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Choro pelo destino daqueles que nasceram
sem destino:
os cegos de Madrid.
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Choro pelos que arrastam uivos negros entre as sombras do passado
de Madrid. Pelos que dormem encostados aos portais metálicos do ódio. Pelos que vivem lambendo
a sinfónica memória da mutilação.
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Choro pelos cegos de Madrid com a cor exacta da cegueira pendurada no pescoço por um fio.
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Choro em Madrid pela saga esquelética dos gritos na húmida tortura
da grande escuridão.
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Choro lágrimas escuras. Catadupas de lágrimas daquela castelhana escuridade que pingava das lâmpadas
na noite dos comboios da meseta.
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Era um tempo de horários peganhentos. De bolor azedo. Era o terrível tempo das asas anavalhadas
nos ombros das crianças. O trágico tempo dos olhos arrancados
às óbitas das virgens. O arrastado tempo dos trajes bordados a lágrimas a pus e sangue coalhado. O miserável tempo das vísceras boiando em caixas de rímel e pó-de-arroz.
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Era o tempo dos cegos.
O tempo das lágrimas dos cegos.
O tempo dos cegos de Madrid.
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Sobre o quadro "Cegos de Madrid"
Júlio Pomar, 1957
Óleo sobre TelaPomar, cruzando uma já digerida herança neo-realista com Goya e a paleta de Columbano, e sem abandonar o
referente, apropriava assim os expressionismos e gestualismos que dominavam nesta época a cena internacional no campo da pintura. Escolheu uma frase de James
Joyce como epígrafe para estes anos, 1959-66, «Fechemos os olhos para ver.»
O bloco piramidal negro amorfo, de onde surgem
enunciadas a branco as faces cadavéricas dos cegos e os recipientes para recolher esmola, impede qualquer individualização das figuras humanas. A impossível
orientação que procuram, apoiando-se na cegueira uns dos outros, torna-os uma massa que é, no entanto, a única forma reconhecível avançando no total informe que
constitui o fundo. Não se pode evitar recordar o quadro de Bruegel de 1568, Parábola dos Cegos, baseado no que Jesus diz aos Fariseus: «Quando um cego guia outro,
acabam por cair os dois no buraco» (Mateus 15:14). Em 'Os Cegos de Madrid' o espectador é, também ele, votado à cegueira face à queda iminente. in Centro de Arte Moderna Calouste Gulbenkian
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'Os Cegos de Madrid'
poema de José Fanha
in "Marinheiro
de outras luas"
Fonte: blog
Queridas
Bibliotecas [Jan. 2009]
16.Jan.2010
Publicado por
MJA
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