão
dos outros sentidos, especialmente por meio das extensões tecnológicas da
visão e da proliferação de imagens. Como afirma Marx W Wartofsky: "a visão
humana em si é um artefato, produzido por outros artefatos, que são as
fotografias".
O sentido dominante da visão aparece muito forte nos escritos dos modernistas. Assertivas de Le Corbusier, como: "Eu existo na vida apenas se posso
ver''; "Eu sou e permaneço um visual convicto - tudo está no visual"; "É
preciso ver claramente para que se possa entender"; " ... Eu insisto que vocês
abram os olhos. Vocês abrem os olhos? Vocês foram treinados para abrir os
olhos? Vocês sabem abrir os olhos, vocês os abrem frequentemente, sempre e bem?; "O homem vê a criação da arquitetura com seus olhos, que estão
a 1 metro e 70 centímetros do solo; e "A arquitetura é uma coisa plástica.
Chamo de 'plástico' aquilo que é visto e medido pelos olhos"
- deixam muito
evidentes a predileção dos olhos na teoria dos primeiros modernistas.
Declarações
posteriores de Walter Gropius - "Ele [o projetista] tem de adaptar o
conhecimento dos fatos científicos da ótica e assim obter uma base teórica
que guiará a mão que dá forma e criará uma base objetiva"
- e de Laszlo
Moholy-Nagy - "A higiene do ótico, a saúde do visível se infiltra aos poucos"
- confirmam o papel central da visão no pensamento modernista.
A famosa máxima de Le Corbusier,
"A arquitetura é o jogo sábio, correto
e magnífico dos volumes reunidos sob a luz", define de maneira
inquestionável a arquitetura dos olhos. Le Corbusier, no entanto, tinha um
talento artístico enorme e mãos que moldavam, bem como um senso tremendo
de materialidade, plasticidade e gravidade, os quais evitavam que
sua arquitetura caísse no redutivismo sensorial. Apesar das exclamações cartesianas e centradas na visão de Le Corbusier, em sua obra as mãos
tinham um papel tão fetichista quanto os olhos. Um elemento vigoroso
da tatilidade está presente nos croquis e nas pinturas do grande mestre, e
essa sensibilidade tátil é incorporada em sua consideração da arquitetura.
Contudo, sua tendência redutivista se torna devastadora em seus projetos
de urbanismo.
Na arquitetura de Mies van der Rohe predomina uma percepção perspectiva
frontal, mas sua sensibilidade única para ordem, estrutura, peso, detalhe
e trabalho artesanal enriquece de forma decisiva o paradigma visual.
Além disso, uma obra de arquitetura se torna excelente precisamente em
função de suas intenções e alusões opostas e contraditórias e seus impulsos
inconscientes para que o trabalho se abra para a participação emocional
do observador. "Em todos os casos, devemos alcançar uma solução simultânea
de opostos", escreveu Alvar Aalto. Em geral, as afirmativas verbais de artistas e arquitetos não devem ser
levadas à risca, pois muitas vezes
elas meramente representam uma racionalização superficial e consciente ou
uma defesa que pode muito bem estar em clara contradição com as intenções
mais profundas e inconscientes que precisamente conferem força vital
à obra desse artista.
Com a mesma clareza, o paradigma visual é a condição prevalente
no planejamento urbano, das cidades ideais da Renascença aos princípios
funcionalistas de zoneamento e planejamento que refletem a "higiene do
ótico". Em particular, a cidade contemporânea é cada vez mais a cidade
dos olhos, desvinculada do corpo pelo movimento motorizado rápido ou
pela efêmera imagem que temos de um avião. Os processos de planejamento
têm favorecido a idealização e a descorporificação dada pelos olhos
cartesianos que controlam e isolam; os planos urbanísticos são visões
extremamente
idealizadas e esquematizadas vistas por meio do le regard surplombant
(a vista de cima), como definiu Jean Starobinski, ou pelo "olho
da mente" de Platão.
Até recentemente , a teoria e a crítica da arquitetura se dedicavam quase
que exclusivamente aos mecanismos da visão e da expressão visual. A percepção
e a experiência da forma arquitetônica na maioria das vezes eram
analisadas com o uso das leis de percepção visual da gesta/e. Da mesma maneira a filosofia da pedagogia tem entendido a arquitetura principalmente em termos de
visão, enfatizando a construção de imagens visuais e tridimensionais do espaço.
Uma arquitetura de imagens visuais
A predileção pelos olhos nunca foi tão evidente na arte da arquitetura como
nos últimos 30 anos, nos quais tem predominado um tipo de obra que busca
imagens visuais surpreen dentes e memoráveis. Em vez de uma experiência
plástica e espa cial embasa da na existên cia humana, a arquitetura tem adota
do a estratégia psicológica da publicidade e da persuasão instantânea; as
edificações ser tornaram produtos visuais desconectados da profundidade
existencial e da sinceridade.
David Harvey relaciona "a perda da temporalidade e o desejo de impacto
instantâneo" na expressão contemporânea à perda da profun didade existencial. Frederic Jameson usa a noção de "superficialidade planejada" para
descrever a condição cultural contemporânea e "sua fixação nas aparências nas superfícies e nos impactos instantâneos que não têm poder de retenção ao
longo do tempo".
Como consequência da avalanche atual de imagens, a arquitetura de
nossa época frequentemente parece ser uma mera arte da retina, do olho completando um ciclo epistemológico que começou com o pensamento e a
arquitetura da Grécia Antiga. Mas a mudança vai além da mera dominância
visual; em vez de ser um encontro corporal de situações , a arquitetura se
tornou uma arte da imagem impressa fixada pelo visor apressado da câmera
fotográfica. Na nossa cultura da fotografia, o olhar intenso é arrasado em
uma imagem bidimensional e perde sua plasticidade. Em vez de experimentar
nossa existência no mundo, a contemplamos do lado de fora, como espectadores
de imagens projeta das na superfície da retina. David Michael Levin usa
o termo "ontologia frontal" para descrever a visão frontal, fixa e focada.
Susan Sontag fez observações interessantes sobre o papel da imagem
fotográfica na nossa percepção de mundo. Ela escreveu, por exemplo, sobre
uma "mentalidade que observa o mundo como um conjunto de possíveis fotografias e afirma que "a realidade cada vez mais parece o que a câmara de
fotografia nos mostra" e que "a onipresença das fotografias tem um efeito
incalculável em nossa sensibilidade ética. Ao preencher esse mundo já
superpovoado com outro duplicado pelas imagens, a fotografia nos faz sentir como
se o mundo estivesse mais disponível do que na realidade está".
À medida que as edificações perdem sua plasticidade e sua conexão com
a linguagem e a sabedoria do corpo humano, elas se tornam isoladas no frio
e distante reino da visão. Com a perda da tatilidade, das medidas e dos detalhes
elabora dos para o corpo humano - e particularmente para as mãos - as
edificações se tornam repulsivamente planas, agressivas, imateriais e irreais.
A desconexão da construção das realidades da matéria e do ofício humano
transforma ainda mais a arquitetura em cenários teatrais para os olhos, em
uma espécie de cenografia destituída da autenticidade da matéria e da
construção. A sensação de "aura", a autoridade da presença, que Walter Benjamin
considera uma caracter ística necessária a uma obra de arte autêntica, se
perdeu . Esses produtos da tecnologia instrumentalizada escondem seus processos
tectônicos, surgindo como aparições fantasmagóricas. A crescente
popularização
do vidro refletivo na arquitetura reforça a sensação de sonho, de
irrealidade e alienação. A transparên cia opaca e contraditória desses prédios
reflete nosso olhar, devolvendo-o sem afetá-lo ou deslocá-lo; somos incapazes
de ver ou imaginar a vida que se desenrola por trás de suas paredes. O espelho
arquitetônico, que devolve nosso olhar e duplica o mundo, é um recurso
enigmático e assustador.
FIM
'As mãos querem olhar, os olhos querem acariciar'
| Goethe
JUHANI PALLASMM é um dos mais renomados arquitetos e teóricos da arquitetura
da Finlândia. Em todos os aspectos de sua atividade teórica e prática
- que inclui obras de arquitetura, projeto gráfico, planejamento urbano e
exposições - ele coloca uma ênfase consistente na importância da identidade
humana, da experiência sensorial e da tatilidade.
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excerto de
OS OLHOS DA PELE
A arquitetura e os sentidos
autor: Juhani Pallasmaa título original: The Eyes of the Skin: Architecture and the Senses (2005)
tradução técnica: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre, 2011.
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